Dizem que o amor incondicional se reconhece melhor quando em uma situação de risco, sem pensar, coloca quem você ama, acima do próprio bem estar.
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(billie bossa nova - billie eilish)
“Ele ainda se lembra de mim!” Sergio comentou, fascinado.
“Mas é claro que lembra, é impossível te esquecer.” Delicadamente, Raquel se colocou na ponta dos pés antes de depositar um beijo na bochecha de Sérgio. Santiago entreolhou o casal com atenção, parecendo refletir sobre a interação, porém permaneceu em silêncio como se nada estivesse acontecendo.
De uma maneira extremamente adorável, ele pareceu se adaptar com a figura de Sergio próximo a mãe, o que poderia ser considerado uma conquista pessoal para Marquina.
“Você se importa se eu for tomar um banho rápido? Só para tirar o suor do corpo, depois eu tomo outro antes de dormir!” Manhosa e um pouco envergonhada, Raquel o encarou com os olhinhos pidões, enquanto Santiago brincava com a barba de Sergio e ele lhe arrancava boas gargalhadas.
“Claro que não!” Sergio não deu a mínima pra Raquel, agindo como se ela não estivesse ali.
“Eu vou pedir pra minha mãe cuidar dele, fique-" Antes que pudesse terminar, Sergio a interrompeu.
“Não, Raquel. Não precisa!” Assegurou, desviando o olhar para ela apenas por um segundo antes de voltar a mexer com o menino em seu colo. “Eu cuido dele.”
Encantada, Raquel apertou os olhos enquanto o comprimia os lábios, tentando esconder o sorriso que insistia em sair. Ainda era um pouco estranho lidar com a presença de Sergio em sua casa, com seu filho. Havia apenas um par de horas desde que haviam se reconciliado, em partes, ainda tinham muitos assuntos pendentes.
Levando em consideração o cenário de convivência, Sergio e Santiago possuíam um vínculo singular. Ele não era padrasto, muito menos pai. Não tinha nenhuma obrigação com o menino. E no fundo, Raquel sabia que o sentimento entre eles era genuíno, seu filho não era usado como moeda de conquista pelo homem que o carregava.
Sergio conquistou o coração de Raquel quando conquistou Santiago. E enquanto estivesse com ele, ela sabia que seu filho estaria seguro.
Com o pensamento em mente e um sorriso iluminado nos lábios, Raquel seguiu rumo ao andar de cima.
“Depois do banho nós vamos precisar ir ao supermercado.” Lembrou, no pé da escada. “Hoje é sexta e não temos os ingredientes que precisamos.”
“Quais ingredientes?” Intrigado, Sergio questionou com o cenho franzido em confusão.
Raquel se limitou a piscar encantadoramente, e mandar um beijo no ar antes de dar-lhe as costas e seguir seu caminho.
Era sexta-feira.
Dia de pizza!
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“Ele está mais pesado.”
“Mais gordinho, mais falante, um pouco maior. Ele está crescendo rápido demais.”
“Ele está bem cuidado.” Concluiu, sorrindo na direção de Raquel.
Em contrapartida, ela sorriu e desviou os olhos, sentindo as bochechas queimarem. Um elogio sobre sua desenvoltura como mãe sempre lhe aquecia o coração.
“Preciso encontrar uma escola pra ele, daqui 3 meses completa 2 anos e precisa de contato com outras crianças da idade dele.” Desconversou, correndo os olhos pelas prateleiras.
“Eu te ajudo a procurar.” Não era uma sugestão, e sim uma afirmação. Convicta e certeira. As palavras de Sergio soaram de maneira natural, como se eles fossem um casal divorciado proseando sobre o futuro do filho.
Santiago continuava nos ombros de Sergio, com as mãos sobre o cabelo sedoso, e não pretendia sair dali tão cedo. O mais velho apoiava o corpinho rechonchudo, segurando-o pelas costas para evitar qualquer queda.
Marquina descobriu o quanto amava estar próximo a Santiago, amava seu cheirinho de bebê, sua doçura. A inocência despertava nele uma dose cavalar de afeto, e um imensurável desejo de ser pai outra vez.
“Como está sua mãe? Ela está bem?” Disse Sergio, mudando de assunto.
“Ela está ótima, mas confesso que tenho notado algo muito estranho nela.”
“Como assim?”
“Não sei, desde quando voltamos de Santorini sinto que me esconde algo. Tenho um pressentimento ruim quanto a isso, e bom...sobre outras coisas.” Raquel divagou, lembrando-se da constante sensação de estar sendo observada. “Enfim, eu procuro ignorar! Deve ser alucinação, coisa da minha cabeça.” Contudo, lá no fundo, ela sabia que não estava doida. Pelo contrário, estava mais lúcida do que nunca.
“Xéjo, chão, xéjo!” Batendo na cabeça de Sergio, Santiago tombou o corpo pro lado facilitando a manobra para pousá-lo onde pretendia.
“Já perguntou alguma coisa a ela?” Retomou o assunto, minimamente preocupado.
Sergio tinha os olhos focados em Santiago, que cambaleava de um lado para o outro logo à frente do casal mexendo em algumas bolachas recheadas na prateleira, mas a atenção de Marquina estava voltada para cada palavra de Raquel.
“Eu já perguntei o que houve, e que estava estranha, mas ela diz que não é nada.” Deu de ombros, tentando se convencer de que aquilo não passava de uma besteira.
“Amor, eu acho que você está muito estressada.”
Raquel travou no meio do caminho enquanto Sergio continuava a dizer mais um par de palavras. No entanto, ela não prestava atenção em nada...Parou de ouvir quando percebeu a naturalidade com que ele a chamou novamente de “amor”, como se o tempo entre eles nunca tivesse existido. De fato, Raquel tinha a estranha sensação de os 3 meses que passaram afastados não fossem mais do que poucas horas.
“Ei? Raquel?”
“Oi, sim?” Saindo do transe reflexivo que havia submergido, Raquel chacoalhou a cabeça para tentar reorganizar as ideias e focar no que era importante...O que eu tinha ido fazer no supermercado?
“O que foi? Tudo bem?” Preocupado, Sergio tinha o cenho franzido em sua direção. Ele pensou que a distração havia sido pelo assunto suspeito, porém mal imaginava que a causa do devaneio era si próprio.
“Sim, tudo bem. Só estou pensando, acho que estou estressada mesmo.” Concordou, sorrindo afetuosamente.
Apesar daquela sensação ruim que não lhe deixava, a volta de Sergio havia sido um sopro de alívio, e sentiu que por pelo menos uma noite – a qual desejava fortemente que se tornassem dias – ela deveria viver a vida que sempre quis.
Ela, Santiago e Sergio num supermercado em plena sexta-feira, comprando ingredientes para a noite da pizza.
“Xéjo!”
Manhoso, Santiago parou no meio do casal – logo abaixo de Sergio, especificamente – e estendeu os braços na direção de Marquina, com o intuito de voltar ao colo.
“Cóio, Xéjo! Cóio.” Abrindo e fechando as mãozinhas, com seu jeitinho todo encantador, Santiago tinha o dom de derreter o coração de Sergio, e agir como se não existisse nada no mundo tão lindo quanto sua pura e simples existência.
Após acomodado, Santiago pousou os olhos na mãe e a encarou com indiferença. Como se a presença de Sergio lhe transmitisse confiança o suficiente.
Raquel o encarou com os olhos semicerrados, alçando uma sobrancelha num silencioso desafio. Porém, tudo o que o menino fez foi dar-lhe as costas e envolver o pescoço de Sergio num abraço, tombando o rostinho no ombro.
“Perdeu, Murillo!” Ele brincou, rindo, enquanto se afastava caminhando para longe.
“Pelo contrário.” Raquel murmurou consigo mesma, sentindo o coração transbordar de amor. “Eu ganhei tudo!”
No final do passeio, alguns minutos mais tarde, Santiago gargalhava, e provavelmente até mesmo os corredores paralelos conseguiam ouvi-lo.
Sergio jogava o menino para o alto, e na queda fingia mordê-lo, aproveitando a oportunidade para arranhar a barba áspera no pescoço suave, o atrito causando cócegas.
“Cuidado!” Raquel confiava em Sergio. Bom, até demais. Porém uma mãe é uma mãe.
“Relaxa, Raquel.”
“Ielaxa, Quel!”
Sergio e Raquel se entreolharam por um instante antes de caírem na risada com o jeitinho de Santiago. O menino acompanhou os dois adultos, se divertindo, sem saber que ele mesmo era o motivo cômico, ele só queria se sentir parte.
O menino nunca se esqueceu de Sergio, nem mesmo por um dia. Apesar da pouca idade, desde Santorini, Santiago havia gravado aquele rosto em seu coração. Para sempre.
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(male fantasy - billie eilish)
– Filho, joga um pouco de trigo.
Com um chapéuzinho de chef e um mini avental, Santiago apoiou a mão na mesa apenas para conseguir impulso e jogar um pouco de trigo na massa da pizza. O neném havia jogado duas vezes, porém não era o suficiente por conta do tamanho de suas mãozinhas e a quantidade quase inexistente que elas carregavam.
Sérgio, divertido com o jeitinho desengonçado do menino, resolveu ajudá-lo e pegou um pouco nas próprias mãos antes de despejar na vasilha.
“Parece que alguém conseguiu um ajudante.”
Sergio e Raquel se entreolharam e sorriram um para o outro, antes dele passar atrás do corpo dela e depositar um beijo casto na nuca.
Disposto a ajudar e ter participação ativa na montagem das pizzas, enquanto Raquel cuidava do disco e Santiago brincava de massinha de modelar com as sobras, Sergio cortava os tomates com atenção. Um auxiliava o outro e partilhavam o tempo com assuntos triviais, e aleatórios. Tudo parecia muito familiar.
Raquel sentiu que poderia facilmente passar a noite inteira ali. Pelo resto da vida.
Sergio e Santiago foram os responsáveis pela decoração da pizza, e quando o menino sem querer sujou a mão de molho e passou no nariz de Marquina, ele pareceu não se importar e se limitou a rir, acompanhado de Raquel e Marivi, que havia decidido se juntar a eles.
A noite virou uma festa e todos ficaram felizes. Raquel estava com os dois homens de sua vida, Sergio conseguiu se distrair dos problemas e, após alguns meses, Santiago pode experimentar novamente qual era a sensação de ter um pai.
