— Namorada?
— Andrea, será que podemos conversar a sós e num lugar mais privado? — engoliu seco. Tinha que manter a calma, tinha que se controlar para não perder a cabeça, ou pior, começar a chorar de ódio.
Como Andrea descobriu sua localização? Como havia chegado ali?
— Por que? A festa está tão divertida e fiquei surpresa em te ver dançar, achei que odiasse fazer isso — Rojas estalou os dedos para os bartenders e eles rapidamente a serviram com vinho — Lena é muito descoordenada, sempre me fazia passar vergonha — disse rindo.
— Andrea — Lena falou firmemente — me encontre no estacionamento em dez minutos. Não é bem vinda aqui e esse é um evento ao qual não foi convidada.
— Achei que fosse aberta ao público — ela rebateu, dando um longo gole em sua bebida.
— Lena, o que está acontecendo? — Kara ignorou a presença da outra mulher, não deixando transparecer o quão nervosa estava e o quanto queria tirar a amiga dali o mais depressa possível. Era visível que Andrea tinha perturbado a paz que a Luthor procurou por tanto tempo e estava agora inquieta, amedrontada.
— Não sei, mas eu preciso falar com ela e descobrir, me desculpe por isso — explicou, as palavras saindo abafadas em meio a sua respiração entrecortada — me desculpe, Kara.
— Não precisa conversar com essa mulher, sabe que não precisa — foi uma tentativa em vão de salvá-la daquele problema, porém continuaria nessa missão — é só me dar o sinal e nós saímos daqui, voltamos pra pousada e…
— Por que não deixa ela decidir — Andrea a interrompeu — não é de boa educação se meter no relacionamento dos outros, ninguém te falou isso?
— Um relacionamento exige consentimento, algo que você claramente não sabe nem soletrar — a loira inflou o peito, perdendo a última gota de paciência.
— Kara, quero que me espere no carro, ok? Eu vou resolver isso, prometo — suplicou, rezando internamente para que a escutasse e fizesse o que estava pedindo. Esperando receber um sorriso de confiança, a Luthor se deparou apenas com olhos azuis melancólicos.
— Está bem — deu-se por vencida — dez minutos e eu vou te procurar se não aparecer — falou mais para Andrea do que para Lena, afinal não confiava nem um pouco naquela maluca.
— Obrigada — a Luthor beijou a bochecha da outra, que saiu por onde tinham entrado, parando apenas para recolher seus casacos.
Assim que se viu sozinha com o seu pior pesadelo, a guiou para uma área mais reservada do orfanato que ficava do lado de fora, entre a garagem e um jardim de macieiras. O vento frio a fez se arrepiar, podia enxergar a própria respiração em meio a escuridão e talvez não estar agasalhada fosse a melhor maneira de acalmar seus nervos e calar a ansiedade gritante que insistia em sufocar a sua razão. Havia um certo mistério gracioso na beleza daquela cidade, não sabia se era devido ao céu estrelado que fazia a areia branca brilhar como se fosse feita da poeira de jóias preciosas, ou se era por causa de uma certa pessoa que pouco a pouco estava mudando sua opinião sobre aquela época do ano.
— Achei que eu tivesse sido clara, Lena — Andrea quebrou o silêncio com sua petulância — achou mesmo que se esconder aqui nessa… vila iria te poupar?
— Como me achou? — esfregou as mãos sobre seus braços, equilibrando o celular em uma delas, na intenção de tentar se aquecer um pouco. Haviam mensagens não lidas de Sam e duas ligações perdidas de Jack, estava postergando falar com seus amigos simplesmente por não querer interromper nada com Kara.
O aparelho tocou e, pela milésima vez, ela só deslizou o dedo, sem nem considerar checar quem era. O tom vibratório cessou, indicando que a chamada havia sido finalizada.
— Eu tenho os meus meios — deu de ombros — então estava se escondendo.
— Não, eu só precisei alterar minha rota e não preciso me esconder de você, muito menos te devo satisfação sobre o meu paradeiro — pode ver ao longe a caminhonete vermelha estacionada entre os vários carros, a luz de dentro estava ligada e aquilo a fez sorrir — não somos namoradas, precisa aceitar isso.
— Nunca foi um motivo forte o bastante pra te impedir de ir pra cama comigo, meu bem — Andrea deu dois passos a frente e Lena deu dois para trás — não pode ser — gargalhou — aquela garota? Qual é, nós duas sabemos que não vai durar e que você vai acabar ficando entediada, já aconteceu antes.
— O que quer? Por que está aqui? — a cortou. Não cairia naquela emboscada, não daria esse prazer a ela. Andrea se alimentava do seu medo, da sua fraqueza e a conhecia bem demais, por isso sabia exatamente como atingir seus piores traumas.
— Volta comigo, eu tenho planos incríveis para nós duas, para as nossas empresas e sabe… — ela forçou uma aproximação, dedilhando o rosto da Luthor com a ponta do indicador — nós somos tão boas juntas, sempre fomos. Desde o começo.
— E isso inclui as suas amantes, ou só eu, você e a sua presunção? — virou-se de costas para ela, notando que a luz antes acesa na caminhonete tinha desaparecido — está acabado, Andrea. Não estou interessada em formar nenhum tipo de aliança, seja ela amorosa ou comercial. A L-Corp não precisa de mais propaganda negativa e me juntar a você só iria me trazer problemas. Ou acha que não sei que sua empresa está indo a falência?
— Andou pensando em mim então? — Rojas rolou os olhos — tudo bem, então vou colocar em outras palavras: você vai me ajudar, Lena.
— E se eu não o fizer? — arqueou a sobrancelha. Seus dedos doíam e tinha certeza que seus lábios estavam roxos, porém não era o frio que a estava machucando agora.
— Não vai me dar outra escolha a não ser te levar comigo para a ruína, Lena. Veja bem — Andrea tirou o sobretudo preto que vestia e o colocou sobre os ombros da outra — seu irmão deixou para trás uma sujeira que vai ser difícil de limpar, recibos que provam que ele sonegou impostos e mais do que isso, a sua relação com um importante traficante de armas — Lena não queria escutar o resto, afinal ela tinha consciência de todas as coisas ruins que Lex tinha feito. Havia sido acusada do mesmo não muito tempo atrás e teve que comparecer a um tribunal que jurava que a colocaria na cadeira — existe um depósito em National City no nome da Luthor-Corp, um que a polícia ainda não descobriu sobre, mas que pode ou não se tornar o próximo escândalo da América.
— O que quer dizer com isso? — não era de agora que Andrea a ameaçava com aquela informação, afirmando que sabia da exata localização do tal depósito. Lena tentou encontrá-lo, usou de todas as ferramentas que tinha para rastrear o lugar, mas era como se não existisse.
Todavia, não podia arriscar. Não podia perder a L-Corp dessa maneira. Havia investido tudo de si naquela empresa, anos da sua vida, horas de seu dia e sacrificado milhões de outras oportunidades.
— Que se não me ajudar, sei de alguém que está disposta a comprar a minha denúncia por um preço que, no fim, irá me salvar, porém vai te custar bem mais caro e vou garantir que essa tal de Kara Danvers e a família dela sofram as consequências. O quão desastroso seria caso aquela pousada de repente tivesse que ser desativada, ou pior: Kara perder Eliza, da mesma forma que perdeu o pai — explicou pausadamente, estalando a língua no final — Cat Grant não brinca em serviço e é a dona do maior império midiático de National City, e sabe que o que eu quero, eu consigo. A escolha é sua.
— Por que está fazendo isso? — deixou uma lágrima teimosa cortar sua bochecha, o calor contrastando com sua pele fria.
— Oh Lena — Andrea dessa vez se inclinou, roçando a ponta do nariz pelo seu rosto até chegar a sua orelha — porque eu gosto tanto de você — ao notar a presença de uma terceira pessoa, ela se aproveitou da vulnerabilidade da outra e a beijou de surpresa, arrancando um grito que morreu antes mesmo que escapar de seus lábios.
— Lena?
A Luthor saltou para trás, mal tendo condições de processar todas aquelas ameaças a tempo de evitar uma tragédia. Uma que iria assombrá-la para a eternidade.
— Kara — arfou o nome dela, sua voz falhando — Kara, eu-
— Já se passaram os dez minutos — reuniu toda a força que tinha dentro de si, piscando algumas vezes para impedir-se de chorar — vamos pra casa.
— Vou estar te esperando amanhã de manhã no aeroporto, meu jato particular sai antes das nove de volta para Metrópolis e de lá podemos decidir melhor como seguir em frente — Andrea sorriu vitoriosa, sem nunca deixar de manter o contato visual com a loira do outro lado — fique com o casaco, é para se lembrar de mim.
Caminhando na direção oposta, Andrea Rojas partiu. Deixando para trás uma Kara devastada e uma Lena ainda mais quebrada.
***
Vinte e cinco de dezembro.
A manhã de Natal chegou reluzente, trazendo temperaturas amenas depois de toda a neve da noite passada. O baile seguiu até quase uma da manhã, as crianças já estavam postas em suas camas, adormecidas há horas, e os adultos terminavam de recolher as coisas para facilitar a organização no dia seguinte. A banda se despediu e desmontou seus equipamentos, as freiras ajudaram os voluntários a guardar o restante da comida, assim como estocar o que sobrou de bebidas, para que nada se perdesse. Todos precisariam de uma boa noite de sono antes de estarem bem o suficiente para encarar horas a fio de limpeza, afinal por mais educados e conscientes que fossem, a sujeira acabava de certa forma prevalecendo no fim.
