Jimin passou a manhã inteira no gabinete do professor, apresentando todos os pontos mapeados e desenvolvidos. Jurava que sua ideia seria rejeitada, julgada e desprezada — assim como tudo relacionado a si deveria ser —, mas de novo recebeu apoio. Mais um lembrete de que todo o julgamento esperado por si era fruto de sempre julgar os outros. Felizmente, nem todas as pessoas eram iguais a ele.
Uma onda de admiração e respeito o consumiu ao notar o quão aberta era a mente do Sr. Won. E pensar que escolhera como orientador o primeiro professor pela frente... por pura preguiça de pesquisar sobre o assunto. Puro descaso. Era, de fato, sortudo.
E, mesmo fugindo do professor e do TCC durante todos aqueles meses, foi bem recebido. Se Jimin fosse o Sr. Won, decerto teria cuspido em um aluno inútil e sem vergonha como ele. Mas Sr. Won era o Sr. Won e, então, não deixou de acolhê-lo. De dar novas ideias, de pontuar riscos, de oferecer conselhos e de passar contatos para próximos passos. Um nó formou-se na garganta de Jimin. Mais uma vez, sua personalidade esquiva o impedira de reparar nas pessoas incríveis ao seu redor.
Depois da primeira revisão no material, boas horas depois, tanto Jimin quanto Sr. Won recostaram-se nas cadeiras e deram um suspiro pesado de exaustão. Entretanto, o coração de Jimin ainda não tinha se cansado; martelava, forte, pois o sonho e a ambição que surgiram de forma tão repentina no dia anterior ficavam reais.
Sabia, porém, que mal tinha começado. Criara a parte mais "formal" e administrativa da empresa, claro, mas pouco conhecia do assunto a ser trabalhado; precisava de outras pessoas para fazer acontecer. Por sorte, muitos dos contatos necessários foram fornecidos pelo Sr. Won e eram da sua universidade. E pensar que subestimara tanto a imensidão do local. Ter espaço para sua cabeça era estranho. Antes, achava-se muito grande. Agora, muito pequeno. E o mundo, de repente, teve sua perspectiva virada ao avesso. Era um pouco mágico, mas ao mesmo tempo assustador; temia tropeçar no caminho que, até então, não possuía obstáculos.
— Vou corrigir os pontos levantados e fazer um modelo piloto depois de conversar com o resto das pessoas. Posso aparecer na semana que vem, nesse mesmo horário, pra te repassar as mudanças? — perguntou Jimin ao professor. Este assentiu com a cabeça, impressionado pela energia demonstrada por Jimin. Em geral, os alunos perdiam a energia ao longo do curso, em vez de ganhá-la.
— Não sei se cabe a mim fazer esse tipo de questionamento, mas... — Sr. Won estava muito curioso, não conseguia parar de coçar a barba. O olhar de Jimin não exalava desespero como o dos outros alunos que apareciam para correr atrás do tempo perdido e do trabalho negligenciado. Exalava determinação. — O que te fez ficar tão animado com o TCC?
É, decerto a motivação de Jimin não era o prazo curto. Se fosse, nunca teria a ideia de criar uma empresa, muito mais complexo e trabalhoso do que apenas analisar uma existente. Não fazia sentido.
— Hm... — Jimin ponderou a melhor resposta, mordendo os lábios. Não queria mentir, ainda mais depois de toda a ajuda. Fitou a papelada nas suas mãos, o notebook cheio de abas de pesquisa abertas. A verdade era íntima, mas Sr. Won mostrou-se merecedor dela. — Eu queria fazer alguma coisa... Quero que existam menos monstros como eu e...
Pausou a fala e respirou fundo. Era muito difícil. Se mantivesse tal mentalidade e se carregasse tal palavra, não poderia alcançar o seu sonho. Se tratasse todos como monstros, não haveria salvação possível. Para ninguém. Fora seu maior aprendizado durante a ligação do dia anterior; o estopim de todo seu empenho.
