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MAXON NÃO TEVE PRESSA em voltar para casa, quando chegou já era noite. Encontrou a filha pintando na mesinha da sala, rodeada por lápis coloridos, tintas e giz de cera. As maçãs do rosto manchadas de amarelo e rosa, a menina estava bastante concentrada no desenho colorido que pintava.
Sua esposa parecia com um humor melhor do que quando a viu pela manhã. Daphne estava deitada no sofá, bastante à vontade lendo um livro de curiosidades sobre a Índia. Os cabelos jogados para o lado e tão absorta na leitura que só se deu conta da presença dele quando estava bem perto.
— Deixei sua parte do jantar no micro-ondas, mas faz pouco tempo, acho que ainda está quente.
Ela disse sem tirar os olhos do livro. Amanhã convenceria seu chefe a deixá-la tratar daquele evento, nem que fosse como auxiliar. Estava na sala quando ligaram para contratar os serviços da empresa de Werneck. Para irritá-la, ele não tinha dito quem ligara, mas ela o tinha visto pesquisar no Google algo sobre a Índia enquanto falava ao telefone.
Lhe interessou de imediato, mesmo que seu palpite fosse equivocado. De qualquer maneira, com o entusiasmo e a educação exacerbada de Sebastian que a fazia revirar os olhos, o cachê seria alto e ela tinha que calar a boca de sua hóspede indesejável. Lhe bastava, no momento.
— Estou sem apetite, obrigado.
Respondeu ele sem muito ânimo. Os olhos castanhos pousados em Camille, vira sua filha nascer, aprender a engatinhar, estava com ela quando os dentinhos começaram a crescer, ouviu sua primeira palavra, a ensinou a dizer papai, viu e filmou os primeiros passos dela. Amava aquela pequena criança desde que ela nasceu, e lhe doía a hipótese de que talvez tivesse outra filha que nunca conheceu.
— Papai, — a menina chamou levantando o caderno de desenhos e correndo ao encontro dele — olha o que eu desenhei. Eu, o senhor e a mamãe.
Falou animada mostrando cada um deles.
— Tá lindo, Cami.
Ele respondeu se abaixando para ficar da altura dela e prestou atenção no desenh0, era um traço simples, meio torto, dois bonecos grandes estavam de mãos dadas e abaixo deles estava uma bonequinha menor. Camille lhe deu um beijo na bochecha e Daphne pediu para ver o desenho, Camille correu para mostrar seu trabalho para a mãe.
— Ela leva jeito, né? Para idade dela…
Gabou-se Daphne vendo que sua filha tinha tido um cuidado extra com o vestido que desenhou para a mãe, era um triangulo simples, porém, pintado de vermelho com um pouco de amarelo embaixo, onde agora se via laranja por causa da mistura de cores.
— Sim, se continuar assim vai ser uma ótima desenhista!
Maxon aprovou vendo a menina tampar os olhinhos com as mãos ficando com as bochechas vermelhas.
— Olha o vestido da mamãe, tá bonito? — Perguntou Camille ainda corando com os típicos elogios que pais fazem para encorajar um filho.
— Mais do que esse que ela está vestindo. — Maxon brincou.
Daphne teria feito uma careta, mas estava com um humor razoável o suficiente para não se incomodar.
— Licença, vou postar o desenho da minha artista.
Dito isto, pediu que Camille fizesse pose para a foto segurando o desenho que fizera. A menina sorria, alheia aos problemas financeiros e conjugais de seus pais. Dentre os dois problemas, não se sabia dizer qual era o pior.
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Quando Maxon subiu para o quarto sua esposa já estava quase pronta para dormir. Vestia um conjunto de cetim cinza, novo, o emprego a havia restaurado um pouco de sua dignidade perdida. Ainda estava em posse daquele livro, determinada a dar a volta por cima em grande estilo.
— Fez compras?
Maxon perguntou quase que em tom acusatório vendo as cinco sacolas com emblemas de marcas famosas, antes tão naturais a ele. Daphne sempre fora consumista, raramente repetia uma peça que fosse de roupa. Quando a notícia de que seus cartões estavam bloqueados o escândalo foi cinematográfico.
— Arrumei um emprego. — Ela disse com um sorrisinho vitorioso.
Maxon arqueou a sobrancelha, desconfiado e surpreso.
— Sério? Onde?
— Em uma empresa de eventos. Do Sebastian, lembra? Meus desfiles até que foram úteis.
Ela respondeu com a expressão mais inocente que conseguiu.
— Que bom.
Aprovou ele. Talvez assim ela parasse de gastar o que já não tinham. Ainda que fosse frustrante para ele ter certeza de que a mulher que havia prometido amá-lo na riqueza e na pobreza não estivesse em um momento como esse fazendo o menor dos esforços para ajudá-lo.
