- Kiana-chan? Ta tudo bem? - a voz serena de Fu Hua me trouxe à realidade drasticamente.
Havia muito barulho e movimentação ao nosso redor. A cidade estava cheia de vida depois de tudo o que aconteceu. Era como se nada tivesse mudado, nada tivesse acontecido.
Ao mesmo tempo que aquilo era reconfortante, também era um pouco estranho. Travamos uma verdadeira guerra aqui, e todos agiam com perfeita naturalidade.
Além disso, as pessoas não me olhavam mais com medo. Agora, eu era uma heroína. Isso é algo bom, e eu estava realmente feliz com isso. Mas, ainda sim, parecia um pouco irreal.
Eu olhei para Fu Hua tentando me lembrar sobre o que estávamos conversando antes de me perder nos meus próprios pensamentos, porém não precisei de muito esforço. Meu rosto com certeza denunciou minha confusão já que Fu Hua soltou uma risada baixa.
- Onde você estava dessa vez? - ela perguntou rindo.
Sei que era apenas uma brincadeira, isso realmente não me chateava. Mas, de algum modo, voltar a pensar naquilo me deixava triste.
Fu Hua novamente leu meu rosto e seu sorriso sumiu, substituído por um misto de preocupação e compaixão.
- Ah… Eu…
- Lembrei! - eu a interrompi, não queria que ela se preocupasse. Afinal, não era nada demais - Estávamos falando sobre a Seele e a Bronya?
Fu Hua me direcionou um meio sorriso, ainda parecendo preocupada. Mas, respeitando minha mudança de assunto, ela respondeu enquanto olhava e mexia em sua xícara de chá quase vazia.
- Sim, sobre o quanto Seele tem evoluído no treinamento com a ajuda da Bronya.
Eu pensei um pouco sobre o assunto. Elas tinham uma sintonia extraordinária, além disso, nunca as vi discutirem por nada, mesmo Seele sendo o completo oposto da Bronya.
- Elas têm uma conexão incrível, não é? - falei, meio pensando em voz alta, cutucando minha fatia de bolo intocada no prato. Era de massa branca com recheio de mousse de morango, com bastante chantilly e 2 morangos em cima.
Apesar de amar doces, eu estava sem apetite.
- É, elas tem. - Fu Hua respondeu, mas não olhei para ela. Meu olhar estava preso em uma mancha de chantilly no prato.
Meus pensamentos já estavam novamente distantes daquele lugar barulhento, perdidos em um amontoado de lembranças caóticas, entre separações dolorosas e promessas distantes.
Fu Hua tocou meu ombro em um gesto reconfortante e ao mesmo tempo tentando me manter no mundo real. Eu sabia que ela se preocupava comigo, ela é minha melhor amiga, minha mentora, que esteve do meu lado em momentos em que nem eu mesma me sentia disposta a estar, quando impedia todos de se aproximarem. Ela me conhecia bem o suficiente para entender, mesmo quando eu não dizia nada, o quão longe meus pensamentos estavam. E com quem eles estavam.
Ela apertou ligeiramente os dedos em um gesto carinhoso em torno do meu ombro, me olhando nos olhos.
- Que tal irmos embora? Está muito barulhento aqui.
Eu suspirei, sair dali ou não dificilmente iria ajudar. Mas entendia Fu Hua, aquela situação era desconfortável para nós duas.
- Ok.
Fu Hua pediu para que embalasse minha fatia de bolo para viagem antes de partirmos, ela tinha esperança de que eu tivesse apetite em algum momento.
De volta à Hyperion me dirigi em silêncio ao meu quarto com o pacote que continha a fatia de bolo.
Deixei o embrulho sobre a mesa de cabeceira e me deitei, esticando as costas na cama. Fiquei algum tempo encarando o teto, imóvel, com a mente agitada, sem me fixar em nada específico.
Em algum momento cai no sono. Assim que despertei busquei pelo relógio que estava ao lado do embrulho na mesinha de cabeceira e os números marcavam 17:39 horas.
- Dormi por pelo menos quatro horas - falei para mim mesma esfregando os olhos, não resistindo a um bocejo.
Sentei-me na cama e encarei o pacote com o bolo. Minha fome finalmente tinha dado as caras. Assim que senti o leve aroma do bolo que fugia da caixa e impregnava meu quarto, meu estômago se contorceu. Por sorte, o estabelecimento colocou dentro do pacote um punhado de guardanapos e um garfo descartável novo. Provavelmente a pedido de Fu Hua.
Depois de comer, sai do quarto em direção ao refeitório, esperando encontrar Fu Hua lá. Contudo, exceto por Bronya e Seele, o refeitório estava vazio.
Seele tagarelava para Bronya algo sem sentido enquanto comia o que parecia ser uma fatia de torta de amora. Bornya, por sua vez, ouvindo Seele com muito interesse, tinha um prato vazio diante de si quando notou minha presença.