Monstros eram exterminados, não curados.
E, ao contrário dos contos de fadas, monstros exterminados não significavam a salvação das vítimas. Extermínio não apagava o terror passado. A vida real era complexa. Nenhuma ferida era cicatrizada com um passe de mágica, com um ato heróico, com uma ação preto no branco.
Jimin não era um monstro, nem outros como ele eram. Era um humano. Um humano tão ferido e tão afogado em um contexto que não representava o mundo e as pessoas reais, que começara a ferir também.
— Eu queria poder dar acesso fácil a uma visão mais humana da sexualidade, pra que as pessoas não cresçam tentando performar algo que não é necessário, nem real, nem saudável — corrigiu-se. — Quero que a pornografia não seja o refúgio de quem tá tentando entender o que é. E isso é muito pessoal pra mim. É por isso que quero tanto fazer algo.
— Entendi. — Sr. Won aprumou-se em sua cadeira e deu um sorriso encorajador. O coração de Jimin acelerou e os olhos marejaram. Ainda ficava incrédulo em ser tratado com tanto zelo. — Então vamos fazer isso acontecer.
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A primeira parada de Jimin depois de sua visita ao Sr. Won foi o departamento de pedagogia. Se queria educar, precisava saber sobre educação. E, principalmente, receber apoio de quem sabia, pois era inviável aprender em pouco tempo o que pessoas dedicavam uma vida inteira para entender.
Respirou fundo antes de bater em cada porta, antes de iniciar cada conversa. Seria um processo de humildade e pequeneza, um grande desafio ao seu ego tão inflado. Era difícil não inflar o ego quando fugia da existência dos outros e prendia-se na própria como fizera, amedrontado demais com o mundo real. Era uma ótima fuga, porque se não conhecesse os outros, poderia continuar acreditando que todos eram desinteressantes e inferiores a si.
Mas teria de enfrentar o mundo real se quisesse dar soluções para o mundo real. Não havia escapatória.
Encontrou a professora de pedagogia indicada pelo Sr. Won. Conversaram e, ao alinhar expectativas e necessidades, marcaram um outro horário para ter uma discussão mais minuciosa e para desenvolver alicerces mais robustos. De novo, Jimin foi acometido por aquela sensação estranha de incredulidade. Saiu do prédio surpreso com a quantidade de pessoas dispostas a ajudar, mesmo sem uma recompensa clara. Nem todos eram assim, claro... Mas antes estava certo de que não havia ninguém assim. A causa para tal crença? Ele mesmo. Sempre considerou inconcebível fazer algo sem nenhuma vantagem material envolvida. Mas nem todos eram como ele. E nem Jimin precisava carregar as mesmas crenças do Jimin do passado.
Precisou pausar sua empreitada a fim de assistir algumas aulas; sem presença, não poderia se formar. Foi uma tortura. Sua ansiedade de fazer mais, de dar o pontapé inicial no seu sonho, agitava sua mente e transformava prestar atenção nas aulas em uma tarefa impossível, mesmo tendo noção da importância dos ensinamentos.
Pulou o almoço, agitado, e pegou um Uber até a faculdade de Medicina, em um campus diferente do seu. Lá, perdeu-se uma quantidade revoltante de vezes pelo prédio até chegar onde precisava: o departamento de psiquiatria.
Entretanto, achar o departamento certo fora apenas o primeiro desafio; encontrar a pessoa que buscava se mostrou ainda mais difícil. Demorou meia hora para descobrir que as salas dos professores ficavam em um canto isolado do campus e passou por vários corredores errados até chegar lá. Depois, perdeu-se no tanto de portas até achar, por fim, uma plaquinha exibindo o nome da professora recomendada.
