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Perder sua lança em um ataque empolgado é uma das coisas mais vergonhosas que já o ocorreram, na verdade, fica muito feliz que ninguém esteja por perto para vê-lo falhar de forma tão humilhante. Porém, a frustração está na falta de fogo, pois fez como Nörn disse, canalizou sua vontade, sentiu as chamas e tudo mais, porém, durante seus pensamentos, o jovem nanci tem um lapso de entendimento.
As chamas de tom verde têm a ver com a inveja e generosidade, e para o momento anterior havia apenas ganância. Sua culpa.
As coisas precisam ser feitas rapidamente agora, antes que o cactin se recupere, Nahari procura ao seu redor uma pedra que lhe sirva, agarra uma do tamanho de sua cabeça, tem pouca força para fazer um movimento bonito, mas é com os dentes cerrados e tudo que pode juntar que a levanta acima de sua cabeça, força tremula em seus braços magros nos instantes que a ergue, depois, com uma mira apressada a arremessa para baixo.
A pedra viaja ligeira, pesada, atinge o chão com força e esmaga um dos tentáculos dessa planta que solta um guincho que soa como uma tripa sendo espremida para fazer linguiça. Logo depois, o guepardo corre para outro lado, procura outra pedra que possa usar, porém, somente acha algumas menores, coleciona cinco para si, mas, ao se virar para o cactin, o que encontra é perturbador.
Pois ali existe somente um dos braços do vegetal que expele um fluido levemente verde junto a sua lança albina, caída ali próximo. Com pressa, tenta procurar qualquer rastro da coisa, e depois de tentar acha-lo por entre as frestas e fendas mais abaixo, nas passagens que ele mesmo poderia atravessar se engatinhasse, não acha a criatura, mas somente seu rastro pela areia grossa do chão. Descendo as pedras com saltos curtos, vê a oportunidade de ouro de reaver sua arma, porém, é quando salta outras mais baixas que imagina, algo que ele mesmo faria, por deixar seu caçador confiante, uma isca, se pergunta como não viu isso antes?
Quando suas patas chegam à areia mais fria do chão, coloca o olhar para os cantos, mas, com um estouro de areia e um guincho doloroso de ouvir, aquela criatura se revela, um tanto longe, porém, irada, movendo seus três últimos braços para os cantos, os usa como apoio para se mover, se lançar na direção do guepardo com um ímpeto perturbador.
Suas garras arranham as duras pedras desse corredor de rochas altas, a areia abaixo salpica com sua água interna que balança de sua vinha amputada que insiste em se mover, naquele centro de flor, a vinha principal e letal se prepara, enquanto a flor desabrocha e revela sua ponta porosa, mirada em sua direção.
— Mer-
É tudo que pode dizer, pois no instante seguinte tem que se abaixar para não ser pego por uma das vinhas que vem por sua direita, raspando longe em um semi circulo na altura de sua barriga. Porém, atinge a pedra a direita do nanci com um impacto seco que acompanha um arranhar daquilo puxando detritos para si.
No instante seguinte, Nahari se move, com a força das pernas salta para a direita próximo a parede de rochas e com mãos e patas dá outro salto para frente, passando pelo flanco esquerdo do cactin que não tem mira o suficiente para o interceptar, pois bate sua vinha espinhenta poucos centímetros após a cauda do guepardo passar. Correndo rumo a lança que jaz alguns metros a frente, Nahari sente seu coração acelerado, a adrenalina em suas veias o faz sentir como se tudo ficasse sutilmente mais lento, o suficiente para medir em uma contagem de braços que sua lança está a uns três, ou dois e meio.
Correndo agora bípede, Nahari avança com todo o ímpeto que pode, e sente os impactos atrás de si enquanto o cactin se vira e o persegue. Porém, o que não via era que a criatura estava bem mais desesperada do que ele imaginou, e com um movimento lateral atinge a lateral do seu quadril, o bastante para fazê-lo perder o equilíbrio por um instante apenas, o suficiente para que outro atingisse suas pernas e o fizesse cair contra a areia e as pedras miúdas do chão.
Todavia, este ataque desesperado cobra um preço da planta, que cai igualmente sem apoio no chão. Nahari a olha mais atrás, por cima da barriga, e com os calcanhares e o braço do lado direito se arrasta até alcançar, com a ponta dos dedos, a sua lança.
Porém, quando iria pegá-la para si, sente algo enrolar em sua perna direita, os espinhos o furam a pele, do tornozelo a um palmo acima do joelho, uma das vinhas se enrosca e puxa o nanci para trás, fazendo os espinhos se quebrarem, arranharem ou um pouco dos dois.
