Era manhã, o sol já tocava na pele de Fyodor, ele havia esquecido as cortinas abertas.
Levantou-se percebendo que não trocara de roupa na noite anterior, pegou uma muda junto a sua toalha e rumou ao banheiro que havia dentro de seu quarto.
Tomou uma ducha rápida perdurando apenas para que pudesse lavar o cabelo, assim que saiu escovou os dentes e fez o que havia de fazer, secando seus fios de cabelo com secador e os prendendo em um rabo de cavalo.
Quando ele saiu do quarto, começou a escutar algumas vozes conhecidas, não só Chuuya, mas vozes que o deixaram surpresos assim que chegou à sala, Nikolai e Sigma haviam chegado. Assim que a presença de Fyodor foi reconhecida ele viu Sigma e Nikolai levantarem com um grande sorriso, eles andaram até Dostoevsky animados.
— Fedya! — Nikolai expressou com animação ao ver o amigo que a muito tempo não via pessoalmente.
— V-vocês, quando chegaram? — Um sorriso surgiu em seu rosto também, ele intercalava os olhares entre os dois.
— Você dormiu bastante aparentemente, porque já é meio-dia, chegamos por volta das sete, você sempre acorda com o mínimo barulho então achei que poderia acordar quando ouvisse o barulho das chaves — Sigma respondeu, ficando ao lado de Nikolai, descansando a cabeça em seu ombro.
— Poderiam ter me acordado.
— Nah, durma mais, você pode — Nikolai disse rindo fraco.
— E bem, se nem aquele seu amigo de cabelos castanhos acordou até agora — Sigma apontou para Dazai que ainda dormia no sofá.
— Aquele ali não irá acordar tão cedo — Chuuya apareceu com um sorriso fraco enquanto apontava para Dazai.
— O seu amigo laranja aqui é muito bom de papo, e ele acordou quando chegamos. Foi muito divertido treinar o japonês com ele — Gogol apontou para Nakahara, o mesmo soltou uma risada soprada.
— Oh, Chuuya, desculpe, nem te dei bom dia, bom dia, dormiu bem? — Fyodor olhou para Chuuya com aquela sua expressão calma de sempre, mas nele existia uma fagulha de preocupação, devido à conversa da madrugada. Nakahara acenou que sim com a cabeça, ignorando o olhar preocupado de Fyodor, ele aumentou seu sorriso.
— Estou bem, a noite foi boa na medida do possível — Encostou-se no balcão com um sorriso não muito sincero ainda nos lábios, Fyodor comprimiu os lábios e respirou profundamente, voltando sua atenção a Sigma e Nikolai.
— Hoje temos planos de sair com Fedya — Sigma cortou aquele clima que começava a se formar mesmo que nem ao menos tivesse percebido.
— Uh, vocês têm? — Fyodor olhou-os duvidoso.
— Claro! — Gogol disse como se fosse óbvio — Faz tanto tempo que não nos vemos cara a cara, não sei quanto tempo poderemos ficar porque viemos de repente, então teremos que aproveitar, certo? — O sorriso engraçado e exageradamente grande que Nikolai tinha certas vezes se fez presente, fazendo Fyodor querer rir, mas ele apenas concordou com a cabeça levemente — Ei, ruivinho, você e o seu amigo dorminhoco podem vir também!
— Oh, não, não, tenho trabalhos da faculdade para finalizar, já é domingo — Negou rapidamente, Dostoevsky perguntou-o com o olhar se ele tinha certeza, mas Chuuya o deu um balançar de ombros como resposta.
— Poxa, eu realmente gostaria de conhecer os novos amigos de Fedya — Gogol lamuriou-se, mesmo que soasse falso Fyodor sabia que toda aquela emoção que Nikolai colocava em suas palavras na grande maioria das vezes, mascaravam sempre a verdade. Fyodor aprendera isso com o tempo, ele teve algumas dificuldades de lidar com Nikolai quando o conheceu, justamente por não entender quando ele dizia a verdade.
— Talvez em uma próxima vez, não distante, porque vocês vão embora logo.
— Claro, claro! — Nikolai voltou a sua animação após seu mini teatro.
