A minha cabeça dói, mas essa não é a única dor que sinto, o meu corpo todo dói e o meu pé parece ter sido retalhado em pedaços.
Lentamente vou abrindo os meus olhos e recobrando a consciência.
Percebo então, que estou sendo carregada no ombro de alguém, alguém muito forte, pois me carrega com facilidade.
Flashes de lembranças tomam a minha mente, e uma pequena retrospectiva de tudo que aconteceu passa nela como um filme. Eu e Lourenço na floresta, os demônios, eu fugindo e deixando Lourenço para trás; e por último, lembro da voz que ouvi antes de apagar.
O pânico desperta todos os meus sentidos ainda adormecidos. Quem está me carregando!?
Estou de cabeça para baixo nas costas desse “alguém”, por isso identificar quem seja ele, se torna uma missão difícil.
Tento me soltar, mas suas mãos apertam as minhas pernas com força. Sinto algo semelhante a garras me arranhando.
Um sinal de alerta pisca na minha cabeça. Forte e com garras... Um demônio!? Uma daquelas criaturas está me carregando? Para onde? Para a toca deles? Vou servir de banquete para eles? Essas criaturas são seres racionais?
Muitas perguntas para nenhuma resposta.
Cogito a possibilidade de perguntar algo para ele, mas tenho medo de zangar a criatura e acabar morrendo aqui mesmo, aliás, eu nem sei se ele fala. O que eu ouvi antes de desmaiar pode ter sido fruto da minha imaginação.
Mesmo de cabeça para baixo, noto quando ele entra numa propriedade, pois o caminho sob os seus pés se torna pavimentado com pedrinhas.
Não demora muito, e a criatura começa a subir uma pequena escadaria, certamente é a entrada do lugar.
Que Mãe Miranda me proteja! Se o meu destino for a morte, que ela seja rápida.
Assim que ele termina de subir os curtos degraus, passamos por uma porta grossa de madeira e entramos em um lindo hall de entrada.
Observo o pouco que consigo ver. O lugar tem uma decoração requintada, com grandes vasos de aparência cara e paredes de madeira entalhada. Mas um quadro mais a frente é o destaque do lugar, nele há três jovens retratadas.
— Achou outro lanche, Urias? — um coral feminino de gargalhadas é ouvido — Mamãe vai ficar muito feliz. Leve-a para a masmorra.
— Levem ela vocês — fala o demônio com uma voz grossa — Não obedeço às suas ordens, e nem as da lady — ele me joga no chão — Já fiz o meu trabalho — dá as costas e saí.
— Lycan miserável! — esbraveja uma das vozes.
No chão, tento controlar a minha vontade de chorar. Era necessário ele me jogar? Já não estou ferrada o suficiente?
Ainda pensando na minha própria dor, quase não noto o estranho zumbido de moscas que a cada segundo fica mais forte.
— Essa não vai durar muito. Já está em frangalhos — diz uma voz do meu lado direito.
— Nem vai dar para a gente brincar com ela — fala outra do meu lado esquerdo.
Levanto a minha cabeça para ver os rostos das mulheres que estão falando entre si, mas antes que eu consiga ver algo, uma mão segura no meu cabelo com força; forçando o meu rosto contra o chão para me manter de cabeça baixa.
— Olhem pelo lado bom, irmãs. Ela não parece ter perdido muito sangue, e o cheiro é bom — diz a que está me segurando enquanto passa o seu nariz no meu pescoço.
O meu corpo se arrepia com esse ato.
— Quem são vocês? Onde eu estou? — finalmente perco o medo e pergunto algo.
— Logo, logo, você vai descobrir.
E então, inesperadamente, ela bate de forma brusca a minha cabeça no chão. Outra vez, fecho os meus olhos e mergulho na escuridão.
...
— Vanessa, Vanessa, acorde — alguém me sacode.
Continuo de olhos fechados. Eu estou muito cansada e tudo que mais quero é continuar dormindo.
— Acorde, os ratos vão roer as suas feridas — a voz continua insistindo.
Porém, eu não dou a mínima, estou delirando, não é real.
Quando finalmente a voz se cala, sinto algo peludo passando no meu pé. Não dou importância, mas do nada levo uma bela de uma mordida no meu dedão do pé.
— Ai! — acordo num pulo e dou um chute no que me mordeu.
Um rato, maior que a minha mão, corre para fora da cela chiando por não ter conseguido lanchar o meu pé.
— Eu te avisei — a voz se pronuncia rindo de mim.
Olho para o lado e não acredito no que vejo.
— Lauren!?