“Sérgio” Disse Marivi, quando todos se sentaram ao redor da mesa. “Fico muito feliz que esteja conosco.”
“Eu estou feliz por terem aceitado minha companhia” As bochechas dele queimava de vergonha, porém mal conseguia esconder o quanto se sentia radiante por estar ali. “E obrigada a você, pelo convite.”
Com todo carinho do mundo, Sergio pegou a mão de Raquel entre suas mãos e depositou um singelo beijo no dorso.
Marivi observava de longe, sua filha sorrindo genuinamente como uma adolescente de 15 anos apaixonada, uma serenidade que há tanto havia desaparecido. E então, num longo suspiro, a matriarca se sentiu em paz ao saber que enquanto ele estivesse ali, sua filha estaria a salvo.
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“Au au, xéjo! Au au!”
“Eu vi o au au, você quer um au au?” Sergio respondeu, como se Santiago pudesse compreender o que ele dizia. “Sabe, Santiago, eu prefiro um gatinho.”
A louça já estava guardada, a cozinha limpa, e Marivi já havia se recolhido para dormir.
Sergio, Santiago e Raquel estavam sentados no tapete da sala de estar, aproveitando o resto da noite. Sergio tinha o tronco encostado no sofá e o braço ao redor de Raquel, que tinha a cabeça tombada no ombro dele, sentindo o cheirinho do perfume que tanto amava. Ambos se sentiam relaxados depois de um dia estressante, e para Sergio, particularmente, ainda parecia um delírio.
Santiago tinha o corpinho esparramado no meio dos dois, enquanto assistia um desenho na tv e terminava a última mamadeira antes de dormir. Sergio sorriu ao notar que ele fazia carinho em si próprio, bagunçando os fios de cabelo. O menino era uma fofura!
“Ele está doido por um cachorro.” Comentou Raquel, sem precisar abrir os olhos e desgrudar de Sergio para saber da euforia que o assunto causava no filho.
“Já pensou em algum?” Sergio estava tão concentrado no desenho quanto Santiago, porém, acariciava os cabelos de Raquel com toda calma do mundo, deixando-a ainda mais sonolenta.
“Não, ainda não tive tempo de procurar.” Murmurou, antes de bocejar.
“Você tá com sono?” Desviando sua atenção por um segundo, Sergio pousou os olhos em Raquel antes de puxá-la ainda para si, beijando o topo da cabeça, inalando o gostoso cheirinho do shampoo.
“Um pouco, mas preciso levar Santiago para o berço. Já passou da hora dele dormir, daqui a pouco ele apaga.” Checando o relógio no pulso, Raquel endireitou a postura antes de espreguiçar. Ela estava exausta!
Quando encarou Santiago, percebeu que ele estava a ponto de dormir encostadinho em Sergio. O menino lutava contra o sono, as pálpebras pesando em demoradas piscadas.
“Alguém gostou do seu colinho.” Ela comentou, com um sorriso afetuoso nos lábios. O gesto foi espelhado por Sergio, que sentiu o coração derreter ante a ternura. Os olhos cintilaram quando notou o neném encostado em sua coxa, segurando a mamadeira. “Vou levá-lo pra cima.”
Porém, antes que Raquel pudesse pegar Santiago em seus braços, Sergio a impediu.
“Não, não precisa. Deixa que eu o levo!”
E antes que Raquel pudesse, ao menos, formular qualquer pensamento, Sergio, com todo cuidado do mundo, já havia acomodado o menino no colo, apoiando a cabecinha no ombro.
Sem nenhuma dificuldade, ele se levantou e esperou por Raquel. Porém, antes de saírem rumo às escadas, Raquel pousou a mão no braço dele e o manteve no lugar. Um pequeno vinco surgiu na testa de Sergio, confuso.
Sem verbalizar qualquer palavra, Murillo umedeceu discretamente o lábio inferior antes de se colocar na ponta dos pés e levar a mão direita em direção à nuca de Sergio, puxando-o para si antes de roubar-lhe um beijo.
Encaixando o lábio inferior entre os seus, Raquel tentou transmitir naquele contato o quanto se sentia agradecida por tê-lo novamente em sua vida. A textura macia, com o toque suave de vinho, cada mínimo detalhe contribuía para que aquele momento fosse único e particular.
Foi breve, porém intenso, e o suficiente para deixá-lo atordoado quando se separaram. Encaixando os óculos nos olhos, com o tique nervoso tão característico que só ele tinha, Sergio ficou visivelmente envergonhado, com as bochechas coradas, tirando um riso leve de Raquel.
“Raquel-" E antes que pudesse continuar, Raquel pousou os dedos sobre os lábios dele.
“Shihhh.” Sussurrou, antes de deslizar a palma da mão até a bochecha dele, acariciando-lhe a barba. “Vem, vamos subir.”
E entrelaçando os dedos, Raquel o puxou para as escadas em direção ao piso superior da casa.
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(getting older - billie eilish)
Depois de colocar Santiago no berço, Sergio ficou sozinho no quarto velando pelo sono do menino enquanto Raquel disse algo sobre sair para trancar as portas e apagar as luzes. Honestamente, ele não ouviu uma palavra sequer, estava ocupado demais.
A luz da lua entrava pela janela e iluminava o cômodo, permitindo-o observar os mínimos detalhes de Santiago. Ele estava mais gordinho, mais comprido, os cabelos mais longos e um pouco mais escuros. Por alguns instantes, Sergio foi invadido por uma violenta nostalgia de quando Tokio era pequena e ele, infelizmente, muito imaturo. Estar com o menino ao mesmo tempo em que era bom, também despertava um lado melancólico dentro de si. Criar um filho sozinho não era a atividade mais fácil do mundo, ele sentiu na própria pele, e por isso sua admiração por Raquel crescia ainda mais. Ela era forte, destemida. Protegia o filho a todo custo.
Lembrou-se da primeira vez em que a viu com o menino no colo, na comemoração natalina de quase 2 anos atrás. Ela o cuidava como se pudesse amparar o mundo inteiro em suas próprias mãos, e ele realmente era.
O bem mais precioso de Raquel.
Sérgio estava tão distraído que não percebeu a sutil aproximação de Raquel, e só quando um par de duas mãos delicadas rodearam sua cintura, ele sentiu o corpo esguio abraçando-o por trás.
“Tudo certo aí?”
“Claro.” Respondeu num sussurro, puxando o pequeno lençol para cobrir o corpo do menino. “Cada dia ele fica ainda mais parecido com você!”
Raquel sorriu ao ouvir a observação, e o puxou para si. Sergio virou de encontro ao corpo dela, antes de envolver os braços ao redor dos ombros e abraçá-la com força.
“Raquel Murillo." Murmurou, antes de depositar um beijo na testa dela. “O que eu faço sem vocês?”
Tê-la em seus braços era a única maneira de tranquilizar a tormenta que lhe invadia a alma. Enquanto estivessem juntos, perdidos um no outro, o mundo poderia facilmente desabar ao lado de fora que ele, honestamente, não poderia se importar menos.
“Obrigada por cuidar do meu filho. Sei que não faz isso para me agradar e porque realmente parece gostar dele.” Enquanto Raquel sussurrava, Sergio puxava o cabelo dourado com carinho, prendendo atrás da orelha. Ele pensava não ser possível se apaixonar de uma maneira tão intensa por alguém, mas todas as vezes que ele pousava os olhos sobre o rosto dela sentia as batidas de seu coração perderem o compasso.
“Você sabe que eu sou apaixonado por você.” Afirmou, convicto. “E isso significa que eu amo cada parte sua.” Raquel sentiu o sangue gelar por alguns segundos apenas pela menção da palavra. “A Raquel eficiente, profissional, dedicada, inteligente e o que não falar sobre o quanto você é sexy.” As bochechas dela assumiram um delicado tom de vermelho, enquanto a veia na testa deixava aparente seu nervosismo. “Ser mãe faz parte de quem você é, e isso é uma das coisas que eu mais amo em você. O seu carinho, zelo, entre outras 1001 qualidades que poderia passar a noite inteira discorrendo.”
Se colocando na ponta dos pés, sentindo o coração saltar de felicidade, Raquel jogou os braços ao redor dos ombros dele e o puxou para um beijo rápido, apenas por tocar e transmitir sua gratidão.
“Vem, vamos sair daqui.” Ela sussurrou, entrelaçando os dedos antes de puxá-lo para fora do cômodo. Fechando a porta atrás de si, Raquel deu apenas um passo até estar novamente rodeada pelos braços dele.
“Eu preciso ir embora.” Sergio afirmou, enquanto prendia uma mecha de cabelo dourado atrás da orelha dela. Ele estava, em poucas palavras, obcecado pelos fios dourados. Ela estava mais loira?
Raquel não conseguiu conter sua careta de insatisfação.
Esse era o maior problema de pessoas transparentes como ela, é praticamente impossível mentir quando o corpo inteiro grita, contradizendo suas próprias palavras. Bom, e naquele caso, particularmente, se tratava de Sergio. A pessoa que a conhecia como a palma de sua mão.
Ocorre que Raquel estava cansada. Não apenas fisicamente, mas também sentimentalmente. Havia cansado de mentir para si mesmo, reafirmando inúmeras vezes que havia superado Sergio, quando na realidade estava ainda mais apaixonada do que nunca.
“Por que?”
“Por que o que, Raquel?”
“Por que precisa ir embora?”
Sergio pousou os olhos sobre ela numa fração de segundos, observando-a com atenção. Ela estava séria, sem nenhum traço de brincadeira. Era óbvio que ele gostaria de passar a noite com ela. A vida inteira. Porém, de certa forma, aquilo seria cruzar a linha, mais uma delas. Aquele era um território perigoso, tinha a sensação de caminhar por uma corda bamba, incerto se chegaria em segurança do outro lado.
Tinham uma conversa pendente, e não poderiam simplesmente agir como se nada estivesse acontecido. Ou poderiam?????
“Porque eu não quero te atrapalhar, Raquel.” Gaguejou, ajeitando os óculos no rosto com a ponta dos dedos, arrancando um riso frouxo de Raquel. “Você deve estar cansada, principalmente de mim”
Raquel contornou a mandíbula com a ponta do dedo, antes de subir em direção a bochecha e depositar a palma, deixando ali um delicado afago. O carinho encheu o coração de Sergio, que tombou o rosto para o lado, aproveitando o gesto.
