A vida tem a capacidade de nos fazer encontrar almas gêmeas, seres que mesmo com criações diferentes, hábitos, conhecimentos, têm conosco uma ligação ímpar, uma conectividade que nem mesmo os astros são capazes de explicar, magia essa que tem total sentido quando as almas se tocam e o amor passa a acontecer. - Autor desconhecido
"Oi, eu sou a Paula." Paula se apresenta toda animada e extrovertida, completamente oposto de seu pai.
"Oi Paula, prazer. Eu sou a Raquel… amiga do seu pai." A diretora dá um rápido aperto de mão com a Paula, querendo dar um abraço nela mas insegura se não seria um pouco demais.
"Sério?" Paula pergunta com os olhos arregalados e olha para o seu pai, que estava bem atrás dela. "Ela é sua amiga?"
"É sim, filha." Sérgio responde, indeciso de como deve seguir nesta situação.
"Que legal, eu nunca conheci uma amiga do papai antes! Aqui nesta cidade eu só tenho o papai e o tio Andrés." Paula diz animada. "Você quer entrar? Acabamos de jantar, mas se você tiver com fome, sobrou comida." Paula convida.
"É… você quer entrar?" Sérgio pergunta, claramente tenso, com vontade de que ela realmente entrasse porém com medo de como Raquel iria reagir com tudo isso.
Como ele simplesmente esqueceu de mencionar que tem uma filha?!
"Ok.." Raquel aceita, sentindo as mãos pequenas e delicadas da Paula se fecharem contra a mão dela.
A criança puxa ela pra dentro da casa, e faz um rápido tour pelo local. Mostra a ampla cozinha com um balcão de granito dividindo a sala da cozinha, com três cadeiras altas envolta. Na sala tinha um sofá bege e uma poltrona menor do lado.
"Eu trouxe chocolate, se vocês quiserem." Raquel oferece.
"Eu quero!" Paula responde animada. "Mas vou pegar meus ursos para eles ficarem aqui com a gente."
"Ok." Raquel acaricia o rosto da pequena, e ela solta sua mão pela primeira vez desde que entrou na casa.
A diretora se encontra apaixonada pela criança. Ela é tão cheia de vida, tão alegre, tão fofa e educada. Ela irradia luz.
Raquel puxa Sérgio para um canto, aproveitando a distração repentina da Paula.
"Me responde rapidamente, você é divorciado?" ela pergunta baixinho.
"Não, viúvo".
Ela consegue ver no olhar dele que ele está angustiado pra explicar toda essa situação, mas agora não dá, não é o momento certo com a criança estando tão perto deles. Paula volta, segurando dois bichinhos de pelúcia em suas mãos. Um azul, o outro rosa.
"Pai, você não vai pegar o casaco da Raquel?" a pequena pergunta.
"É verdade, mi amor." Sérgio diz sem jeito, arrumando a haste do óculos.
O chefe de cozinha tira o casaco preto da diretora, e pendura perto da entrada. Raquel estremece ao sentir os dedos grossos de Sérgio em seu ombro.
"Quem são esses bichinhos, Paula?" Raquel pergunta carinhosamente, querendo conversar mais com a criança.
"Esses ursinhos foi o meu amigo Roland que me deu." A pequena explica, e a forma com que ela fala sobre o garoto mostra o quanto ela se importa com ele. "Ele é muito especial. Esse aqui azul" ela diz apontando para o ursinho azul. "Se chama Oliver. É o irmãozinho dele que tá no céu. E esse rosa se chama Hayley, é a irmãzinha dele. Eu e o papai estávamos relembrando as férias em que conhecemos eles, e deu saudades. Por isso peguei os ursinhos."
"Que lindo! É uma forma de você sempre ter o seu amigo junto com você." Raquel pega um bichinho de pelúcia e faz carinho na orelha dele.
"Sim, sempre que eu vejo esses bichinhos eu lembro dele."
"É muito bonita a relação que a Paula tem com o Roland" Sérgio comenta, olhando para a filha com um sorriso típico de pai babão. "Conhecemos o garoto e a família dele em uma viagem que fizemos para a Tailândia. No final da viagem Roland fez questão de comprar esses bichinhos para a Paula."
A forma como Sérgio fala da Paula, olhando com tanto carinho para ela, mexe com o emocional da Raquel. Ver esse lado pai dele, amoroso e protetor, amolece e esquenta o seu coração.
