O apartamento №22 finalmente estava sendo ocupado. Foi fácil de presumir só de olhar para as caixas espalhadas na entrada da porta ao lado do seu próprio apartamento. O silêncio constante ao lado meio que era um alívio desde que o último vizinho barulhento se mudou e isso já fazia uns bons dois meses – sem latidos de cães, nem música alta aos fins de semana, ou o maldito micro-ondas sendo usado em plena madrugada. Ângelo estava um pouco chateado em ter que se desapegar do sossego reconfortante, só esperava que esse novo vizinho fosse um tanto menos barulhento, seus ouvidos agradeciam.
Betas solitários como ele aprendiam a valorizar o silêncio e qualquer ruído podia estressá-los, obrigado.
Ângelo era um beta que evitava ao máximo entrar em confusão, ele detestava chamar a atenção, justamente por isso sempre buscava mascarar sua presença o quanto pudesse, mesmo que ele estivesse rodeado de outros betas, alguns ômegas e um alfa aqui e ali. Por conta disso, ele não tinha amigos nem inimigos, só as vizinhas que vinham tirar conversa fora quando eles ocasionalmente se encontravam, ou seus colegas de trabalho que faziam encontros semanais, inclusive ele estava voltando de um naquela hora.
Além do mais, naquele prédio residiam mais pessoas de idade e o único jovem ali era ele mesmo, isso porque o prédio ficava numa zona mais afastada e tranquila da cidade, o que tornava vizinhos barulhentos inteiramente desagradáveis. Por isso o último ficou só por algumas semanas.
Talvez o novo vizinho fosse um senhor ranzinza que estivesse fugindo da família e provavelmente tinha nojo de gente nova, era o mais comum por aquelas bandas. Se fosse o caso, ele trataria de manter distância, apenas usando da educação que sua querida mãezinha lhe dera quando necessário.
Ele contornou as caixas espalhadas até chegar em sua própria porta e procurou as chaves.
— Desculpe. Eu atrapalho?
Estranho. Não era a voz que ele esperava ouvir. Diferente de uma voz mais velha e masculina, a voz era feminina um tanto grave. Seus olhos deram de encontro com um par cor mel. O primeiro baque: não era um vizinho velho e ranzinza, era uma mulher jovem com cabelos curtos ralos nas laterais e uma franja jogada de lado, os cabelos eram encaracolados e meio desalinhados. Vestia um suéter cor cobalto e calças sociais com saltos baixos tornando-a maior que ele. Segundo baque: o cheiro de grãos de café torrados e calda de bordo que inundou seu nariz com o teor marcante de alfa absolutamente envolvente. O ar foi roubado dele. Terceiro e maior baque: uou. Realmente não era uma pessoa idosa.
— Nah, tudo bem — disse ele com um dar de ombros, sua falta de vontade de socializar com um velho ranzinza caindo em duzentos por cento. Simpatia inundou dele por ser alguém próximo de sua idade, aparentemente. — Mudança é sinônimo de bagunça, mesmo.
— Obrigada, fiquei preocupada em incomodar o caminho. — Havia sinceridade na voz e ela torceu um pouco as sobrancelhas. Parecia ser alguém legal.
— Ainda bem que você não mudou para o lado da vizinha do vinte e sete então, aquela sim é uma verdadeira bruxa.
Ela arregalou os olhos para suas palavras dando uma leve desviada no olhar para o fim do corredor onde estava o apartamento de №27, só para voltar para Ângelo com um sorriso fácil nos lábios com batom vermelho fosco.
— Parece que tive sorte então.
Céus. Ângelo sentiu o coração errar uma batida.
Um miado agudo e constante começou a emitir de seu próprio apartamento acordando-o de seu transe, só então ele se tocou que tinha esquecido de procurar as chaves e estava parado como bobo segurando sua mochila ao ar. Mel ouviu sua voz e veio recepcioná-lo.
A gata preta saiu quando ele finalmente abriu a porta, miando e miando enquanto se enroscava em suas pernas saudando-o.
— Desculpe por tomar seu tempo. — A alfa pediu apologética.
— Que isso. É bom poder conversar com alguém que não tenha pelo menos trinta anos a mais que eu. Esqueci de como é ser jovem.
— Vou tratar isso como um elogio. — E deu novamente aquele sorriso com um traço de graça.
Nesse meio tempo, Mel continuou miando agitada, óbvio que estava faminta com tantas horas sozinha. Ele até ia perguntar se ela precisava de ajuda com a mudança visto que não havia mais ninguém a acompanhando, porém Mel foi insistente.
Ângelo tropeçou para dentro com a gata trançando seus pés, mas na verdade foi aquele sorriso que o desestabilizou. Mulheres bonitas conseguiam facilmente fazer seu cérebro entrar em pane.
Só mais tarde que Ângelo percebeu que não tinha perguntado o nome dela.
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Em comparação com o vizinho anterior do №22, ao qual ele via de relance e brevemente – porém sempre sabia quando ele estava em casa –, aquela alfa parecia ser mais reservada. Em duas semanas Ângelo não voltou a vê-la ou esbarrar com ela, porém ainda havia traços suaves de seu aroma flutuando no corredor indicando que ela perambulava constantemente – provavelmente ainda ajeitando o apartamento da mudança. A interação anterior deles fez com que deixasse um gostinho de quero mais. Fazia tempo que ele não tinha alguém próximo de sua idade para conversar. Ela deu o ar de ser alguém bacana, ele também esqueceu de perguntar o nome dela. Só esperava que não fosse indelicado perguntar agora tão tarde.
Num entardecer de uma quarta-feira, quando ele saiu na varanda para regar as poucas plantas que tinha, ele a viu. Lá estava aquela alfa na varanda ao lado, sentada com as pernas na cadeira confortável a ler um livro. Parecia deveras concentrada, tanto que não notou sua aparição, nem ele olhando. Ângelo ficou ali, admirando como besta até que ela finalmente se virou para ele. No automático, ele acenou para não parecer um stalker pervertido estranho, por sorte, ela acenou em retorno com um sorriso singelo antes de voltar à sua leitura.
Sem motivo nenhum, Ângelo estava queimando de vergonha por dentro e tinha certeza que suas bochechas estavam vermelhas. Para um beta que estava acostumado a viver sozinho com quase zero de interação, um simples aceno foi algo grandioso. Ele ainda se via meio baqueado por ter alguém de rosto novo e jovem tão próximo, eram sempre as mesmas pessoas que conhecia na vizinhança ano após ano.
Ela não parecia ter companhia assim como ele. Talvez fazê-la um bolo como presente amigável de boas-vindas fosse caloroso. Bem, em sua defesa, ele foi recepcionado assim quando se mudou. As vizinhas viviam convidado-o para tomar café com elas, não seria estranho ser o iniciador do ato com ela. Então ele aproveitou o dia de descanso que tinha programado do trabalho para fazer a pequena boa ação.
Mel sentou interessada aos seus pés enquanto ele preparava um bolo de fubá com gotas de goiabada, às vezes ele coçava a cabeça e orelha dela antes de continuar sua tarefa.
Mais tarde ele bateu à porta do №22. Só depois que ele percebeu que essa atitude era muito incomum dele. Ângelo não cozinhava para estranhos, não fazia atitudes assim de bom grado e nem tomava a iniciativa para interagir com alguém. Ele estava se sentindo muito deslocado aqui. Repentinamente ele se sentiu muito envergonhado com sua iniciativa. Ele nem sabia se ela gostava de bolo, muito menos de fubá ou goiabada. Vai que ela fosse intolerante à lactose. Gente chique da cidade costumava ter essas frescuras.
Antes de dar tempo d'ele dar meia volta e desistir da ideia, a mesma alfa então apareceu, cumprimentando-o com o mesmo sorriso antes dos olhos se arregalarem para o que ele trouxe junto.
— Bolo? — disse ele com um sorrisinho trêmulo inclinando um pouco a cabeça sentindo-se de repente muito sem jeito.
"Bolo"? Sério, Ângelo? Nem uma frase completa? Ele costumava ser elocutivo o suficiente dizendo frases completas, mas sua capacidade cognitiva pareceu voar pela janela.
— Oh. — Ela disse simples piscando um olhar impressionado, seu cheiro adornando tons de interesse e curiosidade. — Isso é um bolo caseiro?
— É sim. — Ele ganhou confiança com o tom interessado.
— Deus sabe o quão eu quero comer algo caseiro.
Ela lhe deu um olhar predatório que fez percorrer calafrios em seu corpo desde a nuca à planta dos pés como se ele fosse um cervo em frente aos faróis na estrada escura. Então ela abriu um espaço na porta convidando-o para dentro, ele entrou pedindo licença. O aroma dela o cercou imediatamente e ele deu um suspiro discreto, inalando mais da essência tranquila. Era raro um alfa exalar um cheiro tão centrado e calmo.
— Sério? — Riu um pouco. — Você é daquelas que só comem em restaurante?
Era visível que o apartamento ainda não estava cem por cento pronto, havia umas desordens e caixas empilhadas nos cantos, porém a havia já alguns móveis e a decoração ainda simples de cores mornas deram um ar aconchegante.
— Quem dera — anuiu ela balançando a cabeça aparecendo ao seu lado, Ângelo notou que eles tinham o mesmo tamanho, talvez um pouquinho mais alta, mas ele não se incomodou com isso. — Estive tão ocupada que minhas refeições são praticamente fast-food e aqueles que entregam mais rápido no delivery. E acredite, nem sempre são bons.
Uma risada compreensiva lhe escapou.
— Eu até poderia cozinhar para você todos os dias, ham. (¹)
As palavras simplesmente saíram sem passar pelo filtro do cérebro, e quando ele percebeu que não tinha sido só um pensamento, se virou assustado para ela que tinha a boca ligeiramente aberta no mesmo espanto.
A cena congelou aí. Os olhos dele foram de um lado para o outro no rosto dela, assustados, esperando alguma reação negativa.
Até que o riso abafado que ela soltou, incrédulo com um misto de divertimento, quebrou a tensão.
— Olha, eu não recusaria — rebateu ela e Ângelo não sabia se era um tom zombeteiro achando que ele estava brincando ou se tinha um fundo de verdade. Bem, ficou no ar. — Só se você se mostrar um bom cozinheiro com esse bolo. Tenho um paladar exigente — disse apontando para os próprios lábios. Aqueles lábios.
Ângelo tinha certeza que estava parecendo um tomate do quão quente seu rosto e pescoço se incendiaram. Instintivamente seus ombros se ergueram e ele abaixou a cabeça numa pose envergonhada diante da alfa. Ele estava fazendo papel de bobo.
Por sorte ela deixou de lado vindo pegar o bolo de suas mãos para colocá-lo sobre a pequena mesa de jantar na cozinha.
— Café? — perguntou ela gentilmente.
Sem encará-la ainda, ele deu um aceno positivo.
— Tímido de repente? Ora, eu só estou brincando com você.
Ângelo se lembraria de nunca mais provocar alfas com a nota mental que eles poderiam ser bem vingativos. De repente a parede parecia muito interessante de ser observada.
— Vejo que gostou da decoração — comentou ela sabiamente mudando de assunto. — Acha que é uma boa escolha de cores?
— Perdão. — Ele abaixou a cabeça em reflexo mostrando a pose de submissão-vergonha de novo querendo se redimir. — Na verdade achei sim, nunca pensei que o verde daria um aspecto que não fosse enjoativo.
— Gostei de você — anuiu ela puxando uma cadeira para eles se sentarem na mesa. Ângelo obedientemente a seguiu. — Você é uma boa companhia, me recepcionando e trazendo bolo, e ainda não sei seu nome.
Oh, quem diria que ela iria tomar a iniciativa antes dele.
— É Ângelo.
— O meu é Mikhal.
E lá estava. Novamente aquele aroma o cercou e foi bem-vindo relaxando-o até seu núcleo. Era incomum ele se sentir à vontade em torno de alfas, mas a aura simplória que ela emitia parecia puxá-lo. Alfas sempre eram brigões e geralmente havia muito desentendimento entre eles, sendo ainda mais desconfortável para Ângelo que detestava se envolver em discussões ou brigas ou presenciar uma, além de serem extremamente mandões a qual Ângelo sempre detestou seguir as ordens de alguém. Suas personalidades não batiam, porém aqui e agora, ele não sentia nada disso. Ele surpreendentemente simpatizou muito rápido com essa alfa.
— Também está sem matilha? — perguntou ela se deliciando com uma fatia do bolo. Pelo jeito, ela não tinha nenhuma alergia.
— Acho que eu nunca soube como é pertencer a uma — respondeu ele dando de ombros.
Desde que se conhece por gente, Ângelo sempre viveu e conviveu sozinho. Então a ideia de participar de uma matilha – nem que for com outras duas pessoas – era extremamente desgostosa, ele achava que as pessoas eram difíceis de lidar, sua socialização era escassa e ele não sentia vontade de se esforçar para tal. Portanto permanecia só e isso nunca foi um problema, nunca o incomodou. Porém para uma alfa como Mikhal, deveriam ser outros quinhentos.
Alfas eram criaturas sociais por natureza e gostavam muito da ideia de matilha – união, convivência, socialização –, todas essas coisas alfas. Para um estar só, custava um tanto.
— Isso é raro para um ômega — proferiu ela naturalmente e foi aí mesmo que o cérebro de Ângelo resolveu dar um curto.
A confusão ficou estampada no seu rosto, porém ela somente piscou singela em troca.
Ela achava que ele era um ômega?
Antes mesmo que ele conseguisse corrigir o erro, Mikhal suspirou cortando-o dos devaneios apoiando a mão no queixo.
— Às vezes eu gostaria de não ter pertencido.
Aquela frase carregava muito mais segredos do que Ângelo poderia imaginar, fazendo-o sentir repentinamente um intrometido. De alguma forma, ele não se sentiu hesitante. Todos tinham seus segredos e bem, eles mal se conheciam.
Toda e qualquer chance d'ele corrigi-la de que ele era na verdade era um beta caiu ali.
— Fui aprovado? — indagou ele no lugar vendo ela pegar uma segunda fatia.
Os olhos cor mel eram risonhos e o cheiro adornou um tom alegre.
— Oh, pode ter certeza.
— Então posso te convidar para jantar no meu apartamento nesta sexta?
Realmente, Ângelo deveria começar a ter um filtro na boca.
— Seria bom ter uma outra companhia além de mim e Mel — completou ele por via das dúvidas para não soar tão direto. Ele podia apostar que seu cheiro estava saltitante como uma gazela.
— Vocês fazem muito disso por aqui, não é? — O tom saiu contemplativo com ela tendo um sorriso curto. Era provável que ela estava implicando o fato da região ser do interior, na certa na cidade isso não costumava acontecer com frequência, ele supôs.
— Sim, o pessoal daqui é bastante unido. Algumas semanas atrás o vizinho do №35 chamou a gente para um churrasco, e a vizinha do №7 vive me chamando para tomar um cafezinho lá na casa dela. Ela é um doce. — Ele revirou os olhos carinhosamente. A senhorinha não tinha filhos ou marido, gostava de manter as pessoas por perto por já ser de idade bastante avançada, ela gostava de conversar e de companhia por mais que ele não falasse muito e apenas ouvisse ela todas as vezes.
— Então é tipo uma tradição por cá — concluiu ela. — Estarei lá. — Com uma piscadela.
-//-
Merdas. Merdas duplas. Mikhal pensava que ele era ômega.
A noite inteira que se sucedeu, Ângelo não conseguiu tirar isso da cabeça, olhando para o teto de seu quarto pensando que Mikhal podia estar sendo tão receptiva e à vontade ao redor dele só porque pensava que ele era ômega.
Por acaso era seu cheiro? Apesar de não saber qual era seu aroma corporal, tinha certeza de não ser algo marcante ou chamativo. Era o aroma de um beta: suave, monótono, sem especialidades.
Seria sua altura? Ele tinha a mesma altura que ela, portanto consideravelmente alto para os padrões ômegas masculinos e um tanto abaixo dos padrões betas masculinos. Meio termo?
Ou talvez seu comportamento? Ele tinha certeza que não agia como um ômega em tudo. Ômegas eram comportados e reservados, tinham um jeitinho… enquadrado, gracioso até. E ele não era nada disso. (²)
Bem, caramba, como ele supostamente desmentiria isso agora que a oportunidade para fazer isso tinha passado?
Então, sucessivamente ele tentou pensar em oportunidades em que poderia contar a verdade a ela, porque ele não queria enganá-la.
O que mais ele estava encucado, foram os motivos que levaram ela a assumir que ele era um ômega, porque, bem, não estava estampado na sua cara que era um beta? Não que ele ligasse muito para os gêneros ou ser confundido, era apenas… como ela chegou a essa conclusão? Os ômegas da cidade se pareciam com ele? Isso era um mistério.
Todas as ômegas daquele prédio já passaram da idade da reprodução há muito tempo, então, nenhuma dica ou pista que ele pudesse se fixar.
Portanto, quando chegou o jantar na sexta, ele a cumprimentou com seu melhor sorriso assim que ela realmente apareceu na sua porta – porque, aliás, ele estava verdadeiramente feliz por ela ter aceitado o convite. Não agiu estranho, não mudou seu comportamento, não mudou seu cheiro, muito menos sua vestimenta – ele disse a si mesmo várias vezes que aquela camisa cinza opaca com jaqueta verde e calças moletons era típico dele e não que ele estava querendo se aparecer para certo alguém –, era puramente ele mesmo, só com o fato de estar ciente de Mikhal pensar que ele era aquilo que não era, e ele não ia desmentir o fato porque ele era um covarde.
"Eu preciso contar a ela."
— Oh. Eu… cheguei muito cedo? — questionou ela vendo que a cozinha estava intacta. Ela mesma vestia um colete sem mangas cor preta com gola alta e calças camufladas folgadas de mesma cor, totalmente à vontade e nada chamativo. O que provava que eles não se arrumaram para um encontro. Não que fosse um, não que eles estivessem pensando que era um também. Apenas um encontro amigável entre vizinhos. Sim, isso.
Como Mel não gostava de estranhos, ficou escondida no quarto. Menos uma preocupação se ela tinha alergia a gatos ou que não gostasse dos bichanos.