Por fim, estavam juntos de novo.
“Por acaso tem alguém te esperando em casa?” Questionou sarcástica, arqueando as sobrancelhas na direção dele.
“Sim, provavelmente o porteiro não vai conseguir dormir sem o meu boa noite.” Divertido, Sergio brincou com o intuito de descontrair um pouco o clima.
“Você não precisa ir embora...se não quiser.” Tamborilando os dedos pelo peitoral de Sergio, Raquel sugeriu um pouco tímida, despretensiosa.
Porém, convicto como era, Sergio queria ter a certeza de que no dia seguinte ela não iria se arrepender. Então, tocando levemente o queixo de Murillo, ele buscou a atenção dela para si antes de alinhar o globo ocular nas íris âmbar.
“E o que você quer?” A indagação foi firme, séria e direta, provocando um delicioso arrepio na espinha dorsal de Raquel.
“Eu quero você!” Murmurou, o timbre da voz alguns decibéis mais graves. “Fica comigo essa noite?”
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(your power - billie eilish)
– Eu gosto de você assim.
– Assim como?
– Em casa, à vontade. Você é como um camaleão, se adapta ao ambiente da melhor forma possível. – Fez uma pausa, refletindo sobre as próximas palavras. – Em Santorini tinha um ar descontraído, praiano. Na editora é um pouco mais séria, muito profissional e aqui você é... – Divagou, fechando os olhos e procurando um adjetivo para descrevê-la.
– Sou? – Raquel incentivou, curiosa.
– Livre. – Ele afirmou, abrindo os olhos e se deparando com um par de pupilas dilatadas em sua direção.
– As 1001 facetas de Raquel Murillo.
– E eu amo o detalhe de cada um deles.
Raquel sentiu as bochechas esquentarem, momentaneamente envergonhada. Não apenas com as palavras, mas com a intensidade contida no olhar de Sergio, que a mirava com típico e tão conhecido ar de devoção. Não pôde evitar desviar sua atenção para longe, a palavra “amor" verbalizada em sua total plenitude causava um pequeno tremor em suas entranhas.
Aquilo tudo era tão pessoal, que por um momento, ela teve dificuldade em separar a ficção da realidade. Foi difícil compreender que aquela não era sua vida. Ah, detalhe importante: ele ainda continuava sendo seu chefe.
Ela sabia que não iria se arrepender do singelo pedido para que ele ficasse, passasse a noite com ela, porém Murillo ainda precisava de tempo para processar a magnitude e rapidez de tudo o que acontecia ao seu redor.
Sergio estava sentado na cama, apoiando as costas na cabeceira, e com o corpo coberto por apenas uma cueca box.
Raquel, por outro lado, tinha acabado de sair do banheiro após um banho relaxante, vestindo apenas uma calcinha branca de renda e uma camisola branca, que lhe cobria até metade do quadril.
Enquanto ela se encarregava de deslizar o creme pela extensão das pernas e coxas, apoiando os pés na penteadeira, Sergio observava cada mínimo movimento. Não de maneira libidinosa, mas com saudade.
A saudade acumulada pelos dias em que ficou longe da pele dela, longe do cheiro dela. Longe do toque das mãos delicadas. Estar ali, a alguns metros de distância, observando-a cuidar de si mesma, borrifando o perfume doce, esparramado o creme nos braços, massageando o rosto, ainda parecia um truque de ilusionismo de sua própria mente.
Tudo estava silencioso, e sem que pudesse controlar os próprios instintos, Sergio se viu sorrindo, abobado, em transe sobre onde estava e com quem estava. Contudo, através do reflexo do espelho, foi flagrado por Raquel.
“Por que está rindo?”
“Estou feliz!” Confessou, convicto. As palavras pintaram um sorriso terno nos lábios de Raquel, que finalmente havia finalizado sua rotina noturna de autocuidados. “Não vai se deitar? O outro lado da cama está frio.” Ele murmurou, fazendo com que Raquel rolasse os olhos.
“Sim, eu só preciso escovar o cabelo.” Deu de ombros, pegando o pente em suas mãos antes de começar a desembaraçar os fios.
“Vem aqui, eu faço isso por você.” Raquel deteve seus movimentos e o encarou pelo espelho, um pouco incerta. “Venha, eu não vou te morder... Claro, a menos que você me peça. Seria um enorme prazer te morder!” Brincou, despertando uma gostosa e sutil risada de Raquel com aquele jeito galanteador.
Vencida pelo cansaço, Murillo levantou-se da penteadeira com a escova em suas mãos e caminhou até o interruptor, apagando a lâmpada. O cômodo ficou iluminado apenas pelo pequeno abajur em cada lado da cabeceira, bem como a luz da lua, que em conjunto criaram um ambiente mais aconchegante, com uma aura relaxante.
Caminhando em direção à cama, sentou-se entre as pernas de Sergio e lhe entregou o pente, sentindo-o deslizar por entre as mechadeiras, escovando-as com todo cuidado do mundo.
“Sabia que é prejudicial lavar o cabelo durante a noite?” Raquel sabia que não era por mal, Sergio às vezes era um pouco...Demasiado precavido. No entanto, isso não a impediu de rolar os olhos.
“Sergio-”
“Calma, eu não gosto te dar nenhuma lição de moral” Garantiu, se distraindo dos fios dourados apenas para ajeitar os óculos no rosto por um instante. “Apenas aconselho que não faça isso com frequência, pode ser prejudicial.”
Sorrindo acanhada, Raquel tombou a cabeça para trás.
“Me dá um beijo” Pediu manhosa, com um delicado beicinho nos lábios, extremamente convidativo a uma série de beijos.
Sergio nem mesmo precisou contar 2x antes de selar os lábios no dela, depositando um beijo estalado.
E ali estava! Sua pretensão havia sido atingida, eles mudariam de assunto e ele não continuaria a pegar no seu pé. Sorrindo vitoriosa, e ajeitando a postura novamente, Raquel continuou:
“O que estava fazendo durante meu banho?”
“Conversando com Tokio, ela me convidou para almoçarmos juntos amanhã.”
Nos instantes que se seguiram, Raquel não disse nada. Se limitou a refletir sobre a atual conjuntura a qual ambos se encontravam. Era um pouco difícil rotular, buscar uma motivação mais madura e menos vulgar. Ela sabia e tinha ciência de que tudo era muito além de sexo, porém, como transmitir isso à própria Tokio sem soar indecoroso?
Sufocada pela própria imaginação, quando Sergio deixou de pentear seus cabelos ela apenas se virou na direção dele e proferiu as palavras, antes mesmo que tivesse qualquer controle sobre elas.
“Você vai contar a ela sobre...nós?”
Uma coisa era tornar aquilo público, outra muito diferente era Tokio tomar o conhecimento. Em realidade, poderia ser muito pior.
Tokio e Raquel sempre se deram bem, e aquilo era um fato. O carinho sempre existiu, independente da relação com Sergio. No entanto, até onde iria a simpatia da herdeira Marquina caso soubesse da relação extra-job entre seu pai e a secretária?
A menor possibilidade de uma rejeição lhe apertava o peito, e contar sobre aquilo a Tokio era um grande passo. Um enorme passo que, talvez, ela não estivesse pronta.
“É isso que você quer?” Sergio hesitou. Nada o deixaria mais feliz do que as duas mulheres de sua vida convivendo, porém, sabia que não seria uma tarefa fácil.
“Não....Sim- quer dizer, eu não sei!” Titubeou, realmente incerta sobre aquilo. “Você já apresentou quantas mulheres a ela em todos esses anos?” A pergunta foi formulada especificamente para sanar a dúvida sobre Tokio, porém Raquel não pôde evitar se sentir curiosa com a expectativa pela resposta.
“Nenhuma.” Raquel riu levemente descontraída, pensando que era uma brincadeira. Mas quando não encontrou qualquer vestígio de diversão nos traços de Sergio, engoliu em seco.
“Calma, espera aí...Nunca?”
“Jamais.”
Naquele momento, a intuição de Raquel praticamente gritou. Seria pior do que ela imaginava. Tokio nunca precisou dividir o pai com nada, nem ninguém. Era a menina dos olhos dele. Porém, por outro lado, aquilo significava que muito provavelmente nenhuma mulher que passou pela vida de Sergio havia sido tão relevante ao ponto de apresentá-la à própria filha.
“Você acha que seria uma boa ideia?!” Questionou, receosa, sabendo que ele conhecia a filha melhor do que ninguém.
“Olha, Raquel.” Respirando fundo, Sergio tomou as mãos dela entre as suas antes de depositar um casto beijo no dorso.”Você é a minha mulher, e eu te quero na minha vida para sempre.” Afirmou convicto, acelerando as batidas do coração de Raquel. “Independente da reação de Tokio ela precisa entender que essa é a minha vida, minhas escolhas. Eu sou o pai, não o contrário. Sem contar que ela é adulta o suficiente para entender, precisa lidar com maturidade.” Sergio manteve a calma para tentar tranquilizá-la, ainda que soubesse que Tokio não seria tão compreensível. Precisava encontrar a melhor forma de ser franco com a filha, principalmente depois de ter mentido quando ela deu abertura para confessar o que na realidade houve em Santorini.
“Sergio, ela vai se magoar comigo.” Ainda frustrada, Raquel sentiu um aperto no peito. “Vai pensar que eu me aproveitei da situação em Santorini, que eu fiquei com você por interesse-” Agitada, a loira começou a cogitar todas as inúmeras e possíveis reações de Tokio, sem saber que a menina era o menor de seus problemas.
“Ei, Raquel, calma!” Encaixando a mão na mandíbula dela, Sergio trouxe a atenção para si, deslizando o polegar sobre a pele macia. “Tudo bem, se você não quiser contar nós não contaremos.” Afirmou tranquilo, sorrindo para confortá-la “E antes de tudo precisamos descobrir o que nós somos.”
“O que nós somos…” Ela repetiu as palavras em um fio de voz e com o olhar distante, mais para si própria do que para Sergio.
Dizem que nossos medos não são reais, até verbalizados em voz alta. O fato de Sergio externar a própria angústia de Raquel foi um golpe forte, mesmo que ele não tivesse a mínima intenção disso. A maior parte de suas amigas estavam casadas, com seus filhos, usufruindo do final feliz que sempre sonharam, enquanto ela sequer poderia andar de mãos dadas na rua com o homem que amava.
