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História Crime e Recompensa - Dias de reclusão, dias de prontidão - História escrita por BiadeAsa - Spirit Fanfics e Histórias
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História Crime e Recompensa - Dias de reclusão, dias de prontidão


Escrita por: BiadeAsa

Notas do Autor


Olá, demorei, mas apareci. Estava um pouco tristinha esses dias e acabei não conseguindo escrever, mas na terça dei uma folga pra minha cabecinha ansiosa e pude retornar às atividades com o humor melhor.
Esse é o capítulo 50, fico olhando aqui e sinceramente às vezes nem acredito que escrevi tudo isso, que construí uma história tão longa desde o início e tem pessoas lendo. Obrigada a cada um que acompanha, vocês são uma das minha principais razões para não desistir.
Cortei o cabelo e estou feliz e bonita, então postarei dois capítulos hoje.

Capítulo 50 - Dias de reclusão, dias de prontidão


Emily

Quem inventou o conceito de tempo?

Pesquisei no google e a resposta que encontrei foi que os povos antes de Cristo começaram a marcar a tempo, usavam um sistema de contagem baseado no doze e no sessenta, e daí vieram os segundos, minutos e horas: o dia completo com as vinte e quatro horas.

Mas esses conceitos matemáticos não me interessam, não era isso que eu estava pesquisando. Queria saber quem foi que, em um determinado dia, se dispôs a contar o tempo. Parou e pensou: o sol aparece e depois some do céu, crescemos e vivemos, mas como medir isso?

Quem foi que se sentou no finalzinho da tarde com a cabeça ociosa e começou a notar os segundos? Será que essa pessoa passou vários dias contando de um a sessenta várias vezes para poder nomear esses períodos de minutos? Será que ela desconsiderou margens de erro ou teve que repetir essa contagem por muitos dias até se dar conta do padrão?

Quem foi que sentiu a necessidade de criar o relógio?

Eu não sei. É complexo. Ninguém sabe, na verdade. Podemos ter relatos, resultados de pesquisas, historiadores super inteligentes que estudaram as civilizações antigas e descobriram que foram eles quem inventaram as horas. Mas não sabem o nome daquele que incitou a curiosidade a respeito do tempo.

Foi apenas uma pessoa? Um grupo de jovens? E se foi uma criança?

Queria muito ter essa resposta para assim poder mentalizar essa figura e lhe mandar uns questionamentos através dos séculos. E também queria poder gritar com essa pessoa. Por que foi se importar em contar os segundos? Porque graças a isso temos o relógio, o calendário, e meus olhos fixados na parede do quarto encarando o objeto redondo com seus ponteiros finos que nunca param (a não ser que acabe a pilha, mas ainda assim o tempo não tem botão de pausa).

Estou há uma semana trancada nesse quarto, desgostosa e nem um pouco a fim de colocar um pé para fora de casa. Cento e setenta e três horas, cinquenta e oito minutos e doze segundos no mesmo recinto, contando as horas e todas as medidas de tempo como se o relógio fosse uma divindade que necessitava da minha adoração.

Talvez algo semelhante tenha acontecido com os mesopotâmicos e babilônios, estavam tão tristes, desesperançosos e fatigados com a própria vida que um belo dia decidiram conceituar a ação imutável do planeta terra de girar e nos entregar o presente com expectativa de futuro. Talvez a tristeza e o medo tenham sido o gatilho que fez o ser humano necessitar de uma certeza sobre o tempo. Porque em uma trajetória pessoal na maioria das vezes tão solitária, conflituosa e instável, precisamos da segurança daquilo que não tem como mudar.

E os dias existem independente de como nos sentimos. Se morrermos hoje, ele continuará existindo. Quem nascer, morrer, casar, cozinhar um bolo ou terminar de escrever um livro, marcará a data e a hora como especial, mas essa marcação não passa de individualismo. 

Hoje, doze de abril, certamente alguém está fazendo aniversário. É o dia do nascimento de um filho tão planejado por um casal, ou talvez os aparelhos e máquinas que estivessem ligados ao corpo de um senhor de oitenta e cinco anos estejam sendo desligados nesse exato momento, encerrando, por fim, sua vida. Talvez alguém esteja dando à luz trigêmeos na índia. Ou uma criança nas praias do Caribe tenha dado seu primeiro mergulho sozinha. Ou um inocente acusado de assassinato injustamente esteja recebendo sua sentença condenativa nessa mesma hora.