Ele não perdeu em como as narinas dela sutilmente se expandiram para farejar o ar em rápidas e profundas respirações, ela foi muito discreta e Ângelo só notou porque estava com a atenção dobrada. Como ele nunca tinha convidado uma alfa para sua residência antes, ele não sabia se os alfas precisavam de uma verificação odorífera mais precisa para identificar que não havia perigo mesmo, ou se era porque ela pensava que seu cheiro era agradável só porque ele era um ômega. Mikhal também não olhou muito ao redor comparando com o apartamento quase todo produzido dela da maneira que ele fez, e ele julgou o ato um tanto educado, decente. A maior parte do tempo os olhos dela estavam nele.
— Chegou na hora exata — disse ele arregaçando as mangas, ela franziu o cenho de leve em confusão e seu cheiro ficou duvidoso. Ele quase riu. — Pensei em cozinharmos juntos. E isso não é uma escapatória porque esqueci de perguntar que tipo de comida você gosta, não, definitivamente.
Mikhal bufou daquele jeito que ele começou a notar que era típico dela, ela fingiu arregaçar as mangas que não existiam em seus braços nus e colocou as mãos na cintura fazendo uma expressão sabida que ele rapidamente se apaixonou.
— Muito bem, mestre cuca. Vamos preparar um bife à parmegiana.
"Eu preciso contar a ela."
Ângelo descobriu que a sincronia na cozinha entre eles era péssima. Ele claramente perdia o rumo quando havia uma autoridade sobre ele – maldita biologia beta – e rapidamente foi jogado no escanteio como uma criança tentando ajudar um adulto. Mikhal ordenava e ele obedicia sem pestanejar em sua própria cozinha. Como que ele repentinamente esqueceu onde guardava suas próprias coisas? E ele descobriu que ela era surpreendentemente muito mandona na cozinha, porém sempre se manteve amável daquele jeito dela.
Houve um momento em que ela se perdeu enquanto fritava os bifes, seu olhar sereno e franja meio caída, olhos centrados e relaxados, seu aroma se tornou ainda mais cheiroso enviando as ondas certas para seu cérebro:
Alfa feliz. Alfa satisfeita. Alfa confortável.
Ângelo observou ela trabalhar. Tudo nela gritava conforto e familiaridade. E naquele momento o pensamento lhe ocorreu:
"Talvez ela que pudesse cozinhar para mim todos os dias."
A ideia não era má e ele não a condenou imediatamente, preso demais naquela visão.
Então de repente ela se virou trombando com ele sem querer e o pote de molho nas mãos dele foi para o chão fazendo uma lambança.
Depois de limparem toda sujeira e se sentarem para comer com ele tendo trocado a camiseta e a blusa arruinadas por outra muda de roupas, ela aguardou com clara expectativa e o sabor era divino.
— Oh, caramba…!
Ela olhou para ele com um sorriso convencido colocando sua própria garfada na boca. Alfas eram desnecessariamente competitivos, resmungou em pensamento.
A situação saiu totalmente de seu controle. Era para ele cozinhar para ela, Ângelo realmente não sabia como o contrário aconteceu. Embora, Mikhal parecia bastante feliz, na certa ela era aquelas pessoas que gostavam de cozinhar para os outros. Isso também seria uma coisa alfa?
Ou… alfas só cozinhavam para seus parceiros em potencial?
A comida voltou, mas ele lutou para não se engasgar para ela achar que havia algo errado com a comida.
Tirando isso, num contexto geral, ele havia se esquecido como era ter a companhia de alguém durante a refeição. Conversas aqui e ali, um silêncio confortável e brincadeiras inofensivas. Tudo isso preencheu o ambiente com um calor tão nostálgico ao mesmo tempo que tão inédito. Como podia isso? Será que esse sentimento também tinha nome? Independente do nome, não sentia incômodo algum.
Na verdade, suas bochechas chegaram até a doer de tanto que ele sorriu durante a companhia dela.
E… outra coisa que ele notou também, alfas tinham uma fixação bizarra em ver alguém comendo a comida preparada por eles.
-//-
Semanas depois, Mikhal já estava completamente estabelecida com a mudança e houveram outras oportunidades para ele contar, situações que ele mesmo criava para ter uma desculpa para falar com ela.
Como na vez em que ele foi ao mercado e ofereceu para fazer compras para ela caso precisasse – visto que ela não conhecia muito bem ainda a região. Mikhal prontamente se ofereceu para ir com ele e Ângelo gaguejou não sabendo como negar.
Fazer compras com outra pessoa era uma coisa estritamente íntima e ele descobriu da pior forma. Quem visse de fora pensaria que eles eram um casal desajeitado, com ela repreendendo ele por pegar os pacotes próximos da data de validade só porque eram os mais baratos, ou como ela ficou chocada com os produtos artesanais que era o comum da região e ele explicou para ela suas qualidades. Quando eles chegaram na sessão íntima, Mikhal lhe deu um olhar cauteloso antes de desviar educadamente. Ângelo empurrou alguns supressores e spray-inibidor de aroma da prateleira para o carrinho discretamente, e talvez uma almofada térmica – sabe, para as cólicas que ele não tinha.
— Você está aninhando? — perguntou ela visivelmente não querendo soar intrometida ou desrespeitosa com um cheiro em nuances cautelosas.
— Quero dizer, nunca se sabe quando vai precisar, né…
Ângelo de repente se lembrou porque ele não gostava de mentir: ele não sabia mentir. Tudo nele gritou desconfiança e desacordo com profunda vergonha.
— Vou… aproveitar a… viagem. Heh. — A sobrancelha tinha um tique nervoso com o quão desconfortável e idiota ele se sentia, o próprio corpo se contorcendo por não ser a verdade.
Se alguma coisa, Mikhal deu um aceno em concordância e nada mais.
Ela não se ofereceu para passar o suposto cio com ele. Não fez piadas sexistas. Nem inspirou mais fundo querendo captar seu aroma de cio.
Era totalmente a atitude de alguém decente.
Ela era uma alfa tão boa e gentil que Ângelo se sentia vil e podre.
Ele não contou.
Também houve uma vez num sábado que ele a convidou para assistir uma série juntos e ela sem pestanejar aceitou alegando que estava com tempo livre.
"Eu preciso contar a ela."
Contudo, o rumo escapou por suas mãos.
— Você é escritor?
O computador dele ficava na sala, a tela estava ligada exibindo o último livro que ele estava trabalhando no aplicativo. Como eles estavam no balcão da cozinha se deliciando do café da tarde resolvendo fazer uma pausa na maratona, o computador ficava em paralelo e a tela visível. Veja bem, ele não conseguia se concentrar porque estava preocupado demais em desmentir para certo alguém sobre seu gênero para se focar no seu trabalho.
— Editor de livros, na verdade — confirmou com um aceno estranho.
Os olhos dela viraram para ele surpreendentemente rápido com as pupilas oscilando em duas bolas grandes em interesse, seu cheiro ficou agitado com teor ainda mais cativante. Bem, ele tinha uma pista que ela gostava de livros desde que a viu na varanda, porém com essa reação, tinha certeza.
— E você estava escondendo isso de mim por quê?
— Não vi que era relevante dizer. — Com um dar de ombros. Em troca, ele recebeu apenas um olhar frio e cético, Mikhal lhe dava muitos desses. — O quê? Não é como se eu tivesse cometido um crime ou algo assim.
Em sua defesa, ela também não havia contado sobre o trabalho dela e ele não ia perguntar bancando o abelhudo.
— Seria ilegal eu dar uma espiada?
— Se eles não souberem, não.
— Gosto da maneira que você pensa.
Um perfeito sorriso Cheshire desenhou-se em seu rosto, bastou apenas as orelhas e rabo do gato listrado, então sem esperar, ela tomou o assento do computador com ele puxando um banquinho de balcão para sentar ao lado dela.
Era um livro de capítulo único, contava a história de um guardião ômega que tomava conta dos arredores do castelo quando um dia um invasor atravessou as barreiras, eles iam partir para o confronto, porém ele parou a leitura ali. Ele não havia lido muito ou terminado de editar ainda, mas parecia promissor se ele lesse com a cabeça no lugar.
Com o silêncio, ele virou-se para vê-la e saber suas reações com a história também. Ela mantinha uma expressão concentrada, suas sobrancelhas franzidas davam um aspecto de seriedade e alfa maturo nela, seu olhar afiado e focado e os lábios às vezes crispando. Assim de perto como estava, ele conseguiu dar uma farejada sutil sem que ela percebesse, seu aroma de grãos de café e calda de bordo desprenderam-se de seus poros naturalmente, era um cheiro tão bom que ele se via viciado. Ao fazer café pela manhã e tarde, lembrava dela e suspirava deploravelmente. Porém agora assim de perto, seu aroma era incomparável, com aquela particularidade familiar e relaxante.
Quando ela virou para ele, ele fingiu fungar, como se seu nariz estivesse escorrendo ou algo assim para disfarçar que estava farejando um pouco demais.
Oh, céus. Ele estava tão ferrado.
— Oh. — Piscou ela surpresa depois de vários minutos silenciosos de leitura. — Você leu o até final?
— Ainda não, por quê?
— O invasor é o próprio rei alfa.
O queixo dele caiu, ele não imaginava.
— Mas invadir o próprio reino?
— Segundo ele, ele estava tentando fazer uma fuga furtiva querendo passear pela floresta sem ser percebido. O ômega o encontrou e eles lutaram. Isso foi tipo… nossa.
— Como ele descobriu? Espera! Não me conte! — Ele cobriu as orelhas para enfatizar.
— Uh, você não vai querer que eu detalhe. — Havia um sorriso sapeca delineado em seu rosto com os olhos completamente risonhos. — Não sabia que editores também analisam esse tipo de conteúdo. Você que escolhe?
Deus do céu, da terra e do mar. Como ele queria desafiar as leis da física e que um buraco o engolisse. Ele não esperava que ela fosse ler até o final e ele literalmente tinha esquecido o conteúdo do livro.
Ele escondeu o rosto entre os braços envergonhado da cabeça aos pés, seu cheiro ficando agitado e constrangido.
— Eu estava meio que brincando, mas então é verdade? — perguntou num misto de curiosidade, surpresa e cautela.
— N-não!
E como ela parecia tão serena e plena enquanto ele estava a ponto de entrar em combustão espontânea?
— É de forma aleatória que a diretoria nos entrega os livros a serem analisados. Recebemos uma descrição detalhada e notas dos próprios autores. Então eu…
Em troca, Mikhal deu um tapinha em suas costas em consolo.
— Não temos distinção, não podemos ter preferências.
— Oh, isso soa muito interessante — contemplou ela vindo como salvação para seu constrangimento sem fim. — Essas são suas anotações?
Do lado do texto havia espaço para escrituras em código de cores.
— Sim — respondeu meio receoso desviando o olhar. Ele não tinha mostrado suas anotações antes para alguém além da sua equipe, até porque não tinha amigos com quem compartilhar, e se sentiu meio exposto, era pessoal.
— Eu amei. São bem detalhadas, parecem com as minhas, mas as minhas parecem mais rabiscos do que análises.
— Aposto que devem ser interessantes também.
Ela desferiu um tapinha no seu braço.
— Pare de me amolar, não sou a editora profissional aqui.
Em troca, ele sorriu enviando ondas de seu próprio aroma felizes no ar. Houve apenas um momento em que eles se encararam por alguns segundos a mais, possuindo uma tensão estranha. Ele podia jurar que viu os olhos dela se estreitarem em suas semi-fendas, porém ela desviou o olhar primeiro.
O que tinha sido isso? Era como se uma eletricidade tivesse percorrido seu corpo deixando seus pêlos arrepiados.
— E você já tentou escrever algo de sua autoria? — perguntou ela.
— Deploravelmente sim, mas descobri que fico melhor de editor.
— E ainda tem algum texto aí?
Realmente, realmente, essa personalidade dela de tomar as rédeas seria o fim dele.
— Deixe-me ver…
E ele não conseguia dizer não a ela. Aah, ele era tão submisso.
Demorou um pouco para ele retornar com alguns papéis, incerto qual dos rascunhos seria o mais seguro para sua saúde mental para ela ler.
Eles sentaram no sofá incrivelmente próximos sem se dar conta de ter apenas alguns centímetros os separando. Então Mikhal começou a ler um dos rascunhos aleatórios que havia escolhido.
Refúgio
Teu colo és meu refúgio, a escapatória da intensa realidade que me persegue, meu abrigo, onde posso mostrar minhas lágrimas. Parece até mesmo irreal um lugar onde não há mágoas, onde não há esperança, nem tristeza e nem a insegurança de saber se estarei vivo amanhã; é um lugar de paz que fora feito especialmente para mim.
Cubra-me com teu calor, com teu carinho, teu ardor… pois eu já sofri demais nesse mundo que me abandonou. Passe as mãos em meus cabelos, diga palavras reconfortantes que aquieta meu ser, aquelas palavras que só você saber dizer. Sim, eu gosto de mimo, e trate de me mimar bem.
Tão inteiramente sob a cobertura da paz… você costuma ser um mistério que até admito, às vezes nem sei o que você pensa. Talvez eu nunca possa adivinhar o que se passa em sua mente, esse seu olhar sempre tão sereno e despreocupado, consegue disfarçar bem, mas isso não te impede de adivinhar os meus pensamentos num estalar de dedos. Fico fascinado por você nunca ter errado. Entretanto, isto é só uma prova de que você se importa realmente comigo, coisa que ninguém alguma vez havia feito. E, sinceramente, eu não poderia dizer jamais que você não me ama, e, bom, eu também jamais não poderia dizer o mesmo.
Quando a pausa para a leitura de um texto simples começou a ficar duradoura, Ângelo se inclinou sutilmente para ela.
— Mikhal?
Lágrimas escorriam pelas suas bochechas e seu rosto estava impassível, ele se assustou.
— O que aconteceu? — perguntou agora preocupado. Era a primeira vez que via ela chorar e isso o deixou totalmente sem rumo.
— Oh, Ângelo. É lindo — emitiu ela limpando as lágrimas involuntárias gentilmente, então soltou um riso curto. — Fico me perguntando quando me tornei tão piegas. Mas sinceramente, eu adorei.
Ele ficou incerto sobre o que fazer ou como ficar, estava contente que eram lágrimas emocionadas, só que ao mesmo tempo… ver Mikhal chorar era inédito. A alfa sempre estava no controle da situação, tão imponente e inabalável, foi apenas… um choque.
— Perdão — pediu ela se recuperando. — Sei que não é a postura esperada de um alfa, chorar por um simples texto…
— A sensibilidade emocional é um dom — comentou ele tão rápido e sério quanto, ganhando a atenção dela de volta. A situação fez algo torcer em seu interior, algo primal para não deixar essa alfa desconsolada, deveria ser os instintos tão adormecidos de matilha dentro dele.
— Obrigada. — Com um sorriso sincero. — Sabe, de onde eu vim, alfas sempre têm que manter a postura imbatível. Eu fugi dessa merda toda. — Havia um rosnado grutal na garganta dela enquanto seu olhar se direcionava para um ponto indefinido de uma raiva passada, contudo logo desmanchou-se. Era o primeiríssimo traço alfa que ela demonstrou até então.
Essa era uma nova face de Mikhal que Ângelo observou meticulosamente. Com certeza era uma área que ela evitava pisar, e Ângelo não forçou. Incrivelmente, ele não estava com medo. Ele ficou com curiosidade sobre esse outro lado dessa alfa tão centrada e gentil.
— Perdão o linguajar.
— Tudo bem. — Deu de ombros. — Não acho que alfas devam ser assim.
Um repentino silêncio se fez presente. Ângelo não conseguiu ficar calado agora que ela havia aberto uma brecha para abordar um assunto mais pessoal.
— Tem a ver com a sua matilha? — indagou cauteloso, não querendo causar uma reação ruim.
Levou um bom momento, Mikhal encarou a mesinha de centro como se tivesse a ofendido pessoalmente antes da expressão se amenizar, ela suspirou e virou-se para ele com um evidente peso nos ombros.
— Você não vai querer saber. — O tom era seco de algo passado remexido muitas e muitas vezes.
— Eu estou curioso — insistiu, porque Ângelo era um teimoso.
E houve aquele suspiro característico dela. Mais uma pausa. Ele aguardou com paciência e ânsia.
— Não éramos bem uma matilha, nem um bando, éramos uma equipe. — Era um bom começo. — Fiz coisas das quais não me orgulho pelo bem dessa equipe, coisas que me desagradam comentar, Ângelo.
Sem ter o que dizer, ele assentiu. Em nenhum momento temeu aquela alfa ao seu lado.
— Sempre fui alimentada com essas ideologias arcaicas: alfas são imponentes e influenciadores, alfas têm que ser fortes para proteger a matilha, demonstrar sentimentos era sinal de fraqueza e essas coisas todas tolas. Por um longo tempo eu realmente acreditei nisso.
Apesar das palavras claramente carregarem certo peso, o aroma dela estava neutro, não dando nenhuma dica de seus sentimentos reais. Provavelmente por costume de não se expor aos outros, como ela comentou.
— Então, seguindo essas ideias, fiz conforme me foram dito. Tentei me encaixar nesses padrões, tive um bom emprego, uma boa vida, qualquer deslize poderia te considerar como um alfa não exemplar e eu não queria ser mal vista.
Simpatia inundou involuntariamente dele através do cheiro e viu ela absorver discretamente um suspiro com a singela ação de confortá-la.
— Não temos uma boa aproximação familiar como os outros, porque senão iríamos nos tornar "frescos" ou "mimados", e isso também era considerado uma fraqueza. Nascer alfa fez com que minha mãe se afastasse de mim não querendo que as pessoas falassem, ela não queria "me amolecer".
— Isso é horrível — deixou escapar. Mikhal riu seco, no entanto.
— Sim, bizarro — concordou com um suspiro profundo. — Minha equipe e eu compartilhamos o mesmo pensamento sobre tudo isso, então eu não me importava de seguir aquele tipo de ideologia. Só que…
Uma pausa. Tristeza e remorso se contorceram em seu rosto e o aroma dela pela primeira vez ficou amargo com teor desgostoso.