Lena e Kara sequer se preocuparam em avisar Eliza e Alex sobre sua partida. Ambas apenas entraram na caminhonete e seguiram estrada a fora em direção a Midvale. O silêncio que reinou entre elas era ensurdecedor, porém se fez necessário. Não sabiam o que dizer, ou como explicar a confusão de sentimentos e pensamentos que estavam se alimentando de suas pobres e infelizes almas. Por um lado, a Luthor queria poder contar o que tinha acontecido, sobre como Andrea era ardilosa e sobre como ainda tinha tanto poder sobre sua vida. Por outro, não queria que a loira sofresse quando tivesse que fazer uma terrível e inevitável escolha.
Tinha sido tão bom poder viver sem precisar erguer as muralhas ao redor de seu coração. Ela queria que Kara soubesse disso. Queria que ela soubesse que a tinha salvo de inúmeras formas e, mais do que isso, precisava que se lembrasse dela apenas como Lena, a garota rica e inconveniente que não odiava mais o Natal. Pelo menos não tanto quanto antes. Sorriu sozinha ao escutar a si mesma constatar aquela verdade.
Já na pousada, as duas mulheres se despiram e se permitiram se perder uma na outra. Não foram precisas palavras, muito menos barreiras. Nuas, elas se tocaram e se tornaram uma só, com a luz do luar sendo sua testemunha e também o seu carrasco. Kara decorou cada detalhe mínimo do corpo de Lena, sem saber que a perderia em seguida, marcando cada centímetro seu com beijos que ardiam mais do que se tivesse jogado ácido em suas feridas abertas e então as coberto com curativos de devoção. Seus lábios ambiciosos eram como adagas afiadas que cortavam a pele leitosa da Luthor ao ponto de deixar cicatrizes em sua alma.
As peças de roupa foram caindo pelo chão graciosamente e junto a elas os cacos que restaram das versões de si mesmas que um dia elas tiveram o prazer de ser, antes de se conhecerem. O primeiro beijo daquela noite foi regado em gotículas salgadas que escorriam por suas bochechas, dando a ambas um sabor agridoce de passado e futuro, e um presente que infelizmente não cabia embaixo da árvore, muito menos em suas realidades.
E foi então que, naquela fatídica manhã do dia vinte e cinco de Dezembro, que o Sol raiou imponente, que as ondas do mar morreram na areia e que Kara Danvers acordou num quarto vazio.
Ela correu para a mansão sem enxergar um palmo à sua frente. Suas lágrimas embaçaram sua visão, seus pés descalços afundaram na neve que molhou suas meias. Ela correu já prevendo o que encontraria no último quarto do terceiro andar. Ela correu já sabendo que seu coração havia se partido.
Ela correu já com uma certeza: a de que Lena não estava mais lá e a de que tinha vencido a aposta.
Foi com um gigantesco pesar que Kara Danvers odiou o Natal.
Pela primeira vez.
***
— Como assim ela foi embora? — uma Alex com os cabelos amassados e ainda de pijama, perguntou. Sua mãe estava na sala de estar sentada com a outra filha inconsolável, o rosto manchado pela perda — do nada?
— Ela saiu hoje cedo, ninguém estava acordado, devia ser por volta das cinco da manhã — a matriarca queria poder colocar Kara em seu colo, a ninar e proteger do mundo que não havia sido tão gentil com ela — o pagamento caiu logo em seguida. Lena inclusive pagou o triplo do que foi cobrado.
Claro, Kara pensou, claro que aquela mulher por quem estava se apaixonando perdidamente ainda reservava um último ato de covardia. E consideração, talvez.
— Ela… bom, eu ia perguntar se ela explicou o porquê, mas pelo estado no qual essa aí se encontra — a ruiva apontou para a mais nova — presumo que não. O que aconteceu ontem pra vocês terem sumido de repente? Mas me poupe dos detalhes sórdidos, eu ainda não tomei café — aquilo arrancou um outro soluço dos lábios da pequena Danvers, que logo sentiu o sofá afundar com o peso de sua irmã. Alex colocou um braço por cima de seus ombros e a trouxe mais para perto, beijando sua testa e sussurrando um “eu sinto muito”.
— A ex dela apareceu ontem, como num passe de mágica, e eu já sabia sobre ela — as palavras engatinharam preguiçosamente para fora, causando dor em suas cordas vocais — é uma situação complicada e acho que uma parte de mim sabia que… que talvez… que eu…
— Shhh, respira fundo — Eliza afagou os fios loiros com os dedos, seu instinto de mãe se culpando por não ter previsto o dano antes de acontecer — tem certas coisas que são inevitáveis, querida. Lena é uma mulher com uma vida que vai além do nosso entendimento e infelizmente a única pessoa que pode salvá-la dessa outra mulher, que eu suponho não ter um bom caráter, é ela mesma. Não nascemos para lutar a batalha dos outros, mas podemos mostrar o nosso apoio, oferecer um suporte e foi isso que você fez — Kara meneou a cabeça, as lágrimas grossas pingando no tapete — você mostrou que existe algo melhor fora do buraco onde ela se enfiou.
— Eu não queria só mostrar pra ela, mãe — sua voz embargada era capaz de trincar as paredes, tamanha era a intensidade de sua súplica — eu queria que ela tivesse me escolhido.
— Eu sei, eu sei… — não havia um jeito efetivo o bastante para convencê-la a aceitar qualquer que fosse o motivo que forçou Lena a sentenciar ambas àquela tortura.
Os vários pacotes e caixas embrulhados esperavam para serem abertos, assim como a comida que havia sido preparada com tanto amor aguardava para ser consumida. Midvale tinha acordado para um dia maravilhoso de céu azul e quase vinte centímetros neve. Podia imaginar a chatice que seria ter que limpar a entrada da pousada, assim como a garagem e o estacionamento, mas isso nunca a incomodou antes, pois era um trabalho ao qual estava acostumada. Porém, infelizmente, algo havia mudado nela quando despertou e o lado esquerdo de sua cama possuía apenas o que restou de sua parceira. O travesseiro ainda tinha o cheiro de seu shampoo e os lençóis de seu perfume.
Ao indicar que iria se levantar e se retirar do recinto, duas batidas fortes na porta ecoaram irritantemente por todo primeiro andar. Eliza franziu o cenho, não se lembrava de ter convidado ninguém para o café da manhã.
— Eu vou atender, porque não ajuda a mãe a pôr a mesa? — Alex apertou um dos ombros da irmã, marchando em seguida em direção a recepção e então ao hall de entrada — pois não? — falou ao escanear a figura alta de cabelos castanhos médio espessos e olhos estreitos, porém serenos — quem é você?
— Prazer, sou Samantha Árias, CFO e melhor amiga de Lena Luthor — ofereceu a mão para a ruiva, que aceitou um pouco desconfiada.
— Chegou um pouco tarde, ela não está mais aqui — deu passagem para a morena, que pediu licença e pisou do lado de dentro daquela mansão que havia visto somente por fotos. Era ainda mais encantadora pessoalmente, disse a si mesma mentalmente.
— Eu sei, na verdade, imaginei que não — relaxou a postura, analisando a mulher que julgou ser a irmã mais velha de Kara — mas vim aqui por dois motivos.
— E quais seriam? — cruzou os braços, em sua melhor pose de policial em serviço.
— Não quer me falar seu nome primeiro? — perguntou cuidadosamente, na tentativa de criar um laço de confiança ali.
— Alexandra Danvers — foi formal, afinal quem aquelazinha pensava que era para aparecer assim e achar que tinha qualquer direito de pedir ajuda? — sua vez.
— Bom, primeiro eu queria dizer que não estava ciente de absolutamente nada do que está ocorrendo entre Lena e Andrea — ofereceu a verdade, era só o que dava para fazer — conheci Andrea uns anos atrás e confesso que logo no início não fui muito com a cara dela, mas-
— Olha, desculpa te interromper — Alex baixou o tom, espiando rapidamente a sala para confirmar que Kara não estava escutando nada daquilo — mas não estou interessada em saber sobre a vida amorosa da pessoa que partiu o coração da minha irmã.
— Eu entendo e o que quero dizer é que Andrea é bem mais perigosa do que imaginei — Sam foi direta, procurando por algo em sua bolsa antes de continuar — Lena me enviou isso de manhã e me pediu para entregar para Kara e, obviamente, eu li e tudo só me deixou ainda mais confusa.
— Uma carta? — só podia ser brincadeira — não somos mais adolescentes.
— Exatamente e ela sabe disso — suspirou exasperada — Alex, Lena jamais foge desse jeito, não sem dar uma explicação. O que me faz pensar que Andrea não só é uma vadia abusiva, mas também uma manipuladora de primeira — Árias vasculhou a bolsa novamente, tirando agora um gravador — a prova de que eu estou certa.
A agente encarou o aparelho e a carta, seus pensamentos correndo sem direção a milhões de quilômetros por hora.
— Você é policial, certo? — Alex assentiu, ainda sem palavras para exprimir exatamente a raiva e a confusão que pairava sobre sua cabeça — estou com medo de que na próxima vez, Lena não escape viva disso. Por favor, Alex.
