Londres, 25 de Dezembro de 2016.
Minha mãe preparava o café da manhã na cozinha enquanto eu ainda estava no meu quarto olhando os lençóis bagunçados da minha cama, exatamente iguais a ontem e anteontem e há todos os dias nos últimos dois anos. Foi há dois anos, dois exatos anos que me tornei o que sou.
Alguém sem objetivos ou razões para dormir ou acordar, alguém sem rumo ou direções, alguém presa dentro de um quarto, de uma casa, convivendo com as pessoas que eu amo sem poder dizer-lhes isso. Por que eu era invisível demais pra eles, invisível de mais pra mim mesma.
Eu me olhava no espelho e não conseguia gostar do que via, por que eu simplesmente não via nada. Há dois anos a imagem no espelho era de uma garota mimada e egoísta. Egoísta demais para falar a sua mãe o quanto a amava, ou ajudar sua irmã com o dever da escola, egoísta demais para pensar nas pessoas com as quais convivia, mas agora não havia mais aquela imagem diante do espelho, nem mesmo a imagem da garota com todo o seu egoísmo existia, dentro daquele quarto, diante daquele espelho, havia apenas alguém que perdera tudo.
Tudo em uma única noite.
Casa dos Marshal, 18 de setembro de 2014.
- Sai da frente desse espelho menina. – Minha mãe entrou no meu quarto enquanto eu me arrumava para a escola.
- Me deixe, eu quero estar bonita não posso? – Respondi a ela encarando minha imagem no espelho sem me virar para olhá-la, sem ao menos olhá-la pelo espelho a minha frente. Minha relação com a minha mãe era sempre assim, sempre foi assim, talvez por que eu estivesse ocupada demais comigo mesma para lhe dar algum tipo de atenção.
- Você já é bonita minha filha, não precisa ficar horas tentando ser mais. – Mamãe me disse enquanto ainda estava parada ao pé da porta do meu quarto.
- Você diz isso por que é minha mãe. E opinião de mãe não conta.
- Você é absurda Luna. Não se atrase e desça para o café. – Mamãe saiu do meu quarto para que eu continuasse minha sessão de beleza matinal, sem que em nenhum momento eu dirigisse meus olhos a ela.
(...)
- Não Alice, você não pode usar essas luvas, você sabe muito bem que Luna nunca gostou que mexessem nas coisas dela. – Foram às vozes no andar de baixo que me despertaram dos meus pensamentos em frente ao espelho do meu quarto.
Sai apressadamente para ver o que estava acontecendo e quando cheguei até a escada que dava acesso à sala de nossa, casa vi minha irmã Alice com um par de luvas nas mãos, um par de luvas que pertenciam a mim.
Em outra época aquilo me irritaria, Alice sabia o quanto eu odiava que ela pegasse minhas coisas. Mas hoje o que era um par de luvas para quem perdera tudo. Não significava mais nada.
Quarto de Luna Marshal, 03 de outubro de 2014.
- Luna? Posso entrar? – Alice perguntou, do outro lado da porta.
E lá estava eu no meu quarto ouvindo meu ipod no último volume, sentada em minha cama, fazendo exatamente o que uma adolescente de 17 anos faria em uma tarde livres sem deveres de casa. Nada!
- O que quer pirralha? – Perguntei já de mau humor, enquanto retirava os fones de ouvido e desligava meu ipod. Eu odiava as intromissões de Alice.
- Não precisa me chamar de pirralha. – Alice disse enquanto entrava no meu quarto. – Eu só queria te pedir uma coisa.
- Fale logo Alice, estou ocupada, não está vendo? – Ela me fitou com um olhar magoado, percebeu que eu não fazia nada de importante. Alice sabia que aquela era a minha maneira de afastar de mim as pessoas a quem eu amava.
- Desculpe. – Ela disse totalmente constrangida. – Bem, er...É que vou ao shopping com alguma amigas e queria saber se você me empresta aquela sua bolsa.
- Você está louca Alice. – Eu a fitei incrédula, já havia dito mil vezes a ela que as minhas coisas eram simplesmente...Minhas.
- Ah Luna, vamos o que custa. Eu não vou destruir sua bolsa, é só por hoje. – Seus olhos eram quase que suplicantes. Era sempre assim quando Alice vinha me pedir alguma coisa.
