Rio de Janeiro, 09/09/1997. Terça-Feira.
Por volta das duas da tarde, Cássia e Antônio faziam uma externa na Barra da Tijuca, mais precisamente na área externa da casa de Branca e Arnaldo. De longe, os dois acompanhavam todo os trâmites de preparação que antecediam as gravações daquelas cenas sentados em um dos bancos que por ali haviam, um pouco isolados de todo o restante que conversava animadamente. Fagundes, já caracterizado com o figurino que Atílio usaria em sua chegada a casa dos amigos, propôs um bate bola rápido dos textos que trocavam e Cássia que também já estava caracterizada como Isabel, aceitou.
— Eu acho que você pode correr um pouco nessa parte.
— Qual? - ela o olhou por cima dos óculos.
— Nessa que a Isabel diz o que para ela é o amor. - Fagundes apontou o texto da amiga. — Seria legal que o desespero dela ficasse aparente.
— Gostei. - Cássia fez uma careta. — Por falar em desespero, acho que seria legal que o Atílio demostrasse o oposto, como se eles invertessem os papéis. A Isabel ficou receosa de perdê-lo e ele mais arisco com ela. - Cássia apontou com a caneta que usava a parte do texto do amigo que queria exaltar. — Você gosta?
— As suas pontuações são sempre impecáveis, Cassinha. - deram um high five. — A gente tinha que levar algum projeto para o palco, sabia?
— Podemos ver isso para o futuro. - tirou os óculos de grau e colocou os escuros na face. — Por falar no futuro, eu quero conversar com você.
— Sobre? - fechou seus textos e o colocou ao lado.
— Seu casamento. - Cássia cruzou as pernas. — Vocês não podem continuar assim, Fafá.
— Vai dar uma de Lilia agora? - Antônio cruzou as pernas e os braços. — Vai me dar lição de moral?
— Quando que a Lilia te deu lição de moral?
— Na semana passada. Não sei como, mas ela acabou descobrindo onde eu estou morando e resolveu me fazer uma visitinha. - coçou o canto dos lábios.
— E onde você está morando?
— No apartamento da Urca. - a olhou por cima dos óculos. — Então, qual a parte do futuro que você quer abordar?
— O seu casamento, já disse. - balançou os cabelos. — Eu não vou dar uma de Lilia e te dar lição de moral porquê não acho que isso seja certo, você e a Regina não são mais crianças e devem saber o que fazem. - recostou-se no banco. — Você acha mesmo que deve se separar?
— Você aceitaria ser traída, Cacá? - Fagundes olhava para a frente.
— Não aceitaria. - mordeu levemente o lábio inferior. — Se tivesse a certeza da traição eu me separava na mesma hora, sem nem pensar no amanhã. Só que ela não traiu você, Fafá.
— Cássia...
— Deixa eu falar, por favor. - segurou em sua mão. — A Regina não traiu você. Você acha mesmo que se ela tivesse um amante, teria ficado daquela forma nas gravações do casamento? Se ela tivesse um amante nem ligaria para você e não é isso que acontece. - brincou com as unhas dele. — Nem com ela e nem com você. Vocês se preocupam demais um com o outro e só estão no estágio que estão hoje porque desaprenderam a se ouvir. O Antônio e a Regina de nove anos atrás jamais apoiariam as atitudes do Antônio e da Regina de hoje, e sabe por quê?
— Por que?
— Porque eles conversavam. Podia estar acontecendo o inferno que fosse, mas eles conversavam e é isso que está faltando em vocês hoje: diálogo. - Cássia desfez o contato. — Eu sei que não é fácil. Dar o braço a torcer é difícil demais, mas porra... Acabar desse jeito? Você não sabe como eu fiquei feliz de ver vocês dois aos beijos naquele dia porque significa que vocês não são indiferentes um ao outro.
— Aquele beijo foi um erro. - Fagundes constatou.
— E por quê foi um erro?
— Porque agora eu estou mais confuso do que estava antes. Eu não consigo olhar para ela e não lembrar daquelas malditas fotos. Toda vez que eu olho para ela, a vejo com o Gorgulho nos braços. Isso é humilhante.
— Quem entregou aquelas fotos agiu de muita crueldade, mas elas não são reais.
— Não me parecem montagens.
— E não são. - anuiu. — Estou falando de real, no sentido de apresentar a realidade dos fatos. Aquelas fotografias não são reais porque elas não mostram a verdade.
— Posso te confessar uma coisa?
— Claro.
— Promete segredo? Segredo absoluto?
— Prometo, claro que prometo.
— Eu sinto a falta dela. - Fagundes abaixou a cabeça. — Todos os dias. Mas eu não consigo olhar na cara dela sem sentir raiva, sem sentir mágoa, sem querer jogar ela de um penhasco. Mas por outro lado, eu não tenho nenhuma coragem de fazer isso porquê por mais que eu odeie admitir, meu amor pela Regina ainda não acabou. E eu me culpo por isso.
— Se culpa por quê, Fafá?
— Porque eu não posso amar uma mulher que eu não confio. - voltou seu olhar a Cássia. — Não posso amar uma mulher que não me dê estabilidade. Eu tenho quarenta e oito anos, Cássia, não sou mais um menino. Instabilidade é coisa de adolescente, eles acham legal. Eu não.
— E como você acha que ela se sente? A Regina já passou dos cinquenta, Fafá. Ela nunca gostou da mesmice e a gente sabe disso, mas ela nunca foi desleal ou infiel a você. Ela nunca usou você para nada.
— Cássia, vem. Vamos gravar. - Ary Coslov a chamou.
— Já vou. - a atriz se levantou. — E ela nunca foi cruel com você, não propositalmente. - ajeitou os cabelos rapidamente. — Você não pode dizer o mesmo. Você feriu muito a minha amiga. Na tentativa de sair por cima, acabou colocando os pés pelas mãos e fazendo o que não devia.
— Mas Cássia...
— Sem "mas". Você sabe que errou. Errou muito e talvez seus erros sejam irreversíveis. - abriu os braços como se lamentasse. — Tomara que ainda haja algum relacionamento para ser salvo. Tomara que vocês não se tornem indiferentes e que ainda consigam salvar esse casamento. Seria uma pena ver um amor tão bonito virar pó por falta de diálogo.