Foi então que seus olhares se encontraram num meio termo, num acordo. Samantha tinha um ar materno, um que alternava entre uma preocupação genuína pela amiga, mas também que também vibrava em tons de laranja ardente que se igualava demais ao que tinha por Kara. E isso ela podia respeitar. Esse sentimento, esse ardor e anseio por proteger a quem se ama.
Isso Alex compreendia numa profundidade que jamais poderia ser explicada.
— Alex, quem está aí? — uma loira ainda destruída apareceu, com seu óculos pendurado na gola da camiseta — quem é você?
— Kara, essa é Samantha Árias — introduziu a estranha — Samantha, essa é Kara Danvers.
— Prazer em te conhecer, finalmente — sorriu honesta — e por favor, me chamem de Sam.
— O que faz aqui? — a mais nova perguntou, seu olhar vagueando entre a irmã e a visitante.
— Lena precisa de ajuda e acho que meio que sabe o porquê — Sam comentou, indo ficar ao lado de Alex.
— Ela deixou isso aqui pra você, Kara — a ruiva tomou aquela aproximação como uma indireta para entregar a carta — não precisa ler se não quiser.
— Espera, estou um pouco perdida — e furiosa, quis acrescentar — Lena foi embora com a ex e mandou você vir aqui me entregar um pedido de desculpas? Tem que ser muito covarde e filha da puta pra fazer isso — Kara amassou o envelope e enfiou no bolso da calça, prometendo a si mesma que iria jogar no lixo — seja o que for, ela não quer nem a sua, muito menos a minha ajuda.
— Lena não sabe que estou aqui, eu vim por causa disso — Sam tomou a liberdade de arrancar o gravador da mão da policial e apertar o play.
“Que se não me ajudar, sei de alguém que está disposta a comprar a minha denúncia por um preço que, no fim, irá me salvar, porém vai te custar bem mais caro e vou garantir que essa tal de Kara Danvers e a família dela sofram as consequências. O quão desastroso seria caso aquela pousada de repente tivesse que ser desativada, ou pior: Kara perder Eliza, da mesma forma que perdeu o pai. Cat Grant não brinca em serviço e é a dona do maior império midiático de National City, e sabe que o que eu quero, eu consigo. A escolha é sua.”
Assim que o aúdio terminou, ela prosseguiu:
— Quando Lena me contou que não via uma saída para sua relação com a Andrea, eu comecei a investigar um pouco mais o passado dela, as conexões e foi então que percebi que nunca foi só sobre um amor mal resolvido, ou um namoro que acabou mal — pausou para recuperar o fôlego — o pai da Andrea tem uma empresa de fabricação de máquinas que passou a ser dela quando ele morreu. Quando assumiu os negócios, ela descobriu que não só estavam beirando a falência, mas também que o pai estava envolvido num esquema de venda de peças e produção de metais pesados. Cinco anos após a morte dele e Andrea desaparece do mapa, não deixando rastros de nada além de um documento que prova que esse tal esquema era liderado por ninguém menos que Lex Luthor.
— Agora faz todo sentido — Alex disse ao se lembrar de detalhes sobre a investigação que leu no tempo livre que tinha quando fazia o turno da noite na delegacia — é claro que eles iriam suspeitar que alguém tinha que estar fabricando os metais usados nos núcleos das armas vendidas pela Luthor-Corp. E por isso foram direto na Lena, pois ela se encaixava no perfil e eles não tinham como dar início a uma outra averiguação, sem ter uma pista de por onde começar. Lena foi a julgamento, porém seu álibi era forte e concreto, apesar do conhecimento teórico e prático que tem sobre energia nuclear. Era uma saída perfeita para um crime que sequer tinha uma solução.
— Andrea escondeu tudo da polícia e pagou os envolvidos para que ficassem quietos, isso os que sobreviveram — Kara, que escutava tudo com atenção, quis que aquele dia acabasse o mais rápido possível. Sua cabeça estava latejando e seu corpo pedia por arrego — mas não poderia evitar a falência da empresa, caso não encontrasse alguém que tivesse um poder aquisitivo grande o suficiente para mantê-la.
— Lena — as três se entreolharam — então… não só essa psicopata ameaçou a integridade dela, mas também a mim e a minha família — Sam assentiu, Alex bufou, visivelmente estressada.
— Jack ligou para a Lena ontem, mas ao invés de desligar a chamada, ela acabou atendendo sem querer e ele teve o desprazer de ouvir cada palavra — a CFO explicou a origem do áudio no gravador — porém eu não posso expô-la sem acabar arrastando a L-Corp junto. Eu preciso de um plano que não comprometa Lena e não destrua todo o seu trabalho como consequência.
— Alex, você ainda tem as pastas da investigação? — Kara perguntou a irmã, que assentiu que sim — certo, eu preciso que ligue para a delegacia de Portland e que denuncie o aeroporto de Midvale por desacato a ordens de segurança pública — a ruiva arregalou os olhos com aquela ordem absurda — a única forma de sair daqui é de avião, então estou presumindo que tanto Andrea como Lena estejam esperando para decolar, mas a torre precisa de confirmação da estação meteorológica para tal e sabendo o que sabemos sobre essa mulher, ela vai pagar o que for preciso para fugir — fazia tanto sentido que era assustador — Sam, preciso de todas as suas anotações e tudo o que descobriu, vou te passar o meu email e quero que me encontre na sala de jantar em dez minutos.
— Kara, pelo amor de deus, o que vai fazer? E que plano mirabolante é esse? — Alex perguntou agitada — e na sala de jantar? Anotações? — grunhiu. Não eram nem oito da manhã, ela não tinha escovado os dentes e ainda estava de pijama.
— Andrea pensa que é a detentora da verdade e não faz ideia de que temos todas essas informações, isso compra tempo pra nós — a loira enfiou a mão no bolso, sentindo a carta pulsar ali dentro — e a verdade é que a mídia aceita o que vier primeiro — encarou ambas — e talvez ela não seja a única com um contato direto com uma certa pessoa — sorriu convencida — me pergunto o que Cat Grant vai achar sobre receber um artigo exclusivo sobre Lena Luthor.
E então o dia começou para valer.
***
É com um imenso senso de pequenez que te escrevo esta carta. Espero que ela te encontre quando o ódio que sente por mim não cegue o pouco de admiração que ainda resta dentro de ti.
Não sou indiferente à perda, Kara. Muito menos a dor, muito pelo contrário, elas são minhas melhores amigas. Eu as conheço melhor do que a mim mesma e por isso achei que ir embora não fosse me atingir dessa forma abrupta e insuportável que foi ter que me levantar e te deixar para trás na calada do dia, como se eu não passasse de uma assombração. De uma ladra.
O tempo que levou para eu me apaixonar por você não foi páreo para o quão rápido meu coração se quebrou.
Queria dizer que não tive uma escolha, porque me pouparia a vergonha e o arrependimento que me mata aos poucos enquanto espero meu voo sair, mas não vou agir feito uma inconsequente e não assumir minha posição de juíza dos meus próprios pecados. Tudo é uma questão de escolha, cada passo, cada direção que tomamos e cada não que falamos para nós mesmos.
E você foi a minha. Pode não parecer, mas eu te escolhi e por conta disso, tive que te deixar. Eu jamais seria capaz de conviver com a minha consciência sabendo que te coloquei em perigo, que tirei de você o que mais ama.
E não espero que entenda, pois nem eu mesma sei o que estou fazendo. Espero que seja o correto. Espero que me perdoe um dia.
Obs.: obrigada por ressignificar o Natal, você trouxe um pouco dela de volta sem nem saber, sem nunca tê-la ao menos conhecido. Obrigada por ser você mesma.
***
O aeroporto estava deserto, não havia uma alma sequer além dela, Andrea, alguns seguranças e a faxineira. A televisão estava ligada no mudo, o jornal noticiava alguma coisa referente às catástrofes que atingiam o oeste asiático naquela época do ano, dando ênfase ao aquecimento global. Pelo menos era o que dizia na manchete. Lena sentia-se vazia, fria por dentro, como no dia em que caiu no lago congelado. Memórias do que aconteceu naquele fim de tarde inundaram sua mente, trazendo um ardor e uma tristeza imensuravelmente insuportável.
Estava deixando Midvale de uma vez por todas. Nunca mais pisaria os pés naquele piso empoeirado, ou entraria num táxi rumo a pousada que havia se tornado seu novo sinônimo de casa. Ou veria uma loira sorrir para ela, pronta para fazer um comentário irritante e então beijá-la como se não houvesse o amanhã. Sentiria tanta falta da comida, de escutar Eliza cantarolar a letra de algum jazz antigo, enquanto ia de um lado para o outro na cozinha, concentrada e relaxada. Alex ainda era uma incógnita, mas a Luthor jamais iria julgá-la por proteger a irmã mais nova, muito pelo contrário. Ela invejava aquele relacionamento, afinal nunca teve a oportunidade de viver algo parecido com seu meio-irmão Lex.
Naquela manhã, quando decidiu ir embora, não achou que fosse ser tão doloroso, mas era pior do que o esperado. Era como se tivesse voltado a ser a Lena de quatro anos que foi levada para um orfanato pelo serviço social. Lembrava-se perfeitamente do padrão dos tijolos na parede coberta pela erva daninha que subia até as janelas do quarto andar do prédio, de como a sala de espera era escura e de como era tão pequena ao ponto de seus sapatos não tocarem o chão ao se sentar no sofá cor de vinho. Lena inocentemente pensou que tudo aquilo iria acabar, que sua mãe voltaria para buscá-la, afinal ela tinha apenas ido nadar, como sempre fazia. Por isso não se preocupou em colocar muitos brinquedos ou roupas em sua mochila. Pegou apenas o necessário, como seu ursinho favorito, um par de meias, pois as suas de agora estavam molhadas e sujas de areia, e um casaco grosso, para caso esfriasse mais tarde.
