Op. 01,
No. 06.
Chen gostava das coisas à moda antiga. Eu já deveria ter suspeitado disso, assim como deveria ter suspeitado que, de todas as formas de viver, a dela seria a mais diferente da minha. Mesmo assim fui com ela até Seul alguns dias depois do ocorrido, como tinha sido combinado. Em um momento específico da noite, estávamos sobre o telhado do edifício da biblioteca municipal, duas quadras atrás da casa de ópera. Era pouco depois da meia-noite.
Chen sentava no beiral, com as coxas dobradas e o corpo inclinado como o de uma gata de rua. Eu, ao seu lado, me aconcheguei com as pernas cruzadas, e a encarei para não olhar para o grande banner que descia toda a lateral do teatro. Um conhecido meu tinha o rosto estampado em cartaz, com seu violino preto fosco encostado no queixo. Um antigo veterano do meu curso de música da faculdade. Era um cara simpático, doou até alguns de seus livros para mim, no meu primeiro ano. Mas também tinha feições comuns, uma habilidade mediana, pouquíssima ambição. Lembro como não quis concorrer ao solo do último concerto de inverno, me pergunto hoje se ele não tinha paixão o suficiente para a competição ou se era pretensioso demais para mirar em um pequeno espetáculo estudantil, afinal, agora seu rosto estava em todos os quatro muros da casa de ópera mais importante do país. Lembro quando, pouco antes da sua formatura, me convidou para acompanhá-lo no piano, em uma das suas primeiras apresentações. Ao negar, dizendo-lhe que eu era um solista, ele riu de mim. O garoto do interior, que nunca tinha participado de grandes concursos, nem aprendido com os melhores tutores, recusava ser o seu acompanhante. Só podia ser maluco. Mas ele não entendia como, naquela primavera, aquele rosto do cartaz poderia ser o meu rosto, o meu nome. Como quase foi.
Não me encontrei tão triste quanto eu pensei que me encontraria. Meu antigo eu perderia noites em claro se outro alguém fosse reconhecido primeiro, chegasse à fama primeiro.
Chen, de olhos focados e semicerrados, olhava os poucos corpos que passavam abaixo de nós na calçada, onde um poste de luz queimado deixava um círculo azul escuro no concreto.
“Por quanto tempo vamos ficar assim?”, eu perguntei eventualmente, e ela esfregou os lábios finos um no outro, uniformizando seu batom.
“Quanto tempo for necessário.” Chen olhou para mim, meu rosto estava melancólico e empalidecido.
Eu não me alimentei novamente, depois do acontecido. E as lembranças daquela noite ainda me perseguiam em alguns momentos do dia, quando estava enclausurado no quarto-dispensa para me esconder do sol. Pensava no sorriso caloroso de Junmyeon, no seu genuíno interesse, e em todo sangue derramado no banheiro horas depois. Eu não sabia se ele havia sobrevivido, já que eu e Kai fugimos da casa de show o mais rápido que conseguimos, sem olhar para trás, sem prestar socorro.
Por um determinado tempo, cheguei a cogitar a ideia de nunca mais beber sangue, mesmo com todas as advertências que já ouvi caso fizesse. Principalmente depois de descobrir, quando entrei no casarão naquele final de madrugada, que Baekhyun tinha desaparecido para outra de suas caçadas, e que eu não o veria pela próxima semana ou mais.
Mas estava difícil controlar o desejo conforme os dias se passavam e conforme meu corpo enfraquecia. Uma vez, acordei de um devaneio, encharcado de suor e dominado pelo mal estar. Eu estava no terraço de novo, o vento corria pelo meu cabelo cada vez mais violento, e o céu clareava aos poucos num rosa frio que ganhava o horizonte. Eu estava quente, fervendo, e o sangue me preenchia em pulsos de prazer, cada vez mais lentamente. Enquanto isso, dedos também corriam pelos meus cabelos, e pelo vinco das costas, cintura, quadril. Um suspiro escapa, um que não é de Junmyeon. Quando abro meus olhos, lá está Baekhyun, desfalecido nos meus braços, drenado de todo o sangue. Seu corpo cai no chão endurecido conforme seu coração para de bater e eu não consigo me mexer quando seus olhos perdem o brilho intenso e sobrenatural que normalmente carregam. Não consigo me mexer quando o sol finalmente nasce no horizonte e ateia meu corpo em chamas.