Sinceramente eu não entedia por que irmã mais novas tinham que ser sempre assim, não dava pra ela se contentar com suas próprias coisas?
- Alice, você já conhece a resposta, então saia do meu quarto e não me atrapalhe mais ok. – Peguei de volta os fones e levei ao ouvido mais uma vez, mas antes que eu pudesse ligar novamente o aparelho em minhas mãos ainda pude ouvi-la.
- Por que você tem que ser sempre assim? – Ela disse caminhando para porta do quarto. – Por que você se recusa a ser minha amiga?
- Simples, por que eu não ando com pirralhos. – Alice olhou mais uma vez para mim e pude ver seus olhos marejarem, então ela saiu do quarto. Liguei meu ipod e fingi que nada havia acontecido.
(...)
Fiquei parada ao pé da escada sem que elas me vissem observando a discussão que se desenrolava a minha frente.
- Por que se preocupa mamãe? – Alice dizia. – Luna nunca se importou com o que pensamos, e depois ela não ficará sabendo mesmo. É só por hoje mamãe, por favor. – Alice implorava olhando para as luvas em suas mãos.
- Alice, não fale assim da sua irmã. – Minha mãe a repreendeu.
- Por que, se é verdade? Você sabe que Luna nunca se importou conosco, ela sempre se considerou perfeita demais em seu mundinho.
- Alice, veja como fala da sua irmã. – A repreendeu novamente. – Guarde esse par de luvas, eu te compro outro quando formos ao shopping mais tarde.
Alice não respondeu, atravessou a sala bufando em direção as escadas e marchou por elas. Quando passou por mim ela parou dois degraus acima e pude ouvi-la sussurrar.
- Eu te odeio Luna. – E então ela continuou a subir.
As palavras de Alice ecoaram em minha mente causando um nó em minha garganta, minha mãe foi para a cozinha de nossa casa e eu segui Alice até o seu quarto. Alice passou direto pela porta do meu quarto, sem deixar o par de luvas, e foi para o dela.
Entrou no seu quarto pintado recentemente com tons de lilás, e sentou-se em sua cama olhando para as luvas, uma lágrima correu pelo seu rosto, e senti mais uma vez o nó se formando em minha garganta.
Ela se abaixou para pegar uma caixinha de sapatos embaixo de sua cama, de onde eu estava pude ver pela porta entre aberta quando ela guardou dentro da caixinha de sapatos o par de luvas e então colocou a pequena caixa de volta ao lugar.
Alice jogou seu corpo contra sua cama bem arrumada, diferente da cama do meu quarto e vi quando as lágrimas começaram a rolar com mais força por sua face, neste momento eu tive um desejo incontrolável de tocá-la, abraçá-la e dizer o quanto eu a amava. Me perguntei internamente quando foi que eu fiz isso a Alice, quando foi que eu disse a minha irmã que eu a amava.
Eu não conseguia me lembrar de nenhum momento onde eu tivesse sido carinhosa com ela, onde eu a tivesse a abraçado e a protegido, como uma irmã mais velha deveria fazer, onde eu simplesmente tivesse dito a ela o quanto eu a amava e o quanto ela era importante para mim.
- Me perdoe. – Sussurrei a ela, na esperança de que Alice pudesse perdoar o monstro que fui por todos esses anos com ela.
As lágrimas continuavam escorrendo em seu rosto quando Alice soltou as palavras em meio à tempestade de choro que me fizeram congelar onde eu estava.
- Eu nunca vou te perdoar Luna... Nunca vou te perdoar por fazer a mamãe sofrer, por me fazer sofrer.
- Eu te amo. – Foi tudo que consegui dizer imóvel como estava.
- Eu te odeio. – Ela disse ainda absorta em lágrimas.
Esse seria o momento em que eu deveria abraçá-la e implorar por seu perdão e por seu amor, mas eu não podia. Não consegui ficar para ouvir mais nada, eu não suportaria, e então fiz a única coisa que conseguiria fazer, a única coisa que eu sempre fazia, eu a deixei, sozinha, e sai do seu quarto.
Passei pelo corredor e a porta do meu quarto estava aberta, pude ver mamãe dentro do quarto procurando por alguma coisa, provavelmente seria o par de luvas que ela pedira para Alice guardar.
- Alice. – Ela sussurrou enquanto uma lágrima rolava de sua face.
