Narrador.
Ainda naquela mesma manhã, em uma das mansões luxuosas em Southing Kesigthon
A ruína era um fato eminente para todas as pessoas. Inevitável. Sempre à espreita, ela aguardava o momento conveniente para lhe dar o bote e lhe afundar no antro da dor e da perdição. A ruína era uma das únicas certezas que se tem da vida. A consciência de que não importa seu patamar, nem sua magnanimidade, ela sempre vem para arrastá-lo no asfalto horrendo e negro do pavor e da desgraça. Ela vinha para todos. Bem... para todos, exceto para ele.
Ele tinha como axioma de que estava acima da população, do país. As regras medíocres que regiam uma civilização não se aplicavam à ele, e nunca se aplicariam. Mas, analisou com satisfação animalesca e lúgubre as fotos que publicara, se aplicavam para suas vítimas. Especialmente para ela.
Com um orgulho soberbo, o prazer fevera nas veias e o presságio doque estava por vir ricocheteara suas terminações nervosas.
Sexta-feira. Pensara ele. Finalmente sexta-feira.
De volta aos nosso personagens principais.
Um desentendimento nunca tirara Akane tanto dos eixos. Sentia-se perdida, vazia e oca. Como se tivesse caído nas garras de Morfeu e ficado presa no limbo do sonambulismo. Mas claro que, seu limbo, era soterrado de uma dor pavorosa e uma solidão devastadora. Clark já tivera participado de muitas discussões antes; sua mãe, seus amigos, seus colegas. Mas nenhuma se comprava com o efeito desestabilizador que Ryuzaki tinha sobre sobre ela. Queria chorar. Chorar de raiva, de saudade, de amor e de angústia. E chorar por si mesma.
— Que cara péssima — Elizabeth, sua amiga da faculdade, estava com o carro parado em frente a casa, lhe esperando — O que aconteceu?
Akane abrira a porta do passageiro e se enfiara na atmosfera quentinha e apaziguadora do automóvel, esperando que, ao menos, conseguisse deixar seus problemas do lado de fora quando batesse a porta e se afastasse dali. Fechara a porta. O alívio não aconteceu. Seus demônios e dores ainda estavam amarrados como ancoras em seus tornozelos.
— Problemas de família — suspirou, passando as mãos no rosto.
A culpa por omitir algo que lhe atormentava causou-lhe uma culpa esmagadora. Clark não era conhecida por ser introvertida e guardar seus pensamentos e sentimentos para si, mas naquele instante de exaustão e de estar farta de drama, ela só queria fingir que seus problemas eram simples o suficiente para serem bloqueados com uma porta de carro e esquecidos do lado de fora.
— Bom, espero que a festa de hoje te anime. Parecia que sexta-feira nunca ia chegar.
Ah sim, a festa de Dain. Akane não poderia estar mais animada do que um condenado caminhando para sua execução. Queria ficar sozinha. Queria se enterrar em sua bola pessoal de problemas e abraçar à nuvem negra que vinha lhe acompanhando. Não encontrava uma célula de ânimo para vestidos justos, saltos altos e nem para um ambiente abafado e com um som ensurdecedor. Akane não queria ir, mas sabia que precisava. Precisava ter fibra. Não, na verdade precisava recuperar sua fibra, sua vitalidade. Ela era a pessoa mais feliz que conhecia. Era elétrica, impulsiva e extrovertida. Ela era Akane Clark, oras bolas. Isso tinha de significar alguma maldita coisa. Então, ignorando seu suplício, ela apenas concordara e soltara um: “Ah sim, essa semana passou muito devagar.” Não prestara muito atenção no que se seguiu, mas vagamente se recordava de ter dito: “ Sim, vamos nos encontrar lá na festa sim”, “As 21h, combinado.” Ou algo do tipo.
Olhou para fora da janela, acompanhando os prédios e árvores serem deixados para trás e tragados pelo sol cálido daquele dia ensolarado. O horizonte despontava o primeiro dia lindo e quente de semanas, mas Clark nunca se sentira tão fúnebre e gelada por dentro. Seus devaneios divagaram, galopando entre as ruas de cimento e subindo na gigantesca roda gigante de Londres. Enquanto contemplava a contradição entre o clima la fora e o clima dentro de si. Por um minuto, um mortal minuto, seus pensamentos andaram nas águas perigosas da lembrança dos olhos confusos, aturdidos e dolorosos de Ryuzaki.
“Eu nunca quis te magoar” Magoar? Ela tivera ficado boquiaberta e irada. Ele tinha dormido com ela, mentindo em seus olhos e praticamente dito que ela não era digna de confiança para saber a verdade. E ainda descrevia a situação como “Nunca quis te magoar” ?
Sentiu-se usada. Como se fosse boa o suficiente para deitar-se com ele mas não para saber a verdade. E isso a fizera revidar. Cheia de fúria e cólera. Mas seu coração, como sempre o tolo apaixonado e imprudente, contraiu-se em um milhão de pedacinhos quando vira a dor vívida naufragada nos olhos ônix de Ryuzaki ao ouvir que era um monstro.Por um momento aquilo fora demais para ela suportar, quis correr até os braços dele e consola-lo. E aquele instante revogou e questionou toda a raiva dela.