Minha intenção não era interrompê-las ou mesmo juntar-me a elas, havia acabado de comer e só estava procurando por Fu Hua. Mas era tarde demais, Seele notou rapidamente a mudança de direção para qual Bronya olhava e voltou-se para mim também. Como esperado, com um largo sorriso no rosto Seele me convidou para sentar com elas fazendo um gesto com a mão para que eu me aproximasse.
Bronya, que até então estava com o queixo apoiado em uma das mãos, rapidamente descansou o braço sobre a mesa e ajeitou a postura.
- Olá, Kiana! - Seele cantarolou um cumprimento com um largo e sincero sorriso.
Não pude evitar responder da mesma forma. Seele era sempre muito alegre e carinhosa.
- Oi Seele, oi Bronya. - Bronya me respondeu um oi com um pequeno sorriso.
Quanto mais tempo elas passavam juntas, mais Bronya parecia diferente. Cada dia ela demonstrava um pouco mais seus sentimentos para as pessoas ao seu redor.
- Está tudo bem Kiana? - Bronya interrompeu o silêncio quando não me sentei.
- Oh, está sim. Eu só queria saber se, por acaso, vocês viram a Fu Hua?
- Hum… - Seele beliscava levemente o queixo enquanto pensava.
Porém, quem respondeu a minha pergunta foi Bronya.
- Bronya viu Fu Hua sair mais cedo com a Diretora.
- Obrigada, Bronya. - agradeci enquanto me afastava um pouco da mesa.
- Por que não fica com a gente? - Seele perguntou imediatamente ao notar minha intenção.
Eu não sabia como recusar, mas não queria ficar ali, pelo menos não naquele momento.
- Eu… - comecei a falar, sem ter muita certeza do que dizer. - Eu tenho compromisso. - falei subitamente, sem considerar muito o que elas iam entender.
Seele arregalou os olhos e Bronya continuava a me encarar, com uma expressão estranha.
Quando me dei conta do que elas podiam entender me apressei para tentar me explicar.
- Eu só vou treinar um pouco. - falei agitando as mãos.
As duas garotas trocaram olhares antes de voltarem a me observar, o olhar estranho de Bronya havia desaparecido e a feição de Seele suavizou.
- Caso mude de ideia, pode nos procurar. Estaremos aqui. - Seele disse com um sorriso acolhedor.
Murmurei um agradecimento e me virei apressada, me encaminhando de volta aos corredores da nave.
Ter a companhia delas não era um problema, era extremamente agradável e, muitas vezes, divertido. Mas seria estranho passar a noite de dia dos namorados com um casal.
Bronya e Seele realmente não se importavam, eu sabia disso. Mas eu me importava. Ficar perto delas alguns dias era um pouco doloroso.
Eu estava realmente feliz por elas! Porém, em alguns momentos, elas me faziam lembrar de algumas coisas que eu não queria.
Já se passaram quase 2 meses desde a última vez que a vi. A cada vez que eu a via se tornava mais doloroso ter que deixá-la.
Eu realmente pretendia passar o resto da noite treinando, manter a disciplina. Contudo, meus pensamentos já estavam perdidos novamente em algum momento do passado. Precisava de ar fresco, espairecer um pouco, organizar os pensamentos, sintonizar corpo e mente.
Então resolvi sair para um passeio fora da Hyperion.
Era fim de tarde, conseguia ver apenas alguns poucos resquícios do Sol no horizonte. Segui, sem rumo, pelas ruas vazias à minha frente. Não fui em direção a cidade, estava bem movimentada, e eu precisava de um lugar tranquilo.
Subi por algumas ruas velhas de pedra até chegar ao que sobrou do distrito Kaslana.
Sentia o ar gelado bater em minha pele, mas o frio não me incomodava. As ruas do distrito estavam vazias e em silêncio, como presumi. Andei mais um pouco, me distanciando das ruas principais. Mesmo que o local fosse abandonado sempre haveria a possibilidade de alguém se perder por ali, ou, na pior das hipóteses, vir me procurar.
Sentei-me na grama, apoiei as costas contra a árvore atrás de mim, cruzei as pernas e olhei para o céu já escuro por alguns segundos antes de fechar os olhos. Algumas poucas estrelas já estavam visíveis no céu.
Mesmo sabendo que era arriscado e que poderia não conseguir nada, eu queria ao menos tentar.
Então, me concentrei em buscar o local mais profundo do core, onde seria possível nossas mentes se conectarem.
Completamente focada na busca por esse local, acalmei minha mente e corpo, controlando a respiração e dando atenção aos batimentos cardíacos. Os pensamentos eram mais difíceis de controlar, contudo em pouco tempo consegui manter o foco.
Algum tempo se passou enquanto eu buscava pelo local até sentir o primeiro sinal.
Um vazio familiar, calmo e silencioso.
Me agarrei àquele lugar, com medo de perdê-lo. Mas, de alguma forma, parecia que, uma vez que eu estivesse lá dentro, nada me tiraria dali. Era como se, mesmo tendo me esforçado tanto para encontrá-lo, eu não precisasse me esforçar para ficar. Era quase natural, como se eu fosse puxada para lá.
Suspirei aliviada, expulsando a tensão do meu corpo.
E então, eu senti sua presença familiar.
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