Cássia deu um beijo na testa do amigo, ajeitou seu maiô e seguiu para receber as instruções de Ary ao gravar uma cena com Susana Vieira. Fagundes cruzou os braços e respirou fundo tentando processar tudo o que havia escutado da boca de Cássia Kiss. A amiga de tantos anos havia dito tantas verdades em tão pouco tempo que era difícil de associar e tentar fazer que fizesse sentido em sua cabeça. Não era fácil perdoar, não era fácil ser perdoado. Mas também não deveria ser tão difícil deixar de amar.
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Regina Duarte chegou em sua casa no meio da tarde e ficou um bom tempo debaixo do chuveiro de sua suíte. Dispensando a água quente porque o calor do Rio estava demais, a atriz entregou-se a um banho gelado por mais de meia hora. Dentro de seu box tinha uma espécie de banco onde poderia se recostar e deixar com que a água apenas escorresse por todo seu corpo sem fazer muito esforço para relaxar. Ao sair do banho, foi direto para seu closet que ainda tinham muitas coisas do ainda marido, passou uns cremes no rosto, passou perfume, colocou roupas leves, penteou os cabelos molhados e desceu para a cozinha a tempo de ver Rita batendo um bolo.
— Qual é a ocasião especial? - Regina escorou-se na entrada do cômodo.
— De quê? - olhou a patroa.
— Esse bolo aí. - apontou com o queixo.
— Tédio. - provou a massa crua. — Já fiz tudo o que tinha para fazer e fiquei entediada.
— Queria ter a metade da sua eficiência com os afazeres domésticos. - entrou de vez na cozinha e se sentou na pequena mesa que tinha ali. — Alguém ligou?
— A Tereza. Disse que vocês não se falavam há muito tempo e queria saber das crianças. - olhou a patroa. — Gabriela ficou esperando você para sair.
— O Bira sabia que eu não ia gravar hoje, falei com ele ontem. - cruzou as pernas. — Tem correspondência?
— Estão na mesa de centro da sala.
— João já deu notícia? - a atriz foi até a geladeira, pegou uma garrafa com água e dispôs em um copo.
— Foi dar uma volta com os garotos. - falou enquanto despejava a massa na forma.
— E a Gabi?
— O que tem eu?
Gabriela Duarte entrou na cozinha sem nem fazer barulho, o que causou o susto das duas mulheres que saltaram com as mãos no peito. Regina fazia uma cara de pavor tão grande que foi impossível sua filha não achar graça.
— Pelo amor de Deus, Gabriela! Precisava chegar assim?
— Assim como? - se olhou. — Estou feia?
— Você é sonsa, menina... - Regina jogou o pano de prato na filha.
— Já vai me agredir? - segurou o pano e foi até Rita. — Me protege dela.
— Eu? Você quase me fez derramar todo o bolo. - a mulher abriu o forno e colocou a massa ali. — Dessa vez eu não te defendo.
— Que absurdo, Rita. - a jovem estreitou os olhos e foi até a mãe. — Posso saber onde a senhorita foi?
— Resolver umas coisas. - olhou a hora. — Era para você ter chegado aqui antes da uma da tarde, posso saber onde a senhorita foi?
— Fiquei na Globo vendo o pessoal gravar e depois saí para dar uma volta com a Ingrid.
— Ela nunca mais veio aqui. Chama ela para vir passar uma noite um dia desses, tenho uma saudade quando vocês estavam fazendo peça juntas e viviam fazendo algazarra.
— Me lembro da sua saudade. - ironizou. — Quem vê assim até pensa que nunca xingou a gente por querer dormir.
— Eu tinha gravado o dia todo também, né? Me dá um desconto. - arqueou uma sobrancelha. — Se bem que naquela madrugada vocês tinham tomado um porre vergonhoso.
— Nem me lembra disso! - Gabriela fez o sinal da cruz. — Nunca mais cheguei perto de Montilla por causa daquele porre.
— Vocês gritavam tanto que até me acordou. - Rita riu. — Não sei como vocês não acordaram com ressaca.
— A Ingrid perdeu uma reunião no dia seguinte, quase perdeu um contrato. - a jovem gargalhava. — Eu estava me preparando para fazer a Ritinha e cheguei na Globo parecendo que ia a um enterro.
— Por causa de uma aposta, a Dina me fez beber uma garrafa quase toda de conhaque. Fiquei anos sem beber por causa dela. - Regina ficou nostálgica. — Lembra quando fomos a Cuba?
— Lembro. Foi nessa época?
— Não, é que quando voltamos de lá eu trouxe para ela uma garrafa de rum. Ela bebeu a garrafa toda em uma noite e ficou fazendo imitações da Bette Davis em Jezebel. - Regina sorriu. — Ela nunca mais chegou perto de rum, disse que eu tinha batizado a garrafa.
— Eu sinto falta da tia Dina. - Gabriela alisou o ombro da mãe.
— É, eu também sinto.
Regina bebeu um pouco da água no copo tentando dissipar a rápida melancolia que fez morada em seu coração. Sentia falta de Dina Sfat quase todos os dias, mas aprendeu a lidar com a saudade que tinha da amiga lembrando-se sempre com felicidade das inúmeras aventuras que viveram. O telefone tocou e Rita se preparou para atender, mas foi barrada pela patroa.
— Vai descansar, Rita. Eu atendo e olho o bolo.
— Tem certeza?
— Tenho, vai lá. - a atriz correu até a sala, pegou o telefone e enquanto colocava ele na orelha, voltava para a cozinha. — Alô?
— Regina?
A voz infantil fez com que a atriz parasse no meio do caminho e estreitasse os olhos. Ela reconheceria aquela voz mesmo que ficasse surda. O amor que sentia pelo dono da voz era tão grande que partia seu coração não estar perto dele diariamente.
— Regina, eu estou com saudades.