Eles comem os bombons de chocolate recheado que a Raquel trouxe, e a Paula fica curiosa quando descobre que a Raquel é uma diretora de filmes.
"E como foi que você descobriu que você queria ser diretora, Raquel?" A criança pergunta, ansiosa para saber mais.
"As vezes eu vejo uma história que é tão bonita e importante, que eu queria que todo mundo conseguisse ver essa história da forma que eu consigo ver." Raquel reflete, tentando explicar de uma forma que a criança possa entender.
"Eu tenho uma história que eu queria muito que as pessoas pudessem ver!" Paula levanta animada. "Você pode filmar uma historinha com os meus ursos agora, por favor?" A criança pede com uma cara pidona.
"Paula, agora já está tarde, você tem que ir dormir." Sérgio contesta.
"Pai, mas vai ser rapidinho! Podemos fazer agora, Raquel?"
A mulher aceita e Paula sai animada, puxando o pai e a Raquel em direção ao quarto dela.
Ao entrar no quarto, a diretora fica encantada com o ambiente. Tem uma cama estilo princesa com cortinas envolta, e uma cabana ao lado da cama, grande o suficiente para caber duas pessoas. Mas o que mais impressiona a Raquel, é a luz do local. Um abajur em formato de lua e estrelas gira, trazendo vida e iluminando o quarto. A luz amarela reflete nas paredes, fazendo com que apareça pequenos formatos de lua e estrela na parede branca.
"O irmão do Roland, Henry, é viciado em constelações. Ele que viu esse abajur e quis me dar de presente." Paula conta.
"É lindo, Paula!" Raquel elogia, seus olhos passando por cada canto do quarto. "Não tem como nada do que eu filmar aqui sair feio."
"Vamos gravar na cabana?" Paula sugere.
Raquel concorda, e a criança posiciona os dois bichinhos de pelúcia dentro da cabana. A diretora tira o celular do bolso, e liga a câmera.
"Você já sabe que história você vai querer contar?" Raquel pergunta.
"Pai, você pode pegar o ursinho azul e a gente conta a história do que Rei que perdeu a sua rainha, que tal?"
"Pode ser, filha. Mas vamos fazer de uma forma resumida para o vídeo não ficar muito grande, ok?"
Paula assente e pega uma almofada e traz pra dentro da cabana, colocando o ursinho rosa deitado nele, como se estivesse dormindo.
"Prontos?" A diretora pergunta e eles assentem. "Estou gravando."
"Ah não Raquel, aí é muito sem graça" a menina reclama. "Você tem que falar ação e aquela coisa toda que você provavelmente fala quando está dirigindo uma cena de verdade".
A diretora ri, notando que a Paula tem o mesmo dom do pai: o de fazer ela rir com facilidade. É engraçado como às vezes a gente não valoriza isso o suficiente, as coisas simples da vida, como dar uma risada. Sorrir e rir pode ser a melhor forma de espantar o mau humor e transformar um dia ruim em mais agradável.
Existem várias razões que podem fazer com que um sorriso desabroche em nossos lábios, ele pode estreitar laços sociais, já que é um sinal espontâneo de que estamos nos sentindo bem com a presença de uma determinada pessoa, ou pode surgir em resposta a uma boa piada.
"Ok, vamos lá." Raquel se posiciona mais uma vez, quando para de rir. "Ação."
"Era uma vez um rei, que tinha acabado de perder sua amada rainha para uma doença chamada câncer." Sérgio narra a história com uma voz suave, inclinando a cabeça do bichinho para baixo como se ele estivesse cabisbaixo. "A rainha tinha deixado para trás um homem que iria até a lua e de volta por ela, e uma princesa linda de apenas três anos. O rei tentou explicar de todas as formas para a filha a ausência da mãe, e conforme ela foi crescendo, ela foi entendendo melhor."
Sérgio levanta a cabeça do bichinho, indicando que a fase triste havia passado e ele estava conseguindo seguir em frente da melhor forma que podia.
"O rei viu sua flor em forma de filha desabrochar em uma incrível e inteligente menina, muito perspicaz pela sua pouca idade." Sérgio continua. "O tempo foi passando, e o rei foi aprendendo que era possível e importante não ficar preso ao passado. Sua falecida esposa não iria querer que ele ficasse remoendo sua morte e continuasse para sempre sozinho. Ele começou a se abrir para a possibilidade de se apaixonar de novo, até que finalmente uma bela dama fisgou seu coração."