Essa sempre fui eu, a causadora das lágrimas dentro da minha casa, a causadora de dor as pessoas as quais eu deveria amar, e mesmo hoje depois de perder tudo eu ainda conseguia fazê-las sofrer quando apenas era eu quem deveria estar sofrendo.
Eu não estava suportando mais aquela situação, aquilo me sufocava. Vê-las sofrendo daquela forma me sufocava, mas eu não sabia o que fazer, eu nada podia fazer, podia?
Desci as escadas de volta para sala e me sentei no nosso antigo sofá como costumava fazer quando queria pensar nas coisas da minha vida. Como há dois anos, a sala estava decorada para manhã de natal, havia uma grande arvore ao lado de nossa janela decorada com suvenires, desde grandes bolas coloridas até miniaturas de papai-noel e caixinhas de presente.
Na janela um gigante pisca-pisca, ainda desligado por ser de manhã e na lareira quatro pezinhos de meias vermelhas como em todos os anos, não importava quantos tivessem partido minha mãe, manteria sempre os quatro pezinhos ali para lembrar de quão importantes as pessoas de nossa família eram.
Olhei mais uma vez para arvore de natal e lá estava, ao pé dela, os presentes daquele ano, cada qual com um envelope em cima contendo o nome da pessoa que o receberia. Me aproximei da árvore de natal e me agachei até onde os presentes estavam colocados de forma organizada, e como sempre as atitudes da minha mãe, me surpreendiam. Lá estava uma pequena caixinha embrulhada com um papel de tema natalino, e um laço vermelho. Em cima da caixinha havia um pequeno envelope em tom roxo, provavelmente um cartão de natal com meu nome.
Senti em meu coração um aperto quando olhei o pequeno envelope ali, eu queria abri-lo e lê-lo, mas eu não podia. Olhei ao lado do presente que seria o meu e lá estava uma segunda caixinha, essa embrulhada em um papel de presente azul escuro, e um segundo envelope em cima com o mesmo tom, agora o nome não era mais o meu, era o nome de Geogie no envelope.
Meu coração estava mais apertado, olhar o nome de Geogie ali me fazia sentir saudades, saudades de outra época, antes dele partir.
Mas essa era a Lucia, não importava o quanto as pessoas a magoassem, não importava o quanto as pessoas lhe descem as costas, ela nunca esqueceria, se ela as amasse uma vez, ela as amaria para sempre.
Sala da Família Marshal, 23 de novembro de 2014.
- Não me trate assim Luna, eu sou sua mãe. – Minha mãe falava comigo enquanto eu olhava atentamente o relógio da sala esperando Sabrina chegar.
Sairíamos àquela noite e minha mãe como sempre estava implicando com a minha roupa. Esse era o tipo de discussão que tínhamos toda vez que eu ia sair.
- É, se você não sabe, é sim, você é minha mãe, mas por puro acaso. – Respondi a ela friamente.
- Por que você tem que ser assim Luna, por que você não pode simplesmente ser dócil? – Suas palavras não eram duras eram apenas magoadas pelo meu comportamento.
O carro de Sabrina buzinou na porta de casa, e eu não dei a resposta aquela pergunta a ela.
- Tchau Lucia, não espere por mim. – Sai batendo a porta, e deixando minha mãe com um olhar desolado em nossa sala.
Eu podia sentir seus olhos queimando minha nuca enquanto seguia até o carro de Sabrina, mas não precisava olhar para trás para saber que não era raiva que seus olhos continham. Era apenas o olhar de uma mãe aflita a espera de que sua filha rebelde. Mas eu era egoísta demais, fria demais para amá-la como ela merecia ser amada.
- Oi Sabrina. – A cumprimentei de forma seca enquanto entrava em seu carro.
- Oi Luna, sua mãe está na janela, você não vai acenar para dar tchau a ela? – Me perguntou.
- Não, e vamos de uma vez. – Respondi ainda bufando pela discussão que tivera com a minha mãe.
- Você não brigou com ela de novo não é Luna? – Sabrina me repreendeu.
Sabrina sempre foi uma boa amiga, a única de quem eu não me afastei, ou poderia dizer à única que não se afastou de mim. Ela não concordava com a relação que eu com a minha mãe, mas, procurava não interferir.
- Se você está com tanta pena pode ir consolá-la. – Respondi ainda de forma seca para ela.