Mais uma vez, despejou todos seus pensamentos e necessidades em uma torrente voraz e foi atendido de pronto. Porém, ao contrário dos outros professores, foi difícil marcar um horário para discutir melhor com ela, dona de uma agenda lotada. Não que fosse um problema para Jimin; trabalhar na UP2U o especializou em lidar com pessoas ocupadas. Espremeu um horáriozinho de nada entre dois blocos enormes de reunião; organizaria os materiais e a pauta para fazê-lo ser o suficiente. Com mais um agradecimento, foi embora.
Passadas apressadas o guiaram para fora do departamento até notar que... não tinha mais para onde ir. Possuía muito o que fazer, claro, mas além das reuniões marcadas, já mandara e-mail a todos que não pôde encontrar presencialmente. Deixou seus pés desacelerarem e admirou o ambiente ao redor.
Nunca visitara aquele campus. Como abrigava apenas uma faculdade, seu terreno era bem menor, mas possuía um amplo pátio entre a entrada e o prédio. Jimin ergueu o olhar e percebeu-se rodeado por árvores altas. Elas floriam, em um festival de cores. Abaixou o olhar e notou pisar em um tapete de flores macias, mais espesso a cada vento soprado, fazendo-as flutuar de seus galhos até cobrir as lajotas de pedra gastas do chão.
Ficou lá, estático, contemplando o cenário e chamando a atenção de diversos estudantes que o contornavam por estar parado no meio do caminho. Respirou fundo, cheirava à primavera; à memória; à ele e Jihyun no quintal de casa, quando ainda eram pequenos demais para notar a própria infelicidade. Há quanto tempo a primavera começara? Há quanto tempo a cidade ostentava o desabrochar de todas aquelas cores diferentes? A mudança de estações? Estivera sempre tão preso em seu mundo... tão pequeno.
E, assustado com a imensidão da realidade, Jimin caminhou para fora da faculdade de medicina. E, depois, pela calçada, sem destino específico, apenas em choque por não conhecer a cidade. Andou, andou e andou, sem rumo. E, ao olhar para o lado, viu encostar um ônibus que exibia o nome de seu bairro na lista de paradas.
Nunca vira aquele ônibus na vida, mas entrou mesmo assim. Ficou perdido e acabou em um lugar ainda mais desconhecido, pois pegara o transporte público no sentido errado. Não se importou, deslumbrado demais em assistir a cidade pela janela, assustado demais com o tamanho dela, chocado demais em como estava perdido. E permitiu-se ficar perdido, deixando o passeio virar uma grande prova da sua pequeneza, construindo a cada parada um tímido relicário da veracidade da existência.
Chegou na parada final. Era o único passageiro no ônibus. Foi encarado pelo motorista e pelo cobrador como se fosse um extraterrestre, mas era apenas um privilegiado fazendo o experimento social de pegar o transporte público pela primeira vez na vida. Foi divertido para Jimin. Era muito fácil pegar um ônibus quando fazê-lo não consistia em uma etapa de uma rotina cansativa, nem havia horário para chegar a lugar algum. Jimin ainda era alheio àquele fato.
E ficou lá, esperando a sós no ônibus o horário de partida — o motorista e o cobrador desceram para tomar um cafézinho. Encarou o piso metálico entre seus pés, sentiu falta do tremor do enorme motor. Um manto azul marinho e acinzentado já cobria o céu quando Jimin olhou para o lado de fora da janela e reconheceu onde estava.
Deu o sinal assim como viu outros passageiros fazerem e desceu. Talvez o ônibus parasse mais perto de sua casa, porém, como não tinha certeza, decidiu garantir e parar em um local conhecido.
Aproveitou para passar em um hortifrúti e comprou algumas frutas para Taehyung, chegando em casa muitas horas depois de ter saído. Estranho. E nem possuía mais um emprego. Guardou as compras na geladeira e tomou um banho. Queria conversar com Taehyung sobre seu dia, mas sabia que ele ainda estava ou na faculdade ou no trabalho, ocupado demais durante a semana.
Jogou-se na cama e pegou seu celular. Apenas notou que passara o dia inteiro sem olhar seu celular devido à urgência sentida desde a manhãzinha — quando bateu na porta da sala do Sr. Won — ao ver a quantidade de mensagens acumuladas no ecrã. E uma delas era dele.