Raquel tinha receio de qualquer nomenclatura que pudesse significar uma carga de responsabilidade afetiva. Qualquer laço com Sergio era preceito de ser tachada como interesseira e oportunista, ainda que no fundo tudo aquilo fosse mentira.
Não poderiam simplesmente jogar a realidade para Tokio, porque nem eles mesmos sabiam o que eram.
O primeiro passo para resolver aquela situação era concluir as pendências e traçar novos rumos. E para isso, precisava engolir o orgulho e agir com franqueza, colocando todas as cartas na mesa. Uma relação sem sinceridade e confiança estava fadada ao fracasso, e sabia que para iniciar um novo capítulo ao lado de Sergio, precisava ser honesta. Uma pena que, infelizmente, apenas ela pensou dessa maneira.
(easy on me - adele)
“Eu ouvi o que você disse.” Raquel engoliu em seco, escolhendo as palavras com cautela.
“Sobre?” Franzindo o cenho, Sergio ficou confuso quanto a rápida mudança de assunto.
“Em Santorini.” Foi quando ele percebeu sobre o que se tratava.
Raquel, por fim, decidiu abrir o coração sobre o que lhe atormentou e causou o distanciamento entre eles durante todo aquele tempo.
“Ouvi o que você disse a meu respeito, enquanto conversava com a Carolina.” Sorriu fraco, desviando o olhar. Sergio sentiu um murro na boca do estômago ao remoer as memórias “Quando disse que eu era só sua secretária e que não significava nada pra você...Não posso mentir que aquilo me feriu, me magoou onde eu mais temia.” Confessou, sentindo os olhos arderem. “Eu tinha sido completamente transparente com você durante todos aqueles dias, confiei a você o meu filho, meu corpo, meu coração.”
“Raquel-” Ele tentou interrompê-la, uma vez que não suportaria ouvir. De todas as pessoas do mundo, a que ele menos gostaria de ferir era Raquel, e terminou fazendo exatamente isso, ainda que não intencionalmente.
“Não, Sergio! Me deixa terminar, joder. Eu preciso disso!” Ela interrompeu, brusca. Precisava soltar tudo de uma só vez antes que se arrependesse. “Naquele momento eu estava indo para o quarto te dizer que queria continuar com você, aqui em Madrid!” De repente, a lembrança pareceu amarga em seus lábios. O que teria acontecido se aquela maldita ligação nunca tivesse existido? “Mas quando ouvi o que você disse, eu desisti.”
“Amor” Num fio de voz, Sérgio basicamente murmurou de maneira involuntária. Ele não queria ouvir. Cada palavra de Raquel soava como uma adaga pontiaguda perfurando seu peito. Suportava qualquer coisa, menos o peso de ferir quem ele mais amava.
“Eu estava disposta a tudo, mas quando te ouvi...Pensei que tinha me usado.” Uma lágrima solitária rolou pelo rosto corado de Raquel, enquanto outras se acumulavam nos olhos, prestes a molhar sua pele. Ela, obviamente, ainda estava chateada com Sergio, e mesmo que tivesse se entregado a ele, sabia que tinha suas ressalvas.
“Você realmente acha que eu seria capaz de fazer isso?” Sem esboçar qualquer reação, Sérgio tentava acalmar a tormenta que havia em seu próprio coração. “De te machucar assim, propositalmente.”
“Você quer minha opinião honesta? Eu não sei mais.” Ela confessou, com um sorriso triste, incapaz de conter as lágrimas que agora caiam livremente. “Por um tempo eu confiei em você cegamente, mas depois disso eu acabei revendo meus conceitos e cheguei a pensar que, talvez, eu não te conheça como eu pensava.”
“Eu não...Não queria te expor.” Admitiu, envergonhado. “Carolina me ligou disposta a te prejudicar, ela viu a maneira como eu te tratava, a maneira como estávamos juntos, e Raquel, eu não me arrependo de nada do que aconteceu entre nós dois! Não me entenda mal, eu só...Fiquei com medo de te prejudicar, eu não sabia como lidar com aquilo naquela época. Eu não sabia como você se sentia, não sabia o que estava acontecendo. Eu te queria por perto, mas não queria te prejudicar.” Agitado, Sergio sentia o coração bater descompassado.
“Você fez isso pra não me prejudicar?” Disse Raquel num tom velado, estreitando os olhos ainda em desconfiança. Por mais que tentasse usar a racionalidade e evitar cair no conto de vigário, Sergio parecia sincero.
“Mas é óbvio, Raquel!” Incrédulo, Sérgio não conseguiu evitar demonstrar sua surpresa ao perceber que ela realmente pensava que ele poderia, de propósito, fazer algo para machucá-la ou prejudicá-la. “Eu não vou tentar me justificar pelo o que aconteceu porque não tem perdão. Tive boas intenções, mas não queria que tivesse que sacrificar todo esse tempo sem você.”
Os dois permaneceram alguns segundos em silêncio. Sergio, incapaz de lidar com toda aquela carga emocional, sentiu o peso da culpa sobre suas costas e sem perceber, já estava chorando. O fato é que nenhum dos dois estavam preparados para lidar com a magnitude daquele relacionamento. Era caótico, problemático, que infelizmente havia se perdido por entre uma teia de pendências, afogando em silêncio. Sergio teve boa intenção, mas de boas intenções o inferno estava cheio.
Ninguém vive ou sobrevive de amor, mas naquele momento, era tudo o que ambos tinham nas mãos: o apogeu da ligação humana.
Algumas pessoas nascem e morrem sem sequer terem sido amadas, ou amarem verdadeiramente. Outras, amam demais, enquanto são correspondidas de menos. Em alguns casos, o amor é tão descomunal e impetuoso que uma vida ainda é pouca, perdurando-se através de muitas outras.
Contudo, Sergio e Raquel estavam ali. Um frente ao outro, despidos de toda armadura e empecilho. O sentimento à flor da pele, o amor irradiando por todos os poros. Ela sabia que era questão de tempo até a mágica acabar e tudo aquilo sumir, sabia que em algum momento a muralha iria ruir. A partir do momento em que terceiros descobrissem sobre o relacionamento, deixariam de ser eles mesmos.
Com o pensamento em mente, sem pedir licença, Raquel se sentou no colo de Sergio, rodeando as pernas na cintura para manter o equilíbrio. Quando devidamente acomodada, pousou as mãos na nuca dele, deslizando os dedos, acariciando os fios presentes ali. Murillo respirou fundo, antes de fechar os olhos e colar a testa na dele. Ambos presos numa pequena bolha, onde não havia espaço para nada além de amor.
“Preciso ir devagar, Sergio." Ela começou, engolindo em seco. “Eu nunca tive tempo de respirar, nunca tive chance de sentir o mundo ao meu redor. Eu mal havia me divorciado, e engravidei. Quando tudo pareceu tranquilo, você apareceu e…” Hesitante, Murillo sentia o coração dilacerado. Emocionada pelo calor e intensidade das lembranças, sem que pudesse se dar conta, as lágrimas também rolavam livremente pelo seu rosto. “Eu tenho medo, não tive tempo de escolher o que fazer. Minha vida está uma bagunça, tudo está fora do lugar. E apesar das dificuldades, ainda que eu não confie em você, mesmo que esteja machucada…” Afastando-se de Sergio, Raquel o encarou com um misto de compaixão e ternura. Ele ainda chorava, em silêncio. “Meu sentimento continua imutável.”
Sergio sorriu fraco, o gesto sendo espelhado por Raquel. Com toda a delicadeza do mundo, Murillo aproximou os lábios e distribuiu beijos pela extensão debaixo dos olhos, bochechas, secando as lágrimas com cuidado. O último beijo foi nos lábios, selando aquela implícita e silenciosa prece de amor.
“Me perdoa, me perdoa Raquel, por favor me perdoa!” Martirizado, Sergio prendeu a mão na nuca dela, mantendo-a no lugar. – Eu não queria te machucar.
“Claro que eu te perdoo, cariño.” Com um sorriso triste, Raquel o puxou para um abraço, afundando o rosto no pescoço dele, inalando o delicioso perfume de recém banho tomado. Sergio circulou a cintura fina, intensificando o aperto. "Claro que eu te perdoo."
Se o mundo acabasse ali, naquele momento, ele morreria sendo o mais feliz dos homens.
Por fim, tudo havia sido esclarecido. Bom, quase tudo. No entanto, por hora, era o que bastava.
~•~
No meio da noite, Raquel acordou num súbito e desistiu de dormir. O relógio marcava 4h45 da madrugada, e ela não havia conseguido pregar os olhos. Agradeceu silenciosamente por ser sexta-feira, e poder estender o sono perdido no dia seguinte. Passou alguns segundos encarando o teto, como se estivesse procurando uma solução para todos os seus problemas.
Porém, ao tombar a cabeça para o lado se deparou com uma pequena galáxia. A visão lhe cativou, e ao apoiar a cabeça na mão suspirou ao observar o homem adormecido. Os bíceps eram torneados, as costas nuas e másculas de Sergio formavam uma constelação de estrelas, cada pintinha desenhada na pele lhe aguçava o toque.
Raquel estava inquieta, extremamente tentada a tocá-lo. Até que, incapaz de resistir a agitação que serpenteava pelo corpo, se aproximou com calma e depositou um casto beijo sobre a pele quente.
Após a penosa conversa que tiveram, trocaram uma série de carícias antes de caírem no sono. Ela sabia que a relação deles não era só sexo, mas no fundo, tinha sensação de que faltava algo.
Tocou-lhe os ombros com calma, sentindo a textura macia. Atrevida, foi subindo os beijos com cautela, traçando um caminho preguiçoso, até chegar no pescoço, foi quando Sergio começou a se mover. Ao ajeitar a postura, ainda de olhos fechados, as mãos foram direto para a cintura de Raquel.
“Não consigo dormir.” Ela murmurou, dengosa, acomodando o corpo sobre o dele. “Me perdoa te acordar.”
“Nunca peça perdão por isso.” Raquel sentiu um arrepio, a expectativa percorrendo por suas células. Quando ele abriu os olhos, ela sentiu o coração bater mais forte. Sergio sabia exatamente onde ela queria chegar, sabia exatamente do que precisavam. “Está quase amanhecendo.” Ele ponderou, encarando o céu clareando gradativamente. Enquanto isso, Raquel raspava os lábios sobre o pescoço dele, deixando um rastro de beijos molhados por onde passava. Sergio se deleitava com as sensações que ela lhe proporcionava, os dois sempre funcionavam juntos e aquilo não era nenhuma novidade.