Quando se fez silêncio ali, eles puderam escutar bocejos vindo da sala, Dazai acordara, ele sentou-se no sofá, olhou para trás e viu quatro homens o olhando, piscou algumas vezes antes de levantar-se por completo.
— Não sei nem o que dizer, deveria ser bom dia? — Osamu falou depois de longos segundos de silêncio.
— Bom dia — Fyodor respondeu — Dormiu bem?
— Não, sinto que fui atropelado por um caminhão — Espreguiçou-se, e olhou para os seus braços percebendo que as bandagens estavam quase todas desatadas, ele escondeu os braços nas costas e sorriu amarelo — Eu vou ao banheiro, depois disso vou acordar direito e cumprimentar todos — Apressou os passos até o banheiro.
Os quatro observaram-no sair, Chuuya aproximou-se de Fyodor e o cutucou de lado, Dostoevsky olhou para baixo e viu o rosto de Chuuya, o garoto apontou com a cabeça para o banheiro, como sinal para o russo o seguir. Fyodor engoliu em seco e concordou com a cabeça, indo atrás de Dazai, deixando os outros três ali.
— Ei Fedya! — Nikolai chamou-o.
— Já volto — Falou de volta. Dostoevsky bateu na porta do banheiro de leve, ouvindo Dazai responder com um "oi" — Sou eu, abra.
— Você quer me ver pelado é isso? — Brincou, Fyodor coçou a nuca e suspirou — Era para você rir.
— Vou te ajudar nas bandagens.
— A-ah, certo! — Abriu a porta, Fyodor entrou, e encontrou as bandagens sobre a pia — Eu não trouxe novas, então-
— Você vai trocá-las quando chegar em casa?
— Possivelmente.
— Eu posso ver… As outras? — Fyodor perguntou olhando para o pescoço coberto de Osamu. O acastanhado pareceu envergonhado com a pergunta, mas respondeu que sim.
— Isso pode dar trabalho, sabe, colocar de volta — Desviou o olhar — Mas por mim estaria tudo bem — Fyodor encostou nas bandagens do pescoço de Dazai, o que fez o garoto pular levemente, os dedos de Fyodor estavam cobertos por uma luva como sempre, mas aquele gesto foi novo.
— Dazai.
— Sim? — Sua mão foi de encontro a uma tira de suas bandagens do pescoço, Fyodor afastou a mão até que as tiras fossem todas desenroladas, a imagem que ele viu a seguir o fez apertar os punhos.
O pescoço de Dazai possuía uma marca que envolvia seu pescoço, não precisava ser muito inteligente para que entendesse o que era aquela marca. Era quase como uma queimadura, uma mancha escura, obviamente feita por corda. Fyodor sentiu-se estremecer, e sem aviso prévio ele levou a mão — novamente enluvada — ao pescoço de Dazai, encostando no lugar. Osamu tremeu o olhar, mirando Fyodor quase se sentindo exposto.
— Chuuya já-
— Sim, ele… — Sua mão livre foi a pia, ele apertou-a com força.
— O que?
— Ele me tirou de lá.
Os olhos de Fyodor aumentaram, ele sentiu-se tremer, aquilo deve ter sido horrível para Chuuya. Ele envolveu o pescoço de Dazai com sua mão, e Osamu se assustou quando sentiu a cabeça de Fyodor em seu ombro esquerdo.
Ver alguém daquele modo, ter de estar na obrigação de socorrer Dazai, Chuuya deve ter se sentido desesperado, afinal aquilo não era algo no qual você poderia demorar.
— Eu…
— Chuuya gosta muito de você.
Silêncio.
— E-eu sei — Sua voz falhou — Desde aquele dia, eu não tentei novamente, não com cordas, porque eu lembro como ele reagiu, a expressão — Puxou o ar com dificuldade — Nunca saiu da minha mente.
— Eu gosto muito de você Dazai — Aquilo foi o suficiente para que Osamu perdesse a força, ele iria cair. Empurrou Fyodor de leve, agora usando a pia como apoio por completo.