Quis chorar de ódio e de remorso. O contato ainda estava salvo como "Me come D4, gostoso". Com um sentimento horrível enroscado no coração, excluiu-o da memória de seu celular. Não considerava de seu direito ter o contato dele, então nem cogitou mudar para "Jeon Jungkook". No fundo, a vontade verdadeira era que ele fosse muito mais do que um contato formal no celular.
Conformou-se, então, em ter apenas números secos e vazios representando a pessoa a qual mais queria estar junto. Leu a mensagem pela barra de notificações. Não tinha coragem de abri-la. De mostrar estar presente. Não desejava que Jungkook o tivesse por perto, nem através de uma tela
[Número desconhecido]
Oi, Minnie
Queria poder ter uma conversinha melhor com você...
Que dia você tá livre?
Bufou ao terminar de ler. Jungkook continuava o de sempre. Fora impiedosamente enganado e, mesmo assim, queria conversar. Mesmo assim, perguntava quando Jimin estaria livre sendo que ele próprio era o ocupado entre os dois. Jungkook sempre se colocava demais à disposição dos outros. Jimin amava o jeito do Jungkook, mas, naquele instante, odiou-o. Jungkook não podia continuar sendo o de sempre.
Não respondeu. Não queria conversar com Jungkook. Seria melhor se o CEO desistisse de vez dele. Melhor ainda se não fosse com sua a cara. Se não quisesse vê-lo nunca mais. Esperava muito que ignorar as mensagens fosse o suficiente para apagar todos os meses e momentos compartilhados, as vulnerabilidades e os segredos expostos.
Logo antes da mensagem do Jungkook, estava uma da Hani — seu religioso versículo machista diário. Jimin sorriu. Sempre ficava feliz ao lembrar que ainda tinham contato apesar da demissão. Respondeu a mensagem e, depois de ponderar se seria uma boa ideia, contou um pouco sobre seu dia para ela antes de abrir o link dos podcasts enviados e ir cozinhar para que Taehyung tivesse algo para jantar quando chegasse em casa.
Foi estranhamente difícil e confuso para Jimin ouvir as estatísticas de feminicídio e de violência doméstica no começo do programa, enquanto cortava e temperava umas batatas. Perguntou-se por que mulheres vítimas de violência doméstica não iam embora; não fazia sentido. Parecia burrice até. Pensou em perguntar para a Hani, mas o próprio podcast respondeu, com relatos que, mesmo tantos e tão diversos, clamavam não abranger todas as mulheres e todas as situações que passavam. O mundo era tão grande. Seu lado feio também.
Jimin arrepiou-se com cada história contada. Sua mente girou, porque nunca imaginaria nada do tipo, era até difícil entender. Nunca precisou se preocupar com segurança financeira. Nunca foi manipulado psicologicamente por alguém além dos pais. Nunca precisou de um relacionamento para validar sua existência. Mas lembrou de todas as vezes que foi menosprezado e destratado, até por ele mesmo, devido sua "feminilidade". Percebeu, em choque, como tudo que remetia ao feminino era uma porta para uma posição de inferioridade e uma justificativa doentia para tratamentos violentos, não apenas para mulheres.
Terminou de fazer o jantar — batatas assadas e frango empanado —, comeu e guardou a parte de Taehyung no forno desligado com uma pulga atrás da orelha. Temeroso, pois um sentimento estranho crescia no peito, demorou mais do que o costume para lavar as louças e escrever um bilhete para seu amigo. Mas logo não pôde mais enrolar, e viu-se caminhando até seu quarto.
Abriu o armário e puxou uma caixa escondida bem no fundo. Espirrou com a poeira e tirou a tampa com solenidade angustiada. A caixa guardava nada mais, nada menos, do que todo seu motivo de existência e, posteriormente, de vergonha: seus mangás yaois. Pegou um volume do seu favorito, Viewfinder. O que pensaria sobre o enredo sendo a pessoa que era agora? Sentia que a resposta de tal pergunta o quebraria.