“Sim, quase.” Respondeu, arrastada. Raquel precisava de mais. De uma forma peculiar, ela sentia a urgência de tê-lo junto a si. Não havia um motivo coerente ou racional, na verdade, quando se tratava de Sergio tudo parecia inebriante. Hipnótico, passional.
“Já assistiu o nascer do sol?” Questionou, agarrando os cabelos como quem não queria nada. A princípio, Raquel não entendeu onde ele queria chegar, mas gemeu trêmula ao, acidentalmente, friccionar seu clitóris com a intimidade dele e notá-lo endurecer.
“Em Santorini.” Murmurou, preguiçosa, enquanto subia os beijos morosamente. “Mas não prestei atenção, estava ocupada demais.”
“Ah, é? E você sente saudades de lá?”
“Sim, muita.” Gemeu, com dificuldade.
“Vem aqui, amor. Quero te mostrar algo.” Com um pequeno vinco na testa, bêbada de tesão e com a mente completamente nublada de tanto desejo, Raquel se afastou minimamente, apenas para tentar compreender onde ele queria chegar. “Senta aqui na minha frente.”
“O que?” Ainda confusa, Raquel alçou uma sobrancelha na direção dele, principalmente quando Sergio começou a se ajeitar, encostando as próprias costas na cabeceira.
“Confia em mim, Raquel. Senta aqui na minha frente.” Aquilo estava longe de ser um convite educado, principalmente pelo olhar obstinado de Sergio.
Murillo deu de ombros, ainda sem entender onde ele queria chegar, porém sentindo uma gostosa vibração no estômago. Quando se ajeitou na frente de Sergio, seus olhos vislumbraram o horizonte ao longe, pela porta aberta da sacada.
“Sergio, o que você-“ As palavras em sua boca se transformaram num gemido quando ele apanhou seus cabelos e apertou com um pouco de força.
Quando o espaço estava livre, Sergio começou a roçar o nariz pela extensão da nuca, e foi descendo vagarosamente pelo pescoço, mordiscando a pele exposta.
“Como eu senti sua falta.” Ele murmurou, mordiscando o lóbulo da orelha, provocando-a deliberadamente.
“Sergio...” Gemeu, enfiando as mãos no cabelo dele. “Eu quero te olhar.”
“Tudo ao seu tempo, amor.”
Com um último beijo molhado, Sergio soltou o cabelo e procurou a barra da camisola branca, subindo-a pelo corpo e jogando ao longe, deixando Raquel apenas com a fina calcinha.
Murillo tremeu, mas não sabia se era de tesão ou de frio. Mas quando as mãos dele voltaram pro seu corpo, ela sentiu a pele arder. Naquele momento, o mundo se resumia àquele quarto, entre quatro paredes, queimados pelo ânsia e saudade que nutriam um pelo outro. Raquel se sentia um pouco mole, mas quando encostou as costas no peito nu de Sergio, tombou a cabeça para trás ao sentir o toque da ponta dos dedos dele deslizarem pela sua clavícula.
“Raquel, me fala uma coisa.”
“Hum...”
“Durante o tempo em que estivemos separados.” E a cada palavra proferida, ele abaixava o toque lentamente. Raquel tinha os olhos cerrados, respirando com certa dificuldade “Você alguma vez se tocou?”
Disposto a brincar com o corpo estendido ao bel prazer, Sergio roçou os mamilos com a ponta dos próprios dedos, com calma, sem pressa. Contudo, o peito de Raquel já estava duro feito uma pedra, e não precisou de muito para estimulá-lo.
“Sim.” Ela murmurou, de olhos fechados, enquanto sentia o corpo inteiro se arrepiar.
Ao ouvir a resposta, Sergio fechou a palma sobre o mamilo e gemeu ao apertá-la contra si. Raquel perdeu o fôlego e empurrou o corpo para trás, sentindo o desejo pulsante contra suas nádegas.
“Sergio-“ Gemeu, quando ele levemente beliscou os mamilos entumecidos. Porém, antes de seguir o caminho, gentilmente contornou os lábios, deslizando com os dedos, entreabrindo. Raquel entendeu o recado, então pegou sua mão e levou para dentro de seus lábios. Utilizando-se da aura de puro erotismo proporcionada pelo o que estava por vir, Murillo chupou dois dedos, a sucção e manobra com a língua reverberando no corpo do próprio Sergio, fantasiando suas habilidades em outro lugar específico.
Sergio tinha seus batimentos cardíacos acelerados, e não tinha feito metade do que pretendia. Colando os lábios no pescoço, mordiscou um ponto sensível, e quando Raquel soltou um gemido rouco, ele aproveitou a oportunidade para seguir o percurso inicialmente pretendido, antes que perdesse a cabeça.
Quando os dedos sondaram a intimidade, Raquel estremeceu em expectativa. “E quando você se tocou, amor, estava pensando em quê?" Murmurou, puxando o tecido para o lado.
Com o dedo indicador, Sergio pressionou o clitóris inchado, que implorava por atenção. Raquel sentiu um pequeno espasmo quando ele começou a massageá-la em círculos, a sensação inebriante de prazer tomou posse de todas as células do seu corpo, mas engoliu em seco e conseguiu reunir forças para respondê-lo.
“Em você.” Admitiu, sem pudor.
Com a resposta, Sergio passeou com o dedo do meio através da intimidade, testando a lubrificação, e ao notar que ela já estava bem molhada, introduziu um dedo em sua entrada, sem pressa, porém nunca abandonando o clitóris. No ato, Raquel gemeu arrastada, agarrando os cabelos de Sergio com força.
Ao notar os reflexos de Raquel, Sergio começou a mover o dedo vagarosamente.
“Sergio!” Aquele som era música clássica para seus ouvidos.
Enquanto uma mão apertava o peito, a outra seguia trabalhando ininterruptamente. Ao introduzir o segundo dedo, Raquel tremeu e gemeu sôfrega, um pouco mais alto, a respiração entrecortada. A precisão de Sergio era divina, e um tempo depois do vai e vem torturante, ele continuou.
“Amor, olha pro céu.”
Quando Raquel abriu os olhos, com a visão um pouco tuva, encarou a paisagem, se deparou com um céu parcialmente claro, e com uma luz rosa ao fundo, como se os raios do dia tivessem lutando pelo espaço em meio a escuridão. Um espetáculo inexplicável.
Foi quando Sergio começou a intensificar seus movimentos, e introduziu um terceiro dedo. Raquel foi pega de surpresa com o ato e soltou um grito rouco. Enquanto isso, o membro dele testava a elasticidade da cueca, latejando pelo prazer contido.
“Sergio!”
“O amanhecer é lindo.” Curvando os dedos dentro dela, saindo e entrando cheio de ímpeto enquanto esfregava o clitóris com a palma da mão, Sergio sabia que ela estava próxima ao sentir as paredes se contraírem. “Porém não é nada comparado com você.”
Capturando os lábios num beijo desesperado, Sergio mergulhou a língua no interior da boca dela, explorando cada canto, a lascívia cegando-o por completo. Enquanto ambos praticamente lutavam para ver qual era o mais faminto, Raquel rebolava e investia o quadril em direção aos dedos dele.
“Por favor, Sergio!” Ela murmurou, mordendo os lábios para conter os próprios instintos, não queria fazer barulho, mas era algo involuntário.
“Ah, Raquel!” O ventre começou a pulsar, ao tempo em que as paredes internas o contraiam ainda mais, um presságio do orgasmo arrebatador que estava por vir.
“Sergio, eu vou gozar.”
“Goza pra mim, amor.”
“Não!” Protestou, convicta. “Eu quero gozar com você!”
Era indecente o quanto ela o desejava. A sensação de tê-la dentro de si era descomunal, e ainda que tivessem transado e se reconciliado horas atrás, Raquel queria mais. Quando se tratava de Sergio, ela era insaciável.
Juntando suas forças, Raquel empurrou as mãos de Sergio e se pôs de joelhos na cama, arrancando a calcinha no percurso. Um segundo mais tarde, voltou a beijá-lo de maneira voluptuosa enquanto ambos se reviravam na cama.
Quando se viu por cima do corpo estirado sobre a cama, Raquel jogou a cueca longe antes de se sentar sobre o membro rígido e friccioná-lo com sua própria intimidade. Ao notar os lábios entreabertos de Sergio, completamente imerso no próprio prazer, Raquel sorriu ao contemplar a sensação de prazer que causava nele. Era inexplicável oferecer tamanho efeito a um homem que fora das quatro paredes tinha tudo, porém dentro do quarto era um simples devoto a ela, ao seu corpo, e principalmente, ao seu amor.
Agarrando-lhe com força pela cintura, Sergio gemeu suplicante.
“Senta pra mim, Raquel.”
Foi o que bastou para que ela colocasse um fim naquela tortura, e introduzir a ereção dentro de si. Raquel gemeu, sentindo o sexo contrair em torno da penetração rígida.
“Raquel!” A mandíbula de Sergio travou, enquanto sentia o corpo dela deslizar com certa dificuldade.
Quando ela chegou até o fundo, fincou as unhas no peitoral de Sergio, gemendo pela sensação dolorida de recebê-lo por completo.
“Eu senti tanto a sua falta!” Ela murmurou, começando a mexer os quadris com lentidão.
“Não mais do que eu.”
Sergio estava alucinado! Raquel tinha o colo iluminado pelos primeiros raios de sol, a nitidez visível aos olhos lhe roubando as palavras. Não havia descrição racional para a imagem do corpo balançando ritmadamente, subindo e descendo, preenchendo seu corpo de forma utópica. O clitóris esfregando contra a pelve dele, a expressão de puro prazer contorcida no rosto, como quem aguardara ansiosamente para saciar a fome que nutriam por todos os meses separados.
Os músculos de Sergio enrijecem a cada movimento, resultando num aperto forte na coxa. E ali sob a luz do amanhecer, Raquel ondulava o quadril indo de encontro ao dele, e mantinham o contato visual inquebrável. Conectados pela mente e coração.
Aumentando a velocidade, Sergio soltou um palavrão, arrebatado pela sensação afrodisíaca. O cheiro, o toque, os gemidos. O corpo dela com a fina camada de suor brilhando sob os raios de sol.