— Houve um acontecimento que me fez refletir minhas ações. E eu… precisei de tempo.
Era o bastante, Ângelo sentiu. Portanto estendeu uma mão amparadora para fazer um carinho nas costas dela, que visivelmente relaxou, porém ainda evitava encarar seus olhos e Ângelo respeitou seu momento.
— Tudo bem — sussurrou ele como se fosse um segredo entre ambos. — Você está segura agora. Independente de quem você foi, ou o que fez, você é uma pessoa maravilhosa e enxergou isso no meio da adversidade.
Ângelo realmente quis dizer isso e sua voz transbordou toda a apreciação que ele sentia para com ela. Como ele gostaria de ser um ômega agora, aqueles feromônios que os ômegas liberavam para aquietar os alfas eram como uma droga imediata, mas ele teve que se contentar com carinhos nas costas e braços dela amigavelmente e manter seu aroma num teor tranquilo, tentando esbanjar seus sentimentos através destes.
Até que Mikhal se sentiu confiante o suficiente para tornar a falar:
— Quando estou com você, me sinto… livre.
Pelo olhar que ela deu, estava profundamente grata. Os feromônios satisfeitos e contentes que bateram no rosto dele fizeram Ângelo travar a respiração e guardar um choramingo desconsolado.
O pobre coração de Ângelo não suportaria. Ai, Deus.
Novamente, ele não contou.
A ideia rapidamente foi se perdendo quanto mais o tempo passava e ele ficava distraído com suas interações.
O pensamento de "Será que eu realmente deveria?" também sondou sua mente. Talvez eventualmente ela fosse descobrir que ele não era bem um ômega, mas agora já era tarde para ele contar.
Porque, veja bem, alfas tinham uma atração natural por ômegas e vice-versa, se ela pensava que ele era um ômega, talvez então ele tivesse mais chances de ela se atrair por ele. Porque, novidade para ninguém: Ângelo já estava atraído desde o momento que colocou seus olhos nela.
Havia um puxão a qual ele nunca tinha sentido antes por alguém. Algo fazia ele correr até ela, arrumar desculpas para conversar, deixar ela falar para que ele pudesse admirar sua beleza, o quão bonita ela ficava quando se empolgava em falar de algo que gostava, o jeito do olhar sabido e contemplador dela que o fazia corar sem motivo aparente. Seus olhos eram simplesmente hipnotizantes, principalmente quando ficavam fixos à ele dando a impressão de que ele era o alvo – como um cervo sob o olhar de um tigre –, isso dava uma adrenalina inexplicável.
Mikhal era interessante de ser observada. Visivelmente ela era alguém muito reclusa e fechada, falava muito pouco sobre si mesma ou de sua vida, porém em nenhum momento ela faltou com sinceridade com ele, sempre verdadeira e gentil. Ela tinha reações muito sutis, porém reveladoras o suficiente. E Ângelo era apenas ele.
Betas nem sempre eram a preferência e isso era deplorável. Muitos consideravam betas chatos e sem graça, betas não tinham instintos como alfas e ômegas e isso atrapalhava a entrosação por eles estarem alheios muitas das vezes, não tornando a socialização muito instigante. Naturalmente um alfa corria para um ômega e um ômega para um alfa devido à atração natural, e betas se relacionavam entre si. Eram vistos como um ombro amigo na maioria das vezes e não um parceiro em potencial.
Sim, os betas eram chatos e esquecidos. Ângelo era um beta e admitia isso de si mesmo. Não havia nada de interessante nele, nem seus relacionamentos com outras betas duraram tanto tempo.
Então, talvez… se Mikhal pensava que ele era ômega, as coisas se tornavam diferentes.
Ninguém nunca o olhou com tal olhar. Atento. Intenso. Carinhoso, até. Ninguém prestou atenção nele como ela prestava, ele não era interrompido enquanto falava, ela se atentava às coisas que ele dizia, cada detalhe e comentava de volta.
Esse tipo de interação era extremamente nova. Ele poderia se acostumar mal com isso. E isso era perigoso.
Ângelo se acostumou a se excluir, não ligando se importava fazer parte de um grupo de pessoas ou não, também ninguém fazia questão d'ele estar lá. Ele estava acostumado a ser e ficar sozinho, era confortável e não havia mudanças bruscas. Como uma rotina, fácil de lidar.
Todavia, havia algo no olhar de Mikhal que simplesmente… fazia despertar esses instintos nele. Seja por achar que ele era um ômega, fosse o que fosse.
Ele estava tão, tão ferrado.
Porque uma coisa era sentir atração por sua vizinha – todo mundo sente atração por alguém em algum momento, mas é apenas isso, atração e nada mais. Agora, eram outros quinhentos quando estava começando a se apaixonar por ela.
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Depois daquilo, Ângelo não voltou a vê-la. Tudo bem, ele compreendeu que ela precisava de espaço, deveria ter sido difícil revirar o baú da memória, ainda mais algo que a marcou profundamente. Ângelo não a empurrou e reconheceu o tempo a ela. Contudo, toda vez que passava pela porta do №22, ele se via fazendo uma breve pausa, olhando para a porta e imaginando como Mikhal estava. Às vezes ele podia sentir o aroma de alfa acuado, seu interior se ressentia, então ele ia embora não muito depois.
Seus dias ficaram mais solitários do que nunca. A presença de Mikhal estava sendo uma falta enorme, a solidão antes nunca o incomodou, ainda assim, por que de repente seu apartamento parecia mais cinza e solitário? Talvez fosse apenas ele próprio, tendo se acostumado demais com a presença da alfa ali, a lhe contar piadas, fazer provocações, ou tirar conversa fora e boba. Só de vê-la na varanda ao ir regar as plantas faria-o feliz, o que não aconteceu.
Pelo menos agora ele poderia se concentrar no seu trabalho e adiantar toda a procrastinação. Mel estava deitada em seu colo, com ele tendo uma caneca de café o acompanhando, o aroma se tornou calmante e o calor do bichano no colo era familiar. Isso costumava ser paz para ele e não ocupação. Suspirou desconsolado e se empenhou em trabalhar naquele livro até amanhecer.
Em plenas sete horas da manhã de uma terça-feira, houve comoção no corredor, acordando-o após uma madrugada de trabalho. Havia sons de coisas pesadas sendo arrastadas e vozes nada discretas, se ele arriscasse o palpite, alguém estava se mudando. Ainda havia um ou dois apartamentos vagos naquele andar, mas caramba!
Quem raios era o doido que se mudava às plenas sete da manhã?!
Só esperava que não fosse do tipo barulhento.
As vozes não pararam e um riso alto se emitiu.
Correção: era do tipo barulhento.
Ângelo gemeu cobrindo os ouvidos com o travesseiro.
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A música alta estava insuportável. Sua televisão que normalmente ficava entre os volumes 5 ou 15 estava quase no volume 30 tentando abafar o som que provinha do apartamento da frente, cheio de gargalhadas e vozes. Ângelo sinceramente não sabia como que ninguém havia reclamado ainda. Sua noite de trabalho seria arruinada nesse ritmo, ele tinha um prazo e seu gestor estava lambendo seus calcanhares.
Com certeza não eram velhos também, porque gente velha não dava festa. Tudo bem que era sexta-feira, mas caramba!
Ângelo, o beta que detesta arrumar confusão ou se envolver em uma, bateu à porta do №25, uma, duas vezes, estava indo para a terceira quando um rapaz alto apareceu numa meia risada com um copo de cerveja na mão, o aroma de alfa inundou suas narinas misturado com o álcool. Tinha cabelos encaracolados e pele parda, olhos verdes e vestia roupas festivas.
— Oi, e aí — cumprimentou ele com um aceno.
— Olá, boa-noite — respondeu com um pouco de seriedade. — Será que você tem como abaixar o volume da música? Eu trabalho em casa e isso está atrapalhando…
— Quem é, Benny? — Uma voz feminina veio através da barulheira.
— É um vizinho! — gritou de volta.
— Convide-o também!
— Não, por favor, eu só…
Antes que ele terminasse, seu braço foi agarrado e o alfa o envolveu num abraço desengonçado o puxando para dentro e fechando a porta, Ângelo enrijeceu inteiro pelo contato sem pudor e por ser empurrado num lugar desconhecido. Ele odiava festas.
— Ah, olá! — pronunciou a mesma voz de anteriormente, uma moça de cabelos longos e pele igualmente parda, olhos de mesma cor que os do alfa trajando um vestido vermelho estava logo à frente. Igualmente alfa. — Somos os novos vizinhos!
— É, eu percebi — praguejou sem amarras, afinal pelo jeito todos estavam meio bêbados não se importariam com sua sinceridade. — Eu vim pedir para abaixarem o volume da música, por favor, eu estou trabalhando…
— Sim, sim, desculpe por isso. Elliot! Abaixa o som! — berrou ela mais alto que o próprio barulho.
Oh céus, ele ficaria com dor de cabeça.
No mesmo instante o volume ficou consideravelmente baixo, os ouvidos do beta agradeceram, até agora eles estavam zunindo.
— Obrigado. — Não deixou de suspirar.
O alfa ao lado dele riu, porém por sorte as outras poucas pessoas no apartamento não deixaram se abalar e continuaram conversando, agora em tom modesto.
— Sou Ellen, prazer e desculpe o barulho. — Ela estendeu a mão num aperto firme com aqueles olhos indo de um lado para o outro na sua figura. — E esse é meu irmão, Benny.
— Benjamín, para os íntimos — cumprimentou ele com uma piscadela. Ah, ok. Ângelo preferiu ignorar isso.
Burgueses, meditou o beta em mente.
— Ângelo — cumprimentou de volta com um aceno. — Sou o vizinho do vinte e três.
Ele detestava ser estraga-prazeres, mas não tinha como, se ele não interviesse, tornaria numa coisa maior. Sendo o mais cauteloso e claro possível, ele explicou as condições do prédio, que ali só habitavam pessoas de idade e que a zona afastada contribuía para que todos estivessem acostumados com a calmaria e o silêncio, não como o povo da cidade que fazia festas e comemorações espalhafatosas. Por sorte, os irmãos alfas compreenderam e pediram desculpas pelo transtorno. Ângelo só não poderia garantir que isso se repetiria, a síndica lá não era tão generosa quanto ele.
A festa continuou em tom moderado. Ângelo achou um pouco estranho a forma como eles ficaram o encarando afiado, julgou ser por causa de ser um estraga-prazeres e relevou. Não era sua intenção criar inimizades logo de cara, mas fazer o quê.
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Houveram gritos e algo feito de vidro sendo estilhaçado na parede que dava para seu apartamento enquanto ele terminava de editar aquele livro à noite de sábado ouvindo a televisão transmitindo o noticiário. Mel em seu colo imediatamente ficou arrepiada com os olhos arregalados em alerta procurando a causa do barulho, ele a acalmou passando a mão por seu corpo alisando os pêlos eriçados. Aquilo também o assustou.
O que raios tinha sido isso? Não podia ser coisa da sua cabeça porque Mel também reagiu. Ele tinha a absoluta certeza que tinha quase sentido o impacto através da parede.
Então veio um choro e logo tudo ficou quieto.
Ângelo estagnou exatamente de onde estava, tanto de pavor, quanto de receio por ouvir qualquer outro som do gênero.
Depois que o choque passou, ele não conseguiu ficar parado ouvindo o choro se intensificar.
Ele bateu à porta do №22 e de repente tudo ficou num silêncio aterrorizante. Tremores começaram a passar pelo seu corpo em ânsia e medo cego, só esperava que Mikhal estivesse bem.
Com uma espera dolorosa com ele quase invadindo o apartamento só para se assegurar de suas apreensões, tudo esvaiu-se quando ele ouviu passos e Mikhal apareceu numa fresta da porta. Seu rosto estava choroso, todo vermelho com as lágrimas empurradas rudemente das bochechas e um olhar murcho e apagado. O cheiro que emanava da pequena fresta era de pura amargura da tristeza manchando a doçura do aroma com acidez do rancor. Não, Mikhal tinha um aroma mil vezes melhor do que isso.
Naquele momento, ele fez uma oração inconsciente: Que Deus consolasse essa doce alma.
— Eu… eu não queria incomodar — começou ele incerto e deslocado por ser tão intrusivo assim. Trocou o peso do pé e coçou o braço. Talvez ela nem quisesse companhia, talvez quisesse ficar sozinha, porém seu coração apertou com a visão tão deplorável e agoniante. Tudo nele estava em extrema alerta para agir a qualquer momento.
Em resposta, ela forçou um sorriso amuado.
— Eu te assustei, não foi? Desculpe — disse com a voz quebrada, limpando o rosto outra vez com a manga da camisa. A mão continha alguns cortes abertos nos nós dos dedos, ele notou. Rapidamente ela puxou a manga comprida para esconder a mão ferida.
Isso não combinava com Mikhal em tudo.
— Eu ouvi um barulho — comentou ele baixinho na esperança de ser o único a ter ouvido tal som para os outros não se incomodarem e virem ver o que estava acontecendo. Soar discreto era o melhor para saber se ela estava aberta a conversar sobre.
— Oh, isso — proferiu ela desviando o olhar com uma pitada de raiva emanando de seus feromônios. Ela voltou a encará-lo com uma expressão impassível. — Desculpe incomodá-lo, você não precisa se preocupar.
— Mas…
— Você deve ter ouvido errado. Deve ter sido o vento. Só isso — reforçou ela erguendo uma mão no ar para impedi-lo de insistir. — Por favor, Ângelo.
Em troca, ele gemeu acuado torcendo numa expressão preocupada, ainda que resoluta. Apesar de se sentir mal por dentro por não poder ajudá-la, Ângelo sabia reconhecer uma pose defensiva quando via uma, ainda mais de uma alfa. Mikhal claramente emitia feromônios para se manter longe apesar de todo o aroma tristonho e raivoso por detrás. E se tratando de alfas, o melhor era não insistir.
Sendo assim, ele deu um passo para trás reconhecendo o espaço dela. Os olhos dela diminuíram de atentos para normais e seus ombros relaxaram visivelmente.
— Sim, deve ter sido o vento — anuiu ele abaixando a cabeça em reconhecimento.
Ele estava pronto para voltar para seu apartamento e parar de bancar o intrometido quando uma mão em sua bochecha o parou.
— Ângelo.
E aquele puxão de novo.
Ele ficou perfeitamente imóvel quando ela trouxe seu rosto para mais perto, olhos esbugalhados e respiração suspensa. Contra tudo que se passou por sua cabeça, ela encaixou o nariz na curvatura de seu pescoço a qual ele instintivamente expôs um pouco. A sensação fez arrepios percorrerem seu corpo, desde onde ela encostava, até o último fio de cabelo, Ângelo estagnou no mesmo lugar sentindo ela esfregar o nariz na sua glândula odorífera até então desutil para espalhar mais de seu aroma e ela capturar tudo numa inspirada.
Isso fez um choramingo escapar contra sua vontade. Ele nunca, nunca havia exposto seu pescoço antes a qualquer alfa medíocre ou se submetido contra sua vontade desde que adquiriu a maioridade. Então ele ficou surpreso consigo mesmo quando a ação foi tão natural, porém não deixou escapar por seu aroma a qual Mikhal se alojava tão tranquilamente.
Deixando se levar pelo momento e não querendo pensar muito sobre, ele apreciou a ação. Alfas faziam muito isso com ômegas e vice-versa, então na certa se perfumar era algo calmante, por isso ele continuou parado somente com a mão dela em sua bochecha o mantendo de pé. A respiração dela dava calafrios estranhos em seu corpo fazendo seu pé se esfregar no calcanhar do outro. E quando a ponta do nariz esfregou na sua pele, ele crispou os lábios para não soltar um som comprometedor.
A pior e melhor experiência em toda sua medíocre vida.
Parecia extremamente íntimo e pessoal, como que alfas e ômegas conseguiam fazer isso tão frequentemente? Não havia como ele tratar da ação além de um pretexto para conotação sexual ou qualquer cortejo comum entre betas. Ele estava a ponto de entrar em combustão espontânea.
Os lábios dela. Ele podia sentir os lábios dela diretamente contra sua pele, roçando não intencionalmente. Espera, ela tinha presas também. Se ela abrisse os lábios poderia facilmente morder o pescoço dele e oh, caramba. Um borbulho começou a se fazer presente em seu estômago e ele conhecia a sensação.
Droga, isso estava durando demais ou era sua cabeça que corria a mil por hora?
Contra seus pensamentos, ela afundou mais um pouco o nariz na pele antes de se afastar finalmente. O rosto dela sustentava uma expressão totalmente relaxada agora, ao contrário da dele, que estava totalmente embaraçada e vermelha. As pupilas dilatadas se destacaram nos olhos claros e ele se perdeu ali.
Até mesmo um sorriso conseguiu se desenhar naqueles lábios.
— Obrigada — proferiu ela com um pouco de rouquidão, seja pelo choro de anteriormente, ou por algo que ele não conseguia pensar agora.
— De nada? — A voz saiu terrível, toda falha, constrangida e confusa.
Mikhal deu outro sorriso de gratidão, notando a deixa, o cérebro de Ângelo recuperou-se em tempo recorde para dizer antes que ela se fosse:
— Eu… não ouvi errado. Se precisar de um amigo, você sempre é bem-vinda, é só bater, sabe, estou há uma porta de distância.
Seu devaneio desengonçado rendeu um riso fraco por parte dela, apenas uma sombra dos que ela costumava dar, contudo era o bastante.
Ela deu-lhe um olhar grato, e com um aceno, assim partiu.
Ele ficou parado como bobo no corredor em frente à porta dela sem conseguir absorver o que tinha acabado de acontecer. A mão dele cobriu a região do pescoço que ela havia farejado, esfregou um pouco o polegar para descobrir que estava sensível.
O sino do elevador soou com alguém aparecendo no fim do corredor, instintivamente ele protegeu a região sensível acordando do estupor e voltando para seu próprio apartamento.
Era como se tivesse um concreto frio sobre suas costas. Ângelo não queria se intrometer até porque não sabia de todos os fatos, mas o simples pensamento de deixá-la em tal situação era massacrante. Pelo menos ele ficou contente ao saber que seu cheiro a agradava – seja lá qual fosse – e a relaxou.