- Nossa! Não está mais aqui quem falou. Só não acho legal essas brigas, que você tem com a sua mãe Luna, já é bem difícil para ela sem isso e você não está ajudando em nada.
- Da pra gente ir Sabrina? – Perguntei já com pouca paciência. Não estava a fim de discutir com ela também.
- Se você quer assim. – Ela arrancou com o carro, e a última coisa que pude ver pelo canto do olho foi o olhar triste de minha mãe pela janela.
(...)
- Alice aonde você vai? – Minha mãe descia as escadas correndo atrás de Alice que passou por mim na sala a passos fortes me desconectando de minhas lembranças.
- Eu vou dar uma volta mamãe, eu preciso de ar. – Alice estava parada em frente à porta de costas para Lucia quando respondeu ainda com algumas lágrimas nos olhos.
- Fique filha, eu não quero que você fique chateada, eu já te disse que te compro um par de luvas. – Mamãe disse a ela alguns passos atrás de onde Alice estava.
- Mamãe, você sabe que eu te amo. – Minha irmã se virou para encara-la. – Mas eu não posso ficar em casa quando você está sofrendo por alguém que não merece.
Eu merecia ouvir aquilo, mas as palavras de Alice ainda cortavam meu coração.
- Alice não é assim, você sabe que sua irmã... – Alice a interrompeu antes que ela pudesse continuar.
- Chega mamãe, eu te amo, mas isso não pode continuar. Eu vou dar uma volta e depois a gente conversa. – Ela foi até minha mãe, dando lhe um beijo na face e seguindo em direção a porta.
Mamãe ficou ali, parada por alguns segundos, e por mais que eu desejasse fazer o mesmo que Alice fizera há instantes atrás eu não podia. Eu queria me aproximar dela e dizer o quanto eu também a amava, que apesar de Alice estar certa, quanto a não merecer o seu amor, eu a amava mais do que ela poderia compreender, que eu havia descoberto tarde demais, mas que eu a amava.
Vi as lágrimas descendo pelos olhos da minha mãe, e nunca me senti tão impotente quanto naquele momento por não poder ajudá-la. Ela caminhou lentamente até a lareira de nossa sala onde havia alguns porta-retratos em cima, vi seus dedos dedilharem sobre cada foto, cada rosto.
Seus olhos focados no que um dia foi nossa família, no que um dia foi uma família feliz, e então ela parou em um em especial. Um pelo qual eu mesma já havia ficado horas observando.
A foto de Georgie.
Ela tocou o porta retrato com tanto sentimento, que senti como se meu coração fosse saltar pela boca ao vê-la tão gentil com aquele objeto nas mãos. Senti um nó na garganta, e a espetada da culpa por como eu a tratei por todos esses anos desde que Georgie se foi.
Para mim não foi fácil, para ela também não.
Ela levou a foto de meu pai morto até o peito e então as lágrimas inundaram sua face. Não tive como olhá-la mais e meus olhos instantaneamente estavam pairando sobre o piso da sala.
- Me perdoe. – Ela disse com a voz embargada pelo choro. Tive que erguer meu olhar para ver com quem ela estava falando e só então percebi que ela falava com a foto em sua mão.
- Me perdoe por não manter nossa família unida. – Ela continuou. – Me perdoe por não ser a melhor mãe do mundo. – As lágrimas mais fortes em seu rosto. – Me perdoe por nossas filhas, por Alice e por... – Ela fez uma pausa antes de pronunciar meu nome o que aumentou tempestade de lágrimas. – por Luna.
Caminhou com o porta retratos até o nosso sofá e sentou-se lentamente, sem tirar seus olhos da fotografia de Georgie, enquanto limpava com as costas de sua mão as lágrimas que escorriam por seu rosto.
Ficou um tempo parada olhando para aquela frágil Fotografia em suas mãos, e eu queria poder abraçá-la, estar ao seu lado, enxugar suas lágrimas, pois era eu quem deveria lhe pedir desculpas por tudo o que eu fui, mas eu não podia e isso só me fazia sentir-me mais inútil do que eu sempre fui para ela.
- É tão difícil Georgie, é tão difícil sem você aqui, eu sinto tantas saudades. – E mais uma rodada de lágrimas que me apertavam o peito. – Eu queria tanto que você estivesse aqui.
Ela não disse mais nada depois disso, apenas lagrimas jorravam por sua face aceleradamente e constantemente, senti meu coração se desesperar ao vê-la daquela forma.