Quando estou tocando Etude Op.25 No.11, na sala de estar do casarão, não reconheço Chopin na partitura, não reconheço a mim mesmo nas notas. Chen minutos depois apareceu, com seu colete xadrez e seu sorriso de Cheshire, e eu sabia que precisava aceitar o seu convite naquela noite, ou seria a última noite que eu teria.
Agora esfrego os olhos com os dígitos dos meus dedos, tentando me desvencilhar da imagem tão real e assombrosa do cadáver de Baekhyun, e Chen ri porque como alguém como ela entenderia o dilema que fincava os dentes na minha mente?
“Deve ser difícil para você desistir de tudo. Não é a mesma coisa quando não se tem ninguém para ouvir.” Ela estava falando do banner que tapava parte da visão panorâmica da cidade. É claro que iria mencioná-lo em algum momento, era um banner enorme, afinal. Bem maior do que quando o meu concerto estava em cartaz. Dei de ombros.
“Tô mais preocupado em ter me tornado uma coisa que não merece tocar música, do que uma que não merece aplausos de desconhecidos.”
Chen rolou seus olhos, e eu achei confusa a sua repentina impaciência, ela disse:
“Acho engraçado quando você fala assim.”
Cruzei os braços quando a encarei, ao invés do banner estúpido.
“Assim como?”
“Como se o vampirismo fosse essa experiência cósmica que te muda por completo.”
“E não é?” Estava sendo bem transformadora para mim.
“Quanto mais anos eu vivo, mais percebo que o vampirismo evoca somente aquilo que já existia dentro de você quando você ainda era um humano.” Detesto que ela tenha implantado essa percepção no meu cérebro. Assumir que o vampirismo apenas trazia qualquer segredo às claras era também assumir que meu ser estava inundado de auto-depreciação, pânico e fome. E eu não estava habituado com nenhum daqueles sentimentos. Chen fez aquele gesto que costuma fazer quando está segurando algum comentário amargurado, prendeu a longa unha do polegar nas presas e sorriu. “Isso de crescimento pessoal é uma idiotice.”
“Agora sim estou aliviado, obrigado”, retribuí com um sorriso amarelo.
Ela empurrou meu ombro de leve. Meu corpo se deslocou um pouco do eixo, então apoiei as mãos no chão para não cair para frente, no asfalto frio. Abaixo de nós, um casal andava na madrugada deserta, despreocupados.
“Quando a gente é mais novo, cria uma dependência tão grande em cima dos adultos à nossa volta, como se eles pudessem nos ensinar como devemos viver a nossa vida.” Chen começou a dizer, enquanto ria por me pegar de surpresa. Eu não sabia o que acontecia quando vampiros caíam de prédios altos, não estava animado para descobrir. Sua risada estridente se enfraqueceu aos poucos, conforme os segundos rolavam. “Daí, ficamos também obcecados com a ideia de envelhecer porque achamos que depois de adultos todas as respostas vão chegar até nós como em um passe de mágica. Que vamos nos tornar seres edificados, sábios, de uma hora para outra. Mas a verdade é que a gente não faz ideia do que fazer. Não fazíamos antes, não fazemos agora.”
Chen, com certeza, não conhecia a minha mãe e o quanto ela conseguia te convencer de que estava certa sobre tudo e como sabia exatamente o que ela e todo mundo à volta dela deveria fazer. Ao contrário do meu pai, um homem ignorante e de pouquíssima personalidade, que só se preocupava em plantar suas sementes e voltar para casa para ter uma boa noite de sono, minha mãe conseguia ser bem paranóica. Tinha todo o cronograma da sua vida programado e o seguia sem pular um passo. Ela deve ter criado um para mim também, quando eu ainda estava no ventre dela, e jurava que eu seria obediente. Ao me afastar dela, percebo agora como precisei substituí-la por algo novo, que pudesse me dar qualquer senso de autoridade. Não apenas comecei a agir do mesmo jeito, tentando controlar minha rotina de estudos, ou as oportunidades à minha volta, mas me peguei mais próximo da crença dela também, confiando toda minha vida na ideia de um deus capaz de ditar as regras, capaz de moldar o meu futuro. Eu não precisava me responsabilizar pela minha saída de casa, ou qualquer outra atitude duvidosa, pois aquilo foi escrito para mim. E ela não podia me questionar, já que foi a culpada por me tornar alguém religioso.