O agora é fundamental, é o momento mais importante da vida de alguém. Pode ser a hora mais triste, ou a mais feliz, mas sempre haverá importância enquanto for datado.

Enquanto eu, Emily Dickinson, nessas exatas quatro horas da tarde aqui em Amherst, Massachusetts, celebro este momento apenas com a solidão.

Doze de abril de dois mil e vinte e dois, dezesseis horas: é o tempo que marca minha tristeza. E essa marcação não é exclusiva de hoje, ela é de todos os dias.

Minha rotina se dividiu em passar a maior parte do tempo deitada, ou chorando ou dormindo — mas apenas pela manhã porque passo a noite em claro —,ir ao banheiro de vez em quando e escrever poesias no caderno que a Sue me deu de presente.

Até que a última folha em branco foi preenchida, decretando seu fim. Cerca de noventa páginas escritas com a minha caligrafia, os versos distribuídos, a maioria rascunhos, depois agrupados e concretizando meus melhores poemas até então.

Será que é apenas isso que me restou dela? Um caderno universitário de uma matéria e memórias do que vivemos resultando em arte e tristeza?

Neste momento me encontrava deitada com as mãos cruzadas sobre a barriga, quase igual a Bela Adormecida, mas não ousava fechar os olhos e correr o risco de dormir para ter pesadelos, encarava o teto branco imaginando um helicóptero perdendo a rota e o controle no céu caindo sobre minha casa, quebrando o telhado e me esmagando.

Nenhuma mudança no meu humor.

A única pessoa que entrava no quarto era a Vinnie, me trazia água e comida, apesar de eu recusar, e me obrigava a tomar meu remédio. Sinceramente, não sei por que voltei para cá. Queria ajudá-la, deixar sua rotina mais leve e facilitar sua vida, mas tudo o que eu fazia era complicar ainda mais. 

Agora, além de cuidar da nossa mãe, ela tinha que cuidar de mim também. Bela ajuda você está oferecendo para a sua irmã, não é, Emily Dickinson?

Eu sou uma fraude. Precária e estupidamente inútil.

Junto com a Lavinia, a dupla felina vinha balançando o rabinho entre suas pernas. Pulavam na minha cama e se esfregavam no meu braço querendo atenção (ou talvez apenas me consolar). Retribuía o carinho nos gatinhos, às vezes o Liam ficava mais tempo aqui comigo, gostava de dormir no meu travesseiro e o ruído silencioso do seu ronronar me acalmava de certa forma.

Me sentia culpada vendo o esforço que minha irmã e nossos bichinhos faziam para me ver bem. O que eu dava em troca? Custava ficar feliz pelo menos por meia hora? 

Lavinia estava preocupada, e não apenas ela, disse que até nossa mãe havia perguntado por mim, por que eu havia sumido.

E como explicar? O que dizer sobre minha falta de vontade de sair de casa? Não compareci às aulas, nem na minha ida semanal com a psicóloga, muito menos fui trabalhar. Tudo isso porque sabia que se colocasse os pés na rua, talvez fosse a última vez.

Seria exagero da minha parte? Era realmente necessário ficar trancafiada todos os dias para a minha segurança? De qualquer forma, não tinha disposição para algo diferente. O meu quarto era o único lugar que eu tinha vontade de estar.

E, dentro dele, deitada e quase imóvel, arrisquei fechar os olhos para descansar. Apesar de passar o dia todo assim, me sentia cansada, a tristeza sugava minhas últimas forças. 

Mas não demorei, pensei até que estava sonhando, entrando em outro pesadelo como sempre, quando escutei batidas na porta.

Abri os olhos e me sentei, sobressaltada, até me dar conta de que não havia dormido, ainda estava na realidade — isso era bom? — e havia alguém no corredor.

Esperei mais batidas, e elas vieram, sinal de que não era a Vinnie. Mas quem seria? Meu pai ou o Austin decidiram complementar meu sofrimento vindo falar comigo?

Receosa, me levantei. Respirei fundo e abri a porta. De todas as pessoas, eu só não imaginava encontrar o…

— Frazar?! — eu exclamei bastante surpresa. — O que está fazendo aqui?