Nas primeiras cenas, deixou um suspiro de alívio escapar. Parecia razoável. Por causa de seu trabalho como fotógrafo, o uke já esbarrara em todo tipo de pessoa e até foge de um chefe da yakuza e de seus capangas por várias páginas. Não que parecesse muito saudável ou promissor... O chefe da yakuza era o seme.
Ao passar das páginas, dos volumes e da história, Jimin ficava mais aflito, porque ao ser colocado no papel de uke, o personagem começava a ficar... frágil e incapaz. Como se o seu papel sexual como passivo anulasse toda a construção de sua história como pessoa.
Suas mãos tremeram ao avançar algumas folhas, lembrando-se do que viria a seguir. O lemon. Mas o teor da narrativa até o sexo preocupava Jimin. Em vez de contente, estava desesperado com a aproximação da cena.
E entendeu o porquê. Era um estupro.
Era um estrupo desenhado para que quem lesse sentisse tesão. Ele sentira tesão. Na verdade, havia mais de um estupro no mangá. Desejava não ter recordado, mas agora estava marcado em brasa em seus pensamentos. Não conseguiria esquecer. O uke era sequestrado e utilizado de escravo sexual por não apenas um, mas dois personagens. Como aquilo nunca o incomodara? Como nunca percebera?
As lágrimas embaçavam a vista, dificultando a leitura, mas persistiu. Acompanhou com atenção a forma que a narrativa era construída. Cada tijolo era milimetricamente ajustado para amenizar os crimes cometidos pelos semes e romantizar ainda mais a violência sexual. Como já tinha se fantasiado naquela situação horrível e claustrofóbica? Talvez porque o uke não teve problemas para ficar bem, para superar. Como não parecia ter passado por algo grave, não era estranho vê-lo apaixonado por seu agressor... Pareceu normal. Na época.
Buscou avaliações do mangá na internet, com a esperança de não ser o único assustado. A nota do mangá no site era boa. Um dos pontos positivos apontados pelos usuários eram as cenas de sexo excitantes... Largou o celular no chão. Não se considerava capaz de continuar lendo. O estômago revirava, e uma falta de ar sempre parecia querer escalar para fora da boca, junto a vômito.
Vistoriou todos os seus mangás e apenas dois se salvaram. Dois, de uma coleção enorme. Mesmo os que não possuíam cenas de sequestro e estupro nítidas como Viewfinder, ainda eram cheios de cenas violentas. A maioria exibia entre suas páginas ukes clamando um "não" ao serem penetrados e lágrimas de dor. Talvez a pior parte fosse que todos os personagens eram iguais. Quase como se os compartilhassem entre si. Os semes eram sempre altos, violentos e controladores; os ukes infantis, frágeis e incapazes.
Jimin se colocara naquele papel limitado? Colocara Jungkook? Logo Jungkook, tão além de qualquer descrição possível em traços de preto e branco.
Talvez quisesse que toda sua vida fosse previsível como o casal principal de um yaoi, porque seria mais fácil. E era mesmo. Antes, tudo era mais fácil. Mas o encanto da realidade era o contrário. Amava Jungkook por não ser óbvio.
Guardou com pressa tudo de volta na caixa, e empurrou-a para ainda mais fundo no armário. Lembrar que os yaois eram feitos de mulheres para mulheres deixou Jimin ainda mais confuso. Por que uma mulher criaria um conteúdo que reforçava o sexismo e normalizava as violências às quais estava exposta?
A sociedade era tão estranha. Ainda sabia tão pouco. E precisava buscar as respostas.
Mas não agora. Respirou fundo e enxugou as lágrimas com as costas da mão. Ver tais cenas ilustradas trouxera à tona memórias desagradáveis e... Não, não estava bem. Nem um pouco.