Se contentaria com algo pequeno, uma prova banal de que ao menos ela tentava e se importava, até então não encontrou. A mulher que antes se mostrava tão apaixonada, que em cima do altar lhe jurou o mundo, agora estava frígida e distante dele.
Dividiram a cama, como em quase todas as noites após o casamento, mas embora estivessem os dois de corpo presente, os pensamentos não convergiam mais, era como se estivessem em mundos separados.
*
A vida é um jogo incerto. Daphne Schreave havia tido uma primeira vitória triunfal, não contava é claro, que que seria feita prisioneira em uma armadilha tão similar a que fez com America. Sua reputação estava a depender de Megan, a prima de America havia participado de muito dos planos de sua ex-patroa, inclusive de um em particular, orquestrado por Clarkson, mas com o conhecimento de ambas, resultou em sua vitória há quase duas décadas.
Daphne dedicara boa parte de seu tempo a traçar formas de tirar Megan do caminho, pensou na saída mais fácil, matá-la, ocorre que o mais fácil não era necessariamente o mais sensato. Sua cumplice havia deixado provas em mãos de terceiros, foi a garantia de Megan de que poderia tranquilamente extorquir a outra.
Não podia se dar ao luxo de ter seus segredos revelados, se fosse assim correria sérios riscos de perder a guarda da filha. Foi com uma expressão assassina que adentrou a cozinha na manhã seguinte. Megan estava distraída passando manteiga em um pãozinho. Ainda de roupão, mantinha as pernas cruzadas como se fosse ela a dona da casa.
Daphne apertou o envelope que trazia, então o atirou sobre a mesa como se estivesse se livrando de algo extremamente desagradável.
— Toma e não me enche mais o saco.
— Só isso? — Megan fingiu não ouvir, abriu o envelope conferindo as notas sem as tirar dali — Sei que consegue fazer melhor, Daph.
Desdenhou imitando a voz da ex-patroa.
— Claro que consigo, uma faca na tua jugular que tal?
— Você não é burra, — Megan pouco se importou com o olhar assassino ou com as ameaças de Daphne — sabe que eu espalhei nosso segredinho e ele virá à tona se eu sumir.
— Então fica de boca fechada ou não vai ganhar nem mais um centavo. Vai ameaçar quem se não a mim?
— Relaxa, senhora Schreave.
Megan pediu dobrando o envelope e se levantando com um sorriso vitorioso. Estava adorando aquele jogo. Aproveitou cada brecha que tinha e agora era sua hora de estar por cima. Agora era ela quem ditava as regras e distribuía as cartas, sem mais subserviência, arrancaria o que pudesse e voltaria para seu país, rica. Sabia que Daphne não ficaria na miséria por muito tempo, a conhecia quase tão bem quanto a própria Daphne se conhecia.
Era só esperar e Megan sempre foi uma pessoa paciente.
*
Dias depois...
Eadlyn enfim percebeu onde tinha se metido, seu trabalho aparentemente fácil se tornou um verdadeiro castigo. Sua chefe a importunava por prazos, questionava a maioria de suas escolhas de decoração e a parte mais irritante para ela era ter noção de espaço apenas com números e maquetes. O shopping monumental tinha medidas complicadas na cabeça dela. A garota estava agora debruçada na frente da escrivaninha tentando entender o que sua chefe queria.
“Você acha que administrar uma empresa é só distribuir afazeres? Está certa em parte, mas como você vai coordenar o que não conhece? Precisa entender o todo” Era como se pudesse ouvir Raj repetir o que tinha dito ontem. Desenhar era bem mais fácil para ela, mas a frase dele ia e vinha na sua cabeça e se pegava pensando, que droga de estilista ela seria se apenas soubesse desenhar? Acaso daria conta de tudo sozinha? Queria ter lojas, e isso incluía ter funcionários, o que incluía coordenar cada um deles.
Não, só desenhar não bastava, nem costurar. Não se contentaria em ser uma costureira, queria lançar moda, porém, tinha de reconhecer que não sabia como administrar muito além do seu próprio closet e isso lhe irritava muito. A universidade estava lhe ensinado tendências de moda, seu ex-padrasto a estava tentando ensinar administração, “e aproveitando para me castigar já que não pôde simplesmente dizer que estou de castigo” ela riu levando a mão à barriga.
“Olha a encrenca que você me arrumou sem nem ter nascido ainda” então deixou o laptop, a calculadora e os papéis quando ouviu alguém abrir a porta. Alice entrou abrindo uma bolsa de lado e tirando de lá o recipiente com o sanduiche que sua amiga a havia exigido ao telefone.