Caminhei lentamente até o sofá e me sentei ao seu lado, enquanto ela chorava abraçando a foto de meu pai em suas mãos, seus olhos fitavam o chão. Eu queria tocá-la e abraçá-la, mas fui fraca demais para tentar. Então enquanto via as lágrimas de minha mãe jorrar por sua face eu fiz a única coisa da qual eu poderia fazer.
- Mamãe. – Comecei calmamente. – Eu sei que não tenho sido uma boa filha e sei que essas não são as primeiras lágrimas que você chora por mim ou por se sentir sozinha. – Ela continuou a fitar o chão.
- Eu sei que te tratei muito mal por todo esse tempo e que não mereço o amor que você tem por mim. – Continuei a falar. – Sei que você também sente a falta do papai, e por Deus eu queria que ele estivesse aqui para te ajudar, queria que eu pudesse te ajudar. – Mãe, você tem que ser forte, forte por mim. – Fiz uma pausa. – Não, por mim não. Forte por Alice, ela precisa de você. – Você é a mulher mais corajosa que eu conheço e eu sei que você consegue mamãe, então pare de chorar, pare de chorar por que eu estou aqui, aqui ao seu lado.
Mais uma rodada de choro.
- Mãe. – Falei calmamente. – Talvez eu não tenho dito muito isso pelos últimos anos... – Tomei a força necessária em minha voz e pronunciei as palavras – Eu te amo.
Nesse instante os olhos de minha mãe que fitavam o chão se levantaram, não havia mais dor ou tristeza ali, mas eu não conseguia identificar o que havia em seus olhos.
Minha mãe respirou profundamente e então algo me surpreendeu.
- Luna... – Ela chamou por meu nome.
Alice irrompeu a porta da sala neste momento e ao ver minha mãe com os olhos vermelhos pelo choro Alice correu ao seu encontro a abraçando silenciosamente enquanto Mamãe ainda fitava a sala a sua volta a procura de algo.
Me levantei do sofá e caminhei até a porta que Alice deixara aberta quando entrou, parei uma vez mais olhando minha mãe e minha irmã e me despedi mentalmente das duas.
- Me perdoe. Eu amo vocês duas. – Então minha mãe arregalou seus olhos e a ouvi dizer meu nome mais uma vez.
- Luna... – E então eu cruzei a porta de nossa casa e sai.
Corri para o jardim de nossa casa e pude sentir o frio gélido daquela manhã de natal, enquanto absorvia o que eu tinha acabado de fazer, não devia ser difícil a uma filha falar a sua mãe o quanto ela a amava, mas para mim não era a dificuldade em si que me fazia sentir mal e sim quanto tempo eu esperara para dizer a ela tudo que eu havia acabado de dizer.
Tempo demais.
Fiquei ali parada na frente da nossa casa olhando algumas crianças que corriam pela rua enquanto brincavam despreocupadamente.
Coloquei as mãos dentro do bolso do meu casaco e então me lembrei à razão pela qual eu perdera tudo, a razão pela qual eu não podia dizer a minha mãe no tempo certo o quanto eu a amava e ao mesmo tempo a razão que me fez enxergar o quanto eu a amava, o quanto ela era importante para mim. Mas não sabia, até aquela noite.
Eu não podia mais voltar atrás.
(...)
Casa dos Marshal, 25 de Dezembro de 2014.
Era natal em Londres, a noite estava fria como em qualquer outra noite de inverno londrino, os dedos das minhas mãos congelavam sob as luvas que eu havia ganho da minha mãe naquela manhã.
Sai para dar uma caminhada logo após a troca de presentes, por alguma razão que nunca soube eu odiava o natal, era como se fosse um presságio vindo desde a infância, algo que me dizia que em uma noite como essa, um evento inesperado aconteceria em minha vida. Eu não estava errada, essa noite havia chegado.
- Luna, o que está fazendo ai fora? – Minha mãe me chamou pela pequena janela de nossa casa. – Você vai congelar menina. Entre!
- Já vou, só mais um minuto. – Eu acenei para minha mãe que retribuiu o aceno com um olhar materno e carinhoso, os olhos de minha mãe se viraram para o céu e eu virei meu rosto instantaneamente na direção em que ela olhava.