Dirigiu-se ao chuveiro com avidez, como se banho fosse capaz de livrá-lo dos resquícios daquele trauma. Verdade seja dita, jurava tê-lo superado.
Mas respirar tornou-se difícil demais.
Sempre foi difícil?
Enrolado na toalha e sentindo o mundo girar, concluiu que o chuveiro não fora o suficiente. Sentou na tampa da privada e ligou para Woohyun, buscando ajuda.
Passou quase uma hora ao telefone, respirando fundo, conversando devagar e seguindo orientações. Jimin estava ainda mais certo de que seu projeto de TCC era terrivelmente necessário.
Antes de dormir, fez uma promessa. Faria sua empresa prosperar.
-��-
— Bom dia. — Jimin ouviu ao chegar na cozinha, esfregando os olhos. Ao contrário do esperado, não recebera o cumprimento de uma voz grossa, mas sim de uma delicada.
— Yoonji? — perguntou com espanto. O questionamento valia de pouca coisa, mas saíra sem querer e resultou em bochechas coradas por parte de Jimin. A mulher riu, baixinho.
— É meu nome — ela respondeu enquanto pegava uma caneca e a apoiava na mesa. Serviu uma porção generosa de café. Jimin, entendendo o convite, sentou-se ao lado dela, confuso. Se bem que... a Yoonji e o Taehyung tinham um relacionamento, deveria se acostumar.
— E o Taehyung?
— Tá dormindo ainda. — Yoonji bebericou seu próprio café, Jimin a acompanhou. — Pensei que ele tivesse te avisado que eu passaria a noite aqui, mas pela sua cara de surpresa acho que não, então desculpa a invasão.
Estranhando Taehyung não ter comentado, Jimin desbloqueou o celular e encontrou as mensagens do colega de apartamento perdidas entre as várias acumuladas no dia anterior, corrido e doloroso. Estava ali o aviso.
— Eu que não vi. — Jimin deu de ombros.
Comeram devagar. O clima era meio tenso apesar do ingrediente principal do silêncio não ser inimizade. Jimin esperava uma reação do tipo, alienara Yoonji da sua demissão, e, introvertida como era, ela decerto não sabia como abordar o tema. O ar, então, pairava entre eles, à espera de ser meio de alguma palavra que fosse.
— Eu... confesso que tô meio chateada de você não ter me contado que ia embora... — Yoonji murmurou. — Sei que não é da minha conta e...
— Seria legal se eu tivesse avisado você — Jimin completou. — Eu sei, desculpa. Eu... fiquei com medo do Jungkook acabar descobrindo sem querer.
— Então... você não tinha avisado o Goo? — Ela arregalou os olhos. Jimin ocupou-se em dar mais um gole no café. Detestava lembrar o que fizera com Jungkook. Tão covarde.
— Não. Achei que seria a melhor opção.
— E... — Yoonji pressionava os lábios. Era tão difícil escolher as palavras. — ...você falou com ele depois disso?
— Não... — Jimin suspirou. A mensagem recebida no dia anterior voltou a assombrá-lo. Largou um pedaço de pão no prato, sem apetite.
— Entendi... — O semblante pensativo da mulher estava mais para desanimado. Ela suspirou e serviu mais café para si. — Não sei direito qual é do relacionamento de vocês, mas acho que você deveria falar com o Goo... Ele não chegou a contar nada pra mim, mas agora que você falou... Faz sentido ele estar meio estranho esses dias.
— Você não acha que ele consegue lidar com isso sem mim?
— Conseguir... ele consegue. Eu acho. Mas não vai ser legal... Ainda mais que ele não deve ter falado nada com ninguém pra tentar te preservar. Você sabe, o Goo acumula muita coisa, sozinho. Por que você acha que conversar seria tão ruim?
— Não sei se eu conseguiria tratar as coisas com racionalidade e de um jeito imparcial em uma conversa cara a cara... — confessou. Sem dúvida cederia a qualquer proposta feita por Jungkook, já caíra em tal armadilha antes e naquela época nem ao menos carregava aquele desejo desesperador de ser destinatário de seus toques carinhosos.