Fyodor mordeu o lábio inferior, pegou as bandagens do braço, e carinhosamente pegou um dos braços de Dazai, ele já havia feito isso ontem, não seria tão complicado, agora ele sentia-se tão inebriado por aqueles sentimentos ruins, tanto de pensar que Dazai quase conseguira êxito no suicídio, e por Chuuya ter presenciado uma cena como aquela também. Aquela situação parecia tão horrível, ele sentia tanto. Tanto que suas vozes internas que o diziam para não se aproximar demais dos outros não foram capazes de o puxar de dentro daquele poço de sentimentalismo.
Dostoevsky enrolou cada bandagem com calma, sentindo o olhar fixo de Dazai nele, ele houvera tocado em um assunto sensível, disso ele sabia, mas ele não se arrependia.
Quando finalmente terminaram, inclusive as do pescoço, Osamu desencostou-se da pia, e seguiu atrás de Fyodor, saindo do banheiro. Os dois rumaram à sala, Dazai colocou um sorriso no rosto quase falso e encontrou ali dois dos três homens.
— Terminamos! — Falou Osamu, Fyodor concordou com a cabeça, mas logo percebeu a falta de Chuuya ali.
— Onde está Chuuya? — O russo perguntou.
— Oh, ele já foi, vocês demoraram um pouco, então ele pediu apenas para avisar.
Fyodor suspirou e concordou com a cabeça, ele gostaria de poder dizer algo para Chuuya, mas não seria agora.
— Eu acho que já vou indo também, vocês devem ter planos, certo?
— Temos sim, você não quer vir? — Sigma perguntou.
— Nah, já fiquei muito no pé de Fedya — Sorriu amarelo, Dostoevsky negou de antemão, mas Dazai deu de ombros — Eu já vou indo, vou deixar a minha sacola com os livros. Chuuya levou algum quadro? — Questionou a última parte olhando os outros dois homens.
— Oh, sim, ele saiu carregando uma tela.
— Ótimo, bem, Fedya já vou indo — Foi para mais perto de Fyodor tocando em sua mão brevemente como uma despedida, foi tão perto que Nikolai e Sigma nem mesmo viram, Dostoevsky sorriu de volta, podendo ver Dazai sair apressado, mas sem antes correr até a sala e pegar o livro que Fyodor o havia emprestado.
Não demorou para que estivessem apenas os três ali Fyodor, Nikolai e Sigma.
— Fyodor — Gogol iniciou.
— Uh?
— Você sabe que precisamos conversar, certo?
— Eu não sou uma criança Nikolai — Deu de ombros, andou até a cozinha, prestes a procurar algo para comer.
— Vamos tomar café fora — Sigma falou de repente, Fyodor piscou algumas vezes e concordou com a cabeça — Vamos então.
— Agora?
— Sim.
Dostoevsky suspirou, indo ao seu quarto pegar um agasalho.
Ele não entendia exatamente sobre o que os dois queriam conversar, mas Gogol parecia um tanto sério, ele entende que aqueles dois as vezes o tratavam como um adolescente, como se o fato dele agora ser um adulto, não tivesse mudado nada. Fyodor apreciava aquele carinho todo para com ele, mas não deixava de o fazer pensar.
Fyodor antes de sair olhou a bíblia sobre a cabeceira, ele apertou o agasalho que tinha entre as mãos, e como um gesto impulsivo ele pegou o livro em mãos, vendo que estava aberto justamente no final de Jó. Era possível ver as marcas de aperto no canto de algumas páginas anteriores, talvez ontem ele tivesse apertado com força demais enquanto lia. Mas agora, olhando toda a dor estampada em cada uma das páginas, ele não sentiu nenhum tipo de aconchego, talvez fosse apenas o vazio que aquele livro não lhe foi capaz de preencher como todas as vezes que outrora fora.
O prazer terreno o fez tornar-se vazio, mas ele sentia-se vazio apenas quando se tratava de Deus, afinal, o turbilhão de sentimentos que Dazai e Chuuya o trouxeram, não foi-se embora por nem mesmo um segundo. Mas há algo que talvez ele quisesse saber, caso ele se entregasse a tudo, ele estragaria todo o mundo que construiu? Os estragaria? Ele os corromperia?