— Meu menino, eu também estou morrendo de saudades de você. - a atriz entrou na cozinha fazendo com que Gabriela olhasse a mãe com estranhamento. — Sua mãe sabe que você está me ligando?
— Sabe, eu pedi e ela deixou. - Bruno Fagundes balançava seus pés sentado no sofá de sua casa. — Quando você vai me levar no cinema?
— Quando você vier aqui me ver. - sorriu afetada, sabia que agora quase não veria o menino por estar separada do pai dele. — Como vão as coisas na escola?
— Eu tirei oito na prova de matemática!
— Mas que maravilha, você merece um prêmio. - se empolgou. — Você é um menino muito inteligente, Bruno. Eu nunca fui boa em matemática, sabia?
Quando conseguiu captar com quem a mãe falava, Gabriela sorriu sem jeito e saiu da cozinha rumo a sala.
— Sério? Eu posso te ensinar.
— Claro que pode! E pode dar uma ajudinha para o João também, ele é péssimo em matemática.
— Eu também estou com saudade dos meus irmãos, Regina. Cadê a Gabriela e o João?
— O João está na rua e a Gabriela, trabalhando. - o coração a atriz estava pequeno como uma ervilha. — Você está bem, Bruno?
— Estou. - balançou as pernas. — Quando eu for aí, você me leva no seu trabalho?
— Se o seu pai deixar, não tem problema.
— Cadê ele?
— Seu pai?
— É!
— Trabalhando, liga para o celular dele. Quer o número?
— Eu tenho, só que eu escolhi ligar para você.
A campainha do apartamento tocou e Gabriela que estava na sala, foi atender. Regina, que ainda estava tagarelando com Bruno no telefone, foi a passos calmos até a sala onde viu a filha mais branca que um papel parada com a porta aberta e os olhares fixos na figura que estava ali.
— Só um instante, meu amor. - afastou o telefone do ouvido. — Quem é, filha? - Gabriela estava sem reação. — Meu Deus, Gabriela, fala alguma coisa.
Regina foi até a porta e viu o que estava causando a falta de reação da filha. Quem estava ali parada com uma bolsa na mão era um tanto inusitada, mas não era uma completa surpresa.
Lídia Fagundes.
A mãe de Antônio Fagundes.
A sogra de Regina Duarte.
A atriz despediu-se de Bruno rapidamente pelo telefone sem dar a entender que era ele do outro lado da linha, jogou o aparelho no sofá e abriu os braços para a sogra que não hesitou em abraçar a nora fortemente. Regina sorria de nervoso, coitada. E Gabriela estava tão sem reação que demorou a perceber que a mãe fazia mímica para a filha tentar fazer contato com o ator.
— Qual o motivo da ilustre visita? - Regina desfez o abraço e olhou a sogra, ou ex sogra. — Entra, por favor.
— Eu tive que vir ao Rio para resolver uns problemas com o apartamento de Copacabana e acabei vindo para cá. - a senhora alisou seus curtos cabelos. — Posso passar a noite aqui, não posso?
— Cla-claro que pode. - fechou a porta. — O quarto do Bruno está livre, pode ficar à vontade.
— Mas como você está bonita, minha nora. - Lídia sorriu. — Esse seu corte de cabelo ficou ótimo!
— Gostou mesmo? Eu estranhei um pouco no início, mas acabei me acostumando. - apontou sua filha. — Lembra dela, dona Lídia?
— Claro que sim. - abraçou Gabriela rapidamente. — Você está muito bonita, como vai?
— Obrigada. - segurou as mãos da sogra da mãe. — Muito trabalho, mas bem. E a senhora? - deu um sorriso amarelo.
— Tudo na santa paz do senhor. - Lídia olhou para mãe e filha. — Os anos passam e eu continuo me assustando com a semelhança de vocês duas. Como são parecidas!
— Todos falam isso. - Regina riu. — Minha sogra, eu tenho um bolo assando no formo, vamos para a cozinha? - segurou em sua mão. — Gabriela leva sua bolsa para o quarto.
— Claro, estou morrendo de sede com esse calor insuportável lá de fora.
Regina indicou o caminho da cozinha para a sogra e enquanto ela caminhava, fez mímica para Gabriela voltar para a realidade e agir. Lídia Fagundes não era burra, ela captaria na hora qualquer sinal de que alguma coisa estava errada. Quando as duas saíram da sala, a intérprete de Maria Eduarda quase caiu de tanto nervoso. Suas mãos estavam geladas e suas pernas, bambas. A presença de mãe de Antônio em sua casa não era incômodo, mas a separação dele e de sua mãe, era.
A jovem pegou a bolsa de Lídia e subiu correndo o segundo andar, mais precisamente seu quarto. Deixou a bolsa em cima da cama e enquanto acendia um cigarro, andava de um lado para o outro tentando fazer com que sua cabeça tivesse uma ideia para que sua mãe saísse dessa arapuca, e ela teve. Pegou o celular e depois de olhar na agenda, ligou para um número rezando para que atendesse.
— Alô, Fafá? - se sentou na ponta da cama. — Graças a Deus!
— Gabriela? - Fagundes tinha acabado de entrar em seu carro. — O que aconteceu? - o tom afobado da enteada fez o ator se alarmar. — Sua mãe está bem?
— Minha mãe está bem, mas aconteceu uma coisa.
— Você está me preocupando, o que foi?
— Sua mãe chegou e disse que ia passar a noite aqui. - despejou de uma vez.
— O QUÊ? - o coitado passou a mão nos cabelos grisalhos. — Que horas ela chegou?
— Não fazem dez minutos.
— Gabriela, a minha mãe não sabe que Regina e eu estamos separados.
— Eu imaginei que sim. - tragou seu cigarro. — Ela chegou chamando minha mãe de nora. - jogou a fumaça para o ar.
— Mais esse problema agora... - abriu a bolsa que carregava. — Eu acabei de fazer uma externa agora, ainda tenho que voltar para a Globo e gravar mais algumas cenas. Só devo sair de lá na hora do jantar.
— E o que a gente faz? - tragou o cigarro de novo, estava muito nervosa. — Ela vai ter que saber que você não mora mais aqui.