Talvez seja em sorte que não sinta tanta dor, talvez seja por seus espinhos não serem tão grandes e ela ter optado por usar apenas o do comprimento de sua vinha e não os da ponta, pois estes certamente fariam um maior estrado. Entretanto, nada poderia deixa-lo calmo, já que a situação o comanda a lutar, aquela vinha central então se ergue como uma víbora, e no instante que cai contra o chão para o perfurar, Nahari rola para o lado. O cactin tenta lhe tomar a carne com um avanço de uma vinha da direita, os espinhos curvos e negros o procuram, esticados, agarram a areia com força e por pouco não levam o seu couro, pois desvia como pode.
Naquela lança porosa por onde a criatura suga os fluidos de suas vítimas, o guepardo tem uma ideia rápida, agarra com as mãos a vinha, e devolve os arranhados que recebeu bem a pouco enquanto chuta seu corpo redondo e espinhento com a perna ferida, pois, mais dor ali não faz diferença, mesmo que suas almofadas sejam perfuradas um pouco, tirá-lo de perto é o suficiente para pagar seu erro estúpido. Apoiando as costas e o pescoço, força o impulso contra o cactin, que é jogado alguns pares de metros mais longe, logo depois, Nahari se afasta, com os cotovelos e calcanhares vai rumo a sua lança que agarra com a firmeza de doze caçadores, e a vira com rapidez, em momento de ver o cactin avançar, no entanto, agora ele está preparado, com um joelho no chão de sua perna ferida, segura a lança ao lado de seu quadril golpeado, não precisa prestar atenção nas três vinhas que o fazem correr, toda a sua atenção está na vinha central e venenosa, que vem chicoteando em seu rumo e corta o ar, tudo para encontrar uma lança alva, que, sutilmente, transparece uma pequena chama esmeralda.
Desvia o ferrão poroso para o lado que bate contra o chão arenoso que o explode para o alto, com a base de sua lança, Nahari a bate contra o cactin com um movimento circular e forte, o impacto quebra seu corpo vegetal espinhoso, porém, com a força de sua perna direita ferida, faz movimento de alavanca ao pousar a sua arma contra o peito, empurrá-la com o braço direito e puxá-la com o esquerdo.
Vencendo mais na adrenalina que em força plena, joga o cactin longe, suas vinhas caem a cada lado enquanto atinge a parede de rochas e cai no chão. Logo depois, o guepardo se ergue, respira fundo, firmando sua vontade para um último avanço, sua guarda está alta, e com a mira apontada num lugar difícil de se acertar. Jogando o braço para trás, junta a força que pode, e toda a convicção em seu corpo ruge como o nanci ao jogar sua lança.
Por mais que a sua chama desejada não se faça presente, o assovio do vulto pontiagudo e branco atinge seu algo em cheio, uma força que Nahari não sente o impacto ressoar junto ao som estridente da lança pregando na parede rochosa não o cactin, mas a sua perigosa vinha central, que se contorce como um verme no espeto. Logo depois, com um avanço direto, o nanci se move com mais calma, espera o momento que a planta age, com as suas vinhas, usa duas para se defender, balançar como um chicote espinhento a sua frente ao tempo que a outra se move para tirar da lança que o na parede. A primeira das vinhas se lança contra o guepardo, viaja com potência e chicoteia contra a sua lateral, porém, bem mais atento que antes ele baixa, sem chances de agarrar isso com as mãos nuas, coloca a sua agilidade felina em uso, e com as garras, mira na junção de sua vinha com seu corpo principal. No começo é difícil, porém, assim que suas garras rasgam a superfície, todo o seu interior macio se revela, e logo depois, mesmo que alguns pequenos espinhos furem suas palmas, agarra ambos os lados e giram, arrancando sua vinha com um jorrar de água contra o ar.
Um jovem Nahari teria comemorado o momento, mas agora, um tanto irritado perante as dificuldades, vê as duas últimas vinhas com certa displicência, e se desvia de ambas com cuidado, porém, no instante que joga as mãos para frente, mira em um lugar simples da criatura, sua base, livre dos dolorosos espinhos, livre de defesas.
Com as duas quíntuplas de garras, força os dedos e faz rasgos profundos, deles vertem o seu sangue especial, água, em última análise. Após este golpe fatal, Nahari se move com agilidade, se abaixando e dando um pulo para trás, saindo o mais rápido que pode do seu alcance, desejando agora não a morte dessa criatura, mas que ela parta o mais rápido que puder, para que deixe de sentir a dor que ele lhe causou. Claro, se isso for capaz de sentir.
