*POV NERO*
Fui à um show do Papas da Língua quando morava no sul, ali por volta de 2011. Os caras faziam um som bom demais! Quando eles tocaram “Eu sei”, os solteiros (igual eu naquela época) queriam sair correndo. É simplesmente uma das músicas mais bonitas que já ouvi.
As vezes eu rabiscava algumas das composições mais brilhantes que eu conhecia no meu caderno surrado, como inspiração. Hoje, me lembrei desse show e escrevi alguns dos versos.
“Não sei porque você disse adeus
Guardei o beijo que você me deu
Vou pedir aos céus você aqui comigo”
Tem que ser inteligente pra caralho - ou estar muito na merda - pra compor algo assim, pensei. Nas minhas composições era sempre a segunda opção.
*POV NARRADOR*
“Podemos conversar a caminho do Projac? Por favor. Me desculpa. Te amo.”
Era a mensagem que Giovanna recebeu de Leonardo assim que acordou. Imaginou que provavelmente ele estivesse no primeiro andar da casa, a esperando. E mais do que isso, imaginou que ele já estava com o discurso preparado sobre a importância de ficarem juntos. Não era sobre amor, era sobre conveniência, imagem e comodismo. Ela sabia, ele sabia, mas ambos fingiam bem.
Ela se levantou e sentiu a cabeça pesar. Tomou seu banho, colocou o primeiro macacão preto que achou e amarrou um cabelo num coque, e desceu as escadas, após alcançar sua bolsa e seu óculos de sol, que ajudaria a disfarçar a cara inchada.
Leonardo estava na mesa, e antes que ele falasse, ela disse.
— Preciso chegar no Projac mais cedo. Conversamos a noite, Leo.
Quando seguia em direção a porta, ele a interrompeu.
— Combinou com o seu “parceiro” - ele faz os sinais de aspas com as mãos - de chegarem mais cedo? Você chega às duas da manhã, sai às sete, e o otário que fica te esperando não merece nem uma explicação?
Ele se levanta da mesa, enquanto ela procura as chaves do carro na bolsa. Cansada de brigar, ela cede. Giovanna tinha aprendido à ceder nos últimos anos, o que não parecia habitual para uma mulher como ela.
— Tá bom, Leo. Vamos. Conversamos no caminho.
Ela esperou que ele se organizasse e ambos seguiram em direção aos estúdios Globo juntos. No caminho, Leonardo reclama das noturnas tardias e da presença de Alexandre. Ela rebate dizendo que não havia sido uma escolha dela, que Nero também é parte da trama e mente à si mesma mais uma vez dizendo que quando a novela terminar, tudo voltará à ser como era, mesmo que ambos saibam que não existe a possibilidade de se voltar para um casamento bom quando nunca se teve um.
— Por favor, chega. Minha cabeça tá explodindo, Leo. Preciso me concentrar. Não aguento mais essa conversa.
Ela diz, enquanto ele estaciona o carro na frente dos estúdios de Travessia.
— Tudo bem.
Ele rebate, seco, enquanto ela pega suas coisas e se prepara para descer do carro, e se surpreende quando ele também desce e vai ao encontro dela.
— Espera!
Ela para, se virando para ele.
*POV GIOVANNA*
Quando eu menos espero, Leonardo dá dois passos em minha direção e me beija. Me beija como há tempos não beijava. Um beijo quase cinematográfico, acariciando meu rosto e unindo nossos corpos. Sinto meu corpo congelar quando penso na possibilidade de alguém assistir essa cena, de Alexandre assistir à essa cena.
— Te vejo mais tarde?
Tô chocada demais pra responder, mas confirmo com a cabeça e sigo em direção à recepção.
E é nesse momento em que um chão se abre debaixo dos meus pés. Quando me viro, lá está Alexandre. Com uma camisa branca, uma calça jeans escura e os óculos pretos inconfundíveis, atravessando a recepção e passando o cartão magnético para entrar aos estúdios. Lá estava ele, assistindo à cena.
Então, quando Leonardo arranca o carro, eu acelero os passos para tentar alcançá-lo.
— Nero, espera!
Ele continua andando como se não me ouvisse.
— Alexandre!
Eu grito, e ele se vira para mim, levantando os óculos até os cabelos grisalhos.
— O que você quer, Giovanna?