Neste momento, Sérgio vira sua cara em direção a Raquel e seus olhares se encontram. O olhar dele diz tanto mesmo sem palavras, que deixa Raquel sem fôlego. Suas mãos começam a tremer, e ela se esforça para manter o celular estável.
O chefe de cozinha faz o bichinho azul, o Rei, caminhar até onde o outro bichinho rosa, a princesa, está deitada.
"Boa noite, minha filha." Sérgio diz, esticando o bichinho azul para beijar a testa do bichinho rosa.
"Boa noite, papai." Paula deseja.
"E… corta." Raquel para a filmagem. "Gente, isso foi tão sensacional! Vocês já tinham treinado antes?"
"Não… mas quando eu era pequena papai sempre me contava essa história antes de dormir. Quando eu cresci, ele começou a ler livros para mim, mas às vezes eu peço para ele contar essa história de novo." Paula revela. "Esse final é novo né, papai? Não me lembro disso, do rei se apaixonando de novo. Eu gostei desse final."
Sérgio coça a cabeça e arruma o óculos, sentindo suas bochechas esquentarem.
Raquel sorri, imaginando Sérgio toda noite contando histórias de dormir para a filha. Ela se surpreende ao ver que Sérgio acrescentou esse final, e se sente tocada ao perceber que isso muito provavelmente tinha a ver com ela.
Ela estava ajudando ele a seguir em frente, a perceber que poderia amar de novo. Será que essa foi uma forma dele subitamente dizer que estava apaixonado por ela? Raquel olha para ele, e o encontra olhando para ela também. Raquel se segura para não rir ao ver as bochechas dele toda vermelha, achando fofo a timidez dele.
"Sim, essa parte é nova. Que bom que gostou." Sérgio diz. "Bom filha, já está na hora de dormir." Sérgio anuncia se levantando do chão. "Vai escovar seus dentes e colocar o seu pijama enquanto a gente te espera aqui."
Paula vai até o banheiro, e Sérgio se vira para Raquel e segura as mãos dela.
"Podemos conversar depois que eu colocar ela para dormir?" ele pergunta.
No fundo da sua mente, ela sente que tinha um motivo para ficar brava com ele, mas diante da cena que presenciou ela não consegue mais lembrar. A peça improvisada deu um pequeno vislumbre do passado dele.
"Podemos sim." ela aceita, apertando levemente suas mãos contra as dele. "Sua filha é adorável, Sérgio."
"Ela é." ele confirma, com um brilho no olhar demonstrando o pai babão que ela está começando a ter certeza que ele é. "Eu tive sorte de ter uma criança tão incrível."
Com um último aperto nas mãos dela, ele desfaz a ligação e começa a arrumar o quarto. Coloca as almofadas e os bichinhos de volta no lugar e prepara a cama para a filha dormir. Quando está terminando de ajeitar o travesseiro, Paula volta do banheiro já vestida em seu pijama listrado de botão.
"Dá tchau para a Raquel, Paula."
"Tchau Raquel, boa noite. Volte mais vezes!" Paula diz, se inclinando pra abraçar a diretora.
"Boa noite, Paula. Pode deixar que eu volto sim. Adorei te conhecer." a diretora retorna o abraço, fechando seus braços contra o corpo da criança.
"Eu também adorei te conhecer. Você é legal." Paula confessa.
Raquel adora como Paula fala simplesmente o que vem a cabeça, o que ela está sentindo, a verdade nua e crua.
"Obrigada." Raquel ri e dá um beijo na bochecha da menina.
"Vem filha, vamos pra cama." Sérgio chama.
Raquel acena um tchau e sai do quarto, encostando a porta para dar um pouco de privacidade a eles.
"Boa noite, filha." ela ouve Sérgio dizendo.
"Boa noite papai."
Raquel lembra da peça, e se ela ainda tinha alguma dúvida de que o Sérgio estava contando sua própria história, agora ela tem certeza.
Poucos minutos depois Sérgio deixa o quarto, e eles vão até a cozinha. O chefe de cozinha pega duas taças, e servem eles do vinho tinto que a Raquel trouxe.
"Raquel, me desculpe não ter dito nada sobre a Paula." Sérgio pede, após eles sentarem na cadeira da cozinha.
Ele dá um gole em seu vinho, e Raquel faz o mesmo.
"Eu não estou brava, mas eu só… não entendo."