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Estranho. Ângelo se sentiu estranho em todos os sentidos da palavra. Como nunca havia sido farejado antes, seu sistema inteiro ficou bagunçado.
Alguns dias se passaram e ele não conseguia tirar aquilo da cabeça ainda. Talvez a preocupação fosse desnecessária e excessiva, Mikhal não queria ser incomodada e obviamente não era um assunto dele. Somente… por quê?
— Segure o elevador!
Alguém invadiu a cabine do elevador a tempo com Ângelo tendo segurado as portas.
— Ah, obrigada! — Era Ellen, sua nova vizinha, lotada de sacolas do supermercado. Ele acenou em reconhecimento e apertou o botão do terceiro andar. — Eu mato o Benny.
— O que houve? — perguntou educadamente.
— Aquele palhaço foi para a academia e deixou para eu sozinha fazer as despesas do mês. É mole? — praguejou ela chacoalhando a mão vermelha de segurar as sacolas.
— Eu posso lhe ajudar a carregá-las até lá em cima — ofereceu, novamente educado. Afinal, ele fazia isso o tempo todo com as senhorinhas.
— Por favor — pediu grata.
Ela parecia honestamente exausta, também eram muitas sacolas para uma pessoa sozinha carregar, então ele pegou a maior parte que conseguiu antes das portas abrirem outra vez.
— Vocês estão morando juntos?
— Hm, sim. Nos damos bem e tudo mais — disse ela procurando as chaves. — Ajude-me a colocá-las aqui dentro?
Antes de entrar, ele pediu licença. O apartamento parecia bem, era uma decoração moderna e requintada, sem toda a bagunça da festa e poucas luzes, isso ficou visível. O cheiro ainda fraco de alfa não se apegou às paredes demarcando o território novo, ainda assim era meio desconfortável invadir o território de alfas assim.
Burgueses, reforçou o pensamento outra vez.
— Desculpe o péssimo primeiro encontro — pediu ela novamente quando ele pôs as sacolas todas no balcão. Ela colocou uma mecha atrás da orelha. — Estávamos meio animados com a mudança, sabe, sair da casa dos nossos pais e tudo mais.
— Tudo bem, isso já foi resolvido. — Deu de ombros na intenção de ir logo para seu apartamento, porém o olhar que ela lhe deu de cima a baixo lhe causou uma sensação estranha. Ele imaginou que ela gostaria de conversar mais? E ele estava sendo rude ao querer sair assim sem mais nem menos? Portanto ficou perfeitamente imóvel, aguardando.
— Faz muito tempo que você mora aqui? — iniciou ela de novo enquanto guardava as compras em seus devidos lugares. Sim, ela queria conversar.
— Sim, uns oito anos ou mais.
— E você gosta de morar aqui?
— Gosto. — Esboçou um sorriso. — É bem tranquilo e em paz aqui, a vizinhança também é super amigável e acolhedora.
— Você disse que trabalhava home office. Isso ajuda também, não é?
— Sou editor de livros e estava trabalhando num projeto naquela sexta.
A expressão que ela fez foi de clareza, não tão empolgada quanto alguém que era apreciador de livros.
— Isso explica porque você gosta daqui — brincou ela e Ângelo riu cúmplice.
Bem, isso era verdade. Ele tinha se mudado para cá pra unicamente para ter paz e sossego para trabalhar.
— Estou um pouco preocupada em não conseguirmos nos alocar aqui — admitiu com um suspiro guardando a última compra e se virando para ele com uma mão na bochecha. — É muito afastado da cidade e logo de cara causamos problemas. Acho que vai demorar um pouco para nos acostumarmos.
— É sim, mas você irá notar que é um bom lugar.
O sorriso que ela lhe deu era cheio de cumplicidade e esperança, talvez fossem essas as palavras de conforto que ele esperava ouvir. Até que ela não era má pessoa, ou mesquinha e patricinha que ele pensou no início.
Por que as pessoas sempre pareciam estar fugindo de algo ao se mudarem para cá? Até mesmo Mikhal…
Seu aroma deve ter azedado um pouco, ou ele deve ter feito uma careta, porque no próximo instante ele tinha os olhos verdes preocupados de Ellen em cima dele numa pergunta muda.
— Algum problema, Ângelo? — Ela estava um pouco em alerta.
— Oh, não, não. Desculpe — pediu gesticulando com as mãos e limpou a garganta. — É que… isso me fez lembrar de uma pessoa.
O som que saiu da boca de Ellen foi de compreensão num misto de curiosidade, por algum motivo Ângelo ficou desconcertado.
— Então… — ditou se aproximando num tom sugestivo, Ângelo teve vontade de dar dois passos para trás, mas se conteve. Ele sabia muito bem que não se podia correr de um alfa. — Você e a vizinha do vinte e dois, hein?
Alarido tomou sua face com ele tendo os olhos esbugalhados para Ellen que possuía um sorriso convencido como se a reação dele apenas confirmasse a insinuação.
— V-v-você viu? — A voz de Ângelo simplesmente sumiu. Era ela que estava no elevador naquele dia. Por isso ela puxou papo consigo.
— Muito pouco, porém o cheiro ficou no corredor. E… ainda está grudado um pouco em você. — O olhar dela era afiado e risonho.
Ângelo era mesmo uma ameba de despercebido, entrando na casa de alfas assim com o aroma de outra alfa grudada no corpo – como ele adivinharia que o aroma dela ficaria por tanto tempo? Ele nunca foi perfumado antes!
— Você quer que eu vá…?
— Não, não. Tudo bem. — Acenou para deixar para lá. Agora que ela tinha identificado o que queria, deu alguns passos para trás, a qual Ângelo bufou nem notando que se segurava a respiração.
O grunhido de frustração saiu de sua boca e ele esfregou o rosto não se contendo de vergonha.
— Devo dizer que foi bem ousado, mas ela deve considerar muito você. — Ângelo levantou o rosto das mãos para encará-la. — Eu também sou uma alfa, sabe? Nós perfumamos alguém quando consideramos essa pessoa especial.
Especial. A palavra ecoou positivamente fazendo percorrer um sentimento bom pelo corpo.
— Nós… nós não temos nada. Somos apenas bons amigos — proferiu com certa amargura, porque afinal eles estavam meio afastados ultimamente por uma reação ruim que Ângelo causou nela.
— Hmm — cantarolou. — Isso está incluso também.
E o sentimento bom voltou com tudo alimentando suas esperanças e tirando a auto-depreciação. A marcação era um claro indicativo que ela não estava brava com ele então? Resoluto, ele suspirou. Seu cérebro iria fritar nesse ritmo.
— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou Ângelo antes que ela viesse com mais baques.
— Não, obrigada. Eu te acompanho até a porta.
E o olhar estranho persistiu em sua figura fazendo Ângelo se encolher de leve. Ele estava indo dizer um "tchau" ou "até mais" para não ficar com o clima estranho de que ela que causou isso nele, porém a frase ficou presa na garganta quando os lábios dela se encontraram com sua bochecha. Novamente, ele estagnou no lugar.
Quando ela se afastou, seu olhar era aquele risonho sugestivo.
— Isso foi um agradecimento por ter me ajudado. Até mais, Ângelo.
E fechou a porta na sua cara sem mais nem menos.
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Noite de sábado. O ruim dos fins de semana, era que quando ele não tinha trabalho, ficava à toa. O último trabalho ele fechou dias atrás, então seu planejamento para a noite era adiantar todas as séries e filmes que ficou de assistir, a regra era clara: ele ficava sem divertimento até concluir um trabalho. Funcionava bem, até. Como uma tradição.
A pipoca estava estourando no microondas quando alguém bateu à porta.
— Olá — saudou Mikhal com um aceno e uma faceta alegre. — Não sou a pizza, se é o que você está esperando.
Sem conseguir se conter, Ângelo a puxou para um abraço apertado, a qual estagnou a alfa por alguns segundos antes d'ela corresponder e lhe dar alguns tapinhas nas costas. Seu aroma de grãos de café e calda de bordo o envolveram de bom grado e ele deu uma expiração saudosa. Só quando eles se soltaram foi que Ângelo desviou o olhar e coçou o braço repentinamente sem saber o que fazer com as mãos, essa era a primeira vez que eles se tocaram assim e que ele iniciou o ato sem pensar. Mikhal parecia sutilmente surpresa, porém continha um sorriso feliz.
— Oferta de paz? — perguntou ela erguendo um pack de cerveja, imitando ele quando ele lhe trouxe bolo pela primeira vez.
— Então você admite que estava me evitando? — rebateu arqueando uma sobrancelha comicamente.
Mikhal bufou daquele jeito dela e como Ângelo estava com saudade disso.
— "Dando um tempo" é mais apropriado — denotou erguendo um dedo em sua direção.
— Boa tentativa, mas eu não bebo — disse solenemente.
— Umazinha só e não te forço a nada.
Parecia um bom acordo, então deu espaço na porta para ela passar. Ah, céus, como ele estava com saudade desse jeitão dela também.
— Como sabia que eu estaria em casa em um sábado? — questionou ele seguindo ela.
— Foi você mesmo que disse que não tinha companhia além de Mel… — ela parou no meio da frase olhando ao redor, vendo a televisão ligada no canal de streaming e o cheiro de pipoca permeando o local. — Oh, você tem planos.
— Tinha — reforçou o pensamento com um sorriso beirando os lábios. Mikhal captou isso e sorriu de volta. — É bom passar um sábado à noite com uma amiga, fico contente que você tenha aparecido.
Se alguma coisa, o sorriso dela caiu aderindo um teor taciturno.
— Eu não vim para passar o tempo, Ângelo — disse calmante, cautelosamente. O beta estagnou no mesmo lugar, todo ânimo escorrendo do corpo. — Vai precisar de uma.
Uma latinha voou em sua direção a qual ele pegou desajeitadamente, agora ele entendeu o porquê das cervejas. Portanto, tomou metade num só gole e fez uma careta azeda depois, ele não gostava do gosto do álcool e nem de ficar bêbado – a qual já teve más experiências –, mas hoje ele sentia que precisaria. Mel, que estava no sofá, acabou indo para o quarto com a presença estrangeira, dando lugar a Mikhal.
Não foi após alguns minutos que a mente de Ângelo começou a vagar, era como se ele estivesse com horas de sono faltando e sem café à vista. Foi nesse momento que Mikhal sentiu que deveria começar a falar o motivo de ter vindo, ela, que bebeu apenas duas e mantinha-se plena relaxada contra o sofá:
— Acho que eu te devo explicações — meditou olhando para o teto da sala. — Sei que você ficou chateado, mas eu tinha que resolver minhas próprias questões internas antes de te envolver nisso.
Ângelo somente acenou indicando para ela continuar.
— Não fui uma pessoa boa, Ângelo — admitiu com pesar. — Magoei pessoas, feri pessoas, já disse palavras tão horríveis que destruíram quem estava próximo de mim. E sabe o que mais? Eu não me importei.
Um cheiro amargo e denso pairou ao redor naquela raiva passada, isso fez Ângelo ficar rígido e engolir em seco.
— Eu era uma oficial, fui designada a proteger pessoas de uma mesma facção corrupta: políticos, advogados, juízes e outros envolvidos. Eu não sei como ou quando começou, quando me dei conta, já estava no meio.
Tudo veio como um baque. Ele estava diante de uma criminosa? Tudo nele estagnou de repente, o peso da conversa finalmente assestando-o.
— Eu olho para trás agora e me questiono: "Meu Deus, como eu pude ser a favor de algo tão imoral como isso?".
— Vo… — ele pigarreou para recompor a voz que sumiu. — Você… está fugindo?
Mikhal virou para ele com os olhos arregalados.
— Deus, não! Eu não sou uma criminosa, nunca fiz parte "disso", eu apenas os protegia como era me mandado. — Ângelo soltou um bufo aliviado que nem sabia que prendia. — Eu oferecia minha guarda que por acaso essas pessoas vieram a ser corruptas, eu não tive nenhum envolvimento. Fui saber bastante tempo depois que comecei a trabalhar para eles.
Uma tonelada acabou de sair de suas costas ao ouvir isso e ele caiu contra o sofá totalmente esgotado e ela mal tinha começado a falar ainda.
— Eu preciso de outra cerveja — anunciou para o teto e Mikhal lhe ofereceu outra latinha.
— Lembra da minha matilha? Pois bem, éramos todos encarregados da polícia, por isso éramos uma "equipe", também não tínhamos lá um bom caráter. As coisas que nossos superiores nos pediam para fazer para proteger essas pessoas eram o que mais me deixam mal…
O aroma dela ficou amargoso e denso num remorso e arrependimento. Com duas cervejas correndo no organismo, ele teve coragem suficiente para voltar a tocá-la nas costas, uma carícia familiar para confortá-la.
— Foi tão solitário nessa época. Não podíamos ter contato fora as pessoas do trabalho e essas coisas, amigos se afastaram de mim, minha família se afastou de mim e foi aí que percebi que eu não tinha nada. E para quê? Seguir um propósito cego? Encobrir gente malvada?
O estalo de metal se emitiu com ela apertando a latinha numa raiva incontida com um rosnado curto escapando.
— No começo não me importei, admito. Tinha uma vida boa, uma conta gorda, uma equipe que eu acreditava que se importava comigo. Segurança, confiança, conforto. Todas essas coisas alfas, ou que as pessoas esperavam de alfas. Então me questionei "Por que sinto que algo está errado? Que algo está faltando?".
Então um suspiro e uma pausa. Ângelo ficou perfeitamente quieto.
— Como eu disse, vim de uma família tradicionalista e alimentada por esses ideais arcaicos, então não entendia o que estava errado nisso tudo. Fiz todas essas coisas más e não me importava, achava que fazia o certo. — A voz estava maleável. — Foi quando um desses nossos colegas decidiu abandonar a equipe, ele foi tachado de muitas coisas, "fraco", "mariquinha", "covarde"… e isso me fez refletir.
Ela fez uma expressão pensativa.
— Não era um trabalho fácil, a mente pesava em ter que proteger e defender alguém claramente errado e você correr perigo por essas pessoas. Eu entendo ele.
Os olhos cor mel dela se encontraram pela primeira vez durante a conversa, tão transparentes e amargurados.
— Ele tem família, Ângelo. Eu vi fotos da filhinha dele, o que ele contava da esposa, que era amorosa e gentil em todos os níveis, e mesmo não concordando com o trabalho dele, ficou ao lado dele. Ele abandonou tudo por causa delas. E todos eles dizendo aquelas coisas horríveis.
Durou pouco, porém, os olhos dela voltaram a cair.
— Não fiz como ele de imediato por medo de ser tachada desses nomes também, afinal nunca quis ser mal vista. Então eu esperei.
Ângelo não tinha notado, mas estava tremendo um pouco em ânsia exacerbada. Disfarçou passando as mãos suadas pela calça enquanto se perguntava o motivo de Mikhal estar lhe contando tudo isso.
— O estopim foi uma noite em que um desses advogados não atendeu à causa de uma ômega com uma filha, ela estava claramente desesperada e o juiz também foi totalmente indiferente à situação dela e favoreceu o alfa companheiro dela que era um marginal que tinha comprado a auditoria. Senti tanta raiva naquele dia que até fiquei com vontade de chutar o balde e acertar um murro na cara daquele infeliz. Ali, as escamas dos meus olhos caíram e eu finalmente entendi o que queria.
Ângelo expirou toda ânsia que sentia e relaxou o corpo.
— Na mesma noite, a criança acabou ouvindo parte da nossa conversa nos bastidores, sobre ter sido comprada aquela seção e tudo mais. Ela foi correndo contar para a mãe e pediram para eu me livrar dela antes que isso acontecesse.
— E você…? — Ângelo engoliu em seco.
— Deixei ela ir — proferiu numa só lufada. — O jeito que ela me olhou… como se eu fosse um monstro. Com medo e insegura na presença de uma alfa… isso me abalou, abala até hoje. Não consegui fazer nada com ela, nem dizer nada a ela.
E balançou a cabeça para se livrar da imagem ruim.
— Claro que eles descobriram e foi isso que levou a minha demissão, por descumprir uma ordem.
— E a menina e a ômega?
— Ficaram bem, parte dos corruptos foram presos e o alfa depois de um tempo também. Então nada aconteceu com elas.
— Ainda bem que tudo acabou bem — ditou suavizado por toda aquela história ter um final bom.
— Eu já estava bem longe quando isso aconteceu. Fiquei um tempo escondida, refletindo o que eu queria para mim. Me mudei para uma cidadezinha do interior e aqui estou junto a ti contando tudo isso.
Pela segunda vez seus olhos se encontraram, agora com os dela tendo suavizado consideravelmente por enfim ter compartilhado seus anseios com alguém, um sorriso gracioso até beirava os lábios dela.
— Eu fico me perguntando por que as pessoas acham que aqui é um bom lugar para se fugir. — Sua boca se moveu sozinha conforme seus pensamentos.
— Essa é a primeira coisa que você tem a dizer depois de eu ter te contado tudo isso? — Ela não estava brava, disse com uma risada escapando e o empurrou no ombro.
— Por isso eu não bebo — rebateu severo. O álcool tendia a deixar sua língua solta demais.
Ela riu mais um pouco, provavelmente pela cara que ele estava fazendo.
— Meus pensamentos sobre você não mudaram. Continuo achando você uma pessoa incrível, de bom coração, e mantenho as palavras que disse na nossa última conversa. — Se era isso que ela queria ouvir, aí estava.
"Você está segura agora. Independente de quem você foi, ou o que fez, você é uma pessoa maravilhosa e enxergou isso no meio da adversidade."
Os ombros dela relaxaram visivelmente e o sorriso se sustentou.
— Eu não sei como você enxergou tudo isso no meio dessa bagunça. — Apontou para si toda.
— É o que se destaca em você.
As pupilas dela dilataram consideravelmente e então o aroma adornou um tom doce e surpreso, atraente para seu faro. Inconscientemente ele se inclinou para pegar mais do aroma dela, e contra tudo o que ele esperava, Mikhal expôs o pescoço a ele. Uma alfa. Expondo o pescoço. Para ele.