Seja como for, respirando pesado com a garganta seca e ardendo, Nahari sente o mundo girar, seu corpo ficar pesado por um instante e antes que as sombras ao redor de sua visão o consumam a luz, o impacto de sua bunda contra o chão o acorda de certa forma. Suas mãos apoiadas a cada lado de si o mantêm, no entanto, seu corpo parece lentamente deixar de responde-lo, gradativamente se tornar dormente até que sinta apenas o impacto de suas costas contra o chão. Podendo apenas grunhir, sente todo o seu corpo perder o tato, e num par de minutos que parecem demorar uma eternidade, tudo que o guepardo pode observar é a criatura se debatendo mais à frente, chicoteando suas vinhas com uma fúria cada vez mais letárgica.
Como se trocando seus momentos, Nahari sente seus dedos das mãos e patas voltando a sentir a areia, o calor, gradativamente recuperando sua força enquanto o cactin perdia sua vitalidade, e tal como uma planta, fica inerte, morta.
Quando consegue, Nahari se coloca sentado, quando que foi acertado pelo ferrão poroso e cheio de veneno ele não sabe, mas o que entende é que venceu, e isso coloca um sorriso em seu rosto.
...
Com sua garra do indicador direito, faz um corte longo e limpo na superfície do cactin, o cuidado de não chegar perto de seus espinhos cobra algum tempo, porém, ele é totalmente recompensado com um interior avermelhado como carne, porém, frutado e doce.
Cortando para si uma generosa fatia, imagina quantas criaturas esse cactin matou com seu ferrão para crescer assim, antes que seus pensamentos viajassem para algo mais filosófico envolvendo canibalismo, ele morde seu prêmio, sentindo o sabor doce, fresco e aquoso, água frutada que preenche a sua boca com um sorriso largo que faz escorrer um pouco aos cantos.
Com a dormência lentamente o deixando, alguns incômodos começam a chegar, furos de espinhos, cortes, uma perna arranhada em espiral.
No entanto, nada consegue tirá-lo a alegria de uma caçada tão boa, bom, talvez a falta de alguém com quem compartilhar essa água tão boa que alivia o ardor em sua garganta, que arde sutilmente seus lábios ressecados. Sentado abaixo de um caminho de rochas, Nahari aproveita a sombra que se estende ainda para o Oeste, um longo amanhecer presentado.
Depois da terceira fatia, se questiona se seria resultado da sua reza, se Órus responde tão rápido assim, certamente irá demandar um tempo extra para o Atom em suas manhãs.
Quando leva a mão para a sua presa, ainda com um pouco da dormência o tirando a hábil prestidigitação, o nanci observa mais no interior, por entre sacos bulbosos cheios de uma gelatina que conhece o sabor horrível e venenoso, porém, vasculha mais na base interna de sua vinha principal, rasga ali para notar algo curioso, preso dentro ali, uma ponta de flecha, do tamanho de um polegar, com dois dentes voltados para trás, o ferro escuro faz o jovem nanci arregalar os olhos. Pois quando que alguém saberia dobre o ferro assim?
Imediatamente, como se amaldiçoado, Nahari larga o objeto gosmento na areia, apertando a mão e a chacoalhando como se a tivesse queimado. Pois a última vez que viu coisas da cor do ferro, foi no dia que perdeu quase tudo, a sensação daquele dia volta a lhe perturbar, o som dos gritos, o cheiro da fumaça, é como se tivesse ocorrido horas atrás, seus punhos cerram, um impulso odioso lhe cobre.
O medo do ferro é uma doença que sua tribo toda contraiu, lembra com terríveis detalhes o dia que jogaram as armas dos demônios num buraco feito na catacumba da residência do Zaran. Se puder concentrar, ou como alguns pesadelos o relembram, a canção daquele dia foi tão triste e cheia de rancor que parece ter impregnado em todos, nem mesmo os espíritos chamados para proteger aquele sepulcro pareciam desejá-lo. Ainda mais quando cortaram a garganta de um dos bárbaros, e com seu sangue amaldiçoaram todos eles, com a cor vermelha por sobre o preto, ainda se lembra do som do corpo sem cabeça daquele Shaac sendo jogado no poço, e enterrado somente ele, pois sua cabeça foi tirada e jogada muito longe no deserto para ser esquecida, para que seu espírito nunca consiga voltar.
Encarando a pequena ponta de flecha largada no chão, sente no seu coração um aperto tão agudo que imagina se algum espinho do cactin não o tenha perfurado bem ali. Arrasta as patas na areia, se afastando, porém, num instante depois, seu pavor é aplacado por uma simples realização, por quê?