"A nossa vida não foi fácil. A mãe dela, Marta, morreu cedo, com uma doença horrível, que vai matando o paciente aos poucos." ele começa a contar, e Raquel nota que ele está sentindo uma necessidade de se explicar, de botar pra fora, e ela não interrompe. "Ela descobriu a doença quando Paula tinha acabado de fazer dois anos de idade. Foi um choque. Perder uma pessoa de forma súbita, dói, mas perder uma pessoa aos poucos, ver a vida se esvaindo dos olhos e do corpo dela, dói ainda mais."
Sérgio para de falar e Raquel vê uma lágrima escorrendo pelo rosto dele por baixo dos óculos e ela inclina seus braços e limpa as lágrimas do rosto dele com a ponta do dedo. Ele inclina o rosto na direção da mão dela e planta um beijo ali. A diretora junta suas mãos com as dele por cima da mesa e aperta levemente, como uma forma de dizer "Estou aqui. Estou contigo."
Só então, Sérgio retorna a falar.
"Marta era tão ativa, gostava de fazer tudo, era independente. E no final, essa doença desgraçada fez ela ficar dependendo de todo mundo para as coisas mais simples que você possa imaginar, desde comer até ir ao banheiro. E foi difícil a fase do luto, foi difícil seguir em frente, mas aos poucos estou conseguindo. Eu morava no País Basco com Marta e a Paula, mas depois do que aconteceu, eu não conseguia mais ficar lá. Tudo me lembrava ela. Então eu aproveitei que meu irmão já estava morando aqui na Argentina, e decidi me mudar pra cá também. Eu só não tinha te apresentado a Paula antes, primeiro porque você vai embora, e eu não queria que ela se apegasse tanto a você e depois acabasse sofrendo por isso. Segundo porque eu estava esperando as coisas ficarem mais sérias entre nós para eu apresentar vocês. Mas agora eu vejo que isso já não faz tanta diferença."
"Não faz?" Raquel pergunta, tentando entender o que mudou.
"Não. Porque apesar de nós só nos conhecermos a três dias, eu já estou irrevogavelmente apaixonado por você." ele se declara, encarando os olhos da mulher. "E eu sei que apesar da distância, nós podemos fazer a nossa relação funcionar."
"Eu também estou apaixonada por você." As palavras saem fácil da boca de Raquel, como se essa verdade viesse do fundo do seu coração. Ela se levanta e senta na perna dele, passando o braço pelo pescoço dele e beijando a boca dele.
É um beijo lento, calmo, e eles saboreiam o momento, esse novo sentimento que se encontra dentro do peito deles. Uma das mãos dele vão em direção ao cabelo dela, e a outra estaciona em sua cintura. Quando a falta de ar se faz presente eles se afastam, encostando uma testa na outra, ainda de olhos fechados.
"Eu até coloquei uma lingerie sexy para vir aqui, sabia? Achei que ia me dar bem hoje" ela ri.
"Acredito que você ainda pode se dar bem hoje, senhorita Murillo. Estou bem inclinado a descobrir que lingeries são essas" ele diz em um tom sexy, mordendo o lábio dela.
"Sérgio" ela suspira, tentando recobrar o controle. "Eu acho que se nós vamos realmente fazer isso funcionar, temos que tentar ir um pouco mais devagar. Acho melhor eu ir pra casa hoje."
"Tudo bem." ele aceita, claramente frustrado mas acata sua decisão.
"Eu sinto muito por tudo o que você passou, eu imagino que não deve ter sido nada fácil. Mas me sinto grata por você dividir isso comigo." Raquel diz, encarando-o apaixonadamente enquanto passa suas mãos pelo cabelo dele.
Sérgio sorri, e beija os lábios dela novamente. Entre beijos e mais vinhos, eles terminam a taça que estavam bebendo e ele leva ela até a porta.
"Me avise quando chegar lá?" ele pergunta.
"Aviso sim."
Ela abraça ele, fechando seus braços ao redor do corpo dele. Ainda com os braços ao redor um do outro, eles se inclinam para trás de forma a olharem um para o outro.
"Se eu soubesse que você era da Espanha não teria me mudado para recomeçar minha vida, tinha investido em você. Assim a distância não seria um obstáculo para nos separar." ele confessa, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha dela.
Ela olha para baixo, sorrindo envergonhada.