Ele se afastou para o outro extremo do sofá em susto, estranhando a ação.
Quando Mikhal não se moveu ou disse nada, ele cautelosamente se aproximou, com um olhar duplo sobre ela e o pescoço dela, até que ele estava tão perto que podia sentir com clareza o aroma dela, grãos de café e calda de bordo com feromônios tranquilos de alfa seguro. Seu coração retumbava no peito como um louco. Não havia motivo d'ela estar expondo o pescoço, ele não tinha o costume de se perfumar porque era um beta, não um ômega. Ele nem sabia o que significava um alfa expôr o pescoço, mas temia mesmo assim. Ele não sabia como farejar, o que ele deveria fazer? Apenas ficar ali e… cheirar? Era realmente calmante?
Com um pequeno empurrão por parte dela na sua cabeça, o nariz dele se encaixou contra a glândula odorífera dela, e Mikhal expirou. Ângelo travou inteiro, seu nariz estava contra a pele dela, em cima da glândula odorífera, ele sequer respirava. E quando o fez, seu cérebro deu pane com o quanto de informações o atingiu numa pancada só. Seu nariz estava cheio de unicamente grãos de café e calda de bordo, feromônios felizes e satisfeitos, uma aura relaxada, confiança e carinho… isso que tornava o cheiro doce daquele jeito.
Ângelo ia desmaiar. Ele sentia que ia desmaiar.
Ele choramingou com todo o misto de coisas acontecendo ao mesmo tempo, a mão de Mikhal ainda na sua cabeça começou acariciar para relaxá-lo e isso foi muito bem-vindo. E realmente, era bem mais do que ficar ali e cheirar, era adquirir informações mais pessoais da pessoa. Agora ele entendia porque alfas e ômegas faziam isso com frequência. E sim, era calmante.
A segunda melhor e pior experiência de toda sua medíocre vida.
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Às plenas 23h15min da noite, alguém bateu à porta. Ângelo nem precisou ver pelo olho mágico pois sabia quem era, apenas esfregou os olhos enquanto se arrastava em passos pesados.
Do outro lado havia um ômega de cabelos negros curtos arrepiados, olhos castanhos, nariz pontudo e roupas de trabalho, parecia nervoso com olhos sérios esbugalhados esfregando os braços pelo frio, ele nem pediu licença empurrando-se para dentro do aconchego quentinho do beta que fechou a porta bocejando. Logo, Ângelo notou algo muito errado quando os feromônios agitados e densos bateram em seu rosto.
— Hector, é próximo da meia-noite. O que raios? — queixou-se cruzando os braços e arqueando uma sobrancelha na melhor pose autoritária que ele conseguiu. Deveria parecer horrível, com o cabelo todo bagunçado do travesseiro parecendo um ninho de passarinhos e os olhos murchos lutando para ficarem abertos.
— Eu sei, eu sei — começou o ômega com um pouco de mordida. — Eu mandei uma mensagem!
— Você só disse "Estou indo para aí, venha me atender.", o que eu deveria presumir com isso?
Hector gemeu fazendo uma careta e crispou os lábios ainda se esfregando para afastar o frio do corpo, então ele desviou o olhar e reuniu coragem o suficiente para falar numa lufada só:
— Meu cio despertou.
— Oh, Hector! — arrulhou Ângelo.
— Deixe-me terminar! — apressou-se a cortar o amigo antes que viessem as reclamações. — Tínhamos um cliente importante hoje que só saiu muito tarde e eu não podia faltar, tive que ficar para fazer hora extra, por isso o horário tardio. Começou hoje à noite e como eu não podia ir embora… eu entrei em pânico!
Por isso o ômega parecia tão perturbado e assustado, exibindo uma pose recuada enquanto abraçava a si mesmo – e não era pelo frio então. Os feromônios que ele captou ficaram mais nítidos, um aroma açucarado encoberto pelo nervosismo.
— E sua namorada? — Ângelo gemeu esfregando o rosto sentindo uma enorme dor de cabeça ameaçando vir.
— Eu nem pensei nela. Eu simplesmente calculei quem era a pessoa que mora o mais próximo possível de onde eu estava, e bam! Você foi a bola da vez, meu caro.
Ângelo gostava de seu amigo, realmente gostava, mas essa aura inquieta que ele emanava estava a deixá-lo nervoso. Hector no cio poderia ser um tanto cabuloso, ele não culpava o amigo por vir buscar socorro com ele, só tinha sido absolutamente muito repentino e Ângelo não conseguia lidar com isso com as horas de sono interrompidas.
— Eu preciso de um café — proferiu num bufo cansado esfregando a testa. — Você vai querer?
Hector balançou a cabeça.
— Chá, se for possível.
— Sente-se então.
— Oh, querido, você não vai querer que eu me sente.
A expressão de confusão em Ângelo durou menos de um segundo, sendo substituída por uma faceta de nojo. Hector estava fazendo a dança estranha de flamingo, esfregando as pernas e corpo por um motivo.
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Com uma caneca de cafeína no corpo, por fim Ângelo tinha neurônios suficientes para lidar com seu amigo desesperado.
Ele conhecia Hector de um restaurante que ele frequentava quando ainda ia para a agência, o ômega trabalhava de garçom, e como Ângelo sempre levava o notebook para fazer suas coisas do trabalho, Hector acabou por ficar um tanto curioso e puxou papo consigo. Desde então eles se tornaram amigos.
Hector parecia mais calmo agora, menos na defensiva e mais receoso, seus feromônios rapidamente tomaram conta do espaço afogando Ângelo numa roda de cheiros adocicados com o teor de cio pairando.
Quando se estavam num relacionamento, os cios dos ômegas costumavam vir mais fortes se o parceiro não estivesse presente, por isso Hector parecia tão caótico e aflito, deveria ser duro para ele o cio o pegar de surpresa assim. Ele deveria odiar a situação tanto quanto Ângelo odiava.
Bom, era aquele ditado "não culpe a pessoa pelos estragos que o cio faz". Ditado estúpido.
— Então, o que você quer fazer? — questionou Ângelo.
— Prometo que amanhã de manhã você estará livre de mim. Só estou pedindo essa noite, não tem metrôs e ônibus ou táxis a esse horário.
Compreensível.
Depois do chá, Ângelo despachou ele para um banho antes que ele próprio se afogasse naquele cheiro que Hector emanava, ele emprestou algumas roupas só por aquela noite. Vasculhando o guarda-roupa, descobriu aqueles itens de aninhamento que ele havia comprado um tempão atrás quando foi ao mercado com Mikhal, nunca pensou que seriam realmente úteis, ainda bem que ele não jogou fora. Sendo assim, deixou em cima da cômoda ao lado da cama o spray-inibidor de aroma, a almofada térmica e os supressores, caso Hector quisesse usar.
Então trouxe sua roupa de cama para o sofá. Mel, que estava por cima das cobertas, acordou e miou descontente em ser incomodada.
— Desculpe, — pediu ele — só por essa noite, tá bem?
Mel piscou para ele e subiu de volta na cama nua enquanto Ângelo colocava cobertores e travesseiros extras dobrados sobre a cama, então ele foi para o sofá arrumar o mais confortável que achou. Nesse meio tempo, Hector saiu do banheiro vestindo suas roupas, um shorts simples e uma camiseta velha que servisse no ômega, ele veio ver o que Ângelo estava fazendo. Já não tinha mais aquele aroma adocicado demais ou a aflição embutidos nele, estava deveras pacífico fazendo Ângelo relaxar internamente.
— Até que seu sofá é confortável, vai servir — disse ele dando de ombros.
— Você fica com a cama.
Hector virou para ele com os olhos arregalados.
— Eu não tenho quarto de hóspedes e sei que ômegas precisam se sentir confortáveis e seguros no cio. Você pode ficar com minha cama, só por favor não faça nenhuma bagunça — pediu com as sobrancelhas unidas em súplica. Ele não queria ter fluídos estranhos na sua cama, seria o inferno para limpar depois.
— Oh, Angel… — clamou ele com lágrimas sensitivas nos olhos. Havia um agradecimento mudo ali, Hector não era muito piegas, porém conhecendo como Ângelo o conhecia, ele estava grato. Ângelo deu um sorriso solidário a ele e o despachou.
Apagando as luzes e se acomodando para dormir, Ângelo afofou o travesseiro para se deitar soltando um longo suspiro relaxando os músculos estando pronto para voltar a dormir quando de repente um grito o assustou piscando os olhos vermelhos bem abertos.
— Ângelo! Tem um troço preto em cima da cama!
Mas. Que. Raios.
— Esse troço preto tem nome — rebateu ele.
— O que eu faço?!
— Deixe ela aí, logo ela sai, provavelmente se assustando com você.
— Comigo?!
Então Mel veio correndo no corredor com um "mieu" a qual Hector deu um pulo para o lado como se fosse uma ratazana, ela deitou no seu peito e olhou para Hector com um olhar mortal.
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— E vê se toma cuidado agora, hein — alertou ele com um olhar sério para Hector enquanto ele se ajeitava para sair na manhã seguinte, como o prometido.
— Sim, sim — maneou ele. — Desculpe o supetão. Vou tentar não entrar em pânico da próxima vez.
Ângelo esperava que não houvesse próxima vez.
Era melhor ele ir agora que o cio ainda estava brando antes que se tornasse pior no caminho. Hector acabou usando os itens que Ângelo tinha deixado para ele, mas claro que não iria deixar passar impune.
— Ainda estou me debatendo se devo questionar ou não o motivo de você ter esses itens para ômegas — acusou com um olhar desconfiado. — Afinal, você é um beta.
— Cale a boca, seu mal agradecido — rebateu em troca. Isso fez Hector alargar o sorriso traquino.
Ângelo sabia o que se passava na cabeça do amigo e por isso resolveu ignorar, faz anos que ele não namorava, e de jeito nenhum contaria o motivo de tê-los.
— Ah, espera! Vou passar mais inibidores… — ele entrou de novo enquanto Ângelo soltou outro bufo.
— Tem certeza que não vai querer café da manhã? — perguntou, porém foi interrompido pela porta ao lado da dele que se abriu revelando Mikhal em suas roupas de trabalho, ela trabalhava numa cafeteria como barista.
Seus olhos se encontraram, ele estava no meio de dizer um "bom dia" quando viu a boca dela formar um perfeito "o" e o rosto adquirir um tom alarmado, até seu aroma ficou meio bagunçado e suas pupilas dilataram consideravelmente.
Estonteada, ela piscou os olhos cor mel para ele, o averiguando de cima a baixo e ele repentinamente se sentiu muito transparente e sua postura mudou para uma tensa rígida.
— Não, eu dispenso o café da manhã. Você sempre tão gentil, Angel! — A voz era cheia de sarcasmo, mas pra uma pessoa de fora, soava totalmente melosa.
Hector achou que era o momento perfeito para aparecer, Ângelo apenas deu uma olhada para ele antes de voltar para Mikhal aparentemente paralisada.
— Angel? Oh, oh. — Um sorriso perverso delineou o rosto dele e sua voz mudou para num quase ronronar. — Quem é a dama? Bom dia, senhorita.
Ângelo não podia acreditar nisso! Seu amigo teria realmente a ousadia de provocá-lo!
Aquilo finalmente fez Mikhal acordar do estupor e desviar a atenção deles.
— Bom dia. — A voz dela estava um tanto mais grave que o usual e suas bochechas adquiriram uma coloração rosa suave. — Bom dia, Ângelo.
— B-bom dia…
— Eu acho que esqueci o ferro ligado, se não se importam, eu…
Em um instante, ela se foi.
Enquanto Hector gargalhava, o humor de Ângelo murchou como um balão.
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O cheiro de cio ainda permaneceu por dois dias no seu apartamento por mais que Ângelo deixasse tudo arejado e gastasse todo o frasco de spray-inibidor espalhando por todos os cantos. Seu nariz beta desacostumado ficou irritado como alergia e a caixinha de lenços virou sua nova companheira por esses dias. Hector realmente estava estressado, e ele já tinha um aroma consideravelmente forte usualmente.
A Ellen, a vizinha do №25, lhe dava olhares maliciosos todas as vezes que eles se esbarravam. Ele nunca soube o que ela estaria insinuando, talvez só estivesse implicando com ele por causa do aroma de ômega no cio. Mas bem, o cheiro não ficou por tanto tempo assim, dispersou rápido o suficiente para evitar questionamentos dos outros vizinhos.
— Você parece horrível — comentou Mikhal ao aparecer na sua porta para entregar suas correspondências, ela deve ter voltado agora do trabalho devido as roupas e ao passar pela caixa de correio, pegou as dele também, já que eram vizinhos e amigos. O episódio anterior nunca foi citado.
— Gentil da sua parte — praguejou ele em retorno visivelmente desgastado, pegou as cartas e as colocou na mesinha ao lado da entrada.
— Quer que eu te empreste algumas das minhas roupas? Pode ajudar.
Roupas? Mas era verão e ele claramente não era uma mulher para usar as roupas dela, aliás, por que ela estava oferecendo?
— Ahn? Não, obrigado — negou gesticulando as mãos.
— Fui indelicada? Oh, perdão.
Só então aquilo clicou na sua cabeça. Mikhal achava que ele estava no cio por causa do cheiro de Hector, e emprestar roupas eram o que alfas e ômegas faziam enquanto no cio, agora que ele tinha lembrado. Só que, ele não sabia se era uma forma de cortejo ou apenas casualidade.
— Não, não… — se apressou a corrigir. — Isso? Já passou.
Mikhal piscou para ele, uma, duas vezes. Então seu rosto tingiu de clareza e o aroma ficou com um leve constrangimento.
— Você já tinha companhia, eu não deveria ter sugerido. Perdão.
— O quê? — questionou um tanto alto. — Hector? Não! Ele é meu amigo.
Os olhos dela deram aquela escaneada afiada e cautelosa de cima à baixo em seu perfil. As pálpebras se estreitaram e as pupilas ficaram finas.
— Entendi — disse ela.
Ângelo não. O que ele estava perdendo? (³)
Mikhal se foi logo depois deixando ele com esse questionamento na cabeça.
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Havia algo errado.
Ao sair para pegar o jornal de manhã cedo, Ângelo encontrou um cacto sobre seu tapete de "Bem-vindo" em frente à sua porta.
Um cacto. A droga de um cacto.
Reflexivamente ele olhou desconfiado ao redor procurando o possível responsável por aquela artimanha, não havia ninguém nos corredores, então foi difícil assumir se aquele cacto estava ali desde ontem ou se foi colocado naquela manhã antes d'ele abrir a porta.
O cacto não era grande, do tamanho de uma palma, com uma fita vermelha decorativa envolvendo o vaso.
Um sentimento ruim começou a tomá-lo de repente e ele encolheu os ombros numa resposta defensiva.
Ângelo era um beta que evitava entrar em confusão, e todos os vizinhos dali eram super amigáveis com ele. Contudo, ele não conseguia olhar para aquele cacto e imaginar que alguém tivesse dado-o de presente de forma amigável, quem era o idiota que presenteava os outros com cactos? Não. Isso era uma clara ameaça, e se a pessoa quis se manter anônima, só confirmou ainda mais essa tese.
Caramba. Ele era alvo de alguém do prédio, nunca pensou que sua política de vida de não se meter em problemas fosse fazê-lo se meter em problemas.
Superando a surpresa e não deixando transpassar em sua postura e muito menos vazar em seu cheiro o medo e a insegurança que rapidamente o tomou, ele contornou o cacto e saiu para pegar o jornal no salão do térreo. Ao voltar, ignorou o cacto e voltou para dentro.
No dia seguinte, porém, o cacto permanecia ali, zombando dele.
Ângelo fez uma careta desgostosa. Que brincadeira de mal gosto. O que ele supostamente deveria fazer sobre aquilo? Já era o segundo dia e ele odiava estar nessa situação tão imponente. Como não sabia quem o ameaçava, ficou de mãos atadas em ir comunicar isso com a síndica e ele também não queria procurar confusão.
Aliás, para que o alarido? Era só um cacto trezentas vezes menor que ele.
Como no dia anterior, ele ignorou a coisa e voltou à rotina.
Se o responsável não fosse pegá-lo de volta, Ângelo deixaria até que a coisa murchasse e morresse para jogar fora.
Parecia um ótimo plano. Ou isso, ou mudar de prédio o mais rápido possível.
No terceiro dia, o cacto ainda estava lá. Intacto.
Ô, raios.
Ele cerrou os dentes fazendo uma careta horrorosa para o cacto, direcionando todo e sentimento ruim que sentia para aquela coisa, desejando que só com olhar ela simplesmente sumisse.
Seu humor ficou péssimo pelo resto do dia com o aroma de irritação praticamente o cercando.
Mais tarde, alguém bateu à porta.
— Ângelo, querido. — Era Madeleine, a senhorinha ômega do №28. — Eu estava indo ao mercado e me deparei com isso na sua porta.
E ela ergueu o cacto que fez Ângelo torcer o rosto numa careta. Nessa hora Ângelo considerou a senhorinha como o ser mais corajoso para tocar uma coisa assim por livre e espontânea vontade.
— Alguém deixou aí e eu não sei o que fazer com isso — contou coçando a nuca.
— Ângelo, seu bobo, é um presente de consideração muito forte.
De novo essa palavra. Parecia que algo tinha caído e estilhaçado por todo o chão enquanto ele petrificou no lugar.
— Um… um presente? — ecoou atordoado.
— Pegue, pegue! — A senhorinha lhe entregou o cacto. Apesar de pesar gramas, foi como se a senhora tivesse lhe dado um tijolo de tão denso que pesou o significado agora. — Cactos podem dar essa impressão ruim por causa dos espinhos, mas é um símbolo de prosperidade e longevidade. É um bom sinal, filho!
Deveras, a senhorinha parecia bem mais empolgada com isso do que o próprio Ângelo.
— Não é aparência, é o que tem dentro. Os espinhos são só uma proteção, já que eles armazenam água dentro deles.
Então era por isso que a coisa não murchava. Seu plano foi para o ralo antes mesmo de Ângelo desistir dele.