Estava preso em algum ponto distante. Num buraco de minhoca que se abria no espaço, então não reagi, mas escutei Chen terminar:
“Todos os adultos que viviam conosco quando éramos pequenos também não tinham a menor ideia do que estavam fazendo.”
Por uma fração de segundos, senti a vontade de reencontrar minha mãe. De poder abusar das palavras de Chen para dizer que ela não tinha a força divina de saber o que era o melhor. Pelo menos o que era melhor para mim. Mesmo que Chen só falasse bobagens e estivesse errada sobre tudo, seria bom que ela estivesse certa dessa vez.
Ela não tirava muito tempo para respirar, continuou conversando sozinha.
“A gente responde uma pergunta, outros três questionamentos surgem.”
E de novo.
“Acertamos uma vez, erramos outras três.”
Uma pausa breve.
“E se já era difícil chegar até os 80 nesse ritmo, imagine a eternidade assim.”
Dessa vez, me deu outro cutucão. Eu me sobressaltei e me virei para ela.
“Sabe qual é a graça de ser criança? E por que todo mundo quer voltar para aquela época depois que fica velho?”, ela perguntou, esperando pela minha resposta.
“Não, por quê?” Encarei-a mortalmente, por me tirar do meu sonho febril.
“Não é porque deixamos de cometer erros em algum momento, mas porque quando a gente é criança, não nos pressionamos se cometemos.” Ela sorriu como se tivesse ganhado um concurso de retórica. Apoiou as mãos atrás da cabeça, descansando em uma parede invisível depois do seu longo discurso. “E é por isso que parei de me culpar por fazer a coisa errada.”
Então me desmanchei em uma risada, pois por um segundo tinha esquecido que Chen era isso, maluca.
Mas eu gostava dela, mesmo que só um pouco.
Por outro lado, ela ainda me dava arrepios. E eu nunca confessaria que tinha medo dela, ou de qualquer outro vampiro.
Notei com o tempo que vampiros amam serem temidos. Que a noção de invencibilidade não vinha da força sobrenatural ou do sexto sentido, mas da quantidade de medo que eles poderiam invocar nas pessoas. Ela não me acompanhou na risada, apenas rolou os olhos. Queria que eu prestasse atenção em cada palavra que dissesse, que levasse aquilo à sério. Estava tentando passar um ensinamento importante.
“Não fique esperando alguém te responder que tipo de vampiro você deve ser.” Suas sobrancelhas eram bem desenhadas e escuras e se encontravam no centro da sua testa. Ela fez questão de enunciar bem aquelas palavras. “Ninguém aqui vai te salvar de você mesmo, querido. Ninguém. Não vai ser eu, nem Kai e Lay. Muito menos o Baekhyun.”
“Por que a gente tá aqui, então?” Sorri com sarcasmo, para esconder um leve incômodo que afundava no meu estômago.
“E como você espera que eu entenda que tipo de plano maléfico Baekhyun tá bolando agora?”, ela perguntou, retoricamente. Eu achava interessante o jeito como o nome de Baekhyun escapava dela toda vez, com um rosnado que se prendia no fundo da garganta. Às vezes via isso como implicância fraternal, que normalmente irmãos compartilham, mas sei que dizer isso deixaria Chen emputecida, então apenas pensei a respeito. Decidi dizer outra coisa:
“Você realmente odeia ele, não é?”
“Eu tenho meus motivos.” Ela deu de ombros.
“Você vai me contar algum dia?”
Chen se aproximou do meu rosto, para cochichar. “Quando você descobrir os seus, conto os meus.”
Ela estava insinuando que eu chegaria a odiar Baekhyun um dia. Talvez estivesse certa. Ou talvez não fizesse ideia de que a única coisa que eu odiava era desejar Baekhyun de um jeito que eu nunca tinha desejado outro homem, isso sim me tirava do sério. Se ela descobrisse, talvez Chen começasse até mesmo a me odiar também porque na cabeça dela isso me colocaria na mesma caixa onde Baekhyun se encontrava. Sem querer me adiantar, ela vai descobrir tudo um dia.
“Você é maluca, alguém já te falou isso?”, desconversei, ela rolou os olhos de novo.
“Algumas milhares de vezes.”