"É como dizem, as coisas acontecem como e quando tem que acontecer. Não podemos mudar isso."
"É verdade." ele concorda.
Ele dá mais um beijo nela e abre a porta, e ela anda até o carro.
Raquel entra no carro e acena um tchau para Sérgio, que retorna o movimento. Ela dirige até a casa do Andrés, e estranha ao ver um carro estacionado ali na frente.
Por um momento, ela chega a pensar que Andrés mudou de ideia e resolveu voltar mais cedo do que o planejado. Mas ao chegar mais perto, ela vê que não se trata do Andrés. Infelizmente, ela conhece muito bem a pessoa que está parada ao lado do carro.
Alberto Vicuña.
Uma irritação começa se apossar sobre ela apenas ao olhar para a cara dele. Sua noite estava tão maravilhosa, ele tinha que aparecer e estragar com tudo?! Ela sai do carro com os braços cruzados embaixo do peito e anda até ele.
"O que você está fazendo aqui, Alberto?" ela pergunta, nem se dando ao trabalho de comprimenta-lo. Se sua mãe a visse nesse momento ela definitivamente a reprimenderia pelos maus modos, mas tem algumas pessoas que não merecem a nossa educação.
"Eu atravesso o oceano por sua causa, e você nem me dá um Oi?" ele coloca a mão no peito, fingindo um drama.
"Corta essa, Alberto. Eu deixei bem claro que as coisas entre nós estavam acabadas. Eu não quero ter mais nada a ver com você. Aliás, quem te deu esse endereço?"
"A Tokio, aquela mulher de cabelos curtos que trabalha na sua agência. Foi só jogar um pouco de charme pra ela que ela me passou as informações que eu queria saber." ele diz orgulhosamente, com um sorriso cínico no rosto.
Raquel sente nojo. Nojo dele, nojo de si mesma, nojo por ter passado tanto tempo ao lado dele sem conseguir ver como ele realmente era.
"Bom, uma pena que você veio aqui a toa, querido." ela diz, carregando um pouco de deboche no final.
"Raquel, por favor, me dá mais uma chance." ele pede, se aproximando dela. Ela instintivamente dá um passo para trás. "Eu sei que fui fraco, eu sei que eu errei. Mas eu posso melhorar. Eu posso ser o homem que você merece. Eu não quero te perder, você significa muito para mim. Lembra como éramos felizes no começo?"
"Eu significo tanto pra você que você não pensou duas vezes antes de me trair." ela comenta com ironia, levantando uma das sobrancelhas. "Você lembra como já no início você tentou me oprimir, tentando ditar o que eu deveria comer? Eu não sei como eu pude me apaixonar por você, você nunca me tratou direito..."
"Querida.."
"Cala a boca! Eu tô falando!" ela berra, enfurecida. "Você partiu meu coração. Me diminuía. E você agia como se fosse de algum jeito a minha culpa, meu desentendimento e eu estava tão apaixonada por você que eu nunca ficaria brava com você, então eu só me punia. Por anos! Mas você tem coragem de vir aqui nas minhas amáveis férias de natal, e me dizer que você não quer me perder, quando você nunca me valorizou e nunca fez o mínimo para merecer o meu amor…"
"Eu posso melhorar, Raquel!" ele repete.
"Não, eu não caio mais na sua lábia." ela diz, resignada. "Eu te admirava tanto, e fiquei tão feliz por você dar atenção a mim, que acabei fechando meus olhos para o quão tóxico você é. Para o quanto você me destruía de pouquinho em pouquinho a cada dia. Mas agora meus olhos estão bem abertos, e não irei mais fechá-los."
"Essa é a sua palavra final?"
"Sim." ela confirma. "Se eu fosse você, procuraria logo um hotel para ficar esta noite, porque aqui você não irá ficar. E já que estou dando conselhos, aqui vai mais um: analise as suas ações e trabalhe em você mesmo antes de se envolver com outra pessoa."
Raquel vira as costas para ele e entra na casa, sem esperar qualquer tipo de resposta. Ao fechar a porta, ela tenta assimilar tudo o que aconteceu.
Por mais que ela ame o Sérgio, ela tinha que confessar que estava com um pouco de medo de como iria reagir ao ver Alberto de novo. Se ele ainda iria mexer com ela. E graças a estupidez de Tokio, ela teve resposta para essas perguntas mais cedo do que ela imaginava.