Ele realmente desejava que não.
Colocando a bíblia sobre a mesa novamente, ele foi até a porta, apertando a maçaneta antes de abrir a porta com receio, receio possivelmente do que teria para ele ao atravessar a porta, não a conversa, mas que agora ele não estava mais tão preso em seu mundo.
— Está pronto? — Sigma perguntou levantando-se do sofá, Fyodor acenou que sim, mas sem antes colocar alimento a suas gatas, para que assim pudessem finalmente sair.
(...)
Eles foram a um café não muito longe da residência de Fyodor. Nikolai nem mesmo Sigma gostariam de iniciar o assunto naquele momento, então não falaram sobre nada importante de fato, apenas assuntos banais sobre como andava o emprego de cada um deles. Dostoevsky reclamou sobre seus clientes, Sigma de seus alunos, já Nikolai apenas escutava, satisfeito com seu emprego atual, ele fazia stand-up.
Após tomarem o café e Nikolai insistir para que Dostoevsky comesse algo, os três foram a uma praia vazia da cidade, não muito longe, não lhes era permitido entrar na água, mas eles não o fariam de toda forma, estava respectivamente frio aquele começo de tarde.
Andando com os pés arrastando pela areia Sigma buscava palavras para iniciar aquele assunto realmente, mas nada lhe vinha à mente, nem mesmo uma palavra. Fyodor sabia que os dois logo perguntariam sobre os seus últimos dias, até conseguirem chegar ao ponto importante. A ligação de ontem.
— Vocês sabem como conheci os dois, Nikolai fez piadas sobre eu estar junto de um universitário. Mas, posso dizer que talvez eu esteja um pouco ferrado, certo? — Fyodor começou calmamente, sorrindo amarelo ao dizer a última frase. Nikolai o olhou de canto, continuando a andar lado a lado dos dois, ele queria que Dostoevsky dissesse mais sem que ele tivesse de perguntar, mas ele não o fez.
— Você usou cocaína — Gogol interveio.
— Não deveria ser tão importante. Descobri que isso pode me ajudar a lidar com os problemas, não vejo problema em usar mais vezes.
— Você sabe que é um problema.
— Não é um problema — Dostoevsky respondeu afiado, Nikolai suspirou e recolheu seus braços.
— Quando éramos jovens-
— Eu sei muito bem Nikolai, mas eu não vou ser como você foi — Interrompeu-o, Gogol desviou o olhar para o mar sem dizer nada.
Sigma não sabia bem o que fazer, então ele se aproximou do marido, pegando-o pela mão.
Fyodor mordeu o lábio interior, e olhou para o céu nublado, sentindo-se arrepiar, sem saber se seria aquilo o frio da tarde, ou de seu interior.
Ele não queria olhar para os outros dois, então continuou caminhando ao lado deles em silencio, pensando, pensando que ele esperava que Deus, talvez fosse mandar-lhe um sinal, uma resposta. Mesmo que não fora respondido a nem mesmo Jó o motivo de toda a sua pobreza, de toda a sua desastrosa situação, desmanchando-se em larvas e em miséria. Fyodor não conseguia fechar os olhos e crer em Deus, crer que não havia feito nada, pois ele sabia que havia feito. Jó tinha certeza que nada fez para provocar a ira de Deus, já ele, ele sabia que havia pecado, que havia feito errado, experimentado do fruto, assim como Eva e Adão fizeram, como a uma única arvore do Éden, sua única restrição, e mesmo assim ele fez, ele fez a única coisa que não deveria.
Mesmo que lhe digam que ele não havia realmente experimentado do fruto, ele havia cobiçado abertamente, a ponto de que os outros pudessem perceber, e aquilo já seria ruim o suficientemente. Cobiçar já era um pecado.
“Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”
Isso, em relação a Fyodor, tornara-se diferente, tornara quase unicamente destinado a ele, porque ele não cobiçaria uma casa, ou um conjugue, ele cobiçava o calor de um ser, de um, dois.