Foi quando Sergio tomou impulso e jogou o corpo pra frente, enlaçando a cintura dela e apertando com força enquanto a língua deslizava pela pele quente do pescoço, traçando um caminho tão conhecido. Raquel continuava subindo e descendo preguiçosamente, entregando tudo de si enquanto deslizava as unhas pelas costas com força, deixando uma série de vergões vermelhos pela pele, e em resposta, o corpo dele se arrepiava, contraindo cada músculo.
Quando o autocontrole de Sergio extrapolou os limites, a tomou pela nuca com força e jogou o corpo para baixo de si, invertendo as posições e tomando as rédeas da situação. Dentro de si havia uma força visceral e animalesca, implorando para extravasar.
Raquel riu no percurso, mas o riso morreu nos lábios e se transformou num gemido arrastado quando Sergio encontrou o caminho e deslizou para dentro dela com facilidade, penetrando-a com uma força e precisão excruciante.
Era brutal. Sergio estava disposto a reivindicar cada centímetro que estivesse ao seu alcance.
Ao perceber que estava próximo ao ápice, Sergio procurou a mão dela antes de entrelaçar os dedos e prendê-la acima da cabeça. Os gemidos foram intensificando à medida em que os dois se aproximavam cada vez mais do ápice.
Segundos mais tarde, a esmagadora sensação de prazer foi tão intensa, que terminou por arrebatá-los. Ao atingirem o êxtase, Raquel soltou um pequeno grito que foi rapidamente abafado pelos lábios de Sergio, num beijo apaixonante, molhado e cheio de vontade.
O corpo dela se contorcia debaixo dele, ao tempo em que fincava as unhas nas costas de Sergio para buscar apoio, agarrando-o com a perna para manter-se no lugar.
Os espasmos violentos serpenteavam por toda extensão do corpo de Murillo, espalhando uma sensação gostosa de alívio. Sergio soltou o peso sobre o corpo esguio, esmagando-a contra o colchão, mas ela não poderia se importar menos.
Ambos ficaram na mesma posição por alguns minutos, Raquel completamente imersa, entregue e rendida ao prazer enquanto ele mantinha o rosto no pescoço, inebriando-se do perfume que tanto amava. Era o cheiro, o toque, o sabor, a companhia.
Estavam exaustos, mas foi inevitável.
Com muito custo, Sergio se levantou da cama e foi até o banheiro da suíte, limpando a si próprio antes de voltar e limpá-la. Raquel mal processava o que acontecia ao seu redor, os olhos estavam cerrados, e faltava muito pouco para, por fim, conseguir adormecer em paz.
Quando Sergio voltou para a cama, Murillo não perdeu tempo antes de emaranhar o corpo dele, como uma gatinha manhosa.
Deitada, sentindo as batidas do coração de Sergio contra o peito, Raquel deslizava a ponta dos dedos sobre o braço dele, enquanto Marquina se ocupava de acariciar-lhe pela extensão das costas. Ambos os corpos iluminados pelos primeiros raios de sol num céu já alaranjado. Tudo parecia tranquilo, propício imediato mergulho ao mundo dos sonhos, até que, perturbado, ele começou:
“Raquel?”
“Hm?” Murmurou, já sem conseguir formular um pensamento coerente.
“O que nós somos?” Repetiu as mesmas palavras de anteriormente, porém num tom inquisitório. A pergunta a pegou desprevenida, não esperava aquele tópico novamente naquele momento, muito menos depois do que havia acabado de acontecer. Contudo, não pôde deixar de notar os músculos de Sergio enrijecidos. Ele precisava de uma resposta, caso contrário não ficaria tranquilo.
“Dois adultos que se importam um com o outro." Afirmou, usando seus dois últimos neurônios ativos para formular uma resposta coerente.
“Dois adultos que se importam um com o outro?”
“Isso é o máximo onde eu posso chegar.”
Ao ouvir as palavras, Sergio relaxou os músculos e depositou um casto beijo nos fios dourados e levemente úmidos pelo suor.
Ele não verbalizou nada, nem tentou discutir, deixou-a cerrar os olhos e finalmente adormecer.
Dizem que acreditamos naquilo que é mais conveniente. Quando somos crianças, acreditamos em coelhos da páscoa e papai noel. Quando adolescentes, desejamos um amor saído de um filme clássico e clichê.
E naquele amanhecer, assim como uma criança espera ansiosamente pelo natal e a oportunidade de redigir uma cartinha ao papai noel, Sergio só fechou os olhos e, de todo o coração, pediu apenas uma coisa:
Uma vida onde Raquel fosse inteiramente sua, sem reservas e barreiras.
Marquina só queria e precisava de uma oportunidade, contudo, sem imaginar que a manifestação de seu pedido estava mais próxima do que ele imaginava.
~•~
Dias depois
Raquel: “Você tá fazendo alguma coisa importante? Tipo, trabalho.”
Sergio: “Sim, por que?”
Sergio: “Por que, Raquel?”
Raquel: “Eu queria um abraço.”
Sergio: “Ok, quer que eu vá ou você vem?”
Raquel: “Mas e o trabalho?”
Sergio: “ Você é mais importante.”
Quando Raquel entrou no escritório, fechou a porta atrás de si e apoiou as costas na madeira, soltando uma lufada de ar. De uma maneira estranha, ela estava se sentindo incomodada naquela manhã...Além do normal.
Até então, mal havia tido tempo para sequer encará-lo por mais de 1 minuto. Havia se adaptado à rotina onde Sergio diariamente a puxava para o escritório e lhe roubava uma série de beijos antes de começar o expediente.
Contudo, excepcionalmente, naquele dia sequer trocaram mais de 5 palavras.
“O que houve?” Sergio questionou, sem desgrudar os olhos dos documentos em suas mãos.
“Nada...” Raquel deu de ombros, desgrudando o corpo da porta e se aproximando sorrateiramente.
“Tem certeza?”
“Sim, eu só precisava relaxar um pouco.” Precisava de você.
Como a gatinha manhosa que era, Raquel passou por debaixo dos braços de Sergio, que ainda continuava compenetrado nos papéis, e encaixou o corpo no dele, abraçando-o com força enquanto se colocava na ponta dos pés para esconder o rostinho no pescoço. Ali, naquele ponto específico, Raquel se sentia em paz. O perfume dele era feito antídoto, a simples presença a acalmava, e ao estar rodeada por aquele abraço ela se sentia segura, protegida. Seu próprio lar.
Incapaz de resistir aos encantos de Murillo e seguir concentrado no conteúdo dos papéis em suas mãos, Sergio suspirou antes de intensificar o aperto e depositar um beijo carinhoso no cabelo dela.
Ficaram na mesma posição cerca de 5 minutos, rodeados por um silêncio confortável. Até o momento que Raquel, curiosa, queria saber o que de tão grave havia naqueles papéis para deixá-lo tão rígido.
“O que você está fazendo? Está muito tenso.” Murmurou, passando a ponta do dedo na mandíbula enrijecida.
“Planilhas do financeiro, alguma coisa não está batendo.”
Por mais que empenhasse todo seu esforço em não transparecer seu nervosismo, Raquel percebeu que ele estava realmente inquieto. E que aquilo parecia grave. Muito grave.
Durante 5 anos, Murillo havia presenciado pouquíssimos episódios como aquele. No início, Sergio costumava ser bem fechado, contido em seu próprio universo. Porém, mesmo quando permitiu a sutil entrada de Raquel em seu próprio mundo, não se permitia externar os próprios impasses, e sempre preferiu cuidar dos próprios problemas sozinho. E, talvez, esse fosse o seu maior pecado.
“Alguma coisa tipo o que?” Ela tentou, percebendo nitidamente que ele precisava colocar aquilo para fora.
Desvencilhando-se do corpo de Raquel, Sergio a pegou pela mão e a levou em direção a mesa. Sobre o tampo havia alguns papéis espalhados, cada maço coincidia a um ano diferente.
“Os lucros não cobriram o gasto, trouxeram apenas prejuízos. Essa é a terceira vez que isso acontece só neste ano.” Começou, entregando o balanço financeiro dos últimos 2 trimestres. Raquel correu os olhos pelos papéis, números e mais números, que ao fim, indicavam uma média de 40 mil euros. Uma quantidade assombrosa, principalmente levando em consideração o tamanho da editora e o capital investido. “De acordo com a análise de mercado, e o relatório enviado pelo próprio setor de vendas a última coleção teve um índice muito alto de vendas...”
“Mas os cálculos não coincidem.” Ela completou, ao notar um nítido incômodo de Sergio com toda a situação. Apontar os fatos em voz alta seria verbalizar em alto e bom tom uma realidade que ele se negava a aceitar, mas era preciso reagir. “Você sabe que isso está gritando...”
“Desvio.” Concluiu, sentindo o peso do mundo caindo sobre as costas. “Sim, eu sei. Porém não faço ideia de onde e nem quando, em qual departamento esse inferno foi acontecer!” Num suspiro de frustração, Sergio jogou os papéis na mesa e deu as costas.
Por outro lado, Raquel continuava impassível, analisando o conteúdo probatório com toda atenção do mundo. Não era sua responsabilidade, mas era algo que atingia diretamente o homem com quem dividia a cama, e a si mesma. Raquel estava há tanto tempo na editora, que havia se tornado parte dela, ali estavam suas amigas, Sergio, e seu trabalho. Existem poucas pessoas que gostam genuinamente de seu trabalho, e Raquel Murillo era uma delas.
“Primeiro você precisa voltar um pouco no tempo e analisar em qual planilha as coisas começaram a desandar.” Começou num tom de voz firme, atraindo a atenção de Sergio. “Sugiro que entre em contato direto com os departamentos, especialmente o de vendas. Os números são exatos, e você consegue espelhar com os quais têm em mãos. Ah, e o mais importante de tudo: não comunique o financeiro.” Concluiu, como se aquilo tudo fosse a coisa mais óbvia do mundo. Fascinado, Sergio pousou os olhos na figura de sua secretária e seus pensamentos se resumiram no quanto ele era -fodidamente- sortudo por tê-la consigo.
Feito o sol, como sempre, Raquel surgiu trazendo sua luz, clareando as ideias e pensamentos de Sergio. De fato, ele estava tão nublado e perdido com o golpe que sequer teve tempo de pensar em uma solução. Mas ali estava ela, despretensiosa, salvando a pele dele mais uma vez.
