Eu poderia dizer que eu nunca tive muita sorte durante tantos anos de vida. Entretanto, nem sempre foi de todo ruim. Meus pais sempre foram felizes juntos. Era um casal homossexual quando me adotaram, e, apesar de todo o preconceito que surgiu encima disso, eles foram muito felizes. Inclusive eu. O que eu sei da minha família biológica é que eu fui uma gravidez indesejada. Uma adolescente parira de um amante muito cruel. Imagino que eu não tenha vindo de um lar amoroso, mas aqui plantei e imediatamente o colhi.
Eu tinha menos de seis meses quando cheguei aqui. Meu pai, um ocidental tradicional e ousado, Peter Morgan. Ruivo, com barba petulantemente, por fazer, alto. E, meu pai, Song Hwan, um típico asiático, mediano, olhar evasivo, cabelos ligeiramente penteados para o lado, um castanho escuro que se destacava à luminescência.
Eles ficaram quatro anos juntos como cônjuges até resolverem me adotar, mas na verdade, a lua de mel deles nunca acabou. Eles empregavam como médicos em Yantai, mas estavam sempre viajando pela Europa e pelo resto da Ásia. Segundo eles, se conheceram no serviço mesmo, e não parou por ali. Frequentemente eles faziam viagens caras, um dos seus lugares favoritos era Moscou e Londres — lugar de onde papai viera e nasceu. Eles nunca me levaram para fora da China, sempre me deixavam com a vovó, Song Jia. Ela sempre foi muito boa comigo, apesar do seu humor ocasionado pelos seus cinquenta e seis anos. Eu nunca tinha ido tão longe de casa, quanto para Beihai, apenas para passeio com os papais, onde conheci minha avó londrina, Gemma Morgan, e seu esposo, Paul. Nos vimos poucas vezes, a maioria delas, no Natal. Ela também parecia extremamente ocupada com viagens longas.
Bom, eu nunca me importei, nunca gostei muito de fazer viagens longas, pois viver na China já era, por si, todos os dias uma longa viagem. Estudei perto de casa até ter que me mudar para viver de vez com a vovó Jia, quando eu tinha apenas nove anos. O motivo? Estive procurando a razão durante anos, em jornais, sites, programas tele informativos, e até rádios. Um dia? Eu desisti. Tudo indicava que havia sido apenas mais um acidente de avião. Diretamente de Yantai para Xangai. No dia cinco de outubro. Nada de incomum.
Apenas um avião desaparecido instantaneamente, sem sequer informações distinguíveis à caixa-preta do transporte. Apenas nada.
Aquele desaparecimento se tornou uma grande perda para a China, e era sobre esse luto que eu estava sendo obrigada à assistir, como um filme de tortura psicológica no programa jornalístico. Meus olhos encheram de água. Eu só tinha nove anos e aquilo não era justo. Qual a razão para tudo aquilo?
Desliguei a televisão e fui para o quarto. A casa estava um breu, e eu não pago a conta de luz à pouco menos que um mês.
Minha avó Jia veio a falecer à onze meses. Eu tenho dezenove anos e frequentemente faço serviços extras on-line para poder pagar algumas dívidas à mais. Entretanto, este mês foi vagaroso para mim. Ora essa, se não estou na China e deveria praticamente ter vindo ao mundo uniformizada e com carteira de trabalho assinado? Me encontrei, deitei na cama e relaxei.
Minha amiga, Chae-Bora, disse-me que havia aberto vagas de emprego para trabalhar como garçonete num eventual bar. Parecia uma boa. Na verdade, qualquer coisa seria uma boa, agora. Já faz cerca de uma semana que estou à esperar. Amanhã é o grande dia.
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Acordei com a luz do Sol debruçando-se sobre mim, janela afora. Me levantei e peguei algumas roupas do armário. Eu detestava aquela decoração retrô no quarto da vovó — ou melhor, da casa inteira —, apesar do estilo ser bacana, eram flores estampadas para tudo quanto é lado, papéis de parede, jogos de mesa, jogos de cama, xícaras, um grande jardim. Me dirigi ao banheiro e mirei o espelho. Havia separado duas peças de roupa, uma em cada cabide. Avaliei entre uma calça comprida jeans skinny colada com uma camiseta manga longa preta, ou um vestido ocre pastel, optei pelo segundo durante a manhã até a tarde, e selecionaria a outra escolha para quando a noite caísse, para o serviço.
Fiz minhas higienes sem pressa. Fui até a cozinha, peguei uma fatia de pão de forma e o devorei sentada na cadeira gélida que tinha o encosto com formato de coração, enferrujada. Mirei o céu afora, até meu razr v3 começar a tocar. Hesitei por um instante, encarando-o e me ajeitando no banco, quase como se eu pudesse ser observada e o atendi. Houve pouco descaso, era apenas Bora.
— Sim?
— Olá S/n, tudo certo?
— Oh, sim. — me levantei para sair do sol. — E você, pois?
— Estou ótima. Sabe, estive pensando, você vai adorar o mixólogo. Ele é tão gentil. — sua voz exalava histeria.
— Por que está a me dizer isto?
— Nada, apenas supus que você anda tão sozinha, Song. Me questiono qual foi seu último encontro depois do tailandês.
Chae-Bora é uma sul-coreana super atenciosa. Tem uma personalidade contagiante e sempre consegue quebrar o galho de todos. Ela é super agitada, nunca está desempregada, mas nunca fica em um único emprego. Atualmente ela é garçonete no tal open bar recomendado, e também faz curso de tecnologia e informática. Digamos que ela nem precise desse emprego, e ela faz totalmente por jocosidade genuína. Bom, e o tailandês? Kunpimook e eu nos conhecemos no primeiro ano do ensino médio. Não deu tão certo quanto cogitei. Saímos algumas centenas de vezes até o terceiro ano e depois nunca mais me relacionei amorosamente com ninguém. E, bem, eu nem mesmo sei exatamente o por quê. Imagino que tenha encontrado alguém melhor, ou enfim, seguimos caminhos distintos. Frequentemente me pego a recordar sobre como demoramos para dar nosso primeiro beijo — ao menos, era a minha primeira vez —. Sempre tive altercações por me envolver com pessoas do sexo oposto. Aliás, acho que seja em geral mesmo. Algo me move. Sou amigável, não amiga.
— Faz um bom tempo, mesmo. Mas não sinto falta.
— Mesmo? Deve ser tão difícil viver sozinha...
— Sempre estive sozinha, Chae.
E assim trocamos mais algumas palavras antes de encerramos aquele diálogo.
Caminhei para a sala, onde me estiquei no sofá courado branco. As horas não passavam.
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Quando o crepúsculo surgiu, mal havia de ter percebido, e fui de imediato me aprontar para o serviço, o qual tive que ir ao menos três vezes para decorar o caminho, já que o trajeto seguia por uma saída subterrânea e fúnebre. Era frívolo para aquele horário comumente, pensei. No entanto, dentro do recinto era abundante a quantidade de pessoas em sua minuciosa diversidade, uma espetacular movimentação.
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