Mas a polícia que apareceu primeiro, seguida por um detetive e então uma moça, na faixa de seus quarenta e poucos anos, com um óculos de armação pontuda e que segurava uma pasta, se aproximou dela e disse algo como “sinto muito, criança” e então “precisa me acompanhar”. E a menina o fez, pois sua mãe lhe ensinou sobre obediência, sobre sempre fazer o que era certo e escutar aqueles que só queriam o nosso bem. A pobre Elizabeth Walsh nunca pensou em contar à filha sobre aqueles que nos machucam com a malícia disfarçada de bondade, sobre como a mão que nos acolhe pode ser a mesma que nos agride. E esse foi o seu maior erro.
Isso, além de escolher deixar sua garotinha de cabelos escuros e olhos verdes curiosos para enfrentar o mundo sozinha.
O orfanato estava longe de ser um conto de fadas. Haviam no mínimo umas cinquenta crianças cujas idades iam de dois a treze, com seus vestidos desbotados, sapatos gastos, olhos ocos e expressões que mais pareciam pinturas sem rostos. Eram como almas que vagueiam o mundo sem um corpo, sem um nome ou alguém para quem pertencer. Lena precisou ficar naquele castelo mal assombrado, como costumava chamar, por apenas duas noites. Um homem chamado Lionel Luthor assinou alguns papéis, ao passo que a mesma moça que a tirou de casa lhe explicou que aquele estranho era seu pai, e que estava ali para levá-la.
Lena, calada e desnorteada, obedeceu.
Anos mais tarde, esse mesmo homem partiu, a deixando ainda mais desamparada e nas mãos de uma mulher que só era capaz de desferir palavras rudes e grosseiras para ela. Não a culpava, nunca a culpou.
Devia ser muito difícil amar alguém que se assemelhava em tudo àquela que roubou o coração do homem que, teoricamente, era o seu marido.
— Como assim não vamos poder voar? — Andrea bradou de repente, fazendo a Luthor se assustar — eu não me importo de voar até Portland, que seja, ou qualquer outra cidade, só quero sair daqui o mais rápido possível — bufou sem paciência — pois então dê um jeito, não é problema meu. Eu pago o que for preciso, talvez isso resolva as coisas — desligou e então começou a digitar algo rapidamente.
— O que aconteceu? — perguntou cautelosamente. Todos os seus sentidos estavam em estado de alerta.
— Aparentemente a torre de controle não quer liberar o nosso voo, por conta da previsão climática, e porque receberam ordens expressas de Portland para não autorizarem — bom, fazia sentido. A tempestade ia e vinha sem aviso prévio, às vezes durando horas e outras vindo com toda força por minutos. Não era seguro, Lena sabia, por isso, por mais que não quisesse ficar em Midvale quando pousaram, não forçou seu piloto a enfrentar aquelas condições — eu vou ver se consigo encontrar alguém.
— Não acho que suborno vai funcionar — comentou.
— Não se preocupe, eu posso ser bem convincente — sorriu arrogante — você mais do que ninguém deveria saber disso.
E a Luthor infelizmente sabia.
***
Kara respirou fundo, refestelando as costas no encosto da poltrona e então piscou algumas vezes. Estava exausta, sua cabeça parecia que tinha um sino tocando do lado de dentro e seu coração ainda não tinha se acostumado com a ausência de uma certa pessoa. A carta estava de volta em seu bolso, dessa vez cuidadosamente dobrada depois de ser lida pelo menos cinco vezes. Havia decorado cada palavra, cada vírgula e voltas que os “as” e os “is” faziam naquela caligrafia perfeita que Lena tinha. Saber que ela foi forçada a partir não diminuía o abandono, assim como não apagava a sensação de que, mesmo que pudesse, Lena não teria ficado.
Por isso, decidiu focar no artigo que estava escrevendo, praticamente na velocidade da luz. Após ligar para Cat Grant e explicar os pormenores daquela bagunça, não deixando de frisar que alguém estava em perigo e que Andrea era capaz de qualquer coisa, a rainha da mídia disse que preferia fechar negócios com pessoas que prezam pela verdade, e pela segurança, obviamente. No entanto, quando a pequena Danvers se ofereceu para enviar todas as informações que Sam lhe passou mais cedo, Cat foi direta e exigiu que tudo fosse organizado formalmente, e colocou de uma forma bem clara que não iria publicar nada que não fosse levar o nome da CATCO. Ou seja, o artigo teria que ser escrito por alguém que trabalhasse para ela.
— Você sabe o que fazer — Alex murmurou, afagando os ombros da irmã e sorrindo empática — estamos do seu lado pro que der e vier — e Eliza, mesmo estando um pouco por fora, assentiu contente.
A proposta de emprego foi aceita no mesmo minuto. Ela recebeu um contrato provisório, pois teria que assinar o permanente pessoalmente, quando se mudasse para National City e tivesse que passar por uma entrevista breve. Cat havia lido sua dissertação sobre as comunidades carentes dos Estados Unidos e o contraste com o “sonho americano” que tanto vendiam para o restante do mundo, e a garota foi também recomendada por dois professores que haviam estudado com sua nova chefe anos atrás, quando ela era só Catherine e não uma das mulheres mais influentes da América.
Com dedos trêmulos e a ansiedade aleijando suas capacidades mentais, a loira seguiu com o plano. A intenção era finalizar o artigo até depois do almoço, revisar e então esperar pela publicação que, surpreendentemente, aconteceria ainda naquela tarde. Não podiam perder tempo, estavam contando com uma grande exposição que elevaria consideravelmente os números de acesso a revista e que causaria o caos na área jornalística. Não havia nada mais que Cat Grant gostava do que o drama e a justiça. Aliás, ficava mais eufórica quando conseguia conciliar os dois numa coisa só.
— Mandei no seu email o arquivo com o áudio que Jack conseguiu — Sam comentou, estava sentada ao lado da loira, com o laptop no colo e olhos atentos numa série de papéis — Alex está com o capitão da polícia de Portland no telefone.
— Estou quase terminando aqui e daí vou passar tudo para Snapper, ele é o editor-chefe — Kara murmurou e mordeu os lábios — logo Lena vai estar livre para voltar para National City e nunca mais ter que lidar com essa Andrea.
— Fala como se essa fosse ser a primeira opção dela, como se ter a Andrea aqui tivesse só adiantado o inevitável — aquilo fez ambas pararem de digitar.
— E não foi isso? — perguntou, seu tom de voz beirando a raiva — Lena não via a hora de ir embora, só ficou porque não tinha outra escolha. Ela odeia tudo sobre Midvale, o Natal e… e enfim.
— Já parou pra pensar que pode haver um motivo maior para ela não gostar do Natal? Ou é tão egoísta ao ponto de não conseguir ver mais do que o próprio nariz? — Sam não queria entrar numa discussão, principalmente naquele momento tão crítico, mas não pode evitar — a Lena é uma das pessoas mais incríveis que eu conheço e também a mais altruísta. Ok, ela pode ser extremamente irritante quando quer e bem cabeça dura, mas você não é muito diferente, pelo o que percebi.
— Você nem me conhece — rebateu e suspirou.
— Lena também não, mas mesmo assim participou de tudo o que era importante pra você nesses dias em que estava aqui, mesmo sem precisar, até porque a sua função era cuidar dela como hóspede e tratá-la com respeito — a loira se encolheu um pouco, desviando o olhar para um canto qualquer da sala — sabe o quão raro é ela sair da rotina de trabalho? Sabe quantas vezes ela tirou férias? Por deus, eu sou a melhor amiga e a CFO da L-Corp e mesmo assim quase não a vejo. Lena me pediu, até suplicou para que eu conseguisse um motorista para levá-la embora no dia seguinte em que chegou aqui, e deixa eu te explicar uma coisa: dinheiro paga qualquer coisa e convence até os mais sãos.
— Então porque ela não foi? Porque ficou e decidiu me fazer acreditar que… que a gente… que talvez… — não iria chorar, mas caralho, suas lágrimas não queriam cooperar — porque ela não me deixou ajudá-la?
— Kara, nem eu sabia do quão perigosa essa Andrea era, nem mesmo Jack e isso é o que um relacionamento abusivo faz contigo, ele te rouba das outras pessoas e de você mesma — Sam não estava brava com a reação da outra, muito menos queria dar uma bronca nela — você não faz ideia de todas as vezes em que ela me ligou e deixou claro que não podia se envolver com outra pessoa, principalmente com você, porque não queria te magoar ou te arrastar pra bagunça dela. Talvez tenha sido culpa minha, pois eu insisti e a incentivei a tentar, porque achei que fosse ser bom. Achei que você fosse ser boa pra ela.
Dessa vez, Kara ergueu a cabeça e encarou-a atentamente.
— Eu gosto tanto dela, Sam — confessou, a voz embargada — como… como isso é possível?