— E por que você tem que tratar as coisas assim? — Yoonji perguntou, genuinamente confusa. — Por mais que, em teoria, seja pra falar da sua demissão, pelo jeito que as coisas aconteceram, acabaria sendo uma conversa sobre o relacionamento de vocês, não é?
Jimin deu um suspiro longo e enfiou o resto do pão na boca para poder se levantar e apoiar a louça na pia. Suas mãos, notou, tremiam. Desistiu da tentativa patética de fuga e sentou no lugar de antes.
— Sim. E é isso que me dá medo. Se fosse só minha demissão, eu conseguiria apresentar uma tese de doutorado pra justificar, bem imparcial. Mas como não vai ser... não consigo.
— E por que duas pessoas têm que ser imparciais em uma conversa sobre um relacionamento? — ela retrucou. — Um relacionamento é emoção, sentimento e subjetividade também. Não sei se é uma boa ideia você fugir disso.
— Não achei que logo você falaria esse tipo de coisa melosa... — Jimin torceu o nariz em uma careta, e Yoonji riu baixinho.
— Devo estar passando tempo demais com o Tae, não costumo ser mole assim — concordou. — Mas já que estou sendo, você aproveite a raridade.
Jimin gargalhou antes de se acomodar em um silêncio reflexivo. Não seria errado ter uma conversa emocional com Jungkook? Ficava um pressentimento ruim, como uma pequena voz gritando em sua cabeça, incessante, impossível de rastrear a origem. Queria desmascarar essa voz.
— Mas eu... eu sou estagiário dele — tentou. — Não sei se a gente pode conversar só na emoção.
— Jimin... — Yoonji encarou-o profundamente e deu um outro suspiro. — Você acabou de matar esse problema, lembra? Você não tem mais nenhuma relação profissional com o Goo.
— Hm... — Não pôde negar. — Mas eu sou um lixo. Eu não deveria ficar perto dele.
— Primeiro que você não vai, necessariamente, ficar perto dele, a gente tá falando só de uma conversa.
— É verdade... — Jimin suspirou, assistindo as justificativas para evitar o diálogo minguarem. A voz, porém, continuava gritando. Detestava estar tão aflito e não saber apontar a causa.
— Segundo, quem deveria decidir se te quer por perto ou não, mesmo que você seja "um lixo", é o Goo, não você. Sua parte é decidir se você mesmo quer ficar perto dele ou não. Você não pode ficar tomando decisões pelos outros. Eu sei que o Goo tem os problemas dele, mas ele não é criança.
Jimin engoliu em seco. Yoonji encontrara a voz esperneante de sua consciência. A verdade era que, depois de todo aquele tempo e de todos aqueles momentos passados com o Jungkook, não confiava mais nas palavras dele. Jungkook era exímio na arte de soterrar suas vontades e necessidades com culpa e com vontade de agradar terceiros. Porém, manteve-se quieto, pois Yoonji, carregando outra imagem de quem era Jungkook, não entenderia. Apenas ele sabia e, portanto, cabia a ele proteger Jungkook de si.
— Olha... Não posso te obrigar a nada, mas eu realmente acho que você deveria conversar com ele — Yoonji voltou a falar após o longo silêncio de Jimin. Percebia que não fora capaz de convencê-lo. — O menino não é um bicho de sete cabeças, é?
— Só se for de pelúcia — Jimin resmungou, e Yoonji caiu no riso.
— É, Então... conversar não custa nada. Sinceramente, acho muito mais difícil superar algo mal resolvido. Não sei se você quer se aproximar ou se afastar do Jungkook, mas essas duas opções se resolveriam mais rápido com uma conversa.
— Nunca vi alguém querer tanto uma conversa, credo.
— Ah, Jimin... — Yoonji suspirou mais uma vez e encarou o teto, perdida em pensamentos. — Você sabe... o Goo é muito precioso pra mim e sempre quero ver ele bem.