— Eu sei que sim, não vou esconder isso dela. - colocou seus textos na bolsa e fechou-a. — Sua mãe está com o telefone celular por perto?
— Deve estar, ela não desgruda daquele aparelho.
— E onde você está?
— No quarto. Se eu ligasse da sala elas ouviriam tudo.
— Eu tive uma ideia para tentar contornar isso, por enquanto tenta não dar muita pinta do que está acontecendo. - Fagundes ligou o carro. — Daqui a pouco eu ligo de volta.
— Ok, até.
— Um beijo.
Enquanto Gabriela tentava achar uma saída e Regina se mantinha com Lídia na cozinha, João Ricardo entrava em casa com seu skate na mão e assoviando uma música qualquer. O futuro cineasta fechou a porta a tempo de ver Rita saindo de um dos banheiros do andar de baixo com os olhos arregalados.
— Que foi? - deixou o skate encostado na parede. — Parece que viu um fantasma.
— Quase isso. - se aproximou e sussurrou. — A mãe do seu Fagundes está aqui.
— O quê? - o garoto arregalou os olhos. — Que horas ela chegou?
— Umas meia hora. - olhou o relógio em seu pulso. — E disse que vai dormir aqui.
— O Fafá sabe disso? - Rita deu de ombros. — Onde elas estão?
— Na cozinha. - apontou discretamente. — O que a gente vai fazer?
O telefone celular de Regina começou a tocar em cima da mesa de centro e João correu até o aparelho. O tirou de dentro da capa de couro e viu que no pequeno visor laranja acusava o nome de Antônio Fagundes. O telefone celular de Regina e de todos da casa era o Motorola StarTAC, lançado no ano anterior na coloração preta, que era a padrão.
— É ele. - olhou para Rita.
— Fagundes? - João assentiu. — Atende logo, menino! - balançou as mãos.
— Alô? - colocou o aparelho no ouvido.
— Quem é? - Fagundes olhou o visor. — Será que eu liguei errado?
— Não ligou, é o João quem está falando. - o garoto se sentou no sofá. — Cara, deu merda.
— Eu já estou sabendo, Gabriela me contou. - disse enquanto guiava seu carro. — Onde está sua mãe? Quero falar com ela.
— Na cozinha, espera aí.
João se levantou, respirou fundo e caminhou até a cozinha do apartamento que morava. Chegando lá, viu Lídia fazendo alguma coisa no fogão enquanto Regina olhava para a sogra tentando saber o que fazer. O garoto se aproximou, cumprimentou a sogra da mãe de longe e estendeu o telefone celular a ela.
— Quem é? - segurou o aparelho.
— Fafá.
Regina saiu da cozinha a passos ágeis e foi direto para a sacada, mas não sem antes parar em sua caixa de cigarros e pegar um deles.
— Pode falar.
— Me desculpe por isso. - suspirou. — Eu não imaginei que a minha mãe faria uma visita surpresa, principalmente no meio da semana.
— Por que você não falou para ela que nós estamos separados, Antônio? - Regina tirou seu isqueiro do peito e acendeu o cigarro. — Você saiu de casa fazem quinze dias.
— Você contou os dias? - o homem parou no sinal e arqueou uma de suas sobrancelhas.
— Eu contar ou não contar os dias não é a pauta desse assunto, a estadia da sua mãe, é. - tragou o fumo. — Ela disse que vai dormir aqui, o que eu vou fazer? Está todo mundo em pânico.
— Por que todos estão em pânico? - colocou o carro de volta em movimento. — O que assusta tanto vocês?
— Você é maluco ou se faz, não é possível... - balançou a cabeça em negação. — Você não mora mais aqui e sua mãe chegou aqui dizendo que vai passar a noite aqui. Percebeu a incoerência?
— Eu não tive tempo de falar com ela, Regina. - Fagundes engrossou a voz. — E simplesmente não vou poder chegar e tirar minha mãe daí sem nenhuma explicação.
— Ok, então o que você sugere que façamos? - Regina passou a andar de um lado para o outro na sacada. — Que eu finja que ainda sou sua esposa e que tudo entre nós está maravilhoso, que meus filhos finjam que ainda são seus enteados e minha empregada finja que você ainda é patrão dela?
— Tirando a ironia, é isso mesmo. - virou na rua do Projac. — Foi exatamente isso que eu pensei.
— Você só pode estar ficando maluco, Antônio. - tragou seu cigarro novamente.
— E você quer que eu faça o quê? Que eu chegue aí e fale: "mamãe, você não pode mais vir aqui porquê sua ex nora é uma adúltera e me colocou um par de chifres?"
— Antônio, vá para a casa do cara... - a atriz se policiou, não queria se estressar. — Eu não vou perder a paciência com você, juro que não.
— Podemos competir quem perde a paciência primeiro, acho que estou ganhando só porque ouvir a sua voz me dá raiva. - pisou fundo no acelerador.
— E a sua me causa nojo. - tragou novamente o cigarro que já estava pela metade. — Estou enojada de você.
— Ótimo, quanto mais sentimentos negativos tivermos um pelo outro, melhor será a nossa atuação para a minha mãe. - entrou na emissora. — Estou aí na hora do jantar.
Fagundes desligou o telefone celular na cara de Regina que já vermelha de raiva, varou pela sacada da cobertura o cigarro que fumava sem nem se importar se atingiria alguém.
A noite seria maravilhosa para não dizer o contrário.
*********
A noite caiu e junto com ela o tradicional céu estrelado que anunciava a chegada da primavera daquele ano. As portas de vidro que levavam a sacada daquele apartamento estavam todas abertas deixando todo o primeiro andar emanando o cheiro da maresia.
Tudo parecia um sonho, algo irreal, absurdo e utópico. A mesa retangular abrigava oito cadeiras em sua volta, três em cada lateral e duas dispostas em cada cabeceira. As sete e meia da noite, todos ajudavam Rita a pôr a mesa e deixar o bolo que no meio da tarde foi preparado na cozinha para ser servido de sobremesa. Regina se sentou em uma ponta, Gabriela em seu lado direito, João ao lado de Gabriela e Lídia Fagundes ocupava o lugar ao lado do rapaz. Em silêncio, todos se servriam e começaram sua refeição.