— Não vou saber te explicar, mas saiba que a Lena ter ido embora só mostra o quanto esse sentimento é recíproco — alcançou as mãos dela e sorriu ternamente, da mesma forma que fazia para Ruby — ela pode ser um gênio, mas é extremamente burra quando o assunto é demonstrar o que sente e isso se deve ao fato de que a família Luthor é simplesmente terrível e disfuncional, e… bom, tudo o que eu posso contar é que ela não foi exatamente um exemplo de mãe amorosa — pausou — principalmente quando seu marido traz uma criança, fruto de uma traição, para casa.
— Traição? — ela franziu o cenho — espera, a Lena foi adotada? — chacoalhou a cabeça, como se aquilo fosse ajudar os pensamentos a se organizarem sozinhos.
— Não vou entrar em detalhes, porque não é a minha história para ser contada, mas Lionel a buscou num orfanato após descobrir que a mãe biológica dela faleceu, foi complicado e o fato de que houve uma traição também não ajudou — tentou ao máximo só dar um resumo, sem aprofundar — Lena sempre esteve rodeada de pessoas que não a compreendiam, que não a queriam ali e imagina como deve ser crescer num lugar assim?
— Oh — e de repente, tanta coisa fez sentido. A maneira como Lena a abraçava, como se aconchegava em seu pescoço, o medo de socializar com pessoas desconhecidas e a constante vontade de voltar para casa. Estar na pousada era como pisar fora de sua zona de conforto, da mesma forma que provavelmente teve que fazer quando era criança. E mesmo assim, mesmo podendo pagar algum maluco para dirigi-la até Portland, onde ficaria num hotel cinco estrelas, ela escolheu ficar — foi isso o que ela quis dizer então… — enfiou a mão no bolso e tirou o papel amassado — quando disse que eu trouxe um pouco dela de volta, não foi?
Sam apenas assentiu.
— Ok, a polícia está a caminho — Alex falou ao se jogar no sofá e coçar os olhos — eu conversei com o meu chefe, falei que tenho um dossiê sobre o caso e que tenho em mãos mais informações cruciais para o andamento das investigações, mas que vamos ter que esperar liberarem a acusada, pois apesar de não podermos passar por cima deles aqui, o caso ainda pertence a jurisdição do estado da Califórnia e Andrea será julgada lá — Sam e Kara concordaram, mesmo não tendo muita noção de como tudo aquilo funcionava, leis e jurisdição, etc — assim que o artigo for publicado, o caso ganha repercussão e isso vai ser bom pra evitar que ela fuja sem ser reconhecida.
— Acha que essa operação pode colocar a Lena em perigo, mais do que já está? — a pequena Danvers questionou, voltando a digitar os últimos parágrafos — acha que a Andrea pode… sei lá, ter uma arma?
— Boa pergunta, eu não a conheço bem pra poder afirmar com 100% de certeza — respondeu pensativa — porém não ficaria surpresa, ela tem dinheiro o suficiente para ter uma — Sam terminou de juntar toda a papelada numa pasta — o que acha?
— É um bom ponto e justo até — Alex se aprumou sobre o estofado, colocou a mão sobre o queixo e soltou um longo “hm” antes de continuar — eu acho que tenho uma ideia e vou precisar que você dirija, Sam.
— Com todo o prazer.
Longas horas se passaram até que tudo estivesse devidamente pronto. Eliza estava prestes a ter uma crise nervosa, pois sequer entendia o que estava acontecendo, só queria que as filhas ficassem bem e que Lena pudesse voltar para a pousada, ou ir para casa, como preferisse. O pouco que descobriu sobre essa tal Andrea, a fez detestá-la mais ainda. Alex explicou parte por parte sobre como a operação funcionaria, reiterando que precisavam seguir as ordens do chefe de polícia e que ele já estava ciente do que faria com a Luthor. O artigo foi enviado e aquele era o primeiro passo da Kara num novo universo, rumo a uma nova oportunidade. Cat agradeceu prontamente e avisou que Snapper estaria dando alguns toques finais para que ficasse perfeito na primeira página da revista. O Daily Planet também entrou em jogo, com uma de suas maiores jornalistas, Lois Lane, se prontificando a também expor o que sabia desde que começou a pesquisar mais sobre Lex Luthor.
A ideia era usar a mídia como uma ferramenta de persuasão e também acabar com todas as possibilidades de venda de qualquer informação que Andrea tivesse, já que estariam acabando com a sua credibilidade e a colocando numa posição extremamente vergonhosa, e impedir que o voo saíssem de Midvale e prender a vigarista de uma vez por todas.
***
As sirenes ecoaram por todo o centro da cidade, fazendo os curiosos de plantão, assim como alguns vendedores locais saíssem para as calçadas, ou colocassem a cabeça para fora da janela. Por conta das férias de inverno, as crianças estavam seguras em casa, ou tinham viajado com suas famílias para a Flórida, a fim de aproveitar o Sol e o clima mais quente que o estado oferecia. As ruas que antes estavam abarrotadas de carros, consumidores com suas milhões de sacolas de presentes e grupos cantando músicas natalinas, agora se encontravam vazias.
Era manhã de Natal. A maioria das lojas estavam fechadas, com exceção das farmácias e mercearias. Alex ficou impressionada com a rapidez com que o departamento de polícia de Portland respondeu ao seu chamado, até porque a maioria deles estavam provavelmente de folga. O contingente de policiais nessa época do ano sempre era mínimo, o que deixava a ruiva furiosa, afinal muitos bandidos se aproveitavam dessa deixa para roubarem comerciantes e turistas que passeavam pelos parques em National City. De qualquer maneira, Sara Lance atendeu ao telefone logo cedo e afirmou que estaria a caminho assim que tivesse um reforço. Claro, Lex Luthor era um cara perigoso e o seu caso foi passado em pelo menos dez canais televisivos, então quando citou o sobrenome da vítima em questão, tudo fez sentido e nada mais precisou ser dito.
Queria poder usar o elemento surpresa ao seu favor, mas a tenente escalada para aquela manhã do dia 25, Ava Sharpe, explicou que o melhor era seguir as regras e não tentar bancar a esperta. A polícia federal foi avisada no aeroporto, então fugir pelo ar não era uma opção e se caso Andrea decidisse pegar um táxi para qualquer lugar que fosse, não chegaria muito longe. Várias estradas estavam interditadas por conta dos desabamentos de terra após as tempestades, troncos de árvores caídos serviam como obstáculos, barrando os moradores de Midvale conseguissem pegar a I95 para descerem para Nova Iorque.
Durante todo o trajeto até o aeroporto, a agente Danvers repassou o plano, reforçando que tanto Sam como Kara deviam esperar no carro. Ela entraria com a polícia e iria prender Lena, a trazendo segura até o veículo, enquanto Sara e Ava imobilizariam Andrea Rojas para evitar uma fuga, ou pior, uma briga.
— Preciso que esteja pronta para sair daqui, entendido? — Sam assentiu. Podia escutar seu próprio coração retumbando em seu ouvido. Estava nervosa e com medo de algo dar errado — confie em mim, vai ficar tudo bem. Eliza vai estar esperando na pousada, eu recomendo que entre em contato com os advogados da Lena, só para garantir que ela não seja surpreendida com nada.
— Já fiz isso e também fiz questão de abrir uma investigação dentro do nosso sistema, fiquei preocupada com o contrato que Andrea tinha com o Lex, mas aparentemente ela não pode acessar nenhum benefício vindo da L-Corp — quando ela falou que era eficiente, não estava mentindo. Sam gostava de ser precavida. Seu celular tocou e ela o jogou dentro do porta luvas. Era a décima vez que o aparelho começava a vibrar, fazendo com que Alex a encarasse curiosa — é o Jack. Deixei ele de babá da Ruby em Smallville e prometi que iria buscá-los após o almoço, o que claramente não vai acontecer, mas também não contei sobre que vamos fazer e não quero assustá-los, principalmente a minha filha — sorriu sem graça. Falou tão depressa que sequer sabia se as outras duas tinham entendido.
— Você tem uma filha? — foi tudo o que a ruiva pode perguntar.
— Sim — Kara, que estava no banco traseiro, sentada bem no meio, observou atentamente aquela interação — Ruby tem nove anos, sou mãe solteira desde quando ela nasceu.
— Não devia ter vindo, pode ser perigoso e ela precisa de você — Alex protestou, apesar de que seu cérebro tentava processar aquela informação — vamos fazer assim, fique estacionada mais perto da saída, naquela esquina ali — apontou para o lado esquerdo do prédio — e por favor, mande pelo menos uma mensagem, ok? — sem pensar nas consequências, ela levou uma das mãos até as de Sam. E daí se ela achava Samantha extremamente atraente? E daí se faziam meses que ela sequer conseguia prestar atenção em outra mulher, muito menos dar uma chance para alguma delas?
E daí se Sam ficava encantadoramente linda quando sorria e como seus olhos brilhavam ao falar da filha com tanto amor?
Não era da conta de ninguém nenhum desses fatos.
— Ok, mas eu jamais deixaria de ajudar a minha amiga, custe o que custar e sei que ela faria o mesmo por mim — disse firme. De repente, o rádio preso no cós da calça da agente chiou e uma voz ecoou dentro do veículo onde esperavam.
“Agente Danvers, aqui é a tenente Sharpe. Estamos nos aproximando do perímetro do aeroporto. Está em seu posto? Câmbio.”
— Estou no posto, câmbio — respondeu ao apertar um botão — certo, me deixe perto do portão e fiquem atentas. Kara, está com o seu rádio?
