– Eu vou morrer logo, sabia?
Você me disse rindo e eu não dei importância, imaginei ser apenas mais uma de suas divagações e foquei em vencer aquela partida no Nintendo Switch. Esse foi o meu erro, talvez se eu tivesse lhe dado mais atenção naquela época as coisas teriam acabado diferentes, certo Kuroo? Porém eu apenas o ignorei como sempre fazia, e você sorriu tão radiante quanto em qualquer outro dia.
Hoje eu me pergunto o que aquele sorriso escondia. O que você escondia, Kuroo?
Segredos, tantos segredos que eu nunca fiz questão de se quer procurar saber da existência, mas e se eu tivesse? Eu poderia ter te ajudado? Ou você já estava tão quebrado quanto na noite em que foi embora.
Você carregava segredos e agora eu carrego culpa.
[...]
Eu parei de correr em agosto.
Lembro de você em desespero me pegando nos seus braços, da aflição nos seus olhos enquanto sentia meus batimentos desacelerarem. Meus reflexos diminuíram cada vez mais e tudo se passou em câmera lenta. Sem som, sem cor, eu via as estrelas caírem atrás de você, rasgavam o céu, e seus gritos distantes meus ouvidos. Logo veio a sirene a ambulância mas você continuou lá.
As estrelas voltaram para o céu. Quando eu reabri os olhos na manhã seguinte tinha pontos no antebraço e você ao lado da minha cama no hospital, uma mão sobre a minha e a outra sobre meu videogame portátil. Você chorou e disse que eu ia precisar dele quando acordasse, pois eu ainda tinha muitos jogos pra zerar e não iria permitir que eu desistisse agora. O seu abraço foi intenso e necessitado, ardeu meus pulsos sobre os curativos quando eu o apertei de volta e retribui o contato, porém eu não liguei. Suas lagrimas molhavam minha clavícula e eu podia sentir o aroma dos seu cabelos abaixo do meu nariz, seus lábios logo deixarem com carinho selares pela extensão do meu rosto.
E pela minha vez em tempos, eu consegui chorar, sentir algo, tristeza e angústia por te ver naquele estado, por finalmente começar a recordar a consciência e processar o que eu havia feito e o porquê. Ah sim, a angústia se misturou com alívio e eu não sei o que aconteceu com todos os detalhes, mas eu estava vivo.
Eu estava ali, com você Kuroo, e quando eu senti meu peito aquecer e as lágrimas descerem, percebi que eu tinha você. Que eu queria viver, tentar mais uma vez e quem sabe conseguir, conseguir ficar bem, seguir em frente e talvez um dia ficar com você.
Você me trouxe muito mais que só meu videogame, você me salvou e estava disposto a continuar me salvando, a cuidar de mim e me trazer à vida também, não só a felicidade mas também a tristeza, todos os sentimentos pois cada um deles tinha sua importância. Naquele dia eu entendi, o problema não era eu.
Eu estava doente como qualquer outra pessoa, e precisava de ajuda como qualquer outra pessoa. Necessitava de tratamentos adequados para me curar, assim como alguém com um tumor maligno precisa de quimioterapia pra que ele regrida. A pessoa não tem culpa de estar doente e eu também não.
Pela primeira vez mesmo que em um sussurro eu disse em voz alta.
– Eu estou doente, Kuroo. Eu preciso... Eu preciso de ajuda.
[...]
Um passo de casa vez.
Você me dizia.
À passos lentos, em setembro eu já havia voltado a andar.
Kuroo me acompanhava toda semana ao psicólogo e a terapia, na volta ele sempre me levava para sair mesmo eu o xingando alegando que só queria ir para casa. Ele era alguém realmente insistente, mas eu estava feliz por ele não ter mudado seu comportamento comigo. Tetsuro permanecerá o mesmo idiota de sempre e não me pressionava pra que eu conversasse com ele. As sexta ele dormia na minha casa e eu na sua aos domingos.
Sempre adormecíamos na mesma cama, um de frente para o outro, ele sorrindo calmo para mim e eu levemente tímido admirando sua beleza. Havia dias em que ele parecia tão encantador que eu sentia meu olhar colar em si. E logo esses dias passaram a se torna recorrentes, até não ter um dia em que eu não olhasse pra Kuroo imaginando como seria tê-lo para mim como namorado. Eu desejava isso mais que tudo. Queria poder toca-lo, sentir seus lábios, chama-lo de meu. Meu namorado. Meu Kuroo. Meu amor.