— Acredite em mim — continuou ela firme e forte em sua tese —, se a pessoa quisesse te prejudicar, teria te dado um narciso amarelo.
— Ok, mas… o que isso significa? — perguntou indicando o cacto. — Não seria melhor a pessoa me entregar pessoalmente? Por que deixar na minha porta?
— Isso soa como presente de cortejo, filho. Alguém está de olho em você.
Se não estivesse segurando fortemente o cacto, teria deixado-o cair ali mesmo, mas foi seu queixo que caiu no lugar.
A ideia de uma pessoa cortejando-o era muito mais assustadora do que a ideia de alguém ameaçando-o.
— Olha, até tem uma fita — comentou a senhorinha tocando no laço vermelho que envolvia o vaso. — Acho que isso é argumento o suficiente de que a pessoa estava com boas intenções.
Sim, claro. Uma fita fazia toda a diferença. Mas por que um cacto como presente? Uma flor não seria melhor? Ah, espera, ele se lembrou que não era uma mulher para receber flores, ou até mesmo um ômega, porque aparentemente ômegas gostavam de receber plantas de presente, mesmo que a planta em questão fosse um cacto.
— Obrigado, Dona Madeleine — disse com um sorriso forçado.
— De nada, bem! E eu quero saber o desenrolar dessa história.
Quando ele voltou para dentro, simplesmente não conseguia largar o cacto de vista. Tudo o que ele fez em sua rotina, o cacto estava lá. Ele trabalhou com o cacto assentado na mesa do computador. Ele comeu com o cacto ao seu lado, olhando para ele com os olhos estatelados.
Ângelo não dormiu naquela noite, olhando para o teto enquanto segurava o cacto contra o peito, sendo incapaz de tirá-lo das mãos como se tivesse cola.
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Alguns dias depois, havia uma caixa de bombons. Ângelo engoliu em seco sentindo um bolo se formar na garganta. Pegou a caixa com os dedos trêmulos, tinha a mesma fita que a do cacto, tinha uma aparência deveras cara. Nenhuma cartinha embora, apenas os bombons.
Que desperdício. Doces não eram de seu agrado. Contudo, havia aquele ditado "Cavalo dado, não se olha os dentes.", ele suspirou incontido. A caixa parecia ter custado fortunas e era tão bonita e requintada que ele até tinha receio em abrir. Porém, mais tarde, ele tomou coragem e abriu, os bombons também tinham uma aparência cara, contemplou-os antes de colocar um na boca. Eram deliciosos. E cada um tinha um sabor diferente e desenhos diferentes.
Que carinho que a pessoa teve, ele sentia que não valia nem aquela caixa de bombons. Ele enfiou outro na boca.
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E depois disso, mais presentes apareceram. Uma manta fofinha de cor cinza azulado perfumado com essências aromáticas, típico para ômegas. Mais algumas plantas, dessa vez flores que ele não sabia identificar a espécie. Um livro de poemas e outro de contos. E o mais peculiar: pantufas fofas. Talvez esse foi o que ele mais gostou, pelo menos seus pés não ficariam gelados assim.
Então o pensamento lhe ocorreu de que com tantos presentes, ele deveria corresponder de alguma forma. Porém, como? Ele nem sabia quem era a pessoa e ainda estava meio receoso com todos aqueles presentes por mais que fossem inofensivos. Ainda assim… a pessoa deveria esperar uma resposta dele, não? Nem que essa resposta fosse negativa.
A pessoa sabia onde ele morava. Sabia dos seus gostos. Enviava presentes frequentemente. Na certa deveria estar confiante de que Ângelo corresponderia. Ou seja, ele teria que aceitar de jeito ou de outro, porque com tantos presentes de cortejo, recusar a essa altura do campeonato depois de ter aceitado todos os avanços seria insensível demais.
Caramba, e agora? Enquanto ele não tomava uma decisão, os presentes continuaram a aparecer um atrás do outro, e sabe-se lá se a pessoa ficaria com boas intenções depois d'ele recusar. E se ficasse amargurada? E se o odiasse e fizesse coisas ruins a ele em retorno?
Aah, seu cérebro iria fritar.
— O que há com ele? — Uma colega do departamento perguntou.
Ângelo tinha certeza que emitia um aroma ruim devido às suas preocupações recentes, estava numa pose lastimável debruçado contra o computador de sua mesa.
A dias atrás ele decidiu voltar a trabalhar na agência, sorte a dele que sua chefe acatou seu pedido. Ele não se importava de gastar dinheiro com o transporte público e nem nas horas que ficaria longe de casa, assim não teria que lidar com os presentes que recebia e nem pensar no que fazer com eles.
— 'Tá deprimido. — Outro colega respondeu e tudo o que ele queria era um consolo.
Ele resmungou erguendo o rosto de sua pose depressiva.
— O que fazer quando você recebe presentes de cortejo e não sabe o que fazer com eles?
Todos do departamento pararam para virar para ele como a notícia do momento.
O colega ao seu lado, Lourenço, assobiou.
— Você, um beta, está sendo cortejado? — proferiu pausadamente, cautelosamente gesticulando com a mão.
— Sim — disse encolhendo os ombros. Não era uma regra, mas novamente, o cortejo acontecia geralmente entre alfas e ômegas.
— E você não gosta da pessoa?
— Não.
— Então isso é assédio.
— Angê! — Outra colega, a Evangeline, se ergueu abruptamente em espanto. — Não dê ouvidos a ele!
Já era. Seu corpo inteiro começou a tremer em insegurança e o cheiro assustado e acuado emanou dele.
Que problemão ele tinha se metido?
— Angê, Angê! — Evangeline chamou sua atenção chacoalhando a mão em frente ao seu rosto. — Não é uma coisa ruim. A pessoa sabe que você não vai retribuir?
— Eu… eu nem sei quem é, para falar a verdade. — E se encolheu ainda mais.
— Então ela não sabe, e tá tudo bem. Uma hora ela aparece, e você vai ter que falar para ela, e se os presentes continuarem, aí é assédio.
Novamente ele caiu com a cabeça entre os braços voltando para sua pose lastimável e soltou um bufo da alma. Sua colega passou a mão por suas costas num carinho reconfortante.
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— Ângelo? — disse Mikhal surpresa ao vê-lo aos prantos na sua porta.
Sem saber como começar, suas mãos gesticularam no ar de maneira confusa, sua boca abriu e fechou, mas nada saiu. Então bufou resignado desesperadamente agarrando ela num abraço mortal, sentindo o tremor do corpo começar a se dissipar aos poucos com o aroma reconfortante dela. Mikhal permaneceu perfeitamente imóvel, de olhos arregalados enquanto absorvia todo o cheiro azedo de terror, medo e exasperação de Ângelo. Tudo o que ela pôde fazer foi trazê-los para dentro e sentar-se no sofá enquanto o consolava como podia.
Não foi até depois de longos minutos respirando o aroma dela e deleitando-se do conforto do abraço que ele se sentiu calmo o suficiente para soltá-la.
— Desculpe, desculpe por isso — pediu passando a mão pelos cabelos. — Eu tenho estado meio sobrecarregado nesses dias.
— O que houve? — perguntou com o aroma dela pingando preocupação e ânsia.
— Eu voltei a trabalhar na agência faz um pouco mais de uma semana agora — começou olhando para seu colo e ainda gesticulando estranho.
— Oh, então é por isso que não te vi mais. Achei que estava focado demais num projeto e não queria ser incomodado — contemplou ela fazendo uma expressão de clareza.
— Bem… isso não é tudo. — E suspirou apertando o tecido da calça. Ele ainda estava com as roupas do trabalho, a qual tinha vindo direto para Mikhal. — Eu… eu estou sendo assediado.
Houve um silêncio por poucos segundos.
— Assediado? Como? — As pupilas dela ficaram finas e seu cheiro cauteloso.
— Alguém está de olho em mim, e eu estou com muito medo disso.
Um rosnado irracional emitiu-se que fez ele encolher-se de medo em reflexo. Mikhal tinha uma postura ofensiva, rosnando com as presas pontudas expostas e um rosto de raiva.
— Quem é o desgraçado? Eu vou estraçalhar.
Ângelo engoliu em seco se afastando da alfa feroz por mais que soubesse que a raiva dela não era direcionada a ele, o cheiro dela ficou ácido com um teor de proteção agudo.
— Pior que eu não sei — declarou num fio de voz, afinal alfas ferozes eram aterrorizantes. — Eu voltei a trabalhar na agência por causa disso. A pessoa está deixando presentes a cada poucos dias na minha porta e eu simplesmente não sei o que ela quer de mim!
No mesmo instante, o rosnado sumiu.
— Eu não sei o que fazer com isso. Devo corresponder? E se não corresponder? Nem sei quem é para rejeitá-la ou pedir para parar, e se ela ficar chateada comigo depois e se quiser se vingar? No começo achei que era uma ameaça, mas a Dona Madeleine disse que não, que era um cortejo. Mas como vou recusar? Como vou…?
— Ângelo.
Foi o suficiente para Ângelo tomar um longo gole de ar notando que estava falando muito rápido e agora sua respiração estava sôfrega.
— Você gostou dos presentes? — proferiu em tom baixo e moderado.
— Sim…
Ele não sabia que relação tinha d'ele ter gostado dos presentes ou não, não sabia se isso ajudava ou piorava a situação.
— Então não é assédio.
Um suspiro aliviado saiu dele.
— Quem corteja está com a mais boa das intenções, fique tranquilo. Você nunca foi cortejado?
— Não! Até porque… — ele mordeu a língua a tempo, quase tinha revelado que era um beta e não havia necessidade de cortejar um beta. — Nunca fui visto assim por alguém.
A expressão de Mikhal se suavizou de forma tranquilizante, ela pegou suas mãos oferecendo segurança em seu toque e aroma que relaxou Ângelo inteiro.
— Sempre tem uma primeira vez, certo?
Mesmo que fosse uma pergunta retórica, ele assentiu com os lábios crispados.
— Você só vai rejeitá-la porque está com medo?
Bem, saindo assim da boca de outra pessoa, parecia mesmo meio impulsivo.
— Tente olhar por outro ângulo, ok?
Ele assentiu obedientemente. As mãos dela eram quentes e meio ásperas, provavelmente de tanto segurar armas e usar luvas, totalmente confortáveis e amorosas embora.
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Olhar por outro ângulo. Tá.
Ângelo era bom em analisar, mas talvez fossem apenas os textos, porque pessoas e situações continuavam um tremendo mistério para ele.
Então se pôs a pensar que era algum tipo de personagem de uma ficção envolvendo mistério, um jogo de detetive, talvez? Isso faria sua mente funcionar melhor.
Primeiro: por que alguém deixaria um presente em sua porta?
Claramente eram presentes ômegas, e o único ômega que esteve ali tinha sido Hector, e os presentes só começaram depois da vinda de Hector. A pessoa achava que ele era o ômega por conta disso, também o aroma de cio que permaneceu alguns dias lá no seu apartamento contribuiu para isso, qualquer um que passasse poderia ter pego aquele cheiro no ar. Então, logicamente, a pessoa estava cortejando Hector e não ele? E ele ter aceitado os presentes no lugar de Hector seria considerado algum tipo de violação?
Mas bem, se a pessoa em questão não sabia que ele não era o ômega… tecnicamente não era uma violação, porque a pessoa estava entregando os presentes para ele, destinado a ele.
Tudo bem. Ok.
Em segundo: quem poderia ser?
Se a pessoa estava tentando cortejar um ômega, era natural supor que a pessoa fosse um alfa, porque entrava novamente naquela questão do cortejo acontecer entre alfas e ômegas, era meio incomum ver um beta cortejar ou ser cortejado.
Prosseguindo: apesar do prédio abrigar mais pessoas de idade, era comum que seus familiares viessem visitá-los, tais como filhos, netos, noras, genros, sobrinhos, e etc. Podia ser que a pessoa tivesse ido visitar um parente naquele dia e o aroma de ômega no cio deve ter capturado sua atenção, começando com os presentes desde então. Presentes estes que tinham uma aparência cara. E Ângelo não estava sabendo de nenhum parente rico dos moradores de lá. Bem, não que eles tivessem contado, é claro.
A única alfa que ele conhecia que podia mandar esses presentes quase todos os dias sem afetar sua renda…
— Ângelo? Que surpresa agradável — saudou Ellen naquela típica expressão cínica, o aroma dela esbanjou interesse ao vê-lo. Detrás dela, ele pôde ver Benny inclinando a cabeça para ver quem era.
— Boa tarde — disse ele sempre polido, porém franzindo as sobrancelhas numa pose atípica de seriedade. — Eu vim pedir para que você pare com os presentes. Eu não sei se você está fazendo isso de propósito, mas não sou o ômega que você está cortejando e o aroma que ficou lá era de um amigo meu…
— Ou ou ou ou! — Ela abanou as mãos no ar interrompendo suas palavras com uma expressão perdida e questionadora. — Vai com calma, meu querido vizinho. Eu não sei do que você está falando!
— Como não? Os presentes que vem deixado em minha porta não são seus?
— Ahn, não? — Ela arqueou as sobrancelhas num tom óbvio.
Com a admissão, Ângelo recuou um pouco e piscou os olhos algumas vezes finalmente se calando. A expressão dela era de clara confusão, lutando para entender suas palavras como se falasse em outra língua, o aroma dela também estava estarrecido e bagunçado. Ela falava a verdade.
— Eu notei, sim, o cheiro de cio, tá? E por isso fiquei implicando com você, achando que tinha arrumado uma namoradinha ou sei lá. Era apenas brincadeira, não quis dizer nada com isso, sua vida é sua vida.
Naquele momento, Ângelo nunca quis tanto desafiar as leis da física e que um buraco simplesmente aparecesse para engoli-lo ali mesmo.
— Eu não deixei presentes em sua porta. O que te faz pensar que tinha sido eu?
— Porque… — Por quê, mesmo? O seu cérebro entrou em curto, tinha a absoluta certeza que era ela. — Porque… eram caros e bonitos…
Ótimo. Ele estava fazendo papel de bobo, agora.
— Você é um beta. Eu não cortejaria um beta, sem ofensa.
Os olhos de Ângelo foram para o chão com a vergonha imensurável que corroía todo o seu ser. Com o silêncio mortalmente constrangedor e o aroma tenebroso envergonhado que saiu dele, Ellen amoleceu a pose numa mais solidária e compreensível.
— Se eu arriscasse um palpite óbvio, eu chutaria a vizinha do vinte e dois.
Tão rápido quanto os olhos dele se encontraram com os dela.
— A menos que você tenha conquistado o coração de alguma senhorinha daqui, é, o melhor palpite é ela.
— M-mas…
— Ângelo. — A voz era dura que o trouxe para a realidade, depois ela sorriu compassivamente. — Eu sou uma alfa também, esqueceu? Se ela está mandando presentes, ela não quer só sua amizade.
Era como se ele tivesse levado um murro no estômago de tão baqueado que ficou, de repente algo amargo subiu na garganta involuntariamente.
— Ângelo… — chamou mais baixo e cautelosa agora. — Até parece que você não quer que seja ela.
— Só é difícil para mim acreditar que alguém me deseja dessa forma. — O tom saiu mais infortunado do que pretendia, como se tivesse recebido uma notícia ruim em vez de uma boa. — Ainda mais alguém tão incrível como ela. O que ela viu em mim?
— Pergunte para ela, poxa.
Ellen estava certa. Ela não era capaz de lhe dar as respostas que procurava, ele teria que dar o primeiro passo agora: corresponder a Mikhal. Porém ainda assim…
— Oi, sou eu de novo — falou novamente poucos minutos depois de ter ido e voltado. Ellen bufou divertida. — Como se corteja uma alfa?
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Era algo muito atípico para um beta estar fazendo, mas bem, os padrões já haviam sido quebrados há muito tempo. Se Ellen estivesse certa, a camiseta de pijama que ele deixou numa caixa em frente à porta dela serviria e a agradaria. Era sua camiseta de pijama favorita, dormia quase todas as noites com ela, era simples, de cor cinza clara meio desgastada com o tempo e uma estampa de gatinho deitado sobre o computador – muito característico, não? (⁴)
Tinha escolhido justamente essa por julgar ter mais do seu aroma incrustado nela, já que para os alfas, o cheiro era super importante, e ter algo especial da pessoa que você gostava com o aroma dela, era algo super considerado.
Ângelo foi rápido e furtivo ao deixar a caixa sem nem mesmo ser visto no corredor e foi trabalhar. Tentou focar cem por cento em seu trabalho para que não deixasse o anseio tomar o lugar, e quando retornou para casa, a caixa já não estava mais lá. Um sentimento tão bom de felicidade incontida lhe percorreu por inteiro.
Dois poderiam jogar esse jogo, afinal.
Ironicamente, porém, Ângelo não voltou a ver Mikhal desde que deixou o presente lá, só que ao mesmo tempo os presentes em sua própria porta também não pararam. E se alguma coisa, a maneira como eles vieram ainda mais decorados e personalizados foi indicativo o suficiente para provar de que ele tinha acertado.
Quando ele foi deixar o segundo presente, hesitou um pouco ao sentir que o aroma alfa estava mais forte e denso mesmo do lado de fora, e havia uma sombra pela fissura da porta no chão como se algo estivesse parado ali, aguardando. Ângelo sorriu depositando a caixinha que continha um par de brincos que comprou especialmente para ela no tapete de "Bem-vindo" dela e deu três toques com os nós dos dedos na madeira antes de ir para o seu próprio apartamento e esperar atrás da porta, logo em seguida ele ouviu a porta do lado sendo aberta antes de fechar novamente.
Seu interior todo dava rodopios de alegria com ele se jubilando agitado.
E finalmente, o terceiro e último presente. Era algo bem especial para ele, de valor simbólico, ele queria entregá-lo pessoalmente a Mikhal. Ele tinha ponderado bastante antes de decidir qual escolher, ele queria que fosse especial para ambos, por isso demorou um pouco a mais do que os outros e esperasse que ela não ficasse impaciente ou pensasse que ele mudou de ideia.
Quando tudo estava pronto, Ângelo estava prestes a ir até Mikhal quando seu celular começou a tocar.