— Toma, comprei dois para você se empanturrar.
Alice riu abrindo o recipiente e deixando o aroma dos sanduiches exalarem pelo quarto. Eadlyn torceu o nariz, tomou os sanduiches e fechou a vasilha.
— Agora passou a vontade.
Falou se levantando com toda a naturalidade.
— Eu deveria te esganar, sabe o tamanho da fila que eu peguei?
Eadlyn apenas riu e deixou a vasilha fechada sobre a mesa.
— Quero um bom pote de sorvete agora.
Respondeu chamando a outra para descer também. Havia lembrando de sua mãe horas atrás a degustar uma taça de sorvete de morango com generosa quantidade de cobertura de chocolate enquanto conversava com Celeste pela web can. Agora salivava por um igual.
— Como eu te odeio, garota. — Alice dramatizou revirando os olhos e seguindo a amiga que a pouco tempo tinha dito que seu desejo por um sanduiche era caso de vida ou morte.
— Preciso esfriar um pouco a minha cabeça.
Eadlyn murmurou. Não se referia só ao trabalho que estava a lhe estressar, mas sobre tudo, a gravidez, a revelação de sua mãe, finalmente saber quem era seu pai e, para completar, hoje sairia o resultado do exame e tanto ela quanto Sophia haviam confessado uma para a outra estarem com medo de America ter outra crise por mais que até então sua mãe estivesse agindo normalmente. Passara inclusive boa parte da manhã conversando e rindo com Celeste.
Eadlyn foi a primeira a ver um garoto olhando para todos os lados da mansão como se estivesse dentro de algum museu, Champak o havia instruído a sentar-se.
— Está atendendo a domicilio agora?
Indagou Eadlyn surpresa ao ver seu colega de escola. Kile ajeitou os óculos e se sentou contendo suas piadinhas. Pela imprensa, sabia que aquela garota chata estava vivendo um péssimo momento, embora não soubesse nem de um terço do problema. Alice desceu logo atrás igualmente surpresa, porém, com um largo sorriso no rosto.
— É, acho que dá para dizer isso. Me mandaram falar com a sua mãe.
Ele respondeu percebendo que falar não era bem a palavra certa. Maxon havia lhe dado um bilhete o qual America deveria responder, não tinham de fato o que conversar.
— Quem mandou? — Eadlyn perguntou sem entender que raios de assuntos Kile teria com a mãe dela.
— Meu chefe, é claro.
— E para quem você está trabalhando? — Insistiu.
— Para os Schreave.
Ele respondeu com ares de importância ainda admirando a arquitetura da mansão.
— A senhora Evans está no quarto, a senhorita poderia chamá-la? — pediu Champak — A informação do rapaz procede e sua mãe avisou que provavelmente seria procurada hoje por alguém a mando do Sr. Schreave.
Ele completou tentando manter a indiferença que seu cargo exigia. Fora mordomo a maior parte da vida e se orgulhava disso, se meter na vida de seus patrões não fazia parte de seu cargo, quanto mais se importar com os problemas deles, a droga era que ele trabalhava há tempo demais para os Sundrani, então se importava.
Eadlyn assentiu e subiu. Quando a mãe descesse iria dar um jeito de espionar, America tendia a lhe ocultar coisas que não julgasse apropriadas para os ouvidos da filha e Eadlyn sabia disso.
Alice permaneceu na sala e sentou-se na poltrona ao lado de Kile.
— Oi, Kile. Te procurei no Café, só que... — ela conteve o sorriso que Champak considerou largo demais para uma moça dar a um rapaz — você sumiu.
O mordomo deixou os dois na sala e foi atender o seu celular, tinha que lembrar frequentemente que não estava na Índia.
America havia subido para o quarto desde que sua fantasia chegou, a roupa que usaria no baile dali a alguns dias precisava de poucos ajustes para ficar digna das joias que usaria. A grande caixa azul fora cuidadosamente posta sobre a cama.
Dentro do closet, ela tirava um a um, seus melhores vestidos do cabideiro e na frente do espelho escolhia qual deles seria mais propício. Não usaria um vestido de gala, não faria daquilo um circo, queria algo que fosse casual e elegante, afinal era agora uma dama, não?
Eadlyn tinha visto Raj chamar por Champak no escritório, então entrou sem bater no quarto da mãe para dar-lhe o recado.
— Eu ainda acho que deveria ir. — Insistiu mais uma vez em sua batalha perdida.
— Não.
America tornou a repetir. Depois desceu e respondeu ao bilhete de Maxon agendando o número de telefone que ele tinha escrito, não iria esperar plantada no restaurante. Havia reservado uma área afastada das demais mesas, lá poderia ter a privacidade necessária para aquele pequeno teatro. Só esperava que rever aquelas pessoas não destruísse seu autocontrole como Maxon havia destruído naquele dia.