Por que o som daquele cântico de ódio o arrepia tanto, por que esse objeto o deixa tão frio no coração?
Sua respiração vai retornando à normalidade vagarosamente, mas não consegue tirar os olhos da ponta de ferro, como se ela fosse sair dali por si só e o fazer mal, a vigia, atenção que daria a uma alcateia de hienas. Seu coração então, subitamente, parece se acalmar, se tornar mais calmo, como quando...
— Nephthys?
A procurando pelos cantos, Nahari se vira, vasculhando com o olhar todos os cantos, seja qual for o mínimo sinal para lhe fazer seguir, não acha nenhum, por mais que desejasse tanto. Pensando mais centrado agora, Nahari se levanta, jamais tocaria nisso se soubesse o que se tratava, a sua mão ainda dói pelo ligeiro toque, e talvez, assim que puder, pedirá a sua deusa que o livre dessa maldita memória.
Todavia, é hora de uma outra adentrar sua consciência, o pensamento de como e quando esse objeto chegou ali, conhece a natureza dos cactin de acumular coisas e assim atrair os incautos, então, se levanta para buscar novas fatias para levar e encher seu pequeno cantil as espremendo e deixando escorrer pelo dedo indicador, logo depois, começa a vascular a areia usando a ponta de sua lança, mesmo que o gosto ruim na sua boca permaneça em prol do achado, tenta encontrar quaisquer outro achado que lhe possa distrair a mente. E sua mente o leva para algumas passagens mais profundas por entre as altas rochas, alguns que, sombreados, aliviam o calor intenso e o permite pensar melhor, e talvez seja por isso que não é capaz de perceber algo por entre as suas patas, como a areia silenciosa se divide como uma serpente de vácuo, deixando direita e esquerda marcados, viajando por debaixo dele em oculto.
Então, a sua lança toca algo, em meio a areia desses enormes corredores de pedra, acha o que seria restos de uma carcaça, vítimas murchas do cactin, pequenos animais, em maior parte, pequenos roedores e insetos, no entanto, sua atenção vai além ao ver, uma pequena caixa de um palmo, madeira escura com uma fechadura em tom bronze, enferrujada e tão velha que talvez um bom golpe possa abri-la. Saquear tesouros nunca foi do feitio de seu povo, “Algo roubado nunca lhe pertencerá” é um ensinamento passado aos jovens bem cedo, porém, imagina que isso deixou de valer a muito tempo, e talvez, se avistarem os que andam por aí e fazem comércio, possa conseguir coisas boas para o seu povo. Pois o nanci se abaixa para pegar a pequena caixa, junto a ela, pequenos pedaços dourados de pepitas, que uma ele captura nos dedos antes de ir até o baú, porém, ele erra a pegada de sua mão.
Sua orelha cai para o mesmo lado que sua cabeça, confuso, tenta de novo, mas novamente erra o toque.
— Tsc! Mas que! – estiando a mão agora com um pouco de raiva, Nahari estica o braço.
Dessa vez, algo um tanto pior acontece, quando as garras de sua mão tocam a madeira seca e velha e ouve raspar no metal, uma vertigem lhe toma quando seu chão todo some. O som pesado de pedra batendo em pedra o faz congelar o estômago ao cair por um buraco que suas mãos não alcançam as bordas.
A escuridão rapidamente toma conta de seu todo à medida que não só areia, como o baú miúdo cai junto ao guepardo em uma fenda nos seios da terra. A última coisa que pode sentir é o impacto de fios grossos como raízes em seus cantos, por mais que tente agarrar em algum deles, a velocidade é demais e parece que irá quebrar os dedos se o fizer, não muito além, a escuridão acompanha a sua visão pouco acostumada enquanto mal pode se dar ao luxo de respirar, somente se virar de frente para o chão quando pode, ou quando o golpe dessas raízes não o fizessem desnortear, e pouco depois disso, outro impacto, o do chão, que vem junto a muita areia e o baú que cai pouco além do seu rosto.
O som dos impactos ecoa alto por todo o canto, uma imensa escuridão sem fim, que tem apenas uma pequena linha de luz vindo de cima, uma que falha com a queda constante da areia e das linhas de silhuetas negras que como teias cruzam essa fenda, e enquanto ecoa ainda contra as paredes desse lugar silencioso e frio, o guepardo caído no chão, dolorido e castigado respira, lançando vento e areia para longe de sua boca que deixa escapar um gemido de dor singelo.
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