Meu amigo ignorou minha pergunta inicialmente com um sorriso e entrou no meu quarto. Eu ainda estava com a boca aberta e com a mão na maçaneta tentando entender se aquilo era real.

— Oi, Emily, bom te ver — me disse abrindo os braços para um abraço que eu aceitei, ainda confusa.

— Como chegou até aqui? Como descobriu onde eu moro? — fiz mais perguntas porque de todas as pessoas que poderiam bater na minha porta essa tarde, Frazar era uma das últimas que eu cogitaria.

— Nossa, my friend, é assim que você me recepciona? — Ele deu uma risadinha bem humorada e colocou as mãos no bolso.

Tentei me situar sentando na minha cama e fiquei em silêncio. Era como se eu tivesse me isolado em uma bolha nesses últimos dias e agora ela foi perfurada. Tudo bem que foi por uma pessoa que eu gostava, mas precisava me acostumar com contato social novamente.

— Sua irmã me deu seu endereço — ele explicou tirando as mãos do bolso e passando sobre o cabelo curto.

— A Lavinia? Como assim? — Essa história ficava cada vez mais complexa.

— Digamos que ela foi na faculdade até o nosso bloco e meio que perguntou quem era seu amigo.

— Não acredito que essa garota fez isso.

Ele riu.

— Mais ou menos. Ela estava ao lado de um rapaz, um que falou com você outro dia no refeitório.

— O George? — perguntei com os olhos arregalados.

— Não, um mais bonito, sua irmã disse que ele havia te ajudado uma vez.

— Ah, deve ter sido o Ben.

— Acho que sim. Aí ele levou ela até nossa turma e me apresentou. Acho que ele se lembrou de mim já que na maioria das vezes estou do seu lado.

— E por que a Vinnie fez tudo isso?

Frazar suspirou e veio se sentar ao meu lado.

— Ela está preocupada com você, Emily. Ir até a faculdade foi um ato de desespero. E eu também já estava quase jogando seu nome no google ou na lista telefônica para encontrar seu endereço, já que não responde nenhuma mensagem ou ligação minha há dias. Que bom que sua irmã me encontrou, senão eu teria batido na porta de cada casa dessa cidade perguntando por você.

Só de pensar numa possibilidade do Frazar realmente sair pela vizinhança perguntando se alguém conhecia Emily Dickinson, sorri um pouco. Senti falta dele.

— Minha irmã é muito astuciosa mesmo.

— Ela fez porque te ama.

— Eu sei — resmunguei tendo que admitir que a Vinnie sempre fazia as coisas pensando no melhor para mim.

— O que aconteceu com você? Por que nunca mais foi pra aula e nem pro bar? Eu estou preocupado também.

Aceitando que meu esconderijo não era mais um local tão escondido assim, e sabendo que já havia bastante intimidade com o Frazar para não mascarar meus medos, apoiei as costas no travesseiro e ele se virou para mim, atento. 

Devo ter ficado emburrada por alguns segundos, não muito a fim de conversar, mas se tem uma coisa que eu aprendi nesses últimos meses, é que falar quase sempre é necessário, ainda mais quando se há confiança.

— Eu estou com medo de sair de casa — confessei. — Estou com medo de dar um passo lá fora e colocar a vida dos outros em perigo.

Encolhi as pernas e abracei os joelhos, entristecida. 

— Mas… Emily, como isso seria possível? — Ele franziu a testa e olhou para mim. Sustentei o olhar e ele pareceu ter recebido um estalo na sua mente. — Oh, então a sua namorada é mesmo perigosa.

Às vezes me esquecia que Frazar e eu já havíamos tido a conversa, onde eu contei sobre meus medos e os perigos que corri — mas não tudo para não assustá-lo e não envolvê-lo. E o que ele havia compreendido era que a Susan e eu estávamos juntas, mas ela teve que se afastar por questões pessoais que acabaram me envolvendo e me machucando.

Certamente ele deve ter julgado exagero da minha parte afirmar que minha saída de casa poderia comprometer vidas alheias, mas aos poucos acho que estava entendendo que, por mais que não lhe contasse tudo sobre mim, era melhor confiar na minha palavra.

