Recusar um convite para interpretar Heloísa Sampaio de novo me parecia impossível. O que eu poderia dizer? Como negar algo assim? Pois bem... Não neguei. E nesse momento penso na possibilidade de jogar tudo pro alto, voltar atrás e dizer que talvez eu tenha pensado melhor, em sã consciência, e só talvez tenha voltado atrás nessa ideia insana.
Nesse momento que estou prestes a entrar para a primeira mesa de leitura do primeiro capítulo da nova novela das nove, “Travessia”. Eu poderia dizer que foi um momento de insanidade, afinal de contas, nada disso faz sentido. Sim, é inegável o quanto a personagem me trouxe uma felicidade absurda. Isso não é questionável. Ao mesmo tempo, penso, “então o que me incomoda tanto?”
Eu poderia dizer um nome, mas a imagem de Alexandre automaticamente toma os meus pensamentos. É inevitável. O calor que percorre meu corpo não tem absolutamente relação nenhuma com o sol insuportável que faz no Projac às nove da manhã. Tem a ver conosco. E é isso que me incomoda: encarar a realidade.
Faço o mesmo caminho que fazia há dez anos atrás, quando filmávamos “Salve Jorge”. É como se um filme passasse pela minha cabeça. As pessoas não são as mesmas, exceto por raras exceções, mas todas aparentam ser acolhedoras. Esse é o tipo de novela que te dá a oportunidade de construir vínculos que permanecem. Penso se com Travessia haveria a possibilidade de vivenciar o mesmo. Talvez.
Chego à sala principal para a mesa de leitura do capítulo de estreia, que já estava quase cheia. Grazi e Glória me recebem.
- Giovanna!
Grazi me vê, sorri, como sempre, e me envolve em um abraço carinhoso.
- Achei que você e o Alexandre viriam juntos.
Ela sorri. E eu sinto cada célula do meu corpo congelar em um segundo. Em momentos como esse, eu esqueço que a maioria das pessoas acham que eu e Alexandre vivemos grudados. Não é verdade, e também não é uma escolha dele. A realidade pode ser dolorosa demais quando não se há a opção de fazer o que se quer fazer, então, muitas vezes prefiro ignorá-la. E é essa a razão pela qual, querida Grazi, que nós não chegamos juntos. O Alexandre e eu somos uma realidade que dói, porque, nesse momento, os sonhos estão distantes demais.
Eu dou risada, percebo que demorei para responder. Para disfarçar, pergunto sobre a novela. Conversamos sobre sua pequena participação até que eu consiga me desvencilhar e ir para o meu lugar.
Penso novamente o quanto a decisão de estar aqui foi um erro. Sinto que Glória percebeu meu desconforto. Sinto que Grazi estranhou minha reação. Sinto que eu não estou pronta. Sinto que, apesar de sentir saudades de Helô, ela me lembra de sonhos que precisei deixar para traz.
Luto contra a vontade de ir embora e me sento ao lado de Humberto. Ele conversa com Chay, então tenho tempo para organizar os meus pensamentos. A mesa está quase completa, mas falta alguém. Sempre falta alguém.
“Sempre falta você”, penso.
Nos últimos anos, Alexandre e eu mantivemos uma relação cordial e eu diria que até amigável. É inevitável não termos uma certa intimidade, as brincadeiras acontecem, mas nós sabemos que não existe espaço pra nós na vida um do outro. Não da que nós gostariamos. E é por isso que a realidade machuca. Os últimos anos pareceram tão distantes diante da intensidade que vivenciamos em 2012. Quase não consigo reconhecer o que restou de nós.
- Finalmente! Podemos começar!
Glória diz, ao ver Alexandre entrando pela porta, e se direciona à ele para recepcioná-lo.
E, novamente, todas as células do meu corpo reagem a presença dele. É quase insuportável. É tortura. Meu corpo arde, mais uma vez, como todas as outras vezes. E sabe o que é mais irônico? Ele sabe. Ele sabe o que provoca em mim e se delicia com isso.
Ele usa uma calça social preta combinada com uma camisa azul petróleo e um blazer também preto. Para variar, ele chega com os óculos pretos que já são de praxe.
É como se um caminhão desenfreado atravessasse o meu peito.
Alexandre se senta. Ele está do outro lado da mesa, de frente pra mim. É um frenesi. Eu não gosto de encarar a realidade, mas gostaria de viver nessa ilusão pelo máximo de tempo que meu corpo pudesse aguentar. Ele abaixa os óculos. Os olhos dele me encontram: vorazes, vivos, queimando, imagino que tanto quanto os meus. Existe uma infinidade de segundos nesse momento. Não enxergo o tempo passar. Ele continua me olhando e eu perco o fôlego. Penso no que aquela voz grave diria se estivesse perto agora.
“Eu te encontraria em qualquer lugar...”, pensei.
- Giovanna, vamos pra cena da delegacia, por gentileza?! - Glória estrala os dedos ao falar, como é de praxe. - Página três, você e sua assistente estão procurando pelo Stenio, ok?!
Ouço uma risada rouca do outro lado da sala, seguida de: “Isso é típico.”
É ele. Alexandre diz, ri e faz rir o resto das pessoas, como sempre. Ele me olha, pisca. Esse homem é o meu inferno. Eu volto para o roteiro, desorganizada, tal qual a minha mente nesse momento.
O encontro de dois olhares e uma piada me tirou dos eixos na manhã de hoje. Não sei como conseguiria continuar gravando essa novela por meses. Me pergunto novamente: por que? Pra que aceitar?
A mesa de leitura termina. Em silêncio, agradeço aos céus por não termos tido nenhuma cena juntos. Ainda. Penso se ele sentiu o mesmo que eu e me sinto uma tola em pensar na possibilidade.
“A vida dele é outra agora”, tento me convencer.
A sessão é encerrada com uma grande salva de palmas, seguida de abraços entre o elenco e a equipe de escritores. Penso logo na melhor maneira de sair dali, agradecendo por esse ser o único compromisso do dia. Ao mesmo tempo, me sinto grata. Lembro de tudo que a “Donelô” construiu no passado e do quanto as pessoas esperaram por essa volta. Sinto um alívio instantâneo, mas a vontade de ir embora permanece.
Me dirijo até a porta e me lembro de um atalho para sair mais rápido dessas salas quase que escondidas do Projac, então, caminho. Ainda é insuportável o que esse homem causa em mim, e sinto-o em todo o meu corpo, como se as memórias estivessem tão vivas quanto nós.
Hoje é um daqueles dias em que o Projac está quase vazio, a grande maioria dos núcleos das novelas estão fazendo filmagens externas, mas, nesse momento, os corredores centrais estão tomados pela produção de “Travessia”, o elenco e a equipe técnica. Agradeço aos céus por ter lembrado deste outro caminho.
Mas as vezes as escolhas que fazemos nos levam à encontros predestinados. É como se estivesse escrito. Sinto que nesse labirinto todas as saídas me levam até você.
E novamente, meu corpo estremece. Sinto, de novo, o toque capaz de ativar todas as sensações em mim: raiva, falta, saudade, afeto, paixão e...
Sinto uma mão me tocar. Eu conheceria essa voz grave em qualquer lugar. Ele toca meu braço, como se me pedisse para parar:
- Giovanna?
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