— Só… foi a primeira vez em que eu não pensei no passado, ou nos problemas em que eu queria mascarar, mas que não consegui nem de mim mesmo — Dostoevsky voltou a falar, e dessa vez ele parecia um pouco emocional, os recentes pensamentos o deixara ressentido — Me sinto mal, culpado, eu nunca realmente senti algo assim, ou esse desejo, é desesperador, e quando eu usei aquilo, e tudo sumiu, como se não fosse nada, como se eu não precisasse pensar em nada, foi bom, foi aliviante, e eu só gostaria de o fazer mais vezes — Recolheu suas mãos, escondendo-as em seus braços agora cruzados, seus olhos encontraram seus pés — É como se o problema nisso apenas viesse depois, junto do arrependimento, do medo, no momento é bom, mesmo que com cautela, ou com doses de ansiedade, mas depois é como um erro.
Ele parou, e seus olhos ardiam. Abaixou-se indo de encontro ao chão, quase de joelhos. Nikolai e Sigma pararam também, os olhos de Nikolai caídos, tristes, Sigma estava preocupado, e juntamente triste. Os dois sabiam que aquele momento deveria chegar em algum momento, Fyodor amaria algum dia, e seria uma saída para o seu trauma, mas para eles era complicado lidar, já que não conseguiram ajudar quando mais novos, pois a ideia de que era os planos de Deus estava fixa demais na mente de Dostoevsky, não era como se os dois realmente não se importassem com aquele problema, eles apenas não poderiam ajuda-lo antes, isso se nem ao menos ele quisesse. Não é possível salvar alguém que não quer ser salvo, Sigma e Nikolai haviam entendido aquilo a muito tempo, eles só aguardavam o dia em que poderiam estar ali para quando Fyodor aceitasse ser salvo.
A única alternativa que eles tinham para mantê-lo a salvo de si mesmo, era incentiva-lo a amar a Deus incondicionalmente. Afinal, muito Gogol disse a Sigma quando eles conversaram sobre Fyodor: “O homem pode precisar de Deus para que possa viver sem se matar as vezes”, tanto foi repetido isso, que em dado momento, Sigma passou a aceitar que eles deveriam deixar Fyodor com seu Deus, ele estaria seguro enquanto estivesse com ele, até o momento em que fosse forçado a acordar.
— Jó sabia que não havia feito nada, nem mesmo quando seus amigos surgiram insistindo que ele havia feito algo, ele não fraquejou, não praguejou a Deus, ele não se tornou menos digno, ele não pecou. Mas por que eu pequei? Por que eu fiz tão facilmente? Eu não permaneci firme as provações, Deus me deu tudo, e eu estou destruindo — Suas palavras soavam abafadas, baixas, dolorosas, carregadas de sentimentos — Eu não pude ser forte, não quando se trata de Dazai ou Chuuya, e mesmo reconhecendo o meu erro e querendo perdão, eu não consigo deixar de desejar, eu quero poder confortar Chuuya, quero confortar Dazai, quero não sentir que estou pecando, mas eu estou, eu estou com os pecadores. Me arrependo, mas não deixo de pecar. Eu, sinto por eles, eu sinto a dor deles, e isso me trará a ruina. Eu reconheço o mal, reconheço o mal, e por isso estou em ruinas, quando se reconhece o mal, por vontade própria, você perde.
“Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também.”
— Assim como fizera Eva, fiz eu, fisguei o que me era agradável, e pequei, agora trago desgraça a tudo que criei, pois não posso ter descendentes e nunca terei, não poderei passar a desgraça a eles, sou terrível, pequei e quero pecar mais — Fyodor disse por fim, apertando os punhos escondidos, rangia os dentes com força.
Ler o livro de Jó lhe abrira os olhos, aquilo era uma provação, e ele não foi capaz de supera-la, ele deveria redimir-se verdadeiramente, pedir perdão, mas não conseguia deixar de cobiçar, deixar de desejar, fechara os olhos para a verdade nos últimos tempos, não prestara atenção em seus pecados que agora caiam sobre sua cabeça como pesos do céu, Deus finalmente o estava alertando, alertando, pois ele não se dera conta mais cedo. Ele queria entregar-se de corpo ao pecado, por isso cobiçava, mas ainda sim sabia como aquilo acalentaria em vida, nunca poderia fazer nada, pois Deus o dera aquilo, e tudo que poderia fazer era arrepender-se, pois não poderia jogar tudo ao alto, pois não tornaria tudo mais fácil. Não quando há mais a se preocupar.