Antônio Fagundes foi liberado de sua gravações às sete da noite. Recusando o convite de Petraglia para beber alguma coisa na orla da Barra, o ator dirigiu como louco do portão quatro do Projac na Estrada de Curicica, até o número 3600 da Avenida Lucio Costa e mesmo assim não conseguiu chegar antes do horário que sabia que o jantar seria posto na mesa.
Todos ouviram quando a porta foi destrancada pois comiam em silêncio. Regina contou mentalmente os exatos sete segundos que o homem demorou para atravessar o imóvel para chegar a sala de jantar. Todos voltaram a atenção a ele. Fagundes estava esbaforido, cansado e arfante como se tivesse corrido a maratona de Boston. Lídia sorriu abertamente se levantou para abraçar o filho.
— Correu muito?
— O trânsito estava infernal, mamãe.
Enquanto eles se abraçavam, Gabriela olhou para Regina e conversaram sem fazer nenhum som. A jovem questionava a mãe se ela acabaria ou não com aquela farsa e a resposta foi negativa, ela iria até o fim.
— Por que não avisou que vinha quando conversamos na semana passada?
Fagundes apertou o ombro de João, beijou os cabelos de Gabriela e o rosto de Regina que lhe ofereceu em troca o que se pode chamar de tentativa de sorrir. Ela não sorria pois havia acabado de perceber a omissão de seu futuro ex marido.
— Porque eu não sabia que viria. - Lídia se sentou. — O apartamento de Copacabana deu infiltração e o síndico me ligou as pressas.
— Eu poderia ter resolvido isso para a senhora. - Fagundes se sentou na outra cabeceira, de frente a futura ex esposa. — Ou ter mandado alguém ir lá.
— E perder a oportunidade de vir ao Rio? - balançou a mão. — De jeito nenhum. E você só vive ocupado.
O intérprete de Atílio se serviu enquanto conversava com a mãe e João cutucou Gabriela por baixo da mesa pois estava ficando insuportável aquele clima, a jovem só abaixou a cabeça.
— Por que você não me avisou que teria folga, Regina?
Gabriela levou a taça de vinho a boca para conter as batidas desenfreadas de seu coração e sua tremedeira. João respirou fundo e brincou com a sogra da mãe com uma piscadela.
— Porque eu não tive folga, meu bem. - a atriz disse enquanto cortava um pedaço da carne em seu prato.
— Então foi só uma falta sem motivo? - Fagundes levou o garfo a boca.
— Quase isso. - Regina bebeu um pouco da água em sua taça depois de arquear a sobrancelha. — Por que você se atrasou para o jantar? - descansou a taça na mesa.
— O trânsito estava infernal, nem te conto. - coçou a cabeça. — O Petraglia ainda me chamou para esticar, mas eu recusei.
— E por quê? - estreitou os olhos.
— Porque estar com vocês é mais importante. - sorriu. — Eu não troco a minha família por nada nesse mundo.
Os dois combatiam com os olhares e com as palavras que trocavam. Gabriela sofreu de um acesso de tosse e foi ficando tão vermelha quanto a blusa que João usava naquela noite. Regina olhou a filha de relance e estendeu uma taça de água a ela.
— Beba um pouco.
— Des-desculpe por isso, me engasguei. - a moça levou o guardanapo a boca. — Engoli rápido demais. - se abanou um pouco.
— Quer ajuda, minha filha? - Lídia se preocupou.
— Não precisa. - Gabriela balançou a mão. — Já estou boa.
— Tem certeza? - João se preocupou e recebeu uma piscadela cúmplice em resposta. — Mamãe, no final de semana eu posso sair com os meninos? Eles querem ir à Saquarema.
— Vocês iriam na sexta e voltariam no domingo? - João assentiu. — Que horas?
— Lá pelo final da tarde.
— Quando eu chegar do trabalho amanhã te dou a resposta. - piscou.
— Eu estou muito feliz de estar aqui hoje com vocês. - Lídia sorriu. — Mesmo chegando sem avisar, vocês me receberam muito bem. Eu não poderia estar mais feliz com a família linda que meu filho tem. - segurou a mão de Fagundes. — Adoro a minha nora... - mandou um beijo para Regina. — Adoro meus netos postiços... - piscou para Gabriela e João. — E adoro esse filho ingrato que nunca me procura. - deu um tapa na mão de Antônio.
— Mas que injustiça, mamãe! - deu um breve risada. — Quem ouve assim pensa que a gente nunca se vê e não é verdade. A gente se fala sempre.
— Estou sentindo uma dor de cabeça terrível, me desculpem, mas eu vou me retirar. - Regina terminou de beber o vinho que estava disposto na outra taça e se levantou. — Minha sogra, fique à vontade, viu? Se precisar de qualquer coisa é só bater lá no quarto. - andou até Lídia e beijou seu rosto. — Tira a mesa, por favor. - olhou para Antônio.
— Sem problemas. - assentiu.
— Com licença.
A atriz subiu as escadas rumo ao segundo andar a passos ágeis e seu coração batia tão descompassado dentro do peito que era difícil até de respirar. A atriz entrou em seu quarto e foi direto para a suíte, onde molhou o rosto e se olhou no espelho se sentindo mais humilhada do que nunca. Não fazia sentido se submeter a aquele tipo de situação para poupar alguém que não tinha poupado ela da humilhação. Desceu o olhar para suas mãos e se fechasse os olhos conseguia sentir claramente o formigamento que teve ao desferir um tapa na face de seu futuro ex marido no escritório de Manoel Carlos.
Regina Duarte não era tão forte como queria mostrar e por isso, chorou. Mas as lágrimas caíam em silêncio, ela não soluçava e nem esperneava. Aquelas lágrimas estavam ali para mostrar que ela não era feita de aço e estava a beira de um colapso.