— Seja lá o que for que esteja te ameaçando, eu te defendo! — Oh, pobre Frazar, às vezes tão ingênuo e sem noção do perigo…

— Não é tão simples — eu disse apertando ainda mais o joelho contra o peito.

Odiava sentir esse medo em mim, era como se tivesse uma vozinha interna gritando o quanto eu sou covarde. Tentava não ligar, me perdoar pela minha fraqueza, afinal, diferente da Sue eu não cresci numa família de mafiosos com dezenas de armas à minha disposição. Por mais que odiasse admitir, eu era frágil.

Talvez devesse voltar a lutar com a Jane… mas isso implicaria em sair de casa e não sei se estou preparada.

— Olha, o pessoal da minha banda e as outras turmas estão arrecadando fundos e para isso faremos um show na quadra da universidade, você bem que podia cantar com a gente — Frazar informou, era nítido como ele queria me animar sem parecer invasivo.

Eu sabia que ele estava se segurando para não me encher de perguntas, sabia que eu tinha tendência a me fechar e fugir de questionamentos, então sua estratégia era tentar levantar meu astral com outra atividade, o que era adorável da parte dele, mas meu ânimo rebaixado não colaborava.

— Não sei se é uma boa ideia — falei. — Não sei se terei disposição para isso, mas agradeço por pensar em mim.

— Não me diga não agora, pense por essa semana, por favor — ele pediu, unindo as mãos como uma prece.

Eu dei um meio sorriso, ele sabia que eu não podia fazer nenhuma promessa, mas tentaria pensar com mais carinho na proposta.

— Estou feliz por te ver — contei. — Apesar de ter escolhido passar esses dias longe de todos, estou grata pela minha irmã ter te encontrado e dado um jeito de te fazer vir aqui. Obrigada.

Meu amigo se aproximou mais de mim e me deu um sorriso. Sinceramente, eu não sei o que seria de mim sem essa amizade.

Por muito tempo eu tive apenas o George como melhor amigo, mas ainda assim éramos distantes, o início na faculdade mostrou que cada um precisava seguir seu caminho, e o meu foi de encontro com o da Sue, que por muito tempo pareceu ser o único possível para caminhar. Queria segurar sua mão para sempre sem me importar por quais estradas ela me levaria.

Até que se soltou de mim e fez sua jornada solitária, me deixando sem alternativa a não ser ficar sozinha também. E a solidão foi minha única companhia por semanas, de um modo que estava quase perdendo as esperanças de voltar a ter uma rota um dia.

Até que o Frazar apareceu, e ele e minha irmã não desistiram de mim. Não só seguraram minha mão, me conduziram pelos ombros em segurança e continuam ao meu lado até terem certeza de que consigo caminhar com meus próprios pés, dessa vez sem precisar seguir ninguém, autossuficiente para fazer minhas escolhas.

— Queria ficar aqui contigo por mais tempo, mas eu preciso ir trabalhar. — Frazar se levantou. — Aliás, a Maggie também sente sua falta, está preocupada com você.

Sua fala me fez pensar se eu ainda tinha mesmo um emprego, até porque depois desses dias eu bem que merecia uma demissão por justa causa.

— Ela deve estar me odiando, isso sim.

— Que nada, ela adora você.

Sabia que ele queria me passar tranquilidade, mas isso eu não sentia há muito tempo. Estava inquieta e pensativa. Como sempre, minha mente não dava uma trégua, o tempo todo bombardeando pensamentos e a maioria deles transmitia minha insegurança e meus temores.

Entretanto, com essa visita surpresa do Frazar, tive um lampejo mínimo de audácia. Certamente me arrependeria, mas faz parte do "ser artista" ser também impulsivo.

Me levantei da cama e disse:

— Eu vou com você.

Eu estava a fim de sair de casa? Não. Mas na minha autobiografia devo escrever que tomadas de decisões nunca foram meu ponto forte, e minha inconstância prevalecia quase sempre.

Frazar me encarou bastante surpreso e inicialmente não disse nada.

É claro que eu ainda sentia medo do que poderia me aguardar na rua, mas será que era melhor para mim ficar trancada dentro de casa? Logo no mesmo lugar que meu pai e meu irmão, que provavelmente usariam esse meu comportamento como desculpa para me encher o saco. E me tornando um parasita, sobrecarregaria ainda mais a Vinnie.