Eu já me peguei desejando ler a mente deles, do jeito que aprendi a ler a mente dos humanos. Se tem uma coisa na qual os vampiros são bons é falar em códigos. Sempre tinha algo para se esconder nas entrelinhas, e eu não conseguia desvendar tudo de uma vez. Isso poderia deixar a eternidade mais interessante. Conhecer alguém de uma só vez pode te entediar rapidamente, e eles com certeza estavam conseguindo me manter interessado com suas revelações homeopáticas. Eu imaginava a mente de Chen tão complexa e intempestiva quanto as suas músicas de jazz. Dezenas de instrumentos tentando contar a própria história, em tempos diferentes, mas de alguma forma fazendo total sentido.
“Você era musicista, não era?” perguntei. Chen ergueu uma sobrancelha para mim.
“Vocal e piano”, ela confessou. “Mas eu era bem melhor do que você.”
Seu comentário não me chateou, eu achei até mesmo engraçado. Será que isso faz de mim alguém soberbo?
“O que te fez parar de tocar?”
“Esse é um dos motivos”, ela murmurou. Apenas meneei a cabeça. “Mas me diz, como adivinhou?”
Sorri para ela, antes de dizer:
“Os iguais se reconhecem.” Chen me encara de esguelha, desacreditada, então explico: “Acho que parte do ter uma alma perturbada me deu uma dica.”
“Você não deve entender nada sobre mulheres”, zombou, então mirou a rua deserta e duas mulheres que acabavam de atravessar a rua da biblioteca. Antes de saltar graciosamente do telhado para o parapeito de uma janela abaixo de nós, completou: “Minha alma não tá perturbada, só tá com fome. Vem, vamos comer.”
Quer saber o que acontece quando vampiros saltam de prédios altos? Por mais anticlimático que seja, não acontece nada. Chen desceu quase de uma vez. Não era só a sua postura que me lembrava a de um felino, ela aparentemente tinha os reflexos também. Eu, por outro lado, desci desengonçado, me pendurando onde dava, ouvindo Chen murmurar “vai logo” antes de chegar ao chão.
“Vamos perdê-las de vista”, ela argumentou, colando seu olhar nas duas mulheres que já se afastavam para uma das travessas mais desertas.
“V-você quer persegui-las?”, eu gaguejei.
“Claro. Vem, eu fico com a ruiva, só tenta não deixar a outra escapar.”
Chen me disse mais cedo, quando perguntei:
“Tem alguma regra que eu preciso saber?”
“Não me alimento de crianças. Ou músicos.” Foi simples assim.
Quem imaginaria que uma lista de regras para um vampiro poderia ter apenas dois itens. E que eles fizessem sentido quando você conhecesse Chen.
Agora estamos no encalço daquelas duas mulheres, e eu me sinto nojento me escondendo nas sombras. Uma de vestido florido, a outra, calça jeans e blusa listrada. Ambas pareciam animadas em uma sexta à noite. Carregavam bolsas e livros, pois deviam estar estudando pela região já que nos encontrávamos em época de vestibular. Elas tiveram o infortúnio de não se encaixar nas duas regras de Chen.
Cruzamos uma esquina, pois as duas queriam cortar o caminho entre avenidas principais bem movimentadas através de uma rua silenciosa, sem qualquer iluminação se não fosse por duas janelas altas com a luz acesa.
Chen era ágil, ao mesmo tempo que, de alguma forma, extremamente sorrateira. Ela conseguiu se aproximar sem ser ouvida, e eu tentei segui-la com a mesma discrição, mas ainda não tinha a prática ou a vontade.
A cena a seguir até hoje paira em mim como um borrão, talvez porque fora assim que ela se desenrolou. Talvez porque me forçar a lembrar dela com exatidão poderia me assombrar para sempre. E ainda assim tento recapitular aqueles momentos, mas eles parecem se prender a detalhes desimportantes, como o fato de que Chen estava tão bem vestida naquela noite, com um conjunto de alfaiataria que se encaixava nas curvas delicadas dela perfeitamente, além de scarpins lustrosos que escorregaram pelo asfalto com tranquilidade quando ela se adiantou em direção a garota ruiva que estava desejando.