Enquanto isso no andar de baixo, Fagundes, Lídia, Gabriela e João compartilhavam da sobremesa. O bolo feito por Rita era agraciado pela cobertura feita pela mãe do ator deixando todos ali satisfeitos. Após a refeição, todos tiraram a mesa e lavaram a louça suja. Rita havia sido dispensada de seus serviços assim que serviu o jantar e por isso nenhum dos quatro incomodaram a mulher em seus aposentos para voltar ao trabalho, não era necessário.
Gabriela se recolheu após despedir-se de todos os presentes pois embora estivesse de folga pelos proximos dois dias, ainda tinha textos para estudar. Eduarda ganharia mais destaque com o desenrolar da trama e isso exigia mais empenho e dedicação de sua parte. Lídia Fagundes se recolheu para o quarto no qual dormiria deixando que Antônio e João Ricardo ficassem sozinhos. O jovem foi para a uma das salas e ligou a televisão para depois o padrasto sair da biblioteca com seu cachimbo recém aceso.
— Não vai se recolher também?
— Não tem nada para fazer no meu quarto. - disse enquanto mudava de canal.
— Ah. - Antônio se sentou na poltrona. — O que você está vendo?
— Nada ainda. - continuou mudando de canal.
— João, pode falar o que está te incomodando. - o homem cruzou as pernas.
— Que teatro foi aquele? - o garoto desligou a televisão e olhou nos olhos do padrasto. — Por que todo aquele fingimento?
— Para poupar a minha mãe.
— E quem se preocupou em poupar a minha? - largou o controle em cima da mesa de centro. — Ninguém se perguntou como ela estava se sentindo.
— Eu sei. - abaixou a cabeça. — Desculpe por isso.
— Não é a mim que você deve desculpas, é a ela, Fafá. A mamãe não é o seu saco de pancadas, ela não é insensível. Ela está sofrendo, cara. - coçou os cabelos. — E o que parece é que você está se divertindo em ver ela assim.
— Mas não estou. - tragou o cachimbo. — Isso não é engraçado.
— Me diz uma coisa?
— O quê? - o olhou.
— Como você consegue ter a cara de pau de dividir o mesmo teto que ela depois de tudo o que aconteceu entre vocês? - fez o número dois com a mão. — Ou você é sádico... - abaixou o dedo médio. — Ou masoquista.
— Por que essa agressividade toda, João?
— Porque eu estou vendo a minha mãe definhar sem que eu possa fazer nada, merda! - o garoto tinha um mix de raiva e tristeza em sua voz. — Eu só vi ela triste de verdade três vezes na vida.
— E quais foram? - Fagundes queria chorar, mas não o fez. Queria se manter firme de frente ao garoto.
— Uma foi quando a vovó morreu. A mamãe ficou arrasada e a nossa única saída foi tirar ela do país, lembra? - o homem assentiu. — Com o tempo ela foi ficando bem, voltando a sorrir.
— E as outras duas? - tragou o cachimbo de novo.
— Fazem muitos anos, mas se eu fechar os olhos, consigo ver claramente o dia que ela apanhou do Del. - João se recostou no sofá enquanto brincava com a barra da blusa. — A Gabi com uma faca na mão, o Dré com raiva, a vovó chorando e a mamãe lá caída no chão cheia de sangue.
As lágrimas ardiam a face do garoto e Antônio também não aguentou. Lágrimas doloridas deslizavam por sua face ao ver a tristeza genuína no tom de voz e na postura do ainda enteado. Se arrependimento matasse, ele não teria feito acontecer aquele teatro.
— Eu vi a mamãe toda roxa, machucada, triste, mas por incrível que pudesse parecer, ela ainda tinha brilho nos olhos. A vontade de viver estava lá mesmo que ela estivesse destruída e o motivo eu só fui saber depois de muito tempo.
— Qual era o motivo? - secou as lágrimas com os dedos.
— Ela tinha você. - João ergueu o olhar ao padrasto. — Quando vocês se casaram e o Dré não quis morar a gente, eu estranhei um pouco e aí eu depois entendi que ele culpava você por aquele dia. Por ver a mamãe sofrer, por ver a mamãe machucada. - secou as lágrimas com o verso da mão. — Mas ela ainda sim continuava sorrindo. Aquele sorriso irritantemente alegre que ela sempre dava quando estava ao seu lado.
— Nós fomos mesmo muito felizes, João. - Antônio respirou fundo contendo os soluços, mas sua voz permanecia embargada. — Eu amei verdadeiramente a sua mãe, abri mão de coisas que jamais pensei perder por causa dela, vivi coisas incríveis ao lado dela e também fui muito alegre. A Regina sempre foi o meu porto seguro, alguém em que eu pudesse me sustentar quando fraco, sabe? - tragou o cachimbo. — Quando o Bruno nasceu eu pensei que a gente se separaria, mas não foi assim. Ela ficou ali e nunca duvidou do que eu sentia por ela, mas as coisas mudaram e a gente acabou por ficar do jeito que está hoje. - fungou. — Eu não queria que tivesse sido dessa forma, mas acabou sendo.
— A terceira vez que eu vi a minha mãe triste foi quando vocês pararam de dar certo. Vocês brigavam, discutiam e ao contrário do que sempre acontecia, ela não sorria mais, ou quando sorria não era de verdade. - tirou o chinelo e colocou os dois pés no sofá. — E aí eu percebi porquê ela não estava mais sorrindo.
— Por que?
— Porque ela estava perdendo você e isso não era algo que ela podia controlar. - mexeu as sobrancelhas e se levantou. — Acaba logo com essa história e se separem de uma vez, chega de fazer a mamãe sofrer, cara. Você tem os seus motivos e eu não tenho nada haver com isso, imagino que não deve ser fácil e que você não deve estar sofrendo menos do que ela nessa história toda. E por isso que eu te peço, para de fazer a minha mãe chorar. - o garoto virou as costas e foi em direção as escadas do apartamento.
— João Ricardo? - Fagundes elevou o tom de voz para que pudesse ser escutado.
— O que foi? - parou no início da escada.
— Você com quase dezesseis anos é mais homem do que eu com quarenta e oito jamais fui. - tragou o cachimbo. — E eu respeito muito você por isso.