Ele estaria sofrendo também? Verdadeiramente? Não sabia se estava preparada para perdoa-lo. Entretanto, de alguma maneira sabia que o faria. Era isso que significava se apaixonar? Ela perdoaria o imperdoável? Se algo assim tivesse acontecido com uma de suas amigas ou talvez uma irmã, Clark nunca teria desculpado o namorado, jamais. Só que era Ryuzaki. E ela o amava, no fim das contas. No fim das contas. Mas isso não significava que diminuia a intensidade e a magnitude do problema.
Talvez ela o perdoasse um dia, talvez pudesse esquecer de tudo e só lembrar de como se sentira quando o beijara. Mas isso não mudaria a decisão de Ryuzaki de mantê-la longe de sua vida. Poderia mudar os próprios sentimentos, mas não as escolhas dele. Ela ainda tinha amor próprio. E isso só a regressava para o x da questão: ele dormiu com ela. Mas não quis permanecer com ela.
Deixou com que a cabeça encostasse no vidro, não percebendo que Elizabeth tinha ligado o rádio do carro até uma suave e doce melodia reverberasse pelo automóvel de metal. Era um timbre melodioso. Acolhedor e apaziguador. Um antídoto e veneno para sua ferida sangrante.
“Diga que me ama
Eu preciso disso mais do que preciso do seu abraço”
Ryuzaki era um exímio ator, ela agora sabia. A enganara por completo - Clark se repreendeu por não ter desconfiado de qualquer fagulha - e atuara tão bem que a levara a pensar que ele a amava. Mas isso não a impediu de se apaixonar por ele. E aquilo era real. Tão real quanto o sangue que corria em suas veias ou quanto a certeza de que o céu era azul. Clark o amava. Com toda a sinceridade do seu espírito. E por tudo isso olhá-lo, ver a dor estampada no âmago de seus olhos e bater a porta e ir embora, tornava tudo infinitamente mais difícil. Aquele olhar despertou algo que não devia mais ser despertado nela.
Expectativa.
Esperança.
A ínfima possibilidade dele voltar a trás. De lhe explicar todas as incógnitas e a fazer perceber que existia um motivo inocente e simples por baixo de tudo aquilo. Uma explicação apaziguadora. Era o que ela queria.
“Meu coração está se despedaçando
Pelos seus erros”
Clark esperava, afinal, que ele a abraçasse, que a beijasse e a fizesse esquecer, ainda que só por um momento, que ela era a maior tola do mundo. Que não eles tinham um abismo os separando.Não havia nada que ela desejasse mais. Só que ele não fez nada disso. Não ousara se mexer, como se não houvesse mais nada no mundo além dos dois e da forma como ele a olhava, como se sua vida dependesse de Clark. E isso a matou por dentro.
“Pois eu não quero me apaixonar
Se você não quiser tentar”
A quem estava enganando? Sua raiva iria se dissipar com o tempo e ela só teria a amarga rejeição para lidar. A voz dele, depois de um período, voltaria a lhe tocar como uma carícia. Os olhos ficariam mais bonitos a cada vez que ela os visse. E o senso de humor mordaz ainda seria capaz de tremer seu coração. Com o tempo, os sorrisos discretos voltariam a fazê-la estremecer. Seu corpo voltaria a parecer muito mais vivo sempre que Ryuzaki entrasse em seu campo de visão. E o amor sussurraria contra sua pele novamente, pintando seu hemisfério de rosa. Só que agora com algumas pinceladas de cinza. Um lembrete constante da ruína que tivera.
Lawliet não soubera por quanto tempo permanecera ali, imóvel. Apenas acompanhando a transição das emoções devastarem seu sistema e ricochetearem suas terminações nervosas. Sentia-se frio. Não o frio típico que estava acostumado a sentir. Mas um gélido lúgubre que envolvia seus ossos e seus músculos. Fazendo-o tremer de dentro para fora. Por um segundo, um milésimo, ele ficara feliz por apenas ouvir a voz dela. Por apenas tê-la dirigida para si, não importasse a entonação que fosse. Sua atmosfera tornava-se revigorante, quente e acolherada quando o timbre de Clark reverberava por ela, desbotando seus 50 tons de cinza para 50 tons de rosé, esquentando seu tórax de dentro para fora. Fora então que percebeu, assim que ela se foi e a casa soltara um suspiro de lamento, que poderia passar o resto da vida com Clark lhe odiando e esbravejando. Só não poderia passar sem ela e com seu silêncio.
Os raios pêssegos do sol de fim da tarde já desbotava no céu quando Lawliet enfim saíra da cozinha, rumando para seu escritório e pedindo que Watari retomasse com ele a reedição do relatório do caso. Seu trabalho abrira para ele a porta de um mundo sem dor e aflições quando enfim sentou-se na poltrona branca, mergulhando-se naquela realidade em que conseguia soterrar suas emoções tão fundo que elas então, por hora, não o incomodariam mais.