Reconheço que não sou a pessoa mais corajosa do mundo, mas se eu queria que algo mudasse positivamente na minha vida, eu precisava enfrentar meus medos.

Existe um método de tratamento para pacientes com estresse pós-traumático que utiliza óculos de realidade virtual para simular situações que ocasionalmente geram traumas e a pessoa deve trabalhar para contorná-las em segurança.

Resumindo: você precisa admitir que tem medo para assim fazer algo para dominá-lo e sair desse ciclo horrendo de desgaste emocional.

É fácil? Claro que não. Porém necessário. Não sou a pessoa mais otimista do mundo, porém algo dentro de mim me dizia para não abrir mão da esperança. Senão estaria desistindo de mim e de todos que eu amo.

— Tem certeza disso? — Frazar me avaliou com cautela. — Não vim aqui pressionar você nem nada, sei como seus dias estão sendo difíceis, faça no seu tempo.

Estiquei o corpo na ponta dos pés, minhas articulações estavam um pouco doloridas de tanto ficar na mesma posição, e fui até minha mesinha organizar meus papéis espalhados. Já que iria sair, não podia deixar propício para o vento bagunçar meus trabalhos ou um dos gatinhos subir sobre a mesa para roer as folhas — já quase aconteceu uma vez, mas peguei o Liam no flagra e fiz ele descer.

— Sim, Frazar, eu vou com você — falei antes que voltasse atrás.

Meu amigo se aproximou de mim, me observando arrumar minhas coisas e pareceu pensativo.

— São poesias? — ele perguntou. — Andou escrevendo bastante esses dias?

— Não tanto quanto gostaria, mas fiz alguns versos. Quer ler?

Meu oferecimento o fez ficar espantado, não estava esperando por isso. Eu que sempre fiz questão de esconder meus poemas, já era a segunda vez que permitia que Frazar os lesse. Sentia falta de alguém avaliando minhas obras.

— É claro que eu quero!

Reuni as páginas em um amontoado pequeno e entreguei a ele.

— Leia na sua casa.

Ele pegou minhas poesias e folheou com atenção, parecia encantado, e sorriu, um sorriso que me acendeu uma pequena euforia. Que saudade eu tenho desse mesmo olhar vindo da Susan…

— Obrigado, Em.

Com as papeladas em seu devido lugar, dei uma olhada calculada no quarto e senti meu peito apertar, como se o temor comprimisse meu coração, mas eu precisava passar por isso, ou a situação que passaria por cima de mim me esmagando.

Respirei calmamente, mesmo com minha mente agitada e pedi ao Frazar que me esperasse do lado de fora enquanto eu trocava de roupa.

Quando saí do quarto, encontrei não só o Frazar, mas também minha irmã. Ela estava com o olhar surpreso e um sorriso confuso. Não deveria estar acreditando que sua ideia de trazer alguém aqui deu certo, nem eu acreditava. Na verdade estava tentada a dizer que havia me arrependido e queria ficar no quarto mesmo.

Não quis arriscar ficar mais tempo ali parada recebendo aquela encarada. Sei que minhas atitudes são confusas, até para mim, então quem dirá para os outros, então não dei nenhuma explicação, apenas um aceno de despedida para a Vinnie e saí com o Frazar.

Fizemos o percurso até o Bar quase em silêncio. Frazar falava comigo, assuntos aleatórios, e eu respondia monossilabicamente. Às vezes ele tentava assuntos mais sérios, mas eu fingia não escutar. Estava me acostumando com a volta à rua, tentando esquecer meu medo e focar no passo que dava um atrás do outro para não entrar em pânico e desistir.

Já de frente para a fachada do bar, tive um sentimento semelhante ao de quando a vi pela primeira vez, o mesmo misto de estranheza com graça, mas hoje também senti um certo conforto. Apesar de tudo, lá era um dos poucos lugares onde eu me sentia bem e estranhamente segura.

E, falando em segurança, assim que entramos vi a Jane ineditamente do lado de fora do seu esconderijo em plena luz do dia. Quando me viu, automaticamente sorriu, um sorriso curioso e ao mesmo tempo com um brilho no olhar, como se eu fosse uma peça de prata bem polida que ela ansiava tocar. Devo tê-la divertido muito na primeira e única vez que treinamos — e eu apanhei pra caramba.