— É por ele então?
— Sim. Mas é um conselho que eu daria "imparcialmente", então acho que acaba sendo por vocês dois. Você sabe... A gente não tem tanta intimidade, mas tô à disposição pra mudar isso aos poucos.
— Sim. — Jimin deixou o olhar vagar pela cozinha familiar que compartilhava com a mulher familiar. Gostava, até, da sensação, da cena. — Obrigado.
Apesar de apreciar o prelúdio de uma amizade com a Yoonji, sentia um amargor na boca e sabia que o culpado não era o café. Sua linha sempre clara de pensamento encontrava-se toda emaranhada; não conseguia desatar os nós, tal qual um fone de ouvido velho e surrado. Jungkook ainda era epicentro daquela entropia caótica de sentimentos abrasadores.
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Jimin chegara cedo. Tão cedo que nem mesmo Jungkook, pontual ao extremo, estava lá. A culpa era de seu nervosismo misturado à vontade de vê-lo mais uma vez. Qualquer mísero traço de Jungkook seria o suficiente. As unhas coloridas, o cabelo longo. Qualquer coisa. Encarou as mãos sobre o tampo da mesa, tentando administrar o peso em seu peito; não sabia o que esperar da conversa, muito menos o que desejava dela. Afinal, queria aproximar ou afastar Jungkook? Ainda era tudo muito confuso.
Sim, seguira o conselho de Yoonji, apesar de não saber muito bem sua justificativa para tal. Deixou o olhar percorrer a cafeteria, uma sugestão de Jungkook. Era acolhedora, assim como quem a recomendara. As mesas contavam com poltronas confortáveis, e o aroma de café e de canela tornava o ambiente ainda mais aconchegante.
Escolhera uma mesa para dois no canto do estabelecimento, buscando privacidade. Também ficava perto do banheiro. Parecia uma boa opção, pois teria algum refúgio caso estivesse prestes a chorar. Não podia, de forma alguma, chorar na frente do Jungkook; despedaçaria o coração do coitado e Jimin não aguentava mais machucá-lo.
É, estava decidido.
Queria se afastar do Jungkook; sua presença apenas fazia mal.
Suspirou mais uma vez, xingando ter se tornado tão suspirante, ainda encarando as mãos. Mas levantou o rosto. E arrependeu-se assim que viu o inquilino de seus pensamentos e de suas memórias atravessar a porta. Seu coração parecia ter parado no peito. Apenas aquele ínfimo deslumbre de Jungkook foi o suficiente para atestar o quão desesperado estava para tê-lo por perto. Não queria se afastar.
Mas não queria não querer. Ele queria se afastar. E, ao mesmo tempo, não.
Vistoriou os arredores, buscando rotas de fuga; sentindo-se cada vez mais incapaz de ter aquela conversa; mais aflito a cada passo dado por Jungkook em sua direção. Entretanto, não tinha como escapar.
Como um condenado à espera de sua sentença, levantou o olhar, temeroso, assistindo Jungkook aproximar-se com o ar estagnado nos pulmões. Queria chorar. Porque Jungkook continuava o de sempre — fios longos presos em um rabo de cavalo, unhas pintadas de preto, um conjunto de moletom cobrindo a pele macia. E, apesar de não carregar a expressão radiante de sempre no rosto, ainda era dono de um sorriso gentil, daqueles que Jimin não merecia, daqueles que Jimin abalara.
Jimin desejava desaparecer. A conversa nem ao menos começara, e a situação já lhe parecia insuportável. Porém, ficou lá, congelado em sua poltrona enquanto Jungkook puxava a outra para sentar.
Ele realmente continuava o de sempre.
Jimin até mesmo sabia suas próximas palavras, porque Jungkook sempre foi preocupado e gentil demais, em particular nos momentos em que Jimin menos se sentia digno de receber bondade.
— Ei, Minnie... Tudo bem?
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