Terapia e consultas me ajudaram a avançar rapidamente no meu tratamento sem que eu precisasse recorrer a medicamentos pesados, mas o menino dos olhos felinos e sorriso atrevido. Aquele que disparava meu coração com um piscar de olhos, e desestabilizava meu corpo ao me puxar pela cintura pra que eu sentasse no seu colo quando eu estava jogando, vez ou outra se atrevendo a deixar carícias no meu abdômen que faziam eu me desconcentrar totalmente da partida, pode-se dizer que ele era um grande fator a ser atribuído a minha melhora.
E de repente era Dezembro e nós enfeitávamos a arvore de natal dos seus avós. Outubro e novembro passaram em um estalar de dedos e em todas minhas lembranças Kuroo estava nelas, desde os dias felizes até as recaídas onde ele repetia pacientemente “um passo de cada vez”. É eu tive recaídas, embora minha psicóloga tenha avisado que isso aconteceria não foi fácil lidar com elas, mas lá estava ele com sua paciência inquebrável, jogos e doces pronto para passar por aquilo comigo.
Os melhores dias eram quando ele apenas me deitava sobre seu peito, sem jogos ou filmes, somente nos dois em um silêncio confortável até que eu conseguisse chorar e ele cuidasse de mim. Em todos esses meses Kuroo cuidou de mim com mais carinho do que eu seria capaz de julgar merecer. Ele nunca demonstrou cansaço, tristeza ou raiva, quando eu o via ele estava sempre tão... Tão Kuroo. Animado e cheio de piadas e sorrisos maliciosos.
A verdade é que ninguém é feliz o tempo todo, eu mesmo ainda que o tivesse ao meu lado, tinha meus dias ruins, então como pude permiti que ele gastasse todo aquele tempo cuidando de mim. Por que eu fiquei acomodado no seu amor e cuidado e não se quer parei pra pensar um pouco em como você se sentia, Kuroo.
Por que eu fui tão egoísta com você, meu amor?
[...]
Eu iria voltar a correr
Quando o ano virou e nós passamos o ano novo juntos, eu senti os fogos explodirem dentro do meu peito e meus batimentos entrarem em sincronia com o festival explosivo de cores no céu ao olhar pra você. Kuroo, naquela madrugada o brilho colorido dos fogos desenhou sua silhueta no topo do mirante em que fomos para assistir a queima de fogos, você gritava exageradamente e logo estava me pegando no colo e me balançando alegre, mas eu só conseguia pensar em como eu te amava. Eu estava perdidamente apaixonado por você Tetsuro Kuroo.
– Feliz ano novo, gatinho.
Você sussurrou me abraçando. Seus olhos brilhavam, qualquer pessoa diria que eram os fogos sendo refletidos neles, mas eu não. Eu sabia que aquele brilho era você quem estava refletindo nos fogos, era o seu brilho que estava me paralisando. Sempre era você e seu olhar intenso, Kuroo.
Depois desse dia eu conversei com minha psicóloga, estava determinado a me declarar para você e ela me apoiou, eu só precisava do momento certo. Janeiro voou e todos os dias do mês eu passava vibrando de felicidade, pronto pra te dizer meus sentimentos, e você compartilhava a mesma felicidade que eu. Dava pra sentir, você estava mais feliz que o normal naquele mês e eu não sabia o porquê, mas sabia que era a oportunidade perfeita, pelo menos até você se ausentar. No dia vinte e cinco você faltou a escola, e de repente foi tudo tão rápido.
Seus avós estavam doentes, foi o que me disse. Faltou a escola durante a semana inteira para cuidar deles, mas sempre respondia minhas mensagens normalmente. Quando voltou, eu não sei... você parecia o mesmo de antes, debochado e irritante. Não tinha nada de errado, não algo que eu pudesse ver, e quando você me disse aquilo que iria morrer logo, eu nem percebi segundas intenções ali, somente notei você sorrir de lado quando eu o ignorei. O seu sorriso orgulhoso que na hora eu não entendi o motivo dele, mas achei realmente lindo.
Eu fui tão inocente e você Kuroo... Você foi tão traiçoeiro.
Eu estava pronto pra voltar a correr, correr direto você, mas você não correu pra mim, Kuroo.
Por que você não correu pra mim?
[...]
Eu iria falar pra você.
No dia sete de Fevereiro você iria dormir na minha casa, eu estava uma pilha de nervos e ansiedade, cem porcento preparado e seguro para me declarar pra você Kuroo, mas quando a noite caiu e você bateu na minha porta... Eu me pergunto hoje porque não te disse antes. Não à garantia nenhuma de que isso mudaria as coisas e talvez eu só esteja mais uma vez sendo egoísta e querendo aliviar minha culpa, mas porque eu não disse que te amava antes, Kuroo.