Sabia que devia satisfações a ela, mas agora não era a hora, nossa relação era secreta, ficaria aqui pelo bar até o fim do expediente e depois veria o que fazer.

Frazar colocou seu avental e eu fiquei apenas observando, já que a Maggie apareceu bem na hora e disse estar muito feliz em me ver de volta, e que eu não precisava trabalhar hoje, só quando me sentisse completamente melhor.

Fiquei agradecida, até porque fui até lá apenas para sair de casa e ver se isso contribuia com o meu humor, mas não estava a fim de fazer maiores esforços.

Fiquei em um canto com meu caderninho anotando alguns versos, revisando poesias antigas e trabalhando em uma nova, revezando minha concentração entre minhas palavras e o movimento no bar. Confesso que essas horas que se passaram comigo aqui dentro me fizeram bem, me sentia um pouco melhor.

Lá pelas nove meu amigo encerrou seu turno, guardou o uniforme no lugar de sempre e veio até mim.

— Vou sair um pouco mais cedo hoje, marquei de discutir algumas coisas com a banda lá no dormitório. Bem que você podia ir comigo, não pretendemos demorar, vamos conversar sobre a apresentação.

— Ah, Frazar, dessa vez deixo passar, vou ficar pra falar com a Maggie — não era totalmente mentira da minha parte.

— Que pena. Mas eu posso te esperar então, aí te acompanho até a sua casa e de lá volto pra faculdade.

Eu me levantei e me aproximei dele.

— Não precisa, vai desviar muito do seu caminho. Relaxa, eu sigo daqui sozinha.

Tentei mostrar um sorriso, mas ele me olhou um pouco desconfiado.

— Vou ficar preocupado, você saiu de lá comigo, quero te deixar em segurança.

— Não precisa se preocupar comigo agora, já me sinto melhor. E não quero que se atrase para a sua reunião, sei que ela é importante. Qualquer coisa eu ligo pra Vinnie e ela vem me buscar.

Ao escutar o nome da minha irmã a tensão na sua testa suavizou. Me pergunto quando foi que me tornei tão delicada a ponto de todos que gostam de mim precisarem estar a disposição caso eu necessite.

Mas a resposta era óbvia: o meu comportamento recluso e as crises incentivaram isso. Infelizmente.

Depois de convencer o Frazar de que eu estava bem e não teria problemas sozinha, ele foi embora. 

Que engraçada a minha situação. Horas atrás não queria sequer sair do meu quarto, agora estou decidida a ir até a segunda mulher mais perigosa que eu conhecia.

Guardei meu pequeno caderno e antes de tudo fui até a Maggie explicar minha situação nessa última semana. Pedi desculpas pelo sumiço e disse que aceitaria ter as sanções que ela julgasse necessárias. Entretanto, foi bastante compreensível comigo, parecia até que estava a par de tudo desde o início.

Em seguida desviei de alguns bêbados e pessoas animadas com a música alta no recinto e entrei furtivamente na área restrita, sem pensar muito porque se eu parasse para avaliar as condições eu daria meia volta e me esconderia no meu quarto para sempre.

Na minha cabeça havia dois tipos de pensamentos: um deles me dizia que eu estava sendo burra e deveria continuar fugindo de tudo, e o outro me mandava enfrentar e continuar o treino para quem sabe assim ter uma mínima evolução na minha autoconfiança.

Bom, no final das contas apenas um deve se sobressair.

Cheguei na porta de madeira, pensei em bater, ou talvez esperar até que alguém saísse, ou simplesmente fazer uma entrada triunfal — o que certamente resultaria em armas apontadas para mim. Fiquei com a primeira opção.

Quem abriu para me receber foi a própria Jane. Talvez ela já estivesse me esperando porque seus olhos brilharam e tenho certeza que ela queria gritar "ah, eu sabia que ela apareceria!" para o Joseph que estava bem atrás de si.

— Uau, Emily, que surpresa você ter voltado, pensei que tinha desistido da gente.

Ela abriu espaço para eu entrar, e assim que a porta se fechou atrás de mim, fitei todo o ambiente como se fosse a primeira vez, encarando as armas e sentindo um frio na barriga.