Esse breve encontro serviu para mostrar para ela que ela está completamente livre da radiação chamada Alberto Vicuña. Ela não ficou feliz por vê-lo. Ela não ficou feliz pela atitude dele de ir atrás dela. Se sentiu entediada e ansiosa ao estar com ele, e ela definitivamente não o acha mais atraente em nenhum sentido.
O desamor dói, dói na alma e no coração. Todas as nossas ilusões se acabam como um vaso que cai no chão e se quebra em mil pedaços… ou como o mesmo vaso que já caiu muitas vezes e sempre pode ser consertado, mas agora não é mais possível salvar. O casal não está mais apaixonado.
E nesse caso, ela se sente grata por isso. Se sente grata por não estar mais apaixonada por ele, por não cair mais na conversa dele. Raquel suspeita que não ficou tão triste pelo término, porque por cada atitude ruim dele, um pouco do amor que ela sentia por ele ia se apagando, até não sobrar nada.
A diretora tem consciência, agora, que continuou com ele por tanto tempo por comodidade. Por medo de ficar sozinha. Por medo da solidão. Por achar que ela nunca iria encontrar alguém melhor. A maldita dependência emocional. Alberto diminuía ela de uma forma que ela chegou a achar que mais ninguém iria se interessar por ela.
Raquel se sente tão feliz que deseja estar perto de Sérgio nesse momento, sente vontade de compartilhar essa felicidade com ele. Com isso em mente, ela pega o celular e liga pra ele antes que mude de ideia.
"Oi mi amor, já chegou?"
"Já cariño, e tive uma surpresa não tão boa quando cheguei, mas acabou resultando em algo bom." Ela responde.
"O que foi?"
"Se você não se importar, posso ir aí te contar pessoalmente? Você se abriu para mim sobre o seu passado, e eu sinto vontade de fazer o mesmo. Sei que eu tinha dito que queria dormir aqui hoje, mas…"
"Tudo bem, pode vir! Estarei te esperando." Sérgio diz.
Ele se despedem, e Raquel olha pela janela para ver se o Alberto ainda estava lá. Felizmente ele já tinha ido embora. A diretora pega sua bolsa e volta para o carro, fazendo novamente o caminho até a casa de Sérgio.
Quando ela chega, ele já está na porta esperando. Ela sorri automaticamente ao vê-lo. Ele a recebe com um beijo, e eles entram na casa, indo de mãos dadas direto para o quarto dele.
O quarto de Sérgio é todo meticulosamente arrumado, exatamente como ela imaginava que seria. Não existia nenhuma roupa jogada, todas já deviam estavam apropriadamente dobradas e guardadas dentro do guarda roupa, provavelmente separadas por cores.
Possuía uma uma grande cama de casal no meio do quarto, com uma mesa de cabeceira do lado. Do outro lado da cama, tinha uma grande prateleira de livros, deixando nítido o grande amor que o chefe de cozinha tem pela literatura.
Raquel deixa a bolsa que trouxe com suas roupas no chão, e senta na cama.
"Que montanha russa de dia." Raquel suspira, passando a mão pelos cabelos. "Parece que o dia de hoje teve 48h horas."
"De uma forma boa ou ruim?"
"Mais boa do que ruim, posso te garantir." ela encara ele sorrindo.
"Que tal você colocar um pijama e ficar mais confortável para me contar sobre o que aconteceu?" Ele sugere.
Ela aceita e vai no banheiro colocar o pijama, e aproveita para já escovar os dentes. Quando ela volta, Sérgio já está usando o pijama, que por cima é idêntico ao da filha. Um pijama de calça e manga comprida, listrado, de botão.
Ele deita na cama, e chama a Raquel para deitar com ele. Ele abre os braços e ela deita ali, colocando a cabeça no peito dele e passando os braços pela cintura dele. Ela sente as mãos dele fazendo carinho em sua cabeça.
"Eu já te contei sobre o meu ex namorado, né?" Raquel pergunta.
"Aquele cara babaca?"
"Ele mesmo." ela ri, mas logo volta a ficar séria. "Eu queria te falar um pouco sobre minha relação com ele. Estávamos juntos a cinco anos, morávamos na mesma casa, mas nunca chegamos a casar. Eu idolatrava ele, e quando ele começou a me dar atenção, eu fiquei nas nuvens. E hoje eu vejo que eu relevei coisas que eu não deveria ter relevado nem perdoado. Percebo que a relação que eu tinha com ele, desde o início, era muito tóxica."