Você chorava, não como no dia do hospital, não era só choro. Seu corpo tremia em agonia pingando suor e suas mãos não paravam quietas. Eu lembro de pouquíssimas coisas desta noite, fiquei completamente desestabilizado, sem saber o que fazer. Kuroo meu amor, você dizia uma porção de coisas desesperadas que eu não consigo me recordar, mas de algumas eu me lembro.
– Eu estou sufocando, preciso ir embora desse lugar Kenma. Estão vindo atrás de mim, nunca me deixam!
Eu fiquei paralisado e as lembranças que tenho são vagas, apenas partes desconexas de um quebra cabeça que nunca vai ser montado uma vez que metade de suas peças se perdeu no fundo de um rio.
Tudo que eu sei foi que você gritava que estava quebrado, que havia nascido errado e que era tarde de mais, que eles não te deixavam nunca e estavam sempre gritando, que não tinha mais como curar você. Tenho flashes de eu implorando pra que você ficasse, tentando te segurar, te beijar, te mostrar que eu te amo e que poderíamos dar um jeito nisso juntos assim como foi comigo. Lembro de você dizer que tudo que você andava fazendo era por mim, pra que eu ficasse bem e assim você pudesse ir sem arrependimentos, sabendo que cuidou de mim e me deixou inteiro.
Ainda consigo sentir as lágrimas queimarem minhas bochechas e você apertando meus pulsos cobertos de cicatrizes.
Ainda posso ouvir suas últimas palavras, pelo menos que eu lembre foram as últimas, mas isso eu possuo certeza.
– Eu te amo kenma, mas eu não posso mais ficar aqui, me desculpe.
Você se foi, correu para longe de mim e deixou para trás pedaços arruinados do que nós costumávamos ser e um loiro sem chão. Três dias depois que seus avós acionaram a polícia e você foi dado como desaparecido, seu corpo foi encontrado em um rio à centenas de quilômetros daqui. Você havia cometido o mesmo erro que eu tentei, a diferença é que eu não estava la pra você, pra te salvar.
Eu não sei do que você fugia e nunca saberei, você levou tudo com você para o túmulo, mas isso me assombra. O que poderia ser tão perturbador que te fiz ir para tão longe.
Kuroo... Do que você tanto corria?
Fevereiro, Março, Abril foram paredes brancas, remédios, enfermeiras e você. Seus gritos me aterrorizaram por meses dentro daquele quarto hospitalar, seus olhos injetados em medo e seu corpo em espasmos. Sempre imaginei que um dia quando eu tivesse uma última lembrança sua, ela seria algo que me fizesse sorrir ou chorar, mas medo? Eu não sabia como lidar com isso, e acho que ninguém saberia.
Você correu tanto de seus demônios que foi parar na linha de chegada, o ponto final, não é Kuroo?
Disse que tudo que fez foi por mim, para me deixar inteiro, mas a verdade é que você foi embora e levou uma parte minha junto.
[...]
Eu recebi alta tem apenas alguns dias, passei quase três meses no que você já deve imaginar ser um hospital psiquiátrico, meus pais não diziam mas eu podia ver em seus olhos que eles temiam que eu jamais melhorasse outra vez, que a qualquer momento uma das minhas inuneras tentativas de suicídio dariam certo e eles me perderiam para sempre, assim como seus avós te perderam.
Todo esse tempo internado porque eu estava correndo de você, daquela noite, da realidade e dos pesadelos, porém eu não posso mais fugir, não como você fugiu.
Eu irei correr para você Kuroo, um passo de cada vez como você me dizia. Vou correr até ultrapassar o bloqueio que se instalou nas minhas memórias daquele dia, pois eu jamais saberei o que te levou a fazer o que você fez ou quais segredos você guardava, eles morreram com você afogados naquele rio, eu morri, entretanto há uma coisa que preciso saber.
Eu não sei se um dia vou remontar o quebra-cabeças da minha mente com tantas partes faltando e outras quebradas, e nem sei se quero, mas tem uma parte que eu necessito ter e que está a me perseguir todos os dias.
Preciso saber se na noite em que você partiu, eu te disse
Eu te disse que te amava.
E ah! Kuroo? As coisas estão voltando a andar e um dia eu vou te alcançar. Também irei atingir a linha de chegada da minha vida um dia, e poderei enfim te ver outra vez porque;
Eu estou correndo pra você, Tetsuro Kuroo eu te amo.
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