“Sergio, você confia em todos os seus diretores?” Concentrada, e com o cenho levemente franzido, Raquel o encarou com a sobrancelha arqueada.
“Eu só confio em você.” Confessou, sincero. Raquel rolou os olhos um pouco envergonhada, mas sabia que era verdade.
“Sergio, estou falando sério. Não confio em nenhum dos seus diretores de departamento.”
O lado bom de manter um relacionamento com o próprio chefe, era a liberdade de poder dizer o que tivesse vontade. E, bom, naquele momento Raquel não se importava muito com o que Sergio poderia pensar, tudo o que queria era salvar a editora daquele aparente fiasco.
Sergio pareceu pensar nas palavras de Raquel, e sim, ela tinha razão. Raquel sempre tinha razão. Nem ele mesmo confiava nos próprios diretores de seu empreendimento.
“E ainda tem o Conselho.” Pontuou, pensativo. “Acha que realmente existe algo proposital e ilícito por trás disso?”
“Se eu acho que tem corrupção dentro da sua empresa? Não tenho a menor dúvida, muito menos depois de ler esses documentos.”
Raquel era genial. Definitivamente a mulher mais sexy do mundo, mas Sergio a amava por sua inteligência e genialidade. Murillo tinha uma gritante envergadura para os negócios, era natural, ela não precisava se esforçar. Talvez, por isso, ela era a única pessoa a qual Marquina confiava cegamente, sem titubear. Naquele momento, Sergio sentiu o os ombros relaxarem, como se estivesse voltando a órbita após uma pequena vertigem.
“Você é incrível, sabia?”
Aproximando-se lentamente com o olhar de “por favor, fica comigo pra sempre, você é o amor da minha vida”, Sergio pegou os papéis da mão de Raquel e jogou sobre a mesa antes de rodear a cintura e puxá-la para si. Sorrindo vitoriosa, Murillo sentiu o coração se aquecer ao notar que ele havia se distraído do problema graças a ela, ainda que por alguns minutos.
“Não sou apenas incrível, por deus, eu sou a Raquel.” Brincou, rolando os olhos e erguendo o ombro graciosamente. O sorriso alcançou-lhe os olhos, contagiando o próprio Sergio.
Tombando o rosto para frente, entre sorrisos e uma aura de puro amor, Raquel colou a testa na dele ao tempo em que jogava o braço ao redor do pescoço, abraçando-o enquanto mergulhava os dedos no cabelo macio.
Raquel respirou fundo, antes de roçar o nariz contra o dele, num carinho delicado. Passaram alguns minutos em silêncio. Olhos cerrados, agarrados um ao outro como se suas vidas dependessem daquele contato. O mundo parecia prestes a desmoronar, mas eles precisavam de um momento para reconectar consigo mesmo. Um com o outro.
“Vem jantar comigo hoje.” Num fio de voz, Sergio aproveitou o embalo do momento e fez o pedido sutil, esperando que não tornasse pauta de discussão e que Raquel simplesmente dissesse sim. Odiaria quebrar o clima instalado.
No entanto, bem, era Raquel.
“O que?” Murillo se afastou minimamente, apenas pelo espaço suficiente para ter uma visão nítida do rosto dele.
“Vamos sair para jantar. Eu quero ficar com você longe desse escritório, programações de qualquer casal minimamente comum.” Explicou, e Raquel sentiu o coração afundar de tanta pena.
“Sérgio, é arriscado, não? Isso é clandestino, e você sabe disso.” Ela detestava a posição de policial ruim da relação. Odiava precisar puxá-lo para racionalidade, mas Sergio tinha um espírito livre, imaginação fértil, e em algumas ocasiões aquilo poderia ser prejudicial. “O que uma pessoa da editora diria se nos encontrasse?” Sentindo-se a pior pessoa do mundo, Raquel se martirizou silenciosamente por repreendê-lo. Até porque, no fundo, ela desejava tanto quanto ele um momento ‘normal’.
“Que são dois colegas de trabalho jantando, o que há de errado nisso?” Sergio defendeu seu próprio ponto, como se fosse óbvio.
“Esse é o problema Sergio, você não é meu colega de trabalho.” Cabisbaixo, Sergio afrouxou o aperto na cintura, permitindo que Raquel se afastasse. “Você é meu puto chefe, sequer deveria existir coleguismo entre nós dois e adivinhe? Eu tiro minha roupa para você, você dorme na minha cama.” A pontada de sarcasmo na voz de Raquel abriu um pequeno buraco no coração de Sergio. “Nem a sua filha sabe sobre nós, Sergio.”
“Raquel, não trate disso como se eu estivesse pedindo para me casar com você.” Murillo arregalou os olhos em incredulidade, engolindo em seco pelo susto. Não esperava que as palavras de Sergio a afetassem, mas, bem, feriu seu ego. “Eu só quero te levar para jantar em um lugar muito tranquilo, seguro, numa mesa bem reservada e distante. Só queria estar com você em um lugar que não fosse o escritório ou na sua casa.”
“Sergio...”
“Por um dia, Raquel, um dia! Eu só queria ter uma experiência comum com a mulher que eu...” As palavras morreram nos lábios de Sergio quando ele se deu conta do que estava prestes a dizer. Raquel perdeu o compasso da respiração e sentiu as mãos suarem de nervoso. Eles nunca confessaram os verdadeiros sentimentos um ao outro, por mais que fossem óbvios, e a probabilidade de Sergio o fazer naquele momento a atormentou, e sua hesitação não passou despercebida por Sergio. “Quer saber? Deixa isso para lá.” Respirando fundo, Marquina deu-lhe um aceno negativo, antes de levar a mão ao rosto. “Foi um erro, me perdoe.”
Virando-se sobre os pés, Sergio deu-lhe as costas e pousou as mãos na mesa, apoiando o próprio peso. Misturar negócios com prazer era como uma montanha-russa. enquanto isso, Raquel permaneceu imóvel, refletindo sobre tudo o que acabara de acontecer.
Por que precisava ser tão séria?
Por que o repreender de maneira quase insensível?
Sergio estava passando por um momento delicado, estressante. Ele só tinha um pedido. Um simples e muito singelo pedido. Um jantar.
Afinal, ela estava receosa pela relação, ou por si mesma? Seu medo maior era a opinião a respeito dela, ou o que ela mesma pensava sobre tudo aquilo? O que era maior, seu amor por ele ou o medo de ser exposta ao mundo?
Sergio estava certo, não era um pedido de casamento. Era apenas um jantar. Não seria sacrifício algum passar um par de horas num restaurante, desfrutando de um bom vinho e jogando conversa fora com assuntos diversos. Ela merecia, eles mereciam isso. Precisavam de um respiro do mundo externo.
Sentindo-se a pessoa mais egoísta do mundo, ela engoliu o próprio orgulho e aproximou-se de Sergio. Poderia ser a voz da culpa, mas era tarde demais, já havia tomado sua decisão.
Sergio seguia de costas, sentindo uma pequena dor de cabeça. Detestava discutir ou ficar em maus termos com Raquel. Foi então que um par de mãos delicadas surgiram em seu campo de visão, tocando-lhe o peito, sentindo as batidas do coração atormentado. Um sorriso triste surgiu em seus lábios quando Raquel tombou o rosto em suas costas, abraçando-o com força.
“Não quero deixar isso pra lá.” Ela começou, falando tão baixo que se não fosse pelo silêncio sepulcral ele sequer conseguiria ouvi-la. “Eu quero ficar com você!”
~•~
“Sabe o que eu estava pensando?”
“O que?”
“Na festa de Natal do ano retrasado, quando Santiago nasceu.” Comentou distraído, com o sorriso genuíno pela doce lembrança.
“E por que pensou nisso?” Com o cenho franzido, Raquel arqueou as sobrancelhas e o encarou intrigada, enquanto bebericava o vinho em sua taça.
“Foi a primeira vez que eu queria te beijar.” Atrevido, Sergio umedeceu os lábios antes de prender o inferior entre os dentes. “Eu queria muito te beijar.” Enfatizou, malicioso. As bochechas de Raquel enrubesceram automaticamente ao ouvir as palavras, obrigando-a desviar o olhar. “Berlim disse que eu não consegui esconder o quanto queria ficar a sós com você.”
“E você não conseguiu, tanto que foi atrás de mim.” Ela completou, sentindo-se vitoriosa, enquanto jogava o cabelo para trás fazendo charme.
“Hm...” Fingiu pensar, como se estivesse procurando a ocasião na memória quando, na realidade, ele se lembrava de cada mínimo detalhe daquele dia. “É verdade.”
“Você não vive sem mim.” Convencida, Raquel piscou de maneira encantadora, fazendo um biquinho extremamente encantador com os lábios.
Incapaz de resistir, Sergio não se conteve em admirá-la e precisou roubar-lhe um beijo. Chupou os lábios dela vagarosamente, saboreando o doce gosto de baunilha, que em conjunto com a maciez do toque despertavam o mútuo desejo de irem pra casa, onde poderiam matar a urgência de um pelo outro.
Estavam sozinhos, em uma área isolada do restaurante Golden Star. Era o ponto gastronômico favorito de Sergio em Madrid.
Após fazerem as pazes e trocarem os devidos pedidos de desculpas, se dirigiram ao restaurante onde passaram aproximadamente cerca de três horas conversando sobre vida, rotina, família, e principalmente, sobre Santiago.
Partilharam uma deliciosa sobremesa de Crème Brûlée de fava de baunilha, casquinhas de açúcar queimado, coberto por um creme de chocolate, polvilhado com avelãs granuladas e morangos em pedaços. Divino!
Quando enfim se separaram, um pouco a contragosto, Murillo tinha os lábios inchados e o rosto corado. Completamente bêbada de desejo.
“Você me alucina.” Sergio murmurou, num timbre rouco, mais para si do que para a própria Raquel. “Vamos embora, por favor.”
Porém, antes que Sergio pudesse sinalizar para o garçom ao longe, Raquel o impediu.
“Calma, Sergio, espera.” Com um vinco de confusão na testa, Sergio não disse nada, apenas esperou que ela completasse. “Preciso te contar uma coisa.” Sentindo-se minimamente culpada pela segunda vez nas últimas 24 horas, Raquel desviou o olhar para as próprias mãos em seu colo.
“O que?”