Eu mal consegui processar o momento em que ela chegou pelas costas da garota, e o impulso levou o corpo menor para frente, deixando um dos mocassins brancos para trás. Chen a segurou pela mandíbula, enquanto seu outro braço a envolveu pelas costas, imobilizando os membros dela. Eu sequer pude ter um vislumbre do rosto da vítima, quando o cabelo longo e vermelho vivo cobriu a feição de assombro por inteiro, e Chen cravou nela uma mordida feroz.
Ela foi certeira, deve ter atingido uma artéria, pois no instante que sua mordida fechou no pescoço fino, sangue esguichou por todo lado, e o corpo da outra mulher chacoalhou entre os seus braços.
Senti-me petrificado pelo súbito aroma de ferro e medo que subiu no ar. Meu interior suplicava para que eu fizesse alguma coisa, mas não consegui me desconectar do corpo que aos poucos secava e desbotava debaixo da bocada de Chen. As mãos delicadas lutando contra os seus braços igualmente finos, mas que escondiam uma força assustadora, a trilha vermelha que escorria dos lábios pintados até o sulco da clavícula.
Os livros caíram no chão, a outra vítima gritou. Um urro agudo que ressoou no meu cérebro como um alarme de incêndio. Deve ter levado alguns segundos para Chen drenar a primeira mulher, o corpo estatelando no chão em um baque surdo quando ela a largou.
“Não deixa ela fugir”, murmurou, apontando para mim. Era o aviso para aquela de vestido florido começar a correr. Quando ela se virou em minha direção, eu estava a poucos passos do seu corpo, o que para um vampiro pode ser um piscar de olhos. Ela hesitou, sem palavras, empalidecida de pavor. Meu corpo contorceu num espasmo, mas eu não fiz nada. Ela tropeçou nos tênis all-star, enquanto eu mordia o interior na minha bochecha, e o gosto metálico de sangue me invadia. Então começou a correr, de olhos fechados, contendo outro grito temeroso, e a minha presa deslizou e rolou na minha língua, mas apenas fechei os meus olhos.
Senti uma corrente gelada atingir meu rosto, Chen estava correndo atrás dela. Ela era rápida demais, mesmo de salto alto, a segunda vítima sequer conseguira alcançar três metros quando Chen a aprisionou pela cintura. Eu me virei até as duas, pensando que Chen finalizaria o serviço para mim, no entanto suas mãos correram até a cabeça da mulher, e em um momento ela estava olhando apavorada para mim, pedindo socorro em silêncio, no outro, Chen segurou-a pelas bochechas, com as mãos cruzadas e unhas afiadas, e quebrou o pescoço dela.
O estalo dos seus ossos pareceu acontecer ali, dentro de mim, em algum lugar profundo do meu peito. Quando aquele segundo corpo caiu no chão, Chen me encarou impassível. Dessa vez não existiram dúvidas, ela estava morta.
“Eu pedi para você não deixar ela fugir”, rosnou. A ponta do seu scarpin empurrou o corpo amolecido, rolando-o para cima. “Que ótimo!”, exclamou, sarcástica. “Não podemos beber o sangue dela agora.”
Uma terceira regra do manual de vampiros que Chen não me contou no início daquela noite, e que eu também deixei de mencionar até agora.
Nunca se alimente de pessoas mortas.
Eu não esperei Chen se enfurecer para cima de mim. Não esperei ela me culpar pela morte da garota, ou eu mesmo cair numa espiral de arrependimento. Corri com uma força que eu não tinha para gastar. Corri até os músculos das minhas pernas ficarem dormentes e o vazio do meu estômago ser tomado de ar. Eu não sei o que me moveu, mas algum tempo depois eu já estava de frente para o casarão, sem indício algum de Chen no meu encalço. Debaixo de uma chuva primaveril que até aquele instante eu não notara que havia começado.
Talvez fosse a sede, que crescia e me impulsionava a continuar correndo e correndo até encontrar uma fonte para beber. Talvez ela estivesse entorpecida pelo tormento que eletrificava meu corpo, deixando tudo formigar, para perceber que eu corria na direção oposta ao alimento.
Talvez soubesse, de alguma forma, como um sexto sentido mórbido, o que exatamente esperava por mim quando eu chegasse em casa.
Eu subi os degraus da entrada, atravessando o saguão em direção a sala, atrás das escadas principais. Ainda não havia me decidido se andaria direto para o meu quarto ou desceria até o porão onde se escondia o freezer com as bolsas de sangue.