— O que você mais sente medo? — Gogol perguntou de repente, se agachando na areia ao lado do amigo — Deus, ou de você mesmo? — Suas palavras foram cruas, Fyodor levantou a cabeça vagarosamente, olhos arregalados, quase desesperados.
— O que quer dizer? — Sua voz vacilou, tão baixa quanto antes, seus dedos encontraram a areia, apertando a ponto de doer, o terror percorreu por entre suas veias.
— Os seus pais, seus avós.... Nástenka — Ao ouvir tal nome, Dostoevsky escondeu seu rosto novamente, sentindo seu corpo congelar, memorias que havia enterrado.
“— Ei Dosto, você sabe que ele é um anjo dos céus. Não sabe? — A jovem de cabelos curtos, castanhos, sorriso gengival, alta como uma adolescente, mas com a idade de uma criança, ria enquanto dizia coisas que aprendera ao ouvir as moças do orfanato falarem.
— Não diga bobagens Nástenka. Deus ficara irado com suas palavras tolas — Murmurou Fyodor olhando-a nos olhos.
— Ele não ficara bravo comigo, sou apenas uma criança, ele não odiaria uma criança fofa — Sorriu novamente. Fyodor balançou os braços, e sentou-se em sua cama. Era um quarto com várias camas, uma ao lado da outra, camas baixas, como para crianças de nove anos — Mas sabe, eu também acho que você é um anjo — Andou até ele, sentando ao seu lado na cama, balançando seus pés em conjunto aos de Fyodor — Porque você nunca aceita o abraço das tias, penso que é porque como Jesus, suas bençãos serão dadas caso alguém toque em você — Fyodor abaixou o olhar, os braços sobre as pernas. Ele calou-se por longos segundos.
Sorriu fraco, e voltou seu olhar a garota.
— Acho que é o contrário na verdade.
— Ah vamos, eu duvido, nunca vi um anjo que não se pareça com você! — Ela riu, abaixando um pouco a cabeça, perto o suficiente de Fyodor.
— Pare com isso, você nem mesmo viu um anjo alguma vez — Cruzou os braços sobre o peito.
— É claro que eu vi — Levantou-se da cama em um pulo.
— Quando? — Olhou-a quase que a desafiando a falar.
— Eu não contei a ti agora que o nosso vizinho é como um anjo? Lindo, lindo!
— Você nem ao menos sabe o nome dele, e ele mudou-se faz uma semana.
— Já te disse Dosto, quando formos mais velhos, ele irá voltar para mim, ele prometeu! Ele disse que voltará para me buscar!
— Pare com isso Nástenka, apenas pare. Ele não vai voltar.
— Se não acredita, dê-me a uma benção! Deixe-me tocar em ti, e verá como ele vira correndo aos meus pés, afinal já não te disse que você é um anjo? — Insistiu no assunto, Dostoevsky semicerrou os olhos desacreditado, mas riu, dando de ombros.
— Bem, eu não gosto de toque realmente, mas já que insiste tanto, toque-me, e verá que ele não vai vir! — Riu mais uma vez, inocentemente. Os olhos de Nástienka brilharam, e em nem mesmo um segundo ela á o dera um beijo rápido na bochecha — E-eh? O que é isso? — Murmurou tocando o lugar.
— Você nunca deve ter recebido um desses, nem mesmo das tias, então te dou de presente — Sorriu fraco, Fyodor sorriu de volta desviando o olhar.
Nástenka havia sido sua primeira amiga. E Fyodor, o seu último amigo.”
— Por que está falando disso agora? — Dostoevsky ponderou ao perguntar, Nikolai olhou-o sério em resposta, ele podia sentir o olhar o queimando, mesmo com o rosto escondido.
— Você sabe porquê.
— Não.