— Estou — a loira ergueu o aparelho. Estava se sentindo num filme de ação dos anos 90 — Cat Grant disse que o artigo foi aprovado e está pronto para ser publicado. Lois agilizou também uma equipe para ir ao ar em alguns minutos, eles estão esperando apenas o sinal. Precisamos que a Andrea esteja presa antes de receber qualquer notícia, caso contrário ela pode reagir e bom… já sabe o resto.
— Não sabemos se ela está armada, então quero evitar um confronto — Alex suspirou. Na teoria, o plano era bem simples e haviam poucas, ou quase nulas, chances de alguma coisa acontecer para a qual não estivessem preparados. Ava confirmou que tinha vindo de Portland em dois carros, ou seja, no total seriam ela e mais quatro policiais para completar a ação.
Do lado de dentro, a Luthor mordia a ponta dos dedos e tentava de tudo para se distrair. Ela notou como os dois seguranças lentamente se deslocaram para o único portão de embarque e para a porta de saída, como se não quisessem que ninguém mais entrasse no recinto. Achou estranho, afinal quem mais estaria de viagem tão cedo? E outra: aquele era um aeroporto para voos particulares, o que fazia com que os moradores tivessem que dirigir até as cidades maiores para poderem ter acesso a rotas domésticas. Outra coisa que fez seu coração disparar foi a mensagem que recebeu de um de seus advogados pedindo para que reservasse um tempo em sua agenda para uma reunião de emergência.
Até onde sabia, não tinha nada referente a L-Corp que pedisse por uma intervenção, muito menos em sua vida pessoal. A não ser…
Olhou de canto para Rojas, que batia os pés no chão enquanto esperava seu piloto atender a sua quinquagésima ligação em menos de dez minutos. Era para ambas estarem a caminho de Metrópoles a uma hora atrás, porém a torre de controle se recusava a liberar a pista e, caso Andrea ou o piloto forçassem uma decolagem, seriam processados. Não que sua colega se importasse com isso, ela era a rainha da insubordinação e da chantagem, fosse ela emocional ou monetária. E se fosse tarde demais e ela tivesse vendido os documentos para a CatCo?
Foi então que finalmente juntou as peças daquele quebra cabeça. Os seguranças não estavam ali, guardando as portas, para que ninguém entrasse.
Era para que quem estivesse do lado de dentro não saísse.
Lena engoliu seco e sentiu a pressão baixar, fazendo com que as pontas de seus dedos ficassem frias. Pensou no pior, claro que pensaria. Se aquele era o fim, porque Andrea ainda insistia em sair de Midvale. Seria tão mais fácil tentar chegar até umas das cidades vizinhas, arranjar um hotel, ou uma pousada, e esperar até que pudessem pegar o voo para Metrópolis, ou National City. Poderiam inclusive chamar o seu piloto, já que tinha marcado de ir embora depois do Natal. Isso se Kara não tivesse acontecido. Isso se o seu coração não tivesse deliberadamente escolhido pregar uma peça nela.
De repente, escutou as sirenes se aproximando e logo dois carros com a logo da DPP entraram no seu campo de visão, estacionando bem na área onde os taxistas paravam para deixarem os passageiros.
— O que você fez? — Andrea gritou, tirando a outra de sua introspecção — Lena, o que você fez?
— Eu te pergunto a mesma coisa — rebateu, a raiva fazendo seu rosto ficar vermelho — você prometeu que não iria vender os documentos se eu viesse contigo! — falou exasperada. Duas mulheres loiras entraram na frente, segurando suas pistolas e as apontando para as duas suspeitas.
— Mãos para cima! Mãos para cima! — a mais alta ordenou sem exitação, sua expressão impassível e séria — eu disse mão para cima onde eu possa ver e aparelhos celulares no chão!
Lena prontamente obedeceu, deixando o telefone ao lado de suas malas e então respirou fundo. Uma ânsia súbita subiu pela sua garganta ao ver que, atrás das duas agentes, estava ninguém mais, ninguém menos que Alex Danvers, acompanhada de um outro rapaz que vestia o mesmo uniforme que ela. Seu estômago despencou, levando seu coração na queda. Não queria aceitar que justo a irmã da mulher pela qual estava se apaixonando, tinha perdido toda a confiança em seu caráter. Por mais que soubesse que não merecia o perdão depois do que fez, ainda sim gostava de imaginar um futuro onde pudesse encontrar Kara mais uma vez e explicar melhor o porquê de sua tão impetuosa decisão.
— Andrea Rojas, você está presa por tráfico de armas e pelo envolvimento no esquema de lavagem de dinheiro juntamente com Lex Luthor — a outra loira, a mais baixa, tirou as algemas do bolso e forçou Rojas a se virar de costas — tem o direito a um defensor público, uma ligação e também o direito de ficar calada. Tudo o que for dito aqui pode e será usado contra você no tribunal. Está ciente dos seus direitos? — não houve resposta. Andrea era orgulhosa demais para admitir que tinha perdido.
— Lena Luthor, você está presa por ocultação de provas contra seu irmão, Lex Luthor, e sua parceira Andrea Rojas — Alex foi até a CEO, que ofereceu os pulsos sem precisar ser mandada, e a algemou — está ciente dos seus direitos?
— Sim — disse fraco, seus olhos lacrimejando — Alex...
— Me acompanhe, senhorita Luthor — a interrompeu, sentindo-se um pouco mal por precisar ser tão rude.
Sara auxiliou a tenente com os pertences da prisioneira, abrindo cada bolso e zíper para checar se não havia nenhuma arma de fogo escondida entre as roupas e sapatos, comprando um pouco mais de tempo para Alex e Lena que marchavam em direção à saída. A ruiva seguiu calada até o carro, onde pode finalmente suspirar aliviada e relaxar os músculos que ardiam com a tensão. O pior tinha passado e agora era só levar Andrea para a delegacia, e depois transferi-la para National City, onde seria devidamente interrogada e julgada pelos seus crimes, incluindo o de ameaça. O áudio estava incluso no dossiê e a polícia também estaria checando as mensagens que foram trocadas entre Andrea e Lex.
— Sam? — a morena disse surpresa — o que está fazendo aqui?
— Vim te dar uma carona pra casa — Alex tirou as algemas da outra e as colocou de volta no bolso.
— O que está acontecendo? — perguntou ao massagear a região onde o metal tinha beliscado a sua pele.
— Vai entender quando chegar na pousada — a ruiva não deu muita explicação — vou voltar e ficar para ajudar a tenente Sharpe e a agente Lance. Pode deixar que eu trago suas coisas, inclusive o seu celular — abriu a porta de trás para que ela entrasse, afinal Andrea estaria no outro carro e não queria que a CEO fosse vista.
Porém, assim que a morena se sentou, braços fortes e desesperados vieram em sua direção, a envolvendo num abraço súbito capaz de quebrar os seus ossos.
— Lena! — aquela voz… — Lena, você está bem? Ugh, olha os seus pulsos — a loira se afastou minimamente, pegou ambas das mãos da outra e beijou a linha vermelha que a algema tinha deixado — sinto muito por isso.
Alex rolou os olhos. Quanto drama.
— Kara, eu estou bem — ainda não conseguia acreditar que ela estava ali, bem na sua frente — me desculpe por…
— Depois a gente conversa, ok? — e como iria protestar contra aqueles olhos azuis que tanto amava? — agora nós vamos para casa. Eliza está nos esperando.
— E Lena, fica tranquila que nós temos tudo sob controle — Sam sabia que a amiga iria precisar de algumas palavras de afirmação, caso contrário iria pirar — Jack está ciente de tudo, assim como os seus advogados — falou brevemente, dando a partida na ignição e acenando para a Danvers mais velha que caminhava de volta para a calçada do aeroporto — acabou, Lena — sorriu para ela pelo retrovisor — você está finalmente livre.
E então Lena chorou tudo o que havia guardado há tantos anos dentro de sua alma.
***
O Sol dava seu adeus pouco a pouco, com seus raios alaranjados colorindo o verde e o azul enquanto o manto escuro engolia o astro rei. Algumas nuvens carregadas se aproximavam no horizonte, trazendo consigo pedaços de um inverno que agora tinha um significado diferente. A areia estava úmida, mas não o suficiente para manter seus pés na superfície, o que resultou neles afundando na camada fria e áspera, onde os grãos se misturavam às conchinhas e gravetos que eram trazidos pelas ondas. A água subia e descia por cima das rochas, estava calma e tão límpida. Caso chegasse mais perto poderia ver toda a vida marinha que habitava aquela praia.
Estava com frio, não iria mentir e sabia que teria que voltar para a pousada logo, de preferência antes que escurecesse por completo. No entanto, havia uma força maior a mantendo ali, imóvel. Um sensação de dejavu. Havia uma similaridade com o passado escondida na maré alta, um quê de nostalgia e melancolia. Lena fechou os olhos e ela estava lá, viva em suas lembranças. Não pode ouvir sua voz, muito menos alcançá-la antes que sumisse nas profundezas, mas pode mais uma vez se despedir e se permitir viver o luto que, ao contrário do que a maioria pensa, nunca iria sumir, ou diminuir. Engana-se quem acha que o luto vai perdendo a força e ficando menor ao passar dos anos. Não, somos nós que crescemos e fazemos maior o espaço no nosso coração para poder alojar tamanha dor e perda.