⁂
O cerco começava a se fechar para Daphne, a ligação de Frederick a havia abalado mais que as ameaças de Megan, ele sabia de coisas mais comprometedoras do que Megan ousaria sequer sonhar. Resolveu que estava usando a estratégia errada, não podia arriscar que Maxon acreditasse em uma palavra que Frederick dissesse.
Ela sorriu em frente ao espelho. Até que conseguisse dar um bom golpe iria voltar ser a desempenhar maestralmente o seu papel de “esposa apaixonada”. Arrumou-se e penteou-se, teve até o trabalho de comprar comida fora e sumir com as embalagens, é claro que não iria estragar suas lindas unhas na cozinha, além de que, sequer sabia usar mais do que o forno e o micro-ondas, agora que havia aprendido como a máquina de lavar funcionava.
Ouviu o barulho do carro de seu marido, ajeitou o vestido e ensaiou o sorriso. Camille entrou arrastando a mochila de rodinhas com seu pai logo atrás.
— Oi, meu amor. Suba para o banho, já preparei o jantar.
Disse ela dando um beijinho na filha. Amberly tinha pedido para passar um tempo com a neta e Daphne aproveitou para mandar a menina logo após a escola para que tivesse tempo de organizar seus pensamentos. Camille obedeceu a mãe e subiu correndo.
— Vamos jantar fora, Daphne.
Maxon anunciou. Daphne fez bico.
— Mas eu fiz seu prato preferido, achei que poderíamos ter uma conversa hoje. — Falou da forma mais agradável que conseguiu, oferecendo os lábios em sorrisos — Eu estou mais calma agora e percebi o quanto fui injusta com você.
Aproximou-se do marido acariciando-lhe a face. Maxon estranhou o comportamento da esposa, porém insistiu.
— Vamos ter que adiar isso em algumas horas, Daphne. Esse jantar é importante.
Então subiu para se trocar. Tinha contratado uma babá para ficar com Camille, essa não iria nem que America exigisse. Sua filhinha era a única ali que ainda podia manter a inocência.
⁂
Eadlyn acabou escolhendo o vestido para a mãe. Sophia escolheu o penteado, America só teve o trabalho de dizer a maquiadora como queria ficar. Não cedeu às insistências das filhas e ameaçou as duas caso tivessem a péssima ideia de ir atrás dela. garantiu que estava mais do que bem.
Na verdade, estava longe de estar algo ao menos próximo de bem. Eadlyn e Sophia ficaram discutindo o que os novos médicos de sua mãe haviam sugerido que elas fizessem. Passatempos, America precisava de alguma distração, as duas se ocuparam pensando no que distrairia a mãe.
America desceu as escadas devagar, os olhos anuviados e a frieza que já se tornara íntima dela.
— Está linda.
Raj falou ao entrar pela porta que dava para o jardim. Seu irmão lhe prendera ao telefone por quase uma hora.
Ela de fato estava linda, o vestido vermelho ia até o joelho, marcado por uma faixa prateada, as mangas iam até pouco abaixo dos ombros, não tinha decote, a saia lembrava o desabrochar de uma rosa. Tinha pego trauma de usar roupas ousadas em público, se sentia exposta e se lembrava de cenas desagradáveis.
Ainda as usava quando estava especialmente com raiva e embora estivesse agora, aquela situação exigia o seu controle, hoje mais do que nunca se comportaria como uma perfeita dama. Achava que Maxon esperava por um escândalo, se quisesse isso um deles teria que protagonizar, ela não faria isso. Sua vingança seria outra.
— Você sempre diz isso, não confio mais.
Ela respondeu tentando soar descontraída.
— Como consegue viver tendo que lidar com o martírio de ficar bonita em qualquer roupa?
— É uma sina pesada.
Se permitiu um breve sorriso entrando na brincadeira dele.
— Termine esse ciclo. — Murmurou ele se aproximando e pondo sua mão sobre e dela — Diga tudo o que tiver para dizer.
— Eu vou tentar.
America prometeu apertando a mão que ele mantinha sobre a dela e então soltou com um pequeno sorriso e seguiu para a porta.
Ela e Maxon haviam acordado que um funcionário do próprio laboratório levaria o resultado do exame ao restaurante por uma boa comissão. America entrou na limusine, Clarkson e Amberly seguiam confusos o carro do filho, a própria Daphne estava a ponto de arrancar a cabeça do marido por não lhe dizer qual o motivo daquele jantar, mas, como estava atuando, apenas sorria e fingia estar empolgada com a “surpresa”.
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