Gogol olhou-o de cima a baixo, respirou profundamente, e levantou-se. Fyodor manteve-se no mesmo lugar, as memorias queriam inundar sua mente, junto daquele momento com Nástienka no quarto do orfanato. Mas ele não poderia pensar nisso, não agora.
De quem ele realmente sentia medo?
— Não foi culpa sua — Sigma falou, após muito tempo de silencio, foi sua vez de abaixar-se dessa vez. Fyodor estremeceu, buscando encolher-se mais — Você sabe, muitas crianças adoeceram aquela época, e ela tinha a saúde frágil.
— Todos diziam, delicada como uma flor — Gogol complementou, com a voz leve, olhando fixamente o homem de cabelos escuros.
— Eu a despedacei — Uma voz tremula, baixa, quase em um sussurro — Assim como meus pais, e meus avós, tive sorte de ter percebido cedo. Nástenka me fez pensar, por um tempo, que não foi culpa minha, mas foi, a partir do momento em que Deus decidiu, começou. Eu, pequei, eu errei, e tornei tudo assim, eu a levei. E agora volto a pecar, Deus irá me castigar novamente, e não posso permitir que algo aconteça a eles.
— Nada vai acontecer com eles — Sigma falou firmemente, com certeza em sua voz, implorando internamente que essa segurança fosse passada a Fyodor, mas não recebeu qualquer resposta positiva.
— Como posso ter certeza? — Questionou.
— Apenas confie em mim — Gogol respondeu, dessa vez ele olhava para Sigma.
“— O que vamos fazer? — Era mais uma das conversas sobre Fyodor, os dois tiveram muitas ao longo do tempo, e o de cabelos escuros acabava de chegar aos dezoito. Sigma novamente perguntava a Nikolai.
— Você realmente acredita nisso de “maldição”? — Gogol respondeu à pergunta com outra, seu olhar em Fyodor, o mesmo dormia tranquilamente no sofá.
— Não realmente. Mas ainda há algo em mim que me faz pensar.
— Entendo, estou assim também.
Os dois se silenciaram, olhando o outro dormir. Sigma deitou no outro sofá, Nikolai em seu colo, acariciando seus fios brancos, eles continuaram quietos, talvez esperando por alguma solução. Isso até o silencio ser interrompido por Fyodor, Nikolai alarmou-se rapidamente, levantando do colo de Sigma.
Era mais uma das crises epiléticas.”
Fyodor não sabia, mas o tempo em que teve crises, o tempo em que achava que Deus o salvava. Era Sigma e/ou Nikolai, o virando de lado, tirando qualquer coisa perigosa de seu redor, colocando sua cabeça sobre o colo, cuidando dele. Os dois o faziam, e muito se esforçaram para que em algum momento Fyodor fosse capaz de mudar-se para outro país sem que eles se preocupassem com isso.
Não faria sentido caso ele realmente fosse amaldiçoado, e os dois estarem vivos até hoje, eles poderiam ter certeza que Dostoevsky nunca realmente foi amaldiçoado.
— Podemos ir à igreja — Sigma sugeriu, Dostoevsky olhou-o curioso — Você quer uma resposta não quer? Vamos nos confessar ao padre, se o desejo sumir, significa que você é realmente amaldiçoado. Ajoelha-se e o prometa antes de confessar, faça um acordo com Deus — Seu olhar em Fyodor era firme, essa sugestão fez os olhos do outro brilharem.
Dostoevsky sorriu, e levantou-se, concordando com a cabeça, limpando os olhos. Nikolai olhou para o marido de canto, respirando profundamente e sorrindo, ele desejava que aquilo pudesse se finalizar logo. Mesmo que fosse apenas um desejo, porque algo que foi construído a anos não poderia cair tão facilmente. Algo que Sigma e ele, ajudaram a construir, mesmo que para a segurança de Dostoevsky.
Os três foram a igreja, o confessionário estava aberto, Sigma e Nikolai observaram de longe enquanto viam o Dostoevsky entrar ansioso. Fyodor ajoelhou-se, iniciando sua oração e seu pedido, sendo cuidadoso com suas palavras, esperando ansiosamente por seu acalento. E após longos minutos, ele se levantou, um sorriso fraco em seus lábios, alegre. Andou em passos lentos até o confessionário, e então as palavras começaram a sair, até que tudo estivesse em jogo.