Lena tinha crescido, aprendido a se defender e a esquecer. Agora era hora de lembrar, descansar e respirar.
Estava tão absorta em pensamentos que sequer percebeu quando Kara parou ao seu lado, os pés também descalços.
— Ela gostava tanto de nadar na água gelada — murmurou, a voz fraca e abafada pelo choro entalado na garganta — dizia que ajudava com a ansiedade, que fazia sua cabeça calar a boca. Eu nunca parei pra pensar no peso dessas confissões e não acho que teria entendido — soluçou. Seus cabelos voavam em frente ao seu rosto, a brisa molhada os encharcando vagarosamente — era manhã de Natal e nós tínhamos decorado a casa com cascas de laranja seca, canela e pinhas, também montamos uma pequena árvore perto da janela da sala, porque segundo ela, afastaria os maus espíritos — a loira nada falou, pois Lena precisava daquele espaço para desabafar — minha mãe era supersticiosa. Naquele dia, me lembro de acordar e ir direto para o seu quarto, como sempre fiz. Ela me abraçou, beijou minhas bochechas e disse que me amava tanto. Hoje eu paro e penso que… que ela estava se despedindo de mim, sempre esteve. Os sinais estavam todos ali a um palmo do meu nariz. Os maus espíritos não eram fantasmas, como eu gostava de imaginar, eles eram só…
Kara tomou a liberdade para entrelaçar seus dedos aos da Luthor, que aceitou prontamente.
— Nós fomos até uma praia que ficava perto de casa, estava nublado e minha pele ardia com o frio — continuou — quando chegamos perto de uma caverna rochosa, onde ela tirou o vestido e o dobrou para colocar na bolsa, eu a observei como sempre e então saí para tentar encontrar alguns cristais de quartzo para a minha coleção. As horas se passaram e eu percebi que tudo estava tão silencioso, e que eu tinha me afastado demais do nosso ponto de encontro. Voltei e ela não estava lá. Então eu esperei.
— Sinto muito, Lena — murmurou quando viu que a história tinha chegado ao fim. Ela podia supor o que aconteceu em seguida, não era difícil de adivinhar.
— Ela sabia que eu estaria longe demais e que aquele era o momento certo, foi como… como se minha mãe tivesse existido somente na minha memória, como se ela tivesse se transformado naquilo que sempre acreditou: numa superstição — seu olhar estava perdido em algum ponto das águas que quase eram capazes de tocar seus pés. Lena quis dar um passo de coragem, mas a intrepidez morreu sob a lâmina do medo — sinto tanta falta dela.
— Sei bem como é — Kara comentou baixinho, com o polegar acariciando as costas da mão da morena — não exatamente, claro. Porque cada perda é diferente, assim como cada dor, mas sei como é conviver com o luto e sinto muito que tenha passado por tudo isso sozinha — suspirou pesadamente — me desculpe por não entender que talvez você tivesse um motivo maior para não gostar de um feriado tão ridículo como o Natal e por te julgar por isso tantas vezes, e fazer piada.
— Não tinha como saber — ela puxou a outra para mais perto, deitando a cabeça sobre seu ombro — me desculpe por ter ido embora.
— Não foi sua culpa, agradeço pelo altruísmo, mas na próxima vez, peça ajuda — suplicou ao beijar os cabelos negros que agora tinham sabor de maresia — não sei o quão assustada deve ter ficado, mas sei o quanto eu fiquei. Não vou mentir e dizer que não fiquei com raiva também. E com ciúmes — dessa vez suas bochechas coraram — meu ponto é: você tem amigos que te amam, que viajaram de Metrópolis pra cá em meio a uma ameaça de tempestade e que fariam de tudo pra te proteger.
— Acho que o fator de maior motivação da Sam foi a chance de conhecer a sua irmã, me salvar foi só algo que deu para encaixar na agenda dela — brincou, fazendo a outra rir.
— Só o fato de que a Alex deixou de ir até Portland, onde estaria ajudando no caso, usando a desculpa de que precisava “escoltar” a Sam — fez as aspas com os dedos — até Smallville já deixa bem claro onde essas duas vão terminar.
— E onde nós vamos terminar? — Lena ergueu a cabeça e logo se arrependeu, pois jamais conseguiria usar a razão quando Kara lhe encarava como quem encara o universo: com devoção.
— Espero que nunca, espero que nunca tenhamos que terminar o que começamos — foi sincera, se inclinando para tomar os lábios da Luthor nos seus num beijo lânguido e breve — Lena, eu acho que estou me apaixonando por você.
Ambas riram com o quão juvenil aquela frase soou.
— Bom, eu sou uma pessoa apaixonável — provocou, a beijando mais uma vez — apesar de ser toda essa bagunça e também não saber muito como me comunicar. Mas Kara, eu também gosto muito de você e quero que saiba que eu nunca teria ido embora se não tivesse sido forçada.
— Eu sei — soltou sua mão para poder segurá-la pela cintura, colando seus corpos — eu li a carta.
— E? — arqueou a sobrancelha, seu estômago se contorcendo.
— E nada. Não tenho que te perdoar de nada, ou achar nada, Lena. Todos nós temos nossas fraquezas, temos nossos defeitos e fomos quebradas de maneiras diferentes, mas… mas eu gosto de pensar que essas rachaduras são apenas aberturas na nossa alma para que entre luz — disse um pouco sonhadora e tímida — não existe um alguém errado nessa situação e é por isso que estou aqui, disposta a tentar… uh, isso… isso é… se você quiser também?
— Fiquei sabendo que alguém vai se mudar para National City — sorriu travessa, todas as suas intenções explícitas em seu olhar.
Depois de chegarem na pousada, Sam e Kara sentaram com ela na sala e contaram detalhadamente, desde o princípio, sobre como descobriram que Andrea estava a ameaçando e chantageando. Elas explicaram o plano que formularam juntas, em como Alex se prontificou a levar a situação para a polícia de Portland e seguir com as investigações em National City. E foi assim também que descobriu sobre a proposta de emprego que Cat Grant tinha oferecido para a loira não muito tempo atrás e que ela tinha não só aceitado, mas também escrito todo um artigo sobre as informações que sua CFO conseguiu reunir em poucas semanas. Ela sequer soube como agradecer.
— Ficou é? — riu feito uma bobalhona apaixonada, levantando Lena levemente de chão — acha que eu vou encontrar uma morena sexy e presunçosa por lá?
— Hummm, talvez sim — Lena envolveu o pescoço da outra com os braços — e talvez ela queira te mostrar as outras habilidades que tem com a boca, além de reclamar — Kara gargalhou.
— Eu adoraria ver isso.
E sabe, caros espectadores, naquela manhã de Natal, os presentes foram esquecidos embaixo da árvore. A neve caiu como se nada tivesse mudado. Eliza continuou sem entender muito do que tinha rolado. Alex e Sam voltaram com Jack e Ruby, e então sumiram na pousada.
E bom, Kara e Lena planejaram o futuro.
***
1 anos mais tarde…
Kara acordou com o estrondo que veio diretamente de seu estômago que conseguia ser tão dramático quanto ela. Resmungando baixo e se revirando sobre o colchão, com as pernas se embolando mais ainda no cobertor, ela notou que um lado da cama estava vazio. Tateou mais algumas vezes, os olhos ainda fechados, e confirmou que realmente, Lena não estava ali e a tinha deixado para trás. Bom, talvez estivesse exagerando um pouco, mas tinha liberdade para agir de tal forma, afinal era manhã de Natal e poxa… custava ter a esperado acordar?
Isso que dava namorar alguém que levantava cedo e não tinha amor nenhum pelos cinco minutos a mais de sono.
Ou meia hora a mais, quem estava contando? Ela não estava.
Aquele dia também marcava o início do seu namoro com a mulher mais extraordinária, inteligente e irritante que já tinha conhecido. Esses eram os adjetivos que mais associava com Lena Luthor, a pessoa pela qual se apaixonou perdidamente e pela qual ainda perdia o fôlego todas as vezes em que olhava para ela. Claro, aquele não tinha sido um ano só de vitórias, amores e histórias engraçadas, apesar de que podia contar nos dedos os momentos onde teve que respirar fundo, lembrar a si mesma de que era capaz e de que não estava sozinha. O ano foi, num geral, repleto de surpresas boas e algumas desagradáveis, como era de costume.
Seu relacionamento não era perfeito, porém ambas haviam aprendido a se comunicar melhor. Enquanto a Luthor se dividia entre duas empresas milionárias até poder finalmente encerrar as atividades em Metrópolis, Kara aprendeu a liderar um time considerado de excelência pela própria Cat Grant. A mudança a deixou extremamente estressada, tirando noites de sono dela, a fazendo chorar algumas vezes e pensar em desistir. Entretanto, não só Lena estava lá para ser o seu porto seguro, o aconchego no final do dia, mas também Alex. Regularmente, as irmãs Danvers saíam para almoçar, beber e jogar sinuca num dos bares da cidade. Acostumar-se com um lugar cujo tamanho era o triplo de Midvale foi uma tarefa árdua. Sentia falta da simplicidade, das tardes silenciosas e da reciprocidade. National City nunca dormia e as pessoas não eram tão receptivas, não por não quererem, mas por não terem tempo.