Parei meus olhos sobre o Joseph, ele estava com um braço enfaixado e alguns ferimentos no rosto. Parecia cansado, a expressão mais dura. Me senti mal, com certeza ele deve ter sido atacado por outros capangas da Máfia no decorrer da semana, e por minha culpa.

— Nós estamos de saída — ele disse, mal-humorado. — Melhor voltar outro dia.

— Ainda temos um tempo — Jane falou, o contradizendo como quase sempre. — Veio numa boa noite, Emily, recebemos uma carga nova de armamento, posso te ajudar a praticar um pouco com arma de fogo agora.

Escutei Joseph bufar irritado e murmurar um "era só o que me faltava", mas não tentou impedir, talvez estivesse muito cansado para isso, então apenas se sentou.

Jane me conduziu para a outra parte da sala, a mais aberta onde treinamos anteriormente. Dessa vez havia três marcas de alvos na parede oposta, já surrados e marcados, mas bem visíveis.

Ela pegou um revólver pequeno e o colocou na minha mão como se fosse um simples copo de água.

Não era pesado, era frio, e por um momento quis jogá-lo no chão e sair correndo gritando, mas seria muito constrangedor.

Nunca havia pegado em uma arma antes. Fiquei com medo de ser tão desastrada e acabar virando-a para minha própria cabeça e acionando o gatilho sem querer.

Percebendo minha inquietação e temor, Jane se posicionou ao meu lado e me ajudou a segurar o objeto. Em seguida fez uma demonstração com a sua e em poucos segundos deu um tiro no alvo à frente, me fazendo soltar um gritinho agudo vergonhoso.

— Agora tente você.

Mais uma vez ela me fez segurar a arma com todo o jeito e cuidado, e botei meu dedo no gatilho, me tremendo como um cachorrinho.

Fechei os olhos, mas a Jane me deu uma cutucada muito forte sinalizando que eu deveria ficar em alerta.

Atirei a primeira vez. Pressionei tanto o maxilar para não gritar que poderia muito bem ter quebrado dois dentes. O ruído não foi tão alto quanto eu imaginava, mas foi horrível de qualquer forma.

Eu odiava aquele som de bala saindo do revólver, me lembrava de momentos horríveis. Mas continuei me concentrando na respiração para não desmaiar.

E é claro que acertei na parede bem longe do alvo.

— Acho que não consigo fazer isso — falei com a voz embargada de tanto nervosismo. — Desculpe.

Jane pegou a arma da minha mão e me olhou com certa compaixão. Pensei que ela iria gritar o quanto eu era covarde e precisava me esforçar mais, porém o que fez foi puxar uma cadeira para mais perto e me fazer sentar.

— Tudo bem, podemos esquecer as armas por enquanto — falou calmamente enquanto eu limpava uma lágrima que caiu sem querer.

Joseph se aproximou de nós, podia sentir a raiva vindo dele.

— Eu avisei que era perigoso!

Ele tentou parecer uma figura malvada e imponente, mas eu não era a única naquela sala abalada. Os machucados expostos no seu corpo mostravam isso. Fui até ali com a ilusão de que com um pouco de treinamento eu poderia ficar segura, mas havia segurança para quem? Nenhum de nós estaria a salvo enquanto Thomas Gilbert estivesse vivo dando ordens para nos caçarem até nos matar.

— Me desculpem os dois — eu disse com a voz fraca e cabeça baixa. — Eu só queria não me sentir inútil. Queria poder ajudar vocês de alguma forma, fazer algo que não fosse só ficar sentada e esperar, queria partir pra ação também!

— Emily, isso é loucura — Joseph diminuiu sua dureza na voz minimamente. — Sei que se sente mal com o que está acontecendo, mas se colocar em perigo não é a solução, Sue não gostaria nada disso.

— E o que a Sue tem a ver? — Jane o interrompeu falando alto. — Emily é totalmente capaz de tomar suas próprias decisões, ela não está presa à Susan e às suas vontades, ela pode traçar o próprio caminho da maneira que achar melhor.

Joseph abriu a boca para contestar, já podia imaginar uma gigantesca discussão entre os dois comigo no meio, mas a Jane se adiantou e mandou que o namorado esperasse do lado de fora.

Consciente da hierarquia de poder entre eles, obedeceu descontente.