— Sinto-me bem quando estou com eles, mas entendo que é pecado, gostaria de saber o que fazer, afinal Deus deu a mim as regras, mas sinto desejo de pecar, o que eu deveria fazer padre? — Dostoevsky esperançoso falou a última parte de sua confissão, ele sorria ainda, parecia que havia finalmente encontrado a resposta, tudo voltaria ao seu devido lugar. Ele não pensara antes sobre isso, e sentia-se bobo por isso, ele deveria ter o feito antes, se confessado.
Seu interior animou-se quando escutou a voz do padre ecoar pela cabine.
Mas o que ele recebeu, não foi realmente a resposta devida. Era desesperançosa.
Travado no mesmo lugar, as palavras do padre entravam por seu ouvido direito, saindo pelo esquerdo, ele não conseguia crer. No momento em que ouviu que seu pecado era amar a um homem, que o padre havia interpretado assim, mesmo o tendo escutado tantas vezes, ele perdeu-se, seus olhos procuraram acalento. De tudo que houvera dito, foi isso que o padre prestara atenção? Ele nem mesmo havia dito que amava Dazai ou Chuuya, ele apenas queria um braço, um sinal, de que Deus o via, lembrava de si, e que o mostraria a verdade.
— Reze e tenho certeza que Deus o levará ao caminho certo, o conforto devido como procura jovem, sei que encontrará a resposta. Deus o abençoe — Falou por fim. Falando tão calmamente como se não tivesse ativado uma dinamite no interior de Dostoevsky.
Ele não se sentia confortado, talvez sentisse tudo pior.
Sem nem mesmo uma resposta, ele levantou-se, e em passos rápidos saiu da igreja, Sigma e Nikolai o seguiram.
— O que ele disse? — Gogol perguntou quando todos já estavam do lado de fora. Fyodor sentou-se nas escadarias sem responder e afundou a cabeça entre as mãos. Sentia todo seu corpo ferver, não sabia se em raiva, decepção, tristeza. Apenas sentia.
Seria isso porque agora, quando se confessou, fora a primeira vez em que ele falara sobre amor? Ele já havia feito antes, e tinha certeza que aquela voz lhe era conhecida, era o mesmo padre de sempre, mas por que agora as palavras dele soavam tão vazias? Ou tão julgadoras? Ele não deveria ser o porta-voz de Deus? O que era aquilo? Ele lera a bíblia dezenas de vezes, tanto que ele sabia que não havia problema em um homem amar outro homem, ele sabia cada versículo de côr. Mas por que agora tudo estava assim? Quantos anos ele havia perdido de sua vida por apenas consequências bizarras?
Tudo isso por palavras, palavras de um padre, um padre como o de agora, em palavras como aquela que ele havia confiado.
Dostoevsky levantou-se às pressas, e começou a andar em passos rápidos para o mais longe possível dali, Nikolai e Sigma não pararam de o seguir, mesmo que depois de algum tempo os questionamentos tenham diminuído e agora só restava o silencio.
Seria isso a incredulidade, há algo mais elevado que a inexistência de Deus? Havia o homem, não, ele, aceitado a Deus para viver sem se matar? O seu castigo sempre fora maior do que ele poderia suportar, mas ele o fez, andou em pregos, espinhos, continuou cegamente e perpetuamente se privando, perdendo a felicidade. Acreditando, que no fim era abençoado, e fazia o que Deus queria, portanto, seria feliz, mas ele era realmente feliz?
E Nikolai estaria certo, quando o questionou, de quem ele realmente tinha medo? De si, ou de Deus?
Talvez ele tivesse mais medo da inexistência de Deus.
Mas agora, ele tinha medo? O que estava em sua mente afinal?
Tudo parecia uma neblina. Como pode ele viver?
Ele nunca realmente mereceu tudo aquilo, e se rebaixou a situações mais deploráveis e miseráveis, por um Deus.
Ele não podia acreditar.
Agora ele sentia-se mais vazio do que nunca antes.
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