— Vítima número dezessete — prosseguira, ditando para Watari que digitava no computador a frente — Miller Smith. 22 anos. Vitimologia compatível. Vendida por quatrocentos mil dólares no mercado negro, no leste de Southing Kesigthon, as três e meia da manhã de dezoito de janeiro.
Em seu computador, Lawliet conseguira invadir o sistema de um dos compradores mais assíduos de 69. Visando, precisamente, encontrar e interligar padrões de comportamentos que indicassem algum deslize ou erros que ele possa ter cometido. Registrava as transações efetuadas em uma sala de bate-papo enquanto tentava descodificar o IP do servidor e desvendar a identidade do comprador. Algumas horas se passaram até Lawliet ter êxito na identidade. Jesse Spencer. Um cirurgião de meia-idade que desviava boa parte de seu salário para o financiamento do tráfico humano e a comercialização de menores. Ele seria indiciado assim que 69 fosse capturado, para não ter a chance de fazer o criminoso recuar ainda mais com a notícia da prisão do comparsa nefasto.
Em uma questão de minutos, não fora preciso muito para conseguir acessar uma sala fechada e restrita de um grupo de bate papo de 69. Nele, Lawliet encontrara registros, fotos, datas, locais e preços de todas as garotas já vendias e barganhadas naquele grupo de elite. E o número de vítimas dele, que antes beiravam a vinte, agora chegavam a uma margem de oitenta e cinco. Era diabólico.
— Vítima oitenta e seis — ditara, com a voz seria e serena de sempre — 19 anos. Vendia no dia oi...
Parara, não porque perdera o raciocínio, mas porque percebera que, enquanto permanecera na página das vítimas antigas e nos dados de Jesse Spencer, a sala de bate-papo, aberta em outra aba, estava ativada a algumas horas, e os usuários trocavam mensagens assiduamente e freneticamente. Levou um instante para Lawliet identificar que àquilo era mais uma barganha. 69, a duas horas atrás, tinha ditado a hora e o lugar de uma nova transação:
“Southing Kesigthon. N 65. As 22h.
O leilão estará mascarado com a atmosfera festiva. Os seguranças das entradas estarão de prontidão para agir caso surjam penetras ou polícias. Eles pediram um código para liberar sua entrada e terão de dizer: “69709”
Os termos do leilão serão os mesmos dos anteriores: o maior preço dado, seja pela garota inteira ou por um membro à parte, será o vencedor. Os lances durão até a meia noite.
Caso o pagamento seja pela garota inteira, será necessário 3 dias de domesticação e disciplina que visará deixá-la submissa e obediente a suas vontades. Caso o pagamento seja por uma parte específica, será necessário 1 dia para separar o membro e ser entregue limpo e esterilizado. As demais partes do corpo ainda estarão disponíveis para venda.
A seguir segue a ficha do produto:...”
Lawliet precisou de um tempo para respirar. 69 estava sendo o anfitrião de um leilão humano do mercado negro. Aonde oantro da barganha macabra era disfarçada de uma festa para não serem desmascarados por policiais ou agentes federais. Como um sopro, um gosto ruim subiu pela garganta de Lawliet, queimando-lhe o esôfago e o fazer apertar os dentes na carne do polegar.
— Ficha da possível vítima — ditara para Watari — 18 anos. Loura, 1,65 — batera com o indicador na tecla do teclado negro, rodando a página pra baixo, afim de ver as fotos públicas da vítima em potencial — Nome: A...
O mundo virara de cabeça para baixo. Em uma força gravitacional tão grande, que Lawliet sentira a própria poltrona tremer. De repente, o chão se abria em um amontoado de escombros e o inferno o puxara para o âmago podre e naufragado de horror e desgraça. O fôlego fugiu-lhe dos pulmões, o gosto da morte inundou seu paladar e seu coração fora reprimido em um amontoado de poeira que escorreu por entre seus dedos. O frio gélido que antes sentira, fora substituído por um tremer intenso e contaste, desestabilizando a poltrona e eriçando todos os pelos de seu corpo.
Watari observara, horrorizado, os olhos do afilhado serem sufocados pelo mais puro pavor e choque. O corpo fora tomado por espasmos tão fortes e agressivos que ele tivera de colocar ambas mãos nos braços da poltrona, com medo de que ela tombasse.
— O que foi?! — sentira o medo embargar sua voz, enquanto se inclinava para olhar o monitor da tela de Lawliet.
O que encontrara, da forma mais grotesca e horripilante, era que o inferno tinha se levantado e os engolido. E que eles estavam presos em um pesadelo macabro de horror e carnificina. Pois, o que lera, sabia que seria a ruína deles e os atormentariam pela vida inteira, como um fantasma amaldiçoado:
“Nome: Akane Clark”
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