Algum tempo depois, a televisão do quarto exibia a novela das oito enquanto Regina mexia em seus textos. A atriz estava sentada em sua cama, suas costas estavam encostadas na cabeceira enquanto suas pernas estavam encolhidas, já vestia sua camisola pois quando acabasse de separar os volumes, dormiria. Seus cabelos negros estavam presos com a ajuda de uma presilha para que assim não dificultasse sua leitura e estava tão entretida em seu trabalho que quase saltou quando bateram na porta.
— Pode entrar.
Quem abriu a porta o fez de forma vagarosa, penosa, quase se como não quisesse o fazer. Antônio segurou na maçaneta com tanta força que mais um pouco poderia quebrá-la, mas não quebrou. Colocou a cabeça para dentro do cômodo e olhou para Regina que o olhava por cima das lentes dos óculos. Ela estava linda, aquela camisola azul escura caía muito bem nela e o ar condicionado que jogava o vento gélido contra seu corpo deixava com que ela ficasse ainda mais atraente, principalmente por deixar os...
— Pois não? - ela inclinou a cabeça.
— Eu preciso trocar de roupa e tomar um banho, posso entrar?
— Claro. - balançou a mão como se mostrasse o quarto. — Esse apartamento ainda é seu.
— Com licença.
Fagundes entrou de vez no cômodo e foi a passos ágeis para o closet para vê-lo exatamente da forma que o deixou quando apareceu ali da última vez. Nada estava mexido, nada estava alterado, até as alianças que estavam na penteadeira da última vez, ainda estavam lá. O ator abriu a parte que ainda era sua, pegou uma toalha, seus cremes e zarpou para a suíte trancando-a pelo lado de dentro.
Regina perdeu toda a concentração e após o homem ir tomar seu banho, ela se levantou da cama e foi direto para a sacada fumar um cigarro. Odiava como se sentia, odiava balançar sempre que o via, odiava sentir ódio dele, odiava amar ele como ainda amava. A atriz andava de um lado para o outro enquanto escutava o chuveiro ligado morrendo de vontade de colocar aquela porta abaixo e encher aquele homem de socos e pontapés, mas não o fez. Respirou fundo e tentou encontrar seu eixo enquanto fumava seu cigarro.
Antônio saiu da suíte já vestido com o pijama, bem perfumado e secando seus cabelos com a toalha. Voltou seu olhar para a cama e quando não viu Regina, redirecionou seus passos até a sacada para vê-la sentada nos degraus que levavam a hidromassagem que tinha ali. Ela estava de cabeça baixa massageando a nuca enquanto mantinha o cigarro nos lábios.
— Algum problema? - ela perguntou.
— Nã-não. - Fagundes ficou sem jeito. Regina conhecia até o modo como ele caminhava. — Só vim agradecer pelo quê você fez hoje, foi muito legal.
— Não por isso. - levantou a cabeça e bateu a cinza do cigarro no chão. — Algo mais?
— Eu... Eu queria pedir desculpas pelo transtorno de hoje também. - deu de ombros. — Não deve ter sido fácil.
— E não foi. - se levantou e desceu os degraus. — Mas como pode ver... - abriu os braços. — Não me tirou nenhum pedaço aparente. - Regina atravessou a sacada, adentrou o quarto e foi até a porta. — Agora se você me der licença, tenho que terminar de trabalhar.
Antônio queria tanto que não tivessem acabado daquela forma, queria que não houvesse tanto amargor, tanta fúria, tanta raiva, tanta tristeza, mas havia e infelizmente os dois tinham de lidar com isso. O ator voltou ao closet, deixou a toalha por ali, abriu uma das partes que guardavam as roupas de cama, pegou um cobertor e caminhou até a porta do quarto.
— Mais uma vez, obrigado. - Fagundes falou tão baixo que quase sussurrou. — E me desculpe qualquer transtorno.
— Não por isso. - abriu mais a porta e apontou a saída. — Boa noite.
— Igualmente
Ele saiu e Regina logo fechou a porta deixando a mão na maçaneta e a outra apoiada no batente enquanto tentava conter os galopes que seu coração dava. Fagundes parou no meio do caminho para o andar de baixo, voltou seu olhar a porta do quarto já fechada, respirou fundo e seguiu seu caminho para a biblioteca.
— Isso foi o que restou de nós. - os dois sussurraram.
Regina andou de um lado para o outro enquanto tentava alinhar seus pensamentos para voltar a trabalhar enquanto Antônio descia as escadas e apagava todas luzes que via acesas pelo trajeto.
Como todo o duplex era cercado pela sacada, Antônio se sentou no sofá da biblioteca e acendeu seu charuto tendo como vista o bloco da frente enquanto Regina, que já tinha desistido de trabalhar, tomou um comprimido e meio para dormir, desligou as luzes do quarto, arrumou os textos no sofá perto da cama, colocou seu tapa olho e deitou.
Antônio passou quase uma hora fumando aquele maldito charuto, deitado naquele maldito sofá de couro, pensando na maldita vida que levava e praguejando-se por tanta estupidez. Estava se sentindo mal naquele cômodo, estava se sentindo mal sozinho daquele jeito, estava se sentindo triste por se olhar no espelho e não se reconhecer mais.
As horas foram avançando e o relógio digital acusou uma da madrugada, seria mais uma noite que atravessaria acordado banhado em remorso e saudade. Era tão sufocante que às vezes tinha a sensação ter sido lançado em meio ao mar aberto sem nada em que pudesse se sustentar.
Estava cansado daquilo.
Em um ímpeto desesperado, o homem se levantou e andou o mais depressa possível para o andar superior. Tomou cuidado para que seus passos não causassem muito alarde e com mais cuidado ainda abriu a porta da suíte master para ver Regina dormindo naquele cômodo extremamente gelado. Pé ante pé, ele entrou e fechou a porta, abriu um pouco a porta da sacada para dissipar o frio e admirou Regina dormir através da iluminação que vinha de fora. Ela era tão serena, tão bonita, parecia um anjo ainda mais vestida de azul como estava. Com o dobro de cuidado, Fagundes deu a volta na cama, se deitou e cobriu os dois corpos.