Uma estrela cadente cruzou o azul escuro de Londres, e como a tradição manda fiz o primeiro pedido que me veio à cabeça. Um grande amor.
Voltei meus olhos para minha mãe que me fitou e sorriu, eu não poderia adivinhar que este seria o último olhar que trocaríamos, ao menos enquanto eu estivesse viva. A imagem da minha mãe sumiu da janela de nossa casa e eu fiquei ali mais um tempo olhando o céu, as estrelas e tudo o mais. Em um instante a rua estava silenciosa, todos deviam estar em sua casa, e no instante seguinte ouvi alguns gritos da casa da frente a minha.
Eram meus vizinhos, James e Victória.
Um casal que havia se mudado a pouco mais de seis meses, e não era mais nenhuma novidade para a vizinhança vê-los discutindo. As brigas eram sempre constantes e em algumas vezes víamos Victória sair no dia seguinte, após uma briga, com um óculos escuro, porque James provavelmente havia dado-lhe outro soco. Sinceramente eu jamais suportaria uma relação assim, eu no lugar dela já o teria deixado, mas se isso era amor eu gostaria de poder revogar meu desejo aquela estrela cadente. Estranhamente naquela noite os gritos estavam mais altos, parecia que alguma coisa estava errada demais, passando dos limites das costumeiras brigas.
- Eu vou embora James, eu não suporto mais isso. – A ouvi ainda parada na frente de minha casa, eu sabia o quanto era errado o que eu estava fazendo, mas uma estranha preocupação me tomou e senti o desejo de ficar ali.
Dentro da minha casa a música estava alta o suficiente para que mamãe ou Alice não pudessem ouvir a discussão, mas de onde eu estava podia ouvir com clareza e nitidez.
- Você não vai embora coisa nenhuma. – Era a voz de James agora que eu ouvia. – E sabe por quê? Porque se você pisar o pé fora daquela porta pode se considerar uma mulher morta.
- Você está louco James, eu estou indo. Adeus. – E no segundo seguinte vi a porta da pequena casa se abrir, e Victória atravessar por ela com uma pequena mala nas mãos.
Depois disso tudo foi muito rápido.
James sacou uma arma, sabe se lá Deus de onde ele tirou aquilo, vi os olhos de Victoria se arregalarem, nenhum dos dois notou minha presença. Eu que deveria ter corrido naquele momento, fiquei ali, parada, estática, por mais que eu quisesse, minhas pernas não obedeciam e meus olhos só conseguiam mirar na cena a minha frente.
- Você está louco James, solte essa arma. – A voz de Victória saiu tremula e nervosa quando viu a arma nas mãos do homem.
- Entre Vic, eu não estou brincando.
E então eu não vi mais nada, só me lembro de Victória tentar arrancar a arma das mãos de James e de ouvir um barulho ensurdecedor, olhei para ambos que agora prestavam atenção em mim, nenhum dos dois estava ferido foi só então que senti uma umidade em meu peito, olhei para o casaco que vestia naquela noite. A mancha de sangue tingia o casaco, a toquei com as pontas dos dedos, observando enquanto o sangue jorrava pela minha roupa. Olhei as pontas dos meus dedos, era realmente sangue. Me senti tonta, minha cabeça girava e então ouvi a voz de minha mãe gritar distante enquanto tudo ficava escuro a minha volta.
- LUNA!
E tudo realmente ficou escuro.
(...)
As lembranças me absorveram com tanta profundidade, que me fizeram perder a noção do tempo, quando dei por mim já era tarde e o sol estava se pondo, era o crepúsculo se formando. Pensei em como o tempo não é algo importante quando se está morta. Como tudo toma outro significado e como eu gostaria de voltar no tempo para corrigir o que um dia foi a minha vida. Mas era tarde demais.
Tarde para mim e tarde demais para que as pessoas que eu magoei pudessem saber o quanto eu as amava, o quanto eu me arrependia de ser a pessoa que era. Eu não entendia por que eu simplesmente não virava um raio de luz e sumia dali, talvez eu tivesse sido muito má para que isso acontecesse, e estava pagando depois de morta o que não paguei em vida.
Eu teria que me conformar e seguir em frente, a vida me preparou muitas surpresas e a última foi a mais desagradável de todas, eu tinha que saber agora o que a morte reservava para mim.
Então dei um passo em direção a rua da minha casa. Sim, era hora de seguir em frente.
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