Meu corpo tremia em espasmos cada vez mais violentos e, desde que vi Chen beber da primeira mulher, podia sentir as veias circundarem meus olhos, pulsarem animadas, escurecem minha visão.
Meu corpo cambaleou quando juntou forças para empurrar a porta dupla da sala de estar, renunciando no instante em que elas se abriram e a primeira imagem que eu vi foi a de Baekhyun.
Ele estava apoiado na sua poltrona favorita, uma carmesim de veludo, segurando um exemplar antigo de Frankenstein nas mãos. Com seu olhar celestial e o seu sorriso diabólico, deixou de folhear o livro, abandonando-o na cômoda ao lado, e se levantou animado para andar na minha direção. Sua expressão, no entanto, se transfigurou conforme tomava nota da minha. Eu sei que ele conseguia ouvir meu coração pular, implorar por mudança, e a besta que me ameaçava se debater descontroladamente.
Meu lânguido andar se converteu em tropeços afobados, e quando cheguei à sua frente, Baekhyun capturou meu rosto com suas mãos compridas.
“V-você voltou”, eu balbuciei, com a garganta seca. Eu quis sorrir porque pela primeira vez seu coração estava disparado perto de mim, e eu gostei de saber que mesmo depois de tantos anos, ele ainda podia fazer isso. Eu podia fazer isso com ele.
“O que aconteceu?” Baekhyun me pressionou. Suas mãos eram cálidas, sua presença era como um banho quente. “Por que você tá todo molhado?”, perguntou, passando os dedos pelo meu moletom. Tinha tanta coisa para dizer a ele, por outro lado, me restava energia apenas para implorar uma última vez.
“Preciso de você…” murmurei.
“Eu tô aqui.”
“Não, Baekhyun. Eu preciso de você.”
Esperei a sua confirmação. Seus olhos dilataram, sua cabeça afirmou em silêncio e, não conseguindo mais suportar o meu próprio peso, apenas me deixei cair sobre seus ombros.
Meu nariz se esfregou na sua pele, seu cheiro circulou em mim. Ele era quente e macio e tudo o que eu desejava. Havia um vazio em mim que se expandia a cada arfada de ar. Um buraco solitário que apenas Baekhyun podia preencher. Não era sede. Não era somente sede.
No instante em que meus lábios entreabrem no vão do seu pescoço e desfaço o laço da camisa que envolvia o seu pescoço, Baekhyun não protesta, apenas inclina mais a sua cabeça, para afastar a gola e me acomodar. Ele abraçou o meu corpo e suspirou. Então eu o mordi.
Não me senti mal quando seu gosto ocupou minha boca. Não senti repulsa, desilusão ou horror. Apenas um entusiasmo que me leva aos céus. Uma fartura com sabor de genuína e momentânea felicidade, que lava a saudade doentia que eu sentia dele e a força das minhas pernas. Que toca docemente a declaração de Kreisler, Liebesfreud. Baekhyun cambaleou para trás, tentando sustentar meu corpo. Algo que antes conseguia fazer com facilidade, mas que agora eu torcia para que a fraqueza o abalasse tanto quanto me abalava quando eu estava perto dele.
Conforme ele vacilou alguns passos para trás, suas costas bateram na borda do altar que ficava no centro da sala, e Baekhyun gemeu no impacto. A madeira chacoalhou, eu ouvi a delicada escultura de porcelana que se sustentava nele pender e se estilhaçar no chão. Ele afastou as pernas para que eu coubesse perfeitamente encaixado no seu corpo.
“Vai devagar, Chanyeol”, sussurrou, entrecortes. E eu me peguei obedecendo-o prontamente, mesmo que todo o meu corpo rogasse por outra coisa. Para consumí-lo, cada gota, até que sua essência extinguisse o desamparo do meu peito. Minhas presas se aprofundaram na carne de Baekhyun apenas para que eu sugasse mais lentamente, a cada três batidas do seu coração.
Não tinha mais volta. Eu estava próximo de drenar Baekhyun, sem crueldade, gula ou desespero e, ao contrário do que se poderia imaginar, ele não hesitou ou se afastou, apenas me segurou mais forte, seguido por um suspiro que me confidenciou um inconsequente afeto.
“O que diabo vocês estão fazendo?!” Lay indagou, descendo as escadas.
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