Ele soava distante e frio.
— Preciso te explicar. Vamos convers… - eu toco seu braço.
— Você não me deve explicações. - ele levanta a mão entre nós, me pedindo para parar. — Eu não sou nada teu.
As palavras dele me atingiam em cheio.
— Nero, por favor.
Eu toco o braço dele novamente.
— O que você quer, Giovanna? Quer se explicar pela cena ridícula que eu vi ali fora?
Ele ri, irônico.
— Não é nada que eu já não desconfiasse, fica tranquila!
E agora ele aumenta o tom de voz, rindo e usando de toda a ironia que poderia.
— Mais uma vez você me fazendo de otário! É isso que eu sou: um otário do caralho!
Ele gesticulava com as mãos, enquanto eu pedia pra que ele se acalmasse e que conversássemos no meu camarim.
— Não se preocupa! Você tá com medo das pessoas ouvirem e desconfiarem de algo? Fica tranquila.
Ele chega perto do meu rosto e posso ver a dor se misturar à raiva em seus olhos.
— Ninguém é idiota o suficiente igual eu pra acreditar que a grandiosíssima Giovanna Antonelli estaria com alguém como o tal do Alexandre Nero, né?
Eu seguro seu pescoço para mantê-lo perto.
— Por favor, me escuta, Nero.
Ele tira minhas mãos de seu pescoço, e me olha novamente.
— Eu nunca errei em ter tido medo arriscar meu casamento por você.
Ele sabia o quanto essas palavras poderiam me ferir, e o fez, principalmente porque também estava ferido. Meus olhos vermelhos dão espaço às lágrimas que caem, enquanto ele se afasta novamente. Então, eu corro para alcançá-lo, enquanto ele tenta se desvencilhar, mas paralisa quando me ouve dizer…
— Eu ouvi.
*POV NERO*
Sinto meu corpo estremecer. A raiva e a dor que eu sinto agora parecem uma piada! Uma piada! Eu sou o otário que ficou com essa mulher ontem, enquanto ela dá show cinematográfico na frente do projac. Otário, otário, otário!
O medo sempre existiu, mas atravessei cada um deles para que existisse a possibilidade de estarmos juntos. Hoje vejo que certos medos não são só defesas, são autoproteção.
— Eu ouvi tudo que tu disse ontem. A primeira mesa de leitura, as tuas inseguranças, tudo que tu sente em relação à nós. Eu ouvi. Eu ouvi tudo.
Sinto meu corpo estremecer. Ela toca minhas costas, me pedindo para olhá-la.
— Eu ouvi tudo, Nero.
Não tenho coragem de olhá-la. Sinto um turbilhão de coisas. É difícil dizer.
Ela toca meu rosto, acariciando com as mãos, até chegar ao meu queixo, fazendo nossos olhares se encontrarem.
Eu volto à ser um garoto, é isso que acontece. Quando Giovanna me toca, volto à ser um garoto. Ela me joga pra esse deserto preenchido por uma solidão insuportável e depois me busca, como se não fosse doloroso o suficiente a esperança de tê-la para perdê-la novamente em seguida.
“Você sempre escapa entre os meus dedos”, penso, mas não digo.
Uma vez uma garota me beijou na escola, eu tinha por volta de sete anos. Eu era um piá bonitinho até, e ela me deu um beijinho. Disse: “Ale, agora somos namorados” e eu acreditei. Voltei pra casa, arranquei todas as flores que achei no quintal pra levar pra ela no dia seguinte. Cheguei na escola de cabelo arrumadinho, parecendo filho de papai mesmo, com o buquê na mão, e procurei ela pela escola toda. Resolvi falar com a professora, e acho que minhas decepções amorosas começaram ali, naquele momento, quando ela disse: “Julia se mudou, Alexandre! Foi o último dia dela ontem.” E as flores caíram ao chão, como se nem nunca tivessem desabrochado. Tristes e desesperançosas.
“Vou pedir aos céus
Você aqui comigo
Vou jogar no mar
Flores pra te encontrar”
E é por isso que quando Giovanna pousa as mãos nos meus ombros e se inclina em direção aos meus lábios, me beijando timidamente, como se fosse a primeira vez, eu sinto duas coisas: paixão e medo.
Como dar lugar ao amor quando ele pode ser arrancado de nós antes mesmo de florescer?
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