— Alô?
— Ângelo, e aí? — Era Igor, um de seus colegas. — Tem planos para este fim de semana?
Sua boca até abriu, mas Igor o cortou com chacota:
— Nah, eu sei que não. Você é um eremita.
Em troca, Igor recebeu um bufo mal-humorado.
— Nós vamos ter uma confraternização da empresa para divulgar os livros que serão lançados no próximo mês. A diretoria está bem empolgada e queria fazer algo grande, então convide quem você quiser.
Ah, sim. Ainda bem que Igor veio lembrá-lo, já ia escapando de sua mente tal evento, os acontecimentos mais recentes o ocuparam de todas as preocupações.
— Oh, certo, certo… eu vou me programar — confirmou coçando a nuca.
— Aliás, aproveitando a conversa, tá rolando um burburinho de que você encontrou alguém. É verdade?
A pergunta o pegou totalmente de surpresa, isso era o total oposto de seu dilema de vida de querer não se destacar, era muito fácil virar motivo de fofoca, ainda mais com escritores e editores num mesmo prédio, famintos por alguma notícia de alguém para gerar ideias. Mas bem, ele estava meio desesperado, por isso deixou escapar. Só não esperasse que virasse a notícia do momento e que ela se distorcesse.
— Ahm, sim, mas…
— Convide essa pessoa então!
Ângelo estava prestes a responder quando a ideia piscou na sua mente. Como nesses eventos ele acabava por ficar bastante acanhado com suas críticas sendo levadas em consideração para a finalização do livro, um apoio moral vindo por parte de alguém bem próximo não faria mal, na verdade, seria perfeito.
— Eu vou — disse convicto.
— Bom ouvir isso, até logo!
Por mais que soubesse que Igor foi enviado através das fofocas, foi bom lembrá-lo da confraternização, seria uma boa oportunidade para eles darem um passo a mais, um pretexto de um encontro já que nunca saíram juntos antes. Além do mais, ele estava contente em ter finalmente uma companhia, ele sempre foi tão sozinho para enfrentar toda aquela multidão.
Ângelo ficou bem empolgado e não tardou a bater na porta do №22.
— Olá, Ângelo — saudou Mikhal com aquele sorriso de fazer o coração de Ângelo virar mingau.
De repente, ele sentiu-se estranho. Eles vinham trocando presentes de cortejo todo esse tempo e era a primeira vez em dias que estavam se vendo face a face, o olhar cúmplice que ela lhe deu veio como de ímpeto deixando o corpo de Ângelo em chamas, e seu aroma evidentemente interessado deixou ele deslocado e perdido, fazia parecer que eles compartilhavam um segredo imundo. Era apenas Mikhal, ele havia batido na porta dela incontáveis vezes, porém tudo parecia ter essa aura tão diferente.
— Oi… — soou baixo e tímido. Teve que limpar a garganta e estufou o peito querendo parecer confiante. — Eu sei que é repentino, mas você estaria livre neste sábado?
Ela deu uma rápida olhadela para dentro checando o calendário na parede antes de responder:
— Sim, depois das dezoito. Você planeja fazer alguma coisa?
— Bom, é que vamos ter uma confraternização para divulgar os livros que serão lançados mês que vem. Alguns dos meus projetos estão inclusos e eles irão avaliar, eu sempre fico meio nervoso com toda a atenção. Então… pensei que você poderia…
— Eu adoraria estar lá para te apoiar — disse imediatamente quando ele mal terminava de falar.
Um sorriso enorme brotou em sua face ao mesmo tempo que uma sensação de segurança cruzou por ambos como um raio eletrizante.
— Te vejo às dezenove horas?
Mikhal confirmou com um aceno, o sorriso ainda beirando os lábios.
Como um completo adolescente, a alegria deixou-o energético e abobado, tanto que ele abraçou Mel bem apertado e esfregou o rosto no pêlo negro em puro êxtase e sem motivo aparente, exatamente como um bobo apaixonado.
— Será que é um encontro? Ela acha que é um encontro? — Pensou em voz alta ainda segurando Mel que agora lhe olhava com ceticismo por ter sido vítima de um ataque sem sentido.
A gata preta miou insatisfeita e Ângelo finalmente a colocou no chão murmurando:
— Não é um encontro… haverá outras pessoas lá.
E bagunçou os cabelos em sua confusão.
— O que estou fazendo? Pareço ter quinze anos…
Não havia ninguém no apartamento além de Mel para julgá-lo, e bem, Mel era uma gata. Ninguém podia culpá-lo pelo sentimento bom que sentia e as coisas bobas que fez em consequência, às vezes era bom ter esses surtos, Ângelo sentia que perdeu alguns anos por não saber como era estar apaixonado antes, chamem-o de flor tardia, mas ele não sentiu-se envergonhado e contemplou o calor agradável que se mantinha em seu núcleo e espalhava-se por todo seu ser numa energia cativante. Ele permitiu-se ser um bobo apaixonado.
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Poderia não ser um encontro, mas ambos visivelmente estavam se preparando para tal evento formal. Tanto que Ângelo perdeu a conta do horário e assustou-se com a batida na porta, detrás dela havia Mikhal em um vestido branco com estampa floral verde suave, de tecido leve quase colado ao corpo, sem mangas, estilo colete com uma fenda pequena para o decote a qual ele desviou o olhar quando eles trepidaram, havia um corte aos lados dando mais leveza, ela também usava sandálias de salto grosso cor branca que deixavam ela maior que ele. O cabelo curto foi jogado de lado e puxado para trás deixando a franja numa curva graciosa. Ela usava brincos que ele tinha dado e um batom vermelho fosco, ressaltando seus traços com pouca maquiagem.
Mikhal estava tão magnífica fazendo ele até perder o fôlego, enquanto ele parecia ter sido assaltado, o que era resultado da pressa.
— Já são dezenove horas? — questionou com evidente pânico.
— E seis, para ser mais específico.
Ele praguejou baixinho voltando para dentro com Mikhal o seguindo.
— Qual o problema?
— Não consigo achar meus sapatos, por isso não repare na bagunça, e, ah, nunca consigo arrumar a gravata. Isso sempre me atrasa.
Ela escondeu o riso colocando dois dedos sobre os lábios.
— Você está bem.
O elogio pegou-o de surpresa. Sua vestimenta era um colete social cinza azulado com uma camiseta branca por baixo, a gravata azul escuro listrada pendia de seu pescoço, suas calças eram sociais com a mesma cor do colete para combinar. Seus cabelos curvilíneos e volumosos foram domados pelo gel os puxando nas laterais sendo repartido ao meio com uma curva graciosa.
Era sua vestimenta padrão para tais eventos e ele não se importava com a aparência até o momento, tanto que o simples elogio fê-lo ficar quente e tímido.
— Obrigado. Você também está muito bem.
Ela encantou-se igualmente com o elogio trocado. Na verdade, ela estava muito além de "bem", ela estava maravilhosa, contudo ele não queria ser tão espontâneo assim.
— Aqui, deixe eu te ajudar.
E sempre obediente, Ângelo permitiu que ela se aproximasse, os dedos hábeis conseguiram fazer um nó adequado em sua gravata e ainda de quebra ela deu um tapinha em seu peitoral bufando satisfeita. Como uma alfa, ela deveria estar acostumada com gravatas também já que era um código de vestimenta até para as mulheres alfas. A diferença de altura em centímetros ainda era um pouco estranha, ele tinha que erguer o rosto para agradecê-la, mas não lhe incomodava, deixava-a ainda mais bela.
— Sapatos… — disse recompondo-se para não se deixar distrair.
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A festa estava deveras povoada, como de costume. Pelo que pôde observar, A maioria dos autores estavam lá e, isso era bom. Sua equipe estava espalhada conversando com cada um deles, sua chefe e diretora estavam lá também, de repente o comum nervosismo o atingiu ao saber que teria que lidar com esse pessoal eventualmente. Como se lesse seus pensamentos, ou apenas tivesse pegado em seu aroma sua hesitação, Mikhal deu um sutil aperto em sua mão em consolo, mostrando a ele que ela estava lá para apoiá-lo.
— O que te deixa nervoso? — questionou ela enquanto caminhavam pelo salão casualmente, verificando a pilha de livros mais próxima com a autora por perto.
— Todas essas pessoas, ter que conversar simultaneamente com elas enquanto meu trabalho está sendo julgado e sendo levado em conta na finalização da obra. Minha chefe e meu gestor são os que mais me deixam assim.
— Entendo. Suas anotações foram boas no meu ponto de vista, você vai se sair bem.
Ele assentiu.
— Aliás, quais as obras que você trabalhou? São essas? — disse ela pegando um livro da coleção.
— Não, eles estão por ali.
E guiou-os para o lado mais ao leste do salão. Ele retirou um livro da pilha com o nome "Uma Dança Ao Luar" com a capa azul com o desenho de uma lua com o que parecia ser a sombra de dois indivíduos em um confronto. Mikhal iluminou-se pegando o livro e abrindo para dar uma olhada.
— Acharam algo agradável aos olhos? — Soou uma voz próxima a eles. Era uma moça ômega de cabelos loiros ondulados nas pontas, olhos azuis com óculos redondos, sardas e um sorriso cativante. Vestia um blazer marrom creme e uma camisa azul clara dando um ar sofisticado que o evento requeria.
— Lindsey, sou Ângelo. Um dos seus editores.
— Ângelo! — saudou a moça num aperto de mão alegre com seu aroma tão saltitante e docemente radiante. — Você é o terceiro que encontro hoje, já falei com uma de sua equipe. Suas anotações foram importantes para abrir meus olhos e dar um passo para fora dos clichês, eu adorei que você sugeriu criar essa certa desconfiança misturada com curiosidade, e não o amor à primeira vista assim que cruzassem os olhos como costumo fazer. Foi bom, eu gostei e os outros também aprovaram a ideia.
Tudo isso enquanto ela ainda chacoalhava sua mão e falava tão rápido quanto.
— Fico contente em ouvir isso, sair da zona de conforto abre nossos horizontes.
— Não é? — E finalmente soltou sua mão. — Perdão a euforia, acabei me empolgando ao te ver. E você, senhorita?
— Sou Mikhal, a acompanhante do Ângelo. — Elas trocaram cumprimentos também. — Devo dizer que me pegou de surpresa com o lance do rei. Não esperava que ele fugisse para não cumprir as obrigações, admitiu o trono adolescente ainda, eu entendo ele.
— Oh, Ângelo deve ter compartilhado com você.
— Por favor, não conte para os outros — pediu ele solenemente.
— Tudo bem! Toda opinião é bem-vinda. Tenho uma primeira leitora clandestina para conversar além de editores, isso é empolgante. O que achou do livro?
Lindsey roubou bons minutos de conversa deles por estar empolgada também com o lançamento do livro.
— Onde eles estarão para a venda? — perguntou Mikhal em determinado momento.
— Oh, eu posso te dar um exemplar, não precisa se preocupar — falou a ômega negando com as mãos.
— Não, eu quero pagar por ele. Seu trabalho merece.
Na mesma hora, Lindsey estufou tanto de alegria que parecia que iria derramar-se em lágrimas agradecidas. Eles foram para outro stand com Mikhal segurando o livro, orgulhosa de seu feito, e Ângelo orgulhoso por ela.
Sua noite seguiu assim, indo de autor para autor, com os diretores e chefes julgando seu trabalho igualmente, o quão importante ele foi para o desenvolvimento e melhoria da obra, como qualquer editor. Se ele ficasse um tanto nervoso demais, Mikhal demonstrava seu apoio com tato, como segurar sua mão, ou seu ombro, ou suas costas, espalhava seu aroma calmante e familiar de grãos de café e calda de bordo. A sincronia foi tão boa que ao decorrer da noite ele se via ameno até, de maneira que nunca havia ficado antes com eventos assim.
Eles fizeram uma pausa para degustar de uns petiscos.
— Você se saiu bem, como eu disse — denotou Mikhal.
— Porque você estava lá. Obrigado de novo. — Ele assentiu estranho.
— Quantos ainda faltam para vermos?
— Eu sinto que você está me perguntando isso só para comprar todos os livros que trabalhei.
— Sou tão óbvia assim? — Com falsa dúvida.
Bastava olhar para a pilha que se acumulava nas mãos dela. Ele tinha trabalhado em pelo menos vinte naquela temporada, e não revelaria tão cedo a ela, não queria ver seu dinheiro sendo extorquido logo de cara assim.
— Ah-há! Aí está você! — enunciou a voz de Lourenço vindo com Evangeline e Jéssica no encalço.
— Oi, pessoal — cumprimentou de volta com um aceno tímido.
— São seus amigos? — perguntou Mikhal com um sorriso simpático.
— Você está acompanhado! — Lourenço sussurrou não tão discretamente ao se dar conta da presença ao lado de Ângelo.
— Não seja indelicado. — Evangeline o alfinetou com o cotovelo. — Tudo bem? Sou Evangeline. Esses são Lourenço e Jéssica, somos colegas de trabalho.
— Mikhal — cumprimentou de volta. — Sou a acompanhante do Ângelo.
— Oh. Agora entendo porque o cérebro do Ângelo fritou naquele dia.
Mikhal até tombou de leve a cabeça em incompreensão, mas ficou por isso mesmo. Todos trocaram cumprimentos e puxaram conversa, visto que estavam famintos também.
E Lourenço estava determinado a espezinhar Ângelo.
— Cara, você precisa me contar! Como você conseguiu? — Tentava sussurrar de maneira urgente.
— Agora não — retorquiu querendo deixar o assunto de lado com acenos.
— Era essa a pessoa que estava te cortejando? Vamos,Ângelo! Não me deixe curioso! Nós betas precisamos nos unir!
A mão de Ângelo voou para a boca do colega tão rápido quanto, ele olhou desesperado ao redor para ver todos com uma expressão confusa, Mikhal não parecia ter notado, embora.
— Loure, pare de incomodá-lo — ordenou Jéssica e por sorte o outro beta desistiu enfiando um salgadinho na boca.
— Desculpe por isso — pediu Ângelo a todos. Com um aceno mútuo, o assunto morreu.
Contudo, isso foi um belo de um aviso de que com seus colegas aqui, seu segredo poderia facilmente ser descoberto com o quão mais interessados eles pareciam em interagir com Mikhal, visto que estava sendo inédito ele aparecer com uma acompanhante. O jeito que Jéssica parecia querer extorquir informações da alfa, Mikhal aberta a responder e o olhar desconfiado constante de Lourenço reforçou a ideia.
— Tudo bem, Ângelo? — Mikhal questionou preocupada notando sua tensão.
— Eu… preciso de um descanso.
— Claro.
Ela não hesitou em retirar-se junto dele despedindo-se dos demais. A parte de trás do salão possuía um pequeno jardim com o estacionamento ao lado, para lá eles foram caminhar depois de guardar a pilha de livros de Mikhal no carro dela. Ângelo poderia respirar um pouco mais aliviado. Não foi preciso Mikhal dizer nada, ela lançou seus feromônios para tranquilizar Ângelo e isso foi o suficiente, ele estava meio farto de tanto falar.
— Você já quer ir? — Ela falou solenemente.
— Está chato para você?
— De maneira alguma, só não quero que você se esforce tanto. Por que ficou nervoso de repente? Não são seus colegas?
— É… eu não sou lá muito bom com interações, muito disso acaba por me sobrecarregar — admitiu coçando a nuca e olhando para baixo nos ladrilhos. — E eu não queria que eles ficassem importunando você com perguntas, eles costumam ser muito enxeridos.
— Por quê? — indagou simples. — Eu não me senti incomodada, a menos que você não queira que eu tenha dito algo a mais, coisa que eu não faria.
Ele assentiu.
Ainda estava sendo estranho esse compartilhamento de intimidade, Mikhal adivinhar o que ele gostaria ou não de falar sobre eles, ou foi apenas seu comportamento íntegro em considerar Ângelo antes de revelar sua relação. De qualquer forma, foi doce da parte dela e o pegou de surpresa, não que ele esperasse que ela caísse na conversa fiada e dissesse mais do que deveria, foi a maneira que ela considerou isso que o deixou meio… extasiado. Essa consideração de Mikhal por si… ou melhor, essa cumplicidade entre eles era algo novo e inexplorado.
— Obrigado.
Então Mikhal parou. Ângelo vacilou em seu passo ao perceber que de repente o aroma de grãos de café e calda de bordo ficou mais intenso, virando-se para ela, Mikhal sustentava um sorriso feliz com um leve rubor, o cheiro de alfa satisfeito e esbanjando carinho dançou no ar fazendo um próprio rubor atingir Ângelo sem motivo algum. A cena simplesmente o pegou desprevenido.
— Não me diga… — começou ela com floreio, as presas aparecendo de relance detrás dos lábios ao falar — que você ficou com ciúmes?
O coração dele começou a bater mais rápido.
— N-não…! Eu não estava…!
Ele estava apenas não querendo ser incriminado pelos seus amigos, Lourenço quase deixou escapar, mas Ângelo não tinha percebido que poderia ter passado tal impressão.
Em troca, o aroma ficou ainda mais denso e os olhos dela semicerraram com graça, as pupilas dilataram nos olhos claros.
Lutar era inútil, portanto só deu meia volta, dirigindo-se para o salão, Mikhal seguiu-o atrás.
Mal retornaram e uma figura se deparou com eles.
— Ângelo! — saudou Igor acenando. — Estava te procurando, oh, aliás, boa noite, senhorita.
— Boa noite — correspondeu Mikhal com um aceno ao outro beta que ficou abobalhado por um momento.
— Oi, Igor. O que quer de mim?
— Ah, sim, verdade — elucidou-se. — O Antônio está te procurando.
Ângelo fez uma careta desgostosa.
— Ele vai me dar uma bronca, não é?
— Com certeza — consolou colocando uma mão no seu ombro. — Eu já vou indo, estão me chamando ali, já jantaram?
— Ainda não, vou falar com Antônio primeiro.
— Certo, então. Boa sorte com ele.
E logo mais, partiu.
— Antônio? — Mikhal indagou.
— Meu gestor. Eu meio que cometi umas falhas nesses tempos.
— Oh, entendo.