“Queria ter contado isso antes, não sabia como você iria reagir então preferi esperar um pouco.” Sergio não gostou do rumo daquela conversa, na verdade tinha um pouco de receio, imaginando o pior. Porém nem em seus piores pesadelos, ele poderia prever as seguintes palavras de Raquel. “Eu...” Começou, hesitante. “Eu estou enviando meu currículo para algumas empresas e escritórios. Quero outro serviço.”
“O que?” Num fio de voz, Sergio de repente sentiu a boca ficar seca.
Raquel continuou dizendo algumas palavras, mas que reverberavam de maneira desconexa. Tudo parecia nublado, enquanto suas engrenagens pareciam incapazes de compreender o que acabara de ouvir. O rosto assumiu uma tonalidade pálida, ao tempo em que sua pressão pareceu cair gradativamente. E Raquel, ao perceber o estado em que estava, pegou o rosto dele entre suas mãos e o puxou para si, tirando-o abruptamente do transe.
“Sergio? Ei?”
Ainda um pouco atônito, Sergio a encarou com um pouco de incredulidade. Ainda sem conseguir digerir.
“Você está bem? Pelo amor de Deus, Sergio” Sentindo o peso da culpa em seu coração Raquel pegou o pano em seu colo e passou pelo rosto dele, enxugando algumas gotículas de suor que haviam se acumulado ali. “Sergio, entenda que ser sua subordinada direta me incomoda. Não quero ser vista como a secretária que mantém o emprego por transar com o chefe.”
Ainda num estado de choque, Sergio pegou o copo de whisky e virou num gole. O líquido desceu queimando pela garganta, o corpo absorvendo o álcool para espantar a sensação de pavor.
Atordoado, Sergio levantou o braço e chamou pelo garçom. Precisava de mais!
“Me traz mais um!”
Com um aceno positivo, o garçom se afastou e os dois ficaram sozinhos novamente.
Sergio apertou as pálpebras e massageou as têmporas, respirou fundo e soltou uma lufada de ar. Ele sentiu uma forte pontada no peito, mas respirou fundo para não transparecer. A remota ideia de Raquel longe dele lhe causava arrepio nas entranhas, ele simplesmente não existia sem ela. Sequer poderia cogitar um cenário o qual ela não fizesse parte.
“Eu não estou saindo da editora amanhã, sigo apenas procurando. Achei que você precisava saber.”
Sergio sorriu fraco, um pouco sarcástico. É óbvio que ele precisava saber! Porém, deixando as próprias lamentações de lado, focou no que era mais importante naquele momento. Um mundo onde Raquel não estivesse por perto era simplesmente insustentável.
“O que eu vou fazer sem você, Raquel?”
Murillo sentiu um pouco de pena ao notar o timbre carregado de mágoa. O queixo dele estremeceu de maneira discreta, como se estivesse se segurando.
“Sergio, eu te ajudo a encontrar uma substituta. É só um cargo de secretária, não vai fazer diferença! E vamos continuar juntos, independente disso.” As palavras saíram de forma espontânea, nem ela mesma acreditava naquilo. Uma coisa é um relacionamento escondido, ambos juntos e a sós no mesmo andar por um dia inteiro e durante a semana toda. Outra coisa, muito diferente, era levar aquilo a maiores, fora das quatro paredes da editora. E era exatamente isso que ela temia, porém, ao que tudo indicava, seu próprio subconsciente estava disposto a dar-lhe uma bicuda no traseiro para vê-la reagir.
“Não é o cargo, é você!” Confessou, beirando a indignação. “Como espera que eu chegue na editora todos os dias e não te encontre na sua mesa, ou na minha?” Raquel engoliu em seco, sentindo a consciência pesar por um instante. A verdade é que nem ela tinha noção de como seria uma rotina a qual ele não fizesse parte.
“Sergio, isso é por mim! Por nós dois!” A voz tremeu, carregada de súplica. “Você não entende que enquanto eu estiver na editora não existe um futuro pra nós dois?”
A menção a palavra “futuro” o desarmou por completo. Normalmente, entre os dois ele era o sonhador, idealizador, enquanto Raquel era a razão. Era bem raro as ocasiões em que ela se referia aos dois a longo prazo, e ainda que fosse difícil aceitar um cenário o qual ela não estivesse, um sorriso triste surgiu em seus lábios ao notar que, assim como ele, ela também desejava um futuro. Talvez não na mesma intensidade, mas aquilo já era algo contundente o suficiente para fazê-lo se apegar por algum tempo.
“Amor, me perdoa!” Ainda um pouco atordoado, Sergio tomou as mãos de Raquel entre as suas antes de depositar um casto beijo no dorso. “Eu só preciso de tempo pra digerir isso, sim?”
“Eu só estou procurando, não sofra por antecedência.” Tranquilizou, pousando a mão na bochecha, acariciando a barba com o polegar. Sergio tombou a cabeça para o lado e respirou fundo, aproveitando aquela dose cavalar de afeto.
“Vamos pra casa.” Ele sussurrou, alinhando o olhar com o dela.
“Claro!” Raquel respondeu no automático. “Vou enviar uma mensagem pra minha mãe e avisar que estamos indo embora.”
Porém, antes que pudesse ter a chance de procurar o celular na bolsa, Sergio a impediu.
“Ok, me deixe ser um pouco mais claro. Vamos para a minha casa.”
A princípio, a ideia lhe pareceu tentadora. Eles nunca estiveram juntos em outro lugar que não fosse sua casa e o escritório. Um lugar onde os dois pudessem estar livres e sem restrições realmente a atraiu, porém, por mais que seu lado mulher estivesse praticamente aos berros e empurrando-a de um precipício, o instinto materno a impediu de se jogar.
“Sergio, eu não posso deixar o Santiago."
“Se quiser, nós passamos na sua casa, buscamos ele, ou se preferir eu te levo pra sua casa bem cedinho!” Suplicou, com os olhinhos pidões. “Só, por favor, vem comigo.”
Sergio adorava a sensação de estar inserido no mundo de Raquel de maneira constante. No entanto, pensando friamente, ele queria uma oportunidade para introduzi-la ao seu próprio mundo. Sua casa, sua cozinha, seu quarto. Um lugar onde eles pudessem ser eles mesmos, sem barreiras, sem nenhum resquício de pudor.
Murillo prendeu o lábio inferior entre os dentes e pensou na proposta.
Um “vale-night” completo não seria tão ruim, na verdade, ela merecia.
~•~
Do outro lado do restaurante, Rio estava entretido em uma partida de Free Fire, quando seu jogador foi atingido.
– Droga! – Sem paciência, o rapaz bloqueou o aparelho e jogou-o sobre a mesa. Com o cenho franzido, e cara de poucos amigos, Rio correu os olhos pelo restaurante despretensiosamente.
Contudo, ao fundo, notou uma figura conhecida. Conhecida até demais. Ele coçou os olhos, estreitou a visão, porém antes que pudesse concluir suas ideias, ela voltou.
“Voltei, o banheiro estava um pouco movimentado.”
“Por que não me contou que seu pai estava namorando?”
“Porque ele não está.” Confusa, Tokio rebateu. De onde Rio havia tirado aquilo?
“Então quem é a mulher que saiu com ele daqui?”
Os olhos de Tokio voaram em direção a porta do restaurante, mas não enxergou nada além de um amontoado de pessoas entrando e saindo no estabelecimento.
Rio percebeu que havia pisado na bola quando, numa fração de segundos, o casal se entreolhou e ele contemplou uma sombra de raiva nas íris castanhas de sua namorada.
“Tokio-“
No entanto, antes que pudesse impedi-la, Tokio já havia saído da mesa.
~•~
“Ei, venha aqui. Não fica assim comigo.” Manhosa, Raquel fez um biquinho gracioso, cruzando os braços sobre o peito em sinal de protesto.
Guardando o celular no bolso, Sergio deu dois passos na direção de Raquel antes de puxá-la para si, rodeando os braços por sobre os ombros. Pequena como era, ela o envolveu pela cintura, apertando-o com força contra si num abraço aconchegante. Juntos, aguardavam o manobrista trazer o carro de Sergio para finalmente irem embora. Raquel já havia entrado em contato com Marivi para saber como estavam as coisas em casa, e quando a matriarca avisou que o menino já estava dormindo, ela se sentiu mais segura para passar a noite longe do bebê.
“Perdão, amor. Estou conversando com Berlim a respeito dos papéis que te mostrei hoje, amanhã faremos uma reunião.” Informou, já exausto pensando no dia seguinte.
“Você está muito tenso, odeio te ver assim!”
“Ficarei bem.” Ele começou, com um sorriso terno nos lábios. “Já tenho tudo o que preciso.”
Os olhos de Murillo cintilavam de felicidade, sentindo o peito arder de tamanho amor. As covinhas de Sergio estavam acentuadas, os lábios pressionados numa falha tentativa de conter o sorriso. Tombando a cabeça para frente, pressionou os lábios na testa de Raquel. Deixando ali um casto beijo, num gesto de imensurável adoração, respeito, e principalmente, amor.
Tudo parecia perfeito demais para ser verdade, presos numa bolha, completamente alheios ao mundo externo. Contudo, para Sergio e Raquel, a felicidade genuína era fracionada, dividida entre alguns episódios efêmeros.
“Pai?”
O timbre da voz reverberou num arrepio pela extensão de todo o corpo de Sergio. Raquel engoliu em seco, sentindo um pavor serpentear pela espinha dorsal.
Marquina desejou que aquilo fosse uma alucinação, mas quando a voz prosseguiu ele teve certeza.
"É você?" O tom embargado, falho O puro retrato da decepção.
Sergio fechou os olhos e soltou uma lufada de ar antes de endireitar a postura. Afrouxou o aperto nos ombros de Raquel antes de soltá-la, para se virar e deparar com a figura de sua filha. Numa fração de segundos, contou até 10 e se preparou para lidar com as consequências de suas escolhas, não havia mais volta.
O pior sentimento do mundo é quando somos colocados entre a cruz e a espada. Quando Sergio pousou os olhos na figura de Tokio, sentiu o coração despedaçar em mil pedaços ao vislumbrar o pavor contido em suas feições.
Estava entre as duas mulheres de sua vida, as duas pessoas que mais amava no mundo. A ideia de precisar escolher um lado beirava o absurdo, porém, era inevitável.
Uma coisa era certa: Naquela noite, Sergio perderia sua mulher, ou sua filha.
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