Ela suspira e ele beija a testa dela, apertando mais ela contra ele, tentando dar um pouco de conforto.
"Ele queria controlar o que eu comia, com quem eu saia, o que eu vestia. Parei de usar vestidos no trabalho por causa dele. Uma vez, eu descobri que estava grávida. Eu fiquei emocionada e feliz, ser mãe era uma coisa que eu queria muito. Quando eu contei pra ele, ele enlouqueceu. Disse que não queria ser pai naquele momento, e que eu tinha prometido pra ele que estava tomando pílula, me chamou de vadia mentirosa. Com a maior calma, tentei explicar que mesmo tomando pílula, não é 100% eficaz e isento de falhas. Ele não fez questão de entender. Estávamos discutindo perto da escada, e eu acabei tropeçando. Ele estava perto, eu vi que ele poderia ter me segurado, mas não segurou. Fui parar no hospital, e perdi o meu bebê."
Lágrimas começam a rolar pelos olhos dela e ele passa a mão pelo rosto dela para secar as lágrimas.
"Eu acho injusto, sabe? Quando o homem não quer ter filho, ele pode abandonar a parceira e ir embora, ou até mesmo provocar um acidente e ninguém fala nada. Agora quando a mulher não quer e pensa em abortar, todo mundo acha um absurdo. Você vê como a sociedade é hipócrita?" ela soluça e ele trás ela pra mais perto, encaixando a cabeça dela no pescoço dele, deixando ela chorar o quanto ela precisasse. Ele passa os dois braços ao redor do corpo dela, como se quisesse proteger ela do mundo.
"A sociedade é muito hipócrita mesmo, em vários sentidos." ele sussurra.
"Não que eu não queira mais ter filhos." Ela sussurra contra o pescoço dele. "Mas quando isso aconteceu comigo, eu não pude deixar de perceber o quanto é injusto como reclamam quando a mulher resolve abortar." ela suspira. "Até hoje, ainda dói. Até hoje, as vezes sonho com o meu bebê. Depois desse episódio ele pediu desculpas, continuei com ele, mas a nossa relação nunca mais foi a mesma. Na época eu não consegui perceber, mas hoje eu vejo que acabei levantando uma barreira contra o Alberto. Um ano depois disso, descobri que ele me traiu com a minha irmã, e isso foi a gota d'água. Terminei oficialmente com ele, e vim pra cá. Foi uma das melhores decisões que eu já tomei na vida."
"Fico muito feliz que você conseguiu se libertar dele, cariño. Você merece ser livre pra voar." ele diz.
"Eu também fico feliz." ela diz, levantando a cabeça e sorrindo para ele e dando um selinho na boca dele. "Hoje ele apareceu, lá na casa do seu irmão. Uma pessoa do meu trabalho deu o endereço pra ele. Ele disse que sentia muito e que me queria de volta, mas eu fiquei extremamente feliz de perceber que ele não exerce mais nenhum poder sobre mim. Não acredito mais nele, em nenhuma palavra que sai da boca dele. Então eu disse pra ele que ele fez essa viagem a toa, e mandei ele ir embora."
"Estou muito orgulhoso de você." ele sorri e ela sorri também, deitando novamente a cabeça no peito dele e ouvindo seus batimentos cardíacos.
O casal fica um tempo nessa posição, ambos em silencio, apenas absorvendo o que foi dito. Ela chega a achar até que ele adormeceu, mas então ele se move na cama e ela olha para ele.
"Eu sinto muito que você tenha passado por isso, por essa relação tóxica e traumática. Foi muito injusto as coisas pela quais você passou, as coisas que eu imagino que você teve que ouvir. Você é uma das mulheres mais incríveis que eu já conheci e você não merecia isso." ele passa os dedos pelo rosto dela. "Mas fico feliz que você conseguiu se afastar dele e botar um ponto final. A partir de agora, do que depender de mim, farei o possível e o impossível para te ver bem."
"Obrigada." ela sorri, se sentindo mais leve depois de compartilhar tudo isso com ele. "Eu também quero te ver bem e feliz."
Eles trocam mais beijos na cama, até que ela decide se virar e se preparar para dormir. Ele se aconchega atrás dela. Diante de tudo o que eles compartilharam um com o outro, ambos estão mentalmente exaustos. As mãos dele fazendo carinho em sua barriga é a última coisa que ela nota antes de dormir.
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