Regina, mesmo que estivesse sob o efeito de calmantes, sentiu toda a movimentação em seu quarto, pois tinha o sono leve. Quando a cama afundou, ela virou seu corpo puxando o rosto do homem contra seu peito, colocou sua perna na cintura dele e só pegou novamente no sono quando sentiu o braço masculino envolver sua cintura. Fagundes beijou o peito de futura ex esposa e fechou os olhos.
Foi a noite de sono mais tranquila que tiveram em meses.
*********
Rio de Janeiro, 10/09/1997. Quarta-Feira.
Abandonado na sala de estar o celular de Regina Duarte tocava freneticamente, mas como a casa ainda não havia acordado, não tinha como ninguém atender. Quem ligava acabou desistindo e passou a fazer com que todos os telefones residenciais daquele apartamento tocassem freneticamente. Pensando que era o despertador, Regina levantou o tapa olho até a testa e logo se assustou ao sentir os braços de Antônio Fagundes abraçando sua cintura. A atriz arregalou os olhos, se arrastou até os pés da cama e alcançou o telefone antes que ele despertasse a casa inteira.
— Alô?
— Bom dia, são seis e meia da manhã. - a voz falou do outro lado da linha.
— Nossa... - tirou o tapa olho da cabeça e se sentou na cama. — Já?
— É, que horas você chega?
— Acabei de acordar, me dá um desconto. - pegou seu relógio. — Às seis e trinta e dois da manhã eu não sei nem meu nome.
— Tudo bem. - a voz do outro lado da linha se deu por vencida. — Vamos estar te esperando. Você grava hoje?
— Tenho que estar no set às dez.
— Vai ter tempo para fazermos tudo o que temos em mente, prometo.
— Vamos nos encontrar aqui na Barra mesmo?
— Onde mais seria? - riram brevemente. — Te espero.
— Daqui a pouco eu estou aí.
— Tudo bem, até logo.
— Até, um beijo.
Regina desligou o telefone, o deixou em cima da cama e olhou para o homem que aparentemente ainda dormia. Chegou a cogitar que a chegada dele em seu quarto na madrugada havia sido um sonho, mas agora tinha a ciência que não. Só não entendia o motivo daquela repentina aproximação, e nem fazia questão de entender.
Se levantou, alongou o corpo, foi para o closet escolher a roupa que usaria durante todo o dia e acabou escolhendo uma calça uma blusa de botões clara e seus saltos baixos. Em seguida partiu para um banho de quase meia hora para que assim pudesse extrair o cheiro de perfume que sentia entranhado em sua pele. Quando estava pronta, a atriz se olhou no espelho aprovando a imagem que via, passou um batom marrom, colocou a bolsa nos ombros e voltou ao quarto para pegar os óculos de grau e os textos do dia, viu Antônio ainda dormir, respirou fundo e saiu.
Quando ouviu a porta ser fechada, Fagundes abriu os olhos.
Não sabia o que pensar e nem como agir, mas a raiva em seu coração era tão grande que se tornava impossível manter-se inerte a tudo. Ele se levantou de supetão, correu para o closet onde pegou mais malas, terminou de colocar todas as suas coisas e quando fechou-as, desferiu alguns socos raivosos para extravasar sua frustração.
Tomou um banho rápido, trocou de roupa mais rápido ainda, escreveu um bilhete para a mãe onde explicava todo o seu relacionamento com Regina nos últimos meses e o colocou por debaixo da porta, pegou as malas que arrumou e saiu do apartamento soltando fogo pelas ventas.
— Filha da puta! - socou o volante e saiu cantando pneus do estacionamento do condomínio.
Horas mais tarde, Regina já estava caracterizada com o figurino de sua personagem e se encontrava no cenário do estúdio de Helena e Flávia recebendo as instruções de Ricardo Waddington sobre as gravações que faria com Maria Zilda Bethlem e Antônio Fagundes, mas ele ainda não havia chegado e a gravação corria risco de ser cancelada.
— Senhora Fagundes, onde está o senhor Fagundes? - Ricardo perguntou.
— Sabe que eu não sei? - cruzou os braços. — Eu tive que sair de casa mais cedo para resolver uns problemas e ele ainda estava dormindo. - não mentiu.
— A noite foi boa? - brincou baixíssimo.
— Excelente. - retrucou no mesmo tom. — Dormi como um anjo.
— Gente, mil perdões pelo atraso. - Fagundes entrou correndo no set. — O botão do terno ficou ruim e a Beth teve que mandar para a costureira.
— Correu uma maratona, foi? - Ricardo perguntou ao ator.
— Quase isso. - riu, sem jeito.
— A noite foi mesmo excelente. - tirou sarro com Regina e seguiu até o cenário. — Fafá, vem que eu vou te explicar as marcações.
Enquanto Waddington dava as marcações e o que queria dos atores em cena, Fagundes vez ou outra olhava para Regina para vê-la alegre demais, sorridente demais, brincalhona demais e sua vontade era sufocá-la dentro daquela maldita alegria.
Regina às vezes também olhava o futuro ex marido para o ver tenso e agitado. Toda hora ele coçava os cabelos, engolia a seco como se alguma coisa o incomodasse, e sabia bem o que era.
Ele estava com ciúmes.
— Gente, agora nós vamos gravar a cena que o Atílio vai visitar o estúdio de decoração. A Helena e a Flávia ficam totalmente alegres e empolgadas com a visita do homem então nas horas do diálogo de vocês duas... - apontou para Zilda e Regina. — Quase se atrapalharem enquanto dão os textos é uma pegada legal. - voltou sua atenção a Fagundes. — O Atílio deve se empolgar, mas não tanto. Ele é um homem alegre, então pode gesticular à vontade. - os três assentiram. — Então assumam as suas posições.
Fagundes saiu do cenário, Maria Zilda subiu até o terceiro andar e Regina se posicionou no térreo.
— Em suas posições... silêncio no estúdio e gravando!
Ao contrário da vida pessoal dos atores, aquela gravação transpareceu muito bem as intenções de Atílio Novelli e Helena Viana, fazendo com que finalizassem a cena com uma salva de palmas de todo o elenco.
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