Boa parte dessas faltas era por causa dela mesmo, a chegada de Mikhal causou um rebuliço em sua vida. Pois, mesmo interferindo no seu processo de trabalho – toda a questão de recepcioná-la, ele fingindo seu gênero, o passado dela, etc. –, ele não se arrependia de ter dado mais foco para ela, foi importante para o crescimento de seu relacionamento. Agora ele tinha que arcar com as consequências.
— Seu Antônio — saudou meio acanhado.
— Ângelo — saudou de volta despachando as pessoas que conversava para dar total atenção aos recém chegados. — E senhorita?
— Mikhal, sou a acompanhante dele.
— Prazer, minha cara. — Deu um aceno de reconhecimento, Mikhal retribuiu. — Sou o gestor da equipe seis.
— Queria conversar comigo?
O beta mais velho entreolhou para a alfa, depois para Ângelo, Ângelo fez o mesmo e manteve-se impassível.
— Sim, sim. Como vamos entrar em recesso, gostaria de ter essa conversa pessoalmente. Tudo bem?
— Sim.
Antônio levou-os para uma parte mais ao fundo do salão onde as vozes e barulho não eram tão incômodos, nesse meio tempo Ângelo usufruiu para adquirir um pouco mais de confiança. Mikhal sempre atenta, acabou por apertar sua mão de novo e sorrir para ele, isso lhe deu segurança.
— Admito que estou um pouco decepcionado com você, Ângelo — iniciou sem preâmbulos. — Você decaiu muito nesse semestre e deixou algumas coisas a desejar. O que houve com você?
Ângelo engoliu em seco.
— Eu sei — anuiu. — Eu tive alguns percalços, posso ter atrasado um pouco, mas sempre entreguei os projetos.
— Alguns até após o prazo — relembrou. — Eu concedi um tempo a mais porque é você, coisa assim nunca aconteceu antes. Fiquei um pouco preocupado, mas não posso continuar fazendo isso, entende?
— Eu sei, desculpe. Eu não estava no meu melhor empenho, minha mente ficou muito bagunçada, houve outras coisas pessoais e…
— Problemas surgem o tempo todo, por isso precisamos saber administrá-los, tanto na vida pessoal quanto na profissional e não podemos misturar as coisas.
— Sim, senhor. Era só que… não era algo que eu podia simplesmente ignorar, meio que ocupou bastante parte do meu dia. Eu…
— Foi por minha causa, não é? — constatou Mikhal pegando-o de surpresa com o tom alarmado misturado com culpa.
E todas as palavras morreram em sua garganta quando o aroma tristonho atingiu suas narinas.
— Ângelo, não pode deixar sua vida pessoal interferir na sua vida profissional — continuou Antônio imparcial.
Seus olhos não conseguiram se desviar de Mikhal, seu silêncio o entregou.
— O amor é uma coisa linda, mas você não pode deixar suas responsabilidades de lado. Eu nem acredito que estou tendo que dizer isso a um profissional no ramo.
Sinceramente, ele não dava a mínima às palavras proferidas, ele só conseguia focar no quão consternada Mikhal parecia.
— Nunca foi sua culpa — ditou com convicção. — Eu fui o único a querer correr atrás de você, fui eu que me preocupei, eu que me importei, eu quis me importar. Eu só…
E segurou suas mãos mantendo o encarar fixo.
— Eu nunca estive apaixonado antes. Isso totalmente bagunçou meu sistema.
Ele disse isso! Ele conseguiu dizer isso! E ainda de forma tão natural.
Aahh, ele estava tremendo, ele sentia-se suave ao mesmo tempo que em caos. Era assim que o amor se parecia?
— Não vai voltar a se repetir — proferiu convicto agora para o gestor que acompanhava toda a cena digna de um filme de romance.
— Assim espero — afirmou duramente.
Uma enxurrada de feromônios orgulhosos assestou-o então. Mikhal sustentava um sorriso tão amplo de uma maneira que deixou Ângelo impactado, contudo, eles guardaram os sentimentos para mais tarde, quando estivessem a sós.
A mão de Mikhal ainda estava na sua ao se distanciarem, ambos liberavam cheiros levianos e contentes.
— Desculpe por isso — pediu Ângelo.
— Não se desculpe. Você fez um trabalho incrível, fiquei preocupada em ter te atrapalhado, você levou uma bronca por minha causa.
— Você não é culpada por nada disso. O único atrapalhado sou eu. Sempre tento ser o mais exemplar e dessa vez… só não fui, posso recuperar no próximo mês.
— Eu te deixo atrapalhado, é? — soou provocativa empurrando-o de leve, a qual Ângelo riu cúmplice. — É recíproco.
Ângelo virou para ela tão rápido quanto. Mikhal apenas sorriu daquele jeito que deixou-o vermelho.
— Você está com fome? — Ele perguntou coçando a nuca na tentativa de mudar de assunto e recebeu um aceno positivo.
— Um pouco de champanhe seria bom, também.
— Vou pegar uma mesa para a gente, então. As bebidas estão logo ali.
E pela primeira vez na noite, eles se separaram. Por sorte alguns de sua equipe ainda estavam se degustando de uns petiscos quando o avistaram se aproximar e disponibilizaram uma mesa para ele antes de Mikhal retornar.
— Grande partido você arrumou, hein, Ângelo! — proclamou Vinícius por cima das vozes fervorosas.
— H-ham? — O chamado tirou sua cabeça das nuvens.
— Não se faça de bobo, você aparece com um mulherão desses de repente e acha que ninguém notaria? Eu achava que só os ômegas tinham esses ímãs, os sortudos.
Um dos ômegas na roda o alfinetou com o cotovelo comicamente.
— Nem nós temos essa sorte. Qual seu segredo? — falou Felício rindo.
— Gente, por favor, menos — pediu Ângelo manejando as mãos. Seus colegas sabiam ser um tanto intrometidos quando queriam e era exatamente isso que ele temia.
— Não sejam indelicados — repreendeu Amélia. — Desculpe Ângelo, eles tomaram álcool demais.
— Estou plenamente sóbrio! — Vinícius continuou firme em sua tese, claramente não sóbrio.
— Mas todos estamos curiosos, temos que admitir — anuiu Felício com gracejo. — Pensamos que você era um eremita, até que para um beta, você realmente se deu bem. Parece que não são só nós ômegas que escondemos segredos.
Ângelo estava prestes a rebater para que eles parassem de tirar sarro dele, quando sentiu uma presença bem atrás dele, o aroma de grãos de café e calda de bordo denunciou-a e um calafrio sem igual percorreu sua coluna. Vagarosamente, ele olhou para trás, Mikhal tinha uma expressão impassível, lábios crispados e um cheiro conturbado.
— Ângelo, acho que eu…
Tudo pareceu desmoronar.
— …Eu deveria ir.
Ângelo levantou-se tão rápido quanto segurando a mão dela, impedindo-a de ir a qualquer lugar.
— Eu ia te dizer mais cedo, sério! Eu tentei! — declarou urgente. — Só chegou um ponto em que não conseguia desmentir mais, então eu apenas… deixei levar.
A voz foi sumindo a cada palavra e ele não tinha coragem de encará-la. A mão de Mikhal pousou em sua bochecha puxando seu rosto para cima, as pupilas dela estavam em fendas e seu rosto sério e um tanto avermelhado.
— Anjo, agora não é o momento.
Ele engoliu extremamente em seco.
— Nós precisamos ir. Agora.
— O-o quê…? — Ele deu uma última olhada nos seus colegas. — O que houve?
Ela apertou o olhar para ele e sussurrou só para que os dois ouvissem:
— Estou entrando no cio.
Oh.
Oh.
Agora que ela tinha mencionado, o cheiro dela estava especialmente mais forte hoje, Ângelo atribuiu isso ao fato deles estarem saindo juntos tendo ciência dos sentimentos do outro, o aroma dela sempre foi forte perto dele – já que ele não tinha sentido em outras ocasiões –, então assumiu que era um aroma alfa particularmente marcante. Não era à toa que ela parecesse tão atraente hoje, ou como ele ficou atento às presas dela sem motivo, seu instintos betas ainda funcionavam, mas ele era alheio.
— Qualquer coisa que você tenha que contar, vai precisar ser adiado. Eu… preciso ir para casa agora.
— Mas… mas… — balbuciou gesticulando estranho.
— Anjo, por favor. Eu não quero me descontrolar perto de você — pediu ela severa. — Meu cio não é pacífico e eu não gostaria que meus instintos apressassem as coisas com você.
— Espera um pouco… — pediu afoito mal digerindo as informações que eram jogadas. Mikhal queria ter tal tipo de relação com ele? E os instintos de cio a faziam desejar mais? Ele era desejável de uma forma sexual? Oh, céus. Era muito para seu cérebro.
— Eu não quero que você seja influenciado. Não quero que você tenha algo comigo porque foi induzido pelo meu cio, ou que isso desencadeie seu próprio cio e nos ponha numa situação em que não estejamos sãos.
Cio? Ele? Mas ela não tinha acabado de ouvir a verdade?
Ou… ela não tinha ouvido por estar preocupada demais em contar que estava no cio?
— Ângelo… — clamou ela quando viu que a mente dele simplesmente pifou.
— Vai ficar tudo bem — garantiu convicto.
— Não, Ângelo, não quero me relacionar com você assim. Agora mesmo eu… — ela mordeu os lábios, as presas sobressalentes não deveriam parecer tão atraentes, mas eram. — Você parece tão… irresistível.
Ele audivelmente limpou a garganta.
— Vai ficar tudo bem… — repetiu fechando os olhos buscando autocontrole.
— Não seja imprudente… — repreendeu ela.
— Está tudo bem porque eu sou um beta!
Ah, ele disse. Ele realmente disse. Em alto e bom tom, tanto que chamou atenção aos arredores com os olhos curiosos e pescoços esticados exclusivamente para eles, o silêncio que se seguiu vinha dos demais, quanto da tensão entre eles.
A expressão estupefata de Mikhal era impagável e ele estaria rindo se não tivesse acabado de revelar o segredo que vinha escondendo dela durante meses.
— Eu sou um beta, então não se preocupe. Não vou ser afetado.
Mikhal não conseguiu dizer nada, seu rosto ganhava mais vermelho.
Não foi preciso dizer mais, ambos se retiraram. O silêncio que os seguiu até então era tenso e desconfortável de uma maneira que eles nunca tinham ficado antes, apenas coisas simples como "Quer que eu dirija?" ou "Onde estão as chaves?", Ângelo carregou os livros para ela em todo o caminho para o apartamento dela. Quando enfim em casa, Mikhal suspirou aliviada sendo envolvida pelo sentimento de segurança de seu território e se desfez dos sapatos e adereços, Ângelo foi como um patinho atrás dela. Tudo lá cheirava como ela exatamente como da última vez, contudo agora ela exalava esse cheiro forte e atrativo ao olfato.
— Tudo bem, estou mais calma agora — proferiu relaxando os músculos.
— Você precisa de algo? Roupas?
Sua mente beta tentava trabalhar para lembrar do seu conhecimento sobre os cios, evocando suas aulas do fundamental sobre gêneros e ademais, algo que pudesse ser útil para a situação.
— É uma pena. — Ela suspirou se voltando para ele. — Estava esperando que você fizesse um ninho para mim.
Ângelo se engasgou com nada.
— V-você quer que eu pesquise na internet?
Então ela riu deixando-o confuso e desorientado. Ele tinha dito algo errado?
— Você… não está brava comigo?
— Minha mente está uma bagunça, mas brava? Não, não estou brava com você. — Um peso deixou-o com a lufada que ele deu. — Me deixa contente saber que meu cio não afeta você, fico mais tranquila. Só é engraçado pensar em como estamos nessa situação por tanto tempo.
— Eu sinto muito — pediu erguendo os ombros e abaixando a cabeça em submissão e vergonha. — Não sabia que iria durar tanto…
— E você não me disse nada! — Ela gargalhou.
— Você que não me reconheceu! Tipo, não está óbvio que sou um beta?
Em troca, Mikhal deu de ombros.
— Seu aroma é meio doce.
— Doce?
— Sim, tipo… leite de coco e avelã.
Ah, então esse era o aroma dele. Ninguém tinha lhe dito e ele não achava relevante saber até então. Ele gemeu num misto de vergonha e frustração do fundo da alma. Parecia querer arrancar os próprios cabelos.
— Por que escondeu isso de mim? — indagou ela numa voz calma e controlada, assim como seu aroma não demonstrando indícios de qualquer traço ruim.
— Você assumiu, e eu não consegui desmentir…
— Peço perdão. Em minha defesa, você sempre agiu todo ômega perto de mim.
Agora que ela tinha falado, Ângelo percebeu que agia todo submisso e à favor das vontades dela, isso porque realmente gostava dela.
— Mas me diga — ponderou ela vindo até uma distância segura, tudo nela exalava caça e Ângelo ficou perfeitamente imóvel. — O cheiro de ômega no cio no seu apartamento?
— Era Hector. Ele veio buscar abrigo comigo.
— E o episódio do mercado? Você costuma comprar produtos pro seu amigo ou ter um estoque?
— Hm, não. Isso foi puro desespero em ser descoberto.
— Você é uma peste — brincou impressionada.
— Eu pensei… — a voz hesitou, ele limpou a garganta ainda sem olhar para ela. — Que sendo ômega, eu teria uma chance com você.
Dizer isso depois de muito e muito tempo era amedrontador ao mesmo tempo que libertador, ele ficou numa linha tênue entre os dois. Em troca, Mikhal sorriu docemente com seu aroma ficando tão contemplativo e feliz.
— Mas, ei, Anjo — chamou ela colocando uma mão na bochecha dele o que fez ele voltar a encará-lo com os olhos tão transparentes e constrangidos, até mesmo tementes de sua reação por ter revelado a verdade. — Eu me apaixonei pelo que você é, e não pelo seu gênero. Eu amo esse seu jeitinho desajeitado, você é um fofo e não precisa ser um ômega para eu gostar mais de você. Desde o início foi só você.
Contra sua palma, a bochecha dele esquentou consideravelmente e seus olhos castanhos desviaram-se. Só então sua pose relaxou e seu aroma deixou de ficar tenso e medroso para aderir um amoroso e receptivo.
— Por que eu? — soou tão baixo e inseguro que a voz quase não saiu.
— Por que você não se acha merecedor do meu amor?
Silêncio, e então:
— É difícil não se apaixonar por tudo o que você é, e é difícil acreditar que você se apaixonou por mim. Você é tão incrível que me sinto… indigno? Insignificante. E outros sinônimos.
— Eu vejo em seus olhos. — E ergueu o rosto dele obrigado-o a encará-la. — Você enxergou as partes mais revestidas do meu ser sem muito esforço. E me fez enxergar que eu não era aquilo que eu achava, e novamente sem muito esforço.
E pela primeira vez durante a conversa, Ângelo riu singelo.
— Eu ia dizer a mesma coisa. Você me enxerga com um brilho, com uma atenção carinhosa que ninguém nunca me olhou antes. Você me viu quando eu estava invisível.
Os dois riram cúmplices.
— Me conforta que você é um beta, porque senão eu não poderia fazer isso…
Então ela enfiou o nariz no seu pescoço bem acima de sua glândula odorífera inutilizada sem aviso prévio igual à última vez, e isso encheu Ângelo de arrepios. Ele até poderia não entrar no cio, mas ele tinha reações, poxa! Mikhal inalou seu aroma e parecia tão em paz de repente, a mão deslizou por seu braço enquanto a outra se instalou na base de suas costas e o trouxe para mais perto possessivamente, e Ângelo entendeu o mal de ser um ômega nessa hora, o quão perigoso seria deixar-se levar e ser influenciado. Como um beta, ele estava no máximo queimando de vergonha e uma leve, levíssima excitação, mas ainda permanecia são mesmo com a porrada de feromônios de acasalamento o atingindo.
— Você disse… — ele tentou dizer — …que seu cio não costuma ser pacífico?
— Pois é. — O ar quente de sua respiração causou ainda mais arrepios em sua pele. — Eu não costumo ser eu, e não gosto da maneira que o cio influencia os outros ao redor. É um saco lidar com tudo isso, não gosto quando perco o controle.
— Então eu vou ficar com você, se quiser. Eu posso ajudar, não vou ser influenciado.
Ela se afastou com aquela malícia no olhar, deu um soquinho no seu peitoral e disse:
— Pervertido.
Ângelo fez uma careta indignada para ela.
— Você me dando algumas roupas já está de bom tamanho.
Sendo assim, Ângelo prontamente voltou ao seu apartamento para pegar suas roupas, supôs que as que ele usou mais recentemente eram melhores por ter seu aroma agarrado nelas, sorte a dele que ele sempre usava a mesma roupa umas três vezes antes de pôr para lavar, assim economizava no sabão e não desgatavam tão fácil. No caminho, encontrou o pacote que planejava entregar mais cedo assentado na sua cômoda, o último presente de cortejo. Ele tornou ao apartamento com ambos.
— Eu quase ia esquecendo. — E entregou o pacote a ela. — É meu último presente de cortejo para você, iria entregar antes, mas houve percalços…
Mikhal acenou abrindo a tampa e vendo um papel com texto. Imediatamente ela o reconheceu ficando baqueada. Foi através daquilo que tudo começou.
— Eu gostaria de ler para você.
E gentilmente pegou o papel das mãos dela, começando a recitar o poema Refúgio, colocou em cada palavra o amor que sentia e o carinho por Mikhal, sua alfa, a companheira que ele um dia desistiu de ter.
E ao final, os olhos dela estavam novamente marejados e Ângelo sustentava um largo sorriso.
— Antes, eu escrevi por escrever. Mas agora, não tem outro sentido se eu não estiver falando de você, Mikhal. Você é meu refúgio.
— Eu também te amo, seu bobão.
E o puxão que ela deu fez seus lábios se encontrarem desesperadamente num beijo de saudade ao mesmo tempo que inédito, não tendo pressa em por fim terem tal contato tão desejado e carinhoso, experimentando pela primeira vez a extensão de sua intimidade um para com o outro, agora confirmado com um beijo cheio de amor e cumplicidade.
FIM.
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