Escolher um apartamento novo foi sem dúvidas a parte mais divertida daquela mudança. Decorar a sala com a ajuda de sua mãe, que demonstrou estar tão feliz por suas conquistas, mudar os móveis de lugar, receber Sam e Alex para o primeiro jantar entre casais, e mais tarde ter Ruby e Jack se juntando a elas. Sua vida que antes acontecia entre as paredes de uma pousada no interior, agora se dividia entre dois apartamentos (por mais que Lena preferisse o seu na maior parte do tempo).
Tudo parecia ter vagarosamente se encaixado, fazendo a pequena Danvers cair numa rotina mais tranquila e menos assustadora. Jack Spheer era literalmente um homem engraçado e sem papas na língua. Ele a fazia lembrar tanto de seu amigo Winn, que ainda estava morando em Midvale, porém estava se programando para abrir uma confeitaria maior em National City. Samantha era sem dúvidas a mulher mais generosa e atenciosa, Kara amava ver como ela interagia com a sua irmã e em como ambas viraram uma família em tão pouco tempo.
Ruby era a maior fã de Alex Danvers, algo que Lena detestava de vez em quando.
Nas férias de verão, Eliza recebeu suas filhas e noras (e agregados, diga-se: Jack) e anunciou que teria que fechar a pousada por conta de dinheiro e falta de clientes. Com a modernização e a construção de grandes hotéis luxuosos e resorts em Portland, ficava ridiculamente difícil de competir e era uma situação injusta também. Apesar de não saber exatamente o que fazer, a matriarca afirmou que não pretendia deixar Midvale, tendo se acostumado com o ritmo e também não querendo deixar seus amigos de longa data, a mesma disse que arranjaria uma casa menor para morar.
Em apenas uma troca de olhar, Sam entendeu exatamente o que Lena iria fazer em seguida.
O The Golden Sleeper passaria a funcionar apenas durante o verão e ocasiões especiais, abrindo assim uma agenda para aniversários e casamentos, garantindo assim que as suítes fossem usadas apenas por casais e mais pessoas procurassem pelo lugar para realizar a “festa dos sonhos”. Com uma quantia significativa, todas as contas foram quitadas e provavelmente as futuras também não seriam um problema. Eliza poderia finalmente descansar e focar em algo que gostasse mais, e que não fosse estressá-la tanto no final do ano. Não só a pousada estava segura, mas também o orfanato em Smallville, assim como todas as outras instituições que eram ajudadas pelo baile anual de Midvale, que aliás, continuaria a acontecer enquanto tivesse gente interessada em fazer caridade.
E você deve estar se perguntando: o que houve com Andrea Rojas? Bom, a espera pelo julgamento durou quase seis meses, afinal a polícia e a promotoria ainda tinham muito para apurar e um buraco mais fundo para cavar naquele caso. Alex foi indicada a dedo por Ava Sharpe, que era uma agente condecorada e a nova chefe do departamento de polícia de Portland, muito bem conhecida pelo FBI, para liderar e encabeçar a investigação. Enquanto isso, Kara teve que lidar com uma Lena em pânico, que repetia continuamente que nada daquilo resultaria numa solução justa, que sua ex estaria livre em breve e que o pesadelo voltaria. Nada parecia convencê-la do contrário e a loira achou que aquele fosse ser o fim do relacionamento que começou já em meio a passos incertos.
Ambas tentaram ao máximo serem pacientes, a Luthor procurou um auxílio profissional, ao mesmo tempo em que sua namorada deu o espaço que ela tanto buscava e precisava. Não era justo descontar toda sua frustração em alguém que a amava tanto e que só queria seu bem. Foram meses passados num completo breu, ninguém queria afirmar que tudo daria certo, muito menos dar falsas esperanças para alguém que já tinha sido manipulada e machucada por alguém tão baixa e tóxica como Andrea.
Numa manhã de terça feira, Lena recebeu uma ligação de Alex, que avisou que a promotoria queria que ela testemunhasse a favor do caso. Kara achou que era uma péssima ideia, porém deixou que sua parceira decidisse sozinha. Lembrava-se daquela noite perfeitamente, das lágrimas, do quanto havia doído nela ver a outra chorar copiosamente e confessar que não se sentia confiante, que enfrentá-la seria um passo tão grande e que era algo que queria mais do que tudo, pois colocar Rojas na cadeia significava conseguir parte da absolvição que sua alma precisava, depois de tanto sofrer nas mãos dela. Reunindo toda a coragem que não tinha, a CEO respirou fundo e três dias depois, se viu sentando no tribunal, em frente a defensoria, promotoria do estado da Califórnia e parte do departamento de polícia de National City.
Todo o processo de preparação para as perguntas e ter que escutar as mesmas respostas pelo menos quinhentas vezes, durou pouco menos de duas horas. No entanto, sentiu como se tivesse passado uma eternidade. Em meio aos olhares curiosos e burburinhos que ecoavam pela sala, estava Kara Danvers, sorrindo como se aquilo não passasse de mais um dia normal. Como se carregasse o universo no olhar e todas as certezas do mundo no bolso de seu casaco. E isso foi o suficiente. Vê-la ali, sentir o calor irradiar de sua presença, foi o bastante para que Lena contasse sua história, o seu ponto de vista e finalmente colocar um fim naquela relação que um dia quebrou seu coração em pedaços.
A verdade que aprendeu foi que: nunca havia realmente amado Andrea e sim a ideia que tinha dela. Poder era algo dado e não conquistado, como diria Sam. Rojas nunca amou ninguém além dela mesma e por mais que essa crua constatação a fizesse se sentir tão estúpida, tola e inocente, também a fez aceitar a doce e perdida Lena de dezoito anos que acreditou que toda forma de amor era válida. Isso a aproximou mais de si mesma e de sua namorada, que em nenhum momento deixou de apoiá-la e mostrar que seu valor não era medido no quanto podia oferecer em troca, muito menos nos erros que cometeu no passado.
Kara também teve que trabalhar muito para compreender os seus próprios medos e lidar com o fato de que detestava mudança. Perder o pai tão nova a privou de viver um luto necessário e por conta disso, todos os outros conflitos relacionados a sua culpa por deixar a mãe em Midvale e o fato de que tinha um certo rancor pelo fato de que ela nunca a deixou escolher entre deixar Boston e se mudar para uma cidade completamente diferente, deixando assim a vida que tanto amava para trás, também tiveram que ser devidamente enfrentados, catalogados e superados. Pouco a pouco, ela perdoou Eliza e, o mais importante, perdoou a si mesma por não ter se permitido sentir, quando isso era tudo o que seu coração precisava.
— Serviço de quarto — escutou alguém bater na porta e abri-la, a tirando de seus devaneios. Ela se espreguiçou, esticando os braços para cima e sentindo cada músculo relaxar com os movimentos e então sorriu contente — quis compensar pelas minhas exigências do ano passado.
— Sei bem como isso acabou da última vez — disse cinicamente, dando espaço para que sua namorada se sentasse e colocasse a bandeja com o café da manhã sobre a cama — serviço de quarto, hum? — roubou uma uva e tentou ao máximo não rir das implicações que aquela viagem pela estrada do passado trazia.
— Se eu me lembro bem, minha comida até batia na porta e se servia na minha cama, foram as cinco estrelas mais bem dadas de toda minha vida, e as mais fáceis também — Lena se inclinou e beijou Kara, passando a ponta da língua por seus lábios até que desse passagem.
— Você não deu só as estrelas, se eu me lembro bem — rebateu, recebendo um tapa no ombro como resposta — ei! Você literalmente me chamou de fácil e eu que apanho?
— Fala como se não gostasse — Kara corou fortemente com a insinuação — e fácil fui eu, que caí no seu charme de garota do interior e me deixei levar ao ponto de estar comemorando o Natal, pela segunda vez consecutiva.
— Primeira, o ano passado não conta e hey, dessa vez você veio por livre e espontânea vontade! — comemorou ao se jogar sobre a outra, quase a derrubando no chão. A Luthor sorriu carinhosamente, sem acreditar que estava naquele quarto, onde tiveram sua primeira noite juntas depois de um acidente no lago. Ainda se recordava da aposta e de como havia perdido de lavada. E de como nem se importava. Comemoraria mil natais caso isso fizesse Kara Danvers a mulher mais feliz do mundo — feliz Natal, Lena.
— Feliz Natal, Kara — levou as mãos até os longos fios ondulados, descendo os dedos pela sua nuca e então contornando sua mandíbula — eu te amo.
A pequena Danvers deitou o rosto sobre as mãos cálidas que a acariciava com tanta ternura e fechou os olhos por breves segundos.
— Eu também te amo.
E a verdade era que Lena ainda odiava todas as versões de It’s beginning to look a lot like Christmas e patinar não era o seu forte, e talvez preferisse ficar bebendo chocolate quente com uísque ao lado de Alex, enquanto assistia Ruby dar piruetas sobre o gelo e sua namorada perseguir Winn por ter a derrubado na neve. Talvez ela ainda levasse Kara para um encontro, como se fosse a primeira vez, e a convidasse para ser seu par no baile. Talvez ela tivesse colocado Mike no lugar dele quando o encontrou no centro da cidade e ele teve a audácia de pedir por mais uma chance.
E talvez Lena fosse cética demais para acreditar em Papai Noel e fosse mais parecida com o Grinch do que imaginou, mas faria o possível para que todos os Natais dali para frente fossem eternamente especiais para a garota que tratou seu coração como se fosse mais precioso presente que alguém poderia receber.
FIM
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