Saiu me deixando à sós com a Humphrey — o que não aliviava nenhum pouco a tensão.

— Não ligue para o mal-humor do Joseph, ele está de cabeça quente esses dias. Andou recebendo ameaças e teve que enfrentar uns enviados da Máfia essa semana. — Esfregou a mão na testa, séria e preocupada. — Ele está com medo, o que é normal. Todos nós estamos. É preciso ter paciência.

Me levantei da cadeira e dei uma pequena volta ao redor do tatame, pensativa. Até que parei de frente para a Jane.

— Mas… se eu também sou um alvo da Máfia, por que não invadiram minha casa já que sabem onde eu moro?

— Isso seria burrice. Os Dickinson já foram alvo dos Gilbert por muito tempo e pouco conseguiram tirar de vocês. A Máfia não insiste na mesma vítima por longos períodos. Além do mais, a polícia está de olho na sua casa e o seu pai reforçou bastante a segurança. Atacá-los lá seria decretar a derrota do Thomas.

Quem diria, o local onde certamente corro menos perigo é dentro de casa junto do Edward e do Austin. As ironias da vida me deixam perplexa.

Dei mais uma volta, a cabeça cheia de tanta informação e preocupação. 

— Sabe, Jane, eu não gosto de ser só uma garotinha indefesa. Eu queria ser fodona, corajosa e forte como você e a Sue — confessei algo que estava martelando há dias. Eu admirava mulheres fortes, mas além disso, ansiava ter a força bruta delas, mesmo que usassem isso para cometer crimes, pelo menos seus inimigos pensavam duas vezes antes de atacar.

Jane deu uma risadinha ao me ouvir dizer isso e colocou as duas mãos nos meus ombros, se posicionando bem na minha frente.

— Eu sei que parece incrível ser perigosa e temida, mas não é. Já tive minhas perdas, perdas muito dolorosas, e esse é um caminho sem volta, cheio de sofrimentos e dureza todos os dias.

— Mas… — tentei argumentar, mas fui impedida.

— Minha querida, você tem sorte de ser apenas uma jovem cidadã dessa cidade, com a ficha criminal limpa e anônima, tem sorte de haver pessoas dispostas a te defender e que dariam a vida por ti se for necessário. Você se meteu sem querer nessa enrascada, mas não precisa se envolver se tornando uma criminosa. Eu sei que não é bem isso o que você quer, vejo que só está tentando enfrentar os seus medos, mas do jeito errado.

Ela tirou as mãos dos meus ombros e segurou as minhas, senti seus dedos gelados e ficamos um minuto em silêncio.

Jane tinha razão, não queria me tornar uma assassina ou me filiar a nenhuma quadrilha. Eu apenas queria que me deixassem em paz, que se esquecessem da minha família e eu não precisasse mais temer por eles. Queria principalmente que a Sue voltasse e não corresse nenhum perigo, que o Joseph pudesse andar nas ruas sem medo de morrer, e que minha namorada ficasse do meu lado sem precisar de esconder, que ela fosse feliz comigo e que realizássemos nossos sonhos clichês e tivéssemos o "felizes para sempre" de um conto de fadas ao invés da tragédia de um romance de Shakespeare.

— A vida é uma grande merda — desabafei.

— Ah, ela é sim.

Apesar de todo o clima pesado, rimos juntas das desventuras que temos. Eu queria chorar, mas já havia chorado tanto esses dias que só me sobraram risadas amargas.

— Acho melhor eu ir embora — anunciei.

— Eu também já vou.

Deixamos a ala ampla e voltamos para o depósito de armas. Conferi se meu pequeno caderno ainda estava no meu bolso e Jane trancou algumas gavetas antes de caminhar até a porta.

Aproximou a mão da maçaneta, mas recuou, se virando para mim.

— Eu vou fazer algo que certamente não deveria.

Minimizou a distância entre nós e… me deu um selinho?

— Se contar sobre isso pra alguém, eu juro que mato você.

Ela sorriu e abriu a porta para sair.

Já eu, fiquei totalmente sem reação, imóvel, em choque, como se tivesse dentro de um sonho incapaz de acordar. Anestesiada e confusa sobre o que isso que acabou de acontecer significava.

 


Notas Finais


Até o próximo :)


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