Estou confusa, o que Lauren Walter faz aqui? Onde estão as mulheres que me receberam aqui? Onde estou?
Além de confusa, também estou com raiva, nunca sei onde estou, sempre que acordo fico mais perdida que cego em tiroteio.
— Eu mesma. Ao vivo e a cores, em carne e osso... Na verdade, em mais osso do que carne — ri de forma amarga — Os seus pais te mandaram para trabalhar aqui, não foi? Era de se esperar, Anthony uma hora ou outra ia arrumar um jeito para se livrar de você. Sinto muito, Vanessa — fala com pena de mim.
— Hã? — se antes eu já estava confusa, agora piorou.
— Não precisa me contar nada agora, sei como é difícil chegar aqui e perceber que foi enganada. Todo mundo demora um tempo para aceitar a realidade. Tudo no seu tempo, eu estou aqui se precisar de um ombro amigo — segura no meu ombro numa tentativa de passar-me conforto.
— O que diabos você está dizendo, ragazza?! Eu sinceramente não estou entendendo nada, você está supondo coisas erradas. Ninguém me mandou para trabalhar aqui, eu fui expulsa de casa e então fugi do vilarejo junto com o Lourenço E... — paro e me aproximo dela — Os demônios nos pegaram, Lauren! — arregalo os meus olhos na sua direção — Eles existem, Lauren, ELES EXISTEM!
Agora quem parece confusa é ela, Lauren abre a boca várias vezes, mas sempre fecha ela sem conseguir falar nada.
Deixo que Lauren lide com tudo só, e enquanto ela tenta assimilar, eu aproveito e observo melhor onde estamos.
Nós duas estamos trancadas em uma cela imunda. As paredes e o chão são de pedra, e de resto não há quase nada, só um banheiro improvisado no canto direito e um colchão de feno, onde antes eu estava deitada. Acho que já vi celeiros mais confortáveis que esse lugar.
— Como eu vim parar aqui? — interrompo os pensamentos de Lauren.
— A Srta. Bela te trouxe até aqui.
— Bela Dimitrescu?! — agora tudo faz sentido — Maledizione! — Chuto a porta da cela com raiva e Lauren se assusta — Era melhor eu ter morrido logo de uma vez. Aquele demônio maldito tinha que me trazer para cá?! Justo para o castelo Dimitrescu — chuto de novo a porta, mas desta vez esqueço que o meu outro pé está machucado e chuto com ele.
Caio no chão sentido uma dor horrível.
— Calma aí esquentadinha, desse jeito você vai acabar se machucando ou vai acordar todo mundo aqui — Lauren vem até mim e me ajuda a sentar no colchão.
Só então noto que além de nós, há outras garotas em outras celas, não sei quantas garotas são, pois o corredor é extenso e nele há várias celas, mas certamente são um número considerável.
— Se vocês trabalham aqui, por que ficam presas? Isso não faz sentido — pergunto o que tanto me intriga.
— Não é bem um trabalho, está mais para escravidão. As filhas da lady nos vigiam durante o dia, enquanto estamos fazendo nossas funções, e de noite, elas nos trancam aqui para não fugirmos — Lauren da uma pausa em sua fala, mas logo continua — Se elas te colocarem para trabalhar, aceite sem reclamar. Não tente se rebelar, e nem fugir, porque isso é impossível. Elas são espertas e não têm muita paciência, sempre que uma garota comete um erro no outro dia ela some.
Balanço a cabeça fingindo que concordo, afinal, ela não precisa saber que não pretendo passar muito tempo aqui. Eu vou fugir, custe o que custar. Lourenço precisa de mim.
Neste momento me encontro na pior situação possível. Demônio maldito, tinha que me trazer para um lugar tão difícil de fugir.
— Então, os demônios não são só lendas, acho que por essa a gente não esperava — tenta fazer graça — Foi um deles que fez isso com o seu pé?
— Indiretamente foi, eu estava fugindo de um quando pisei em algo, acho que era uma armadilha para ursos. A dor foi horrível e até agora sinto o meu pé latejar — olho para o pedaço de carne sangrenta que chamo de pé.
— Amanhã vou ver se encontro algo para tratar essa ferida. Você deu sorte, poderia ter morrido.
— Eu sei, até agora não entendi porquê não morri, não que eu esteja reclamando, é claro, mas é estranho. Por outro lado, isso me tranquiliza quanto a Lourenço, se eu estou viva ele também pode estar.
— Pode estar? — Lauren pergunta confusa — Mas eu pensei que o Lourenço tinha vindo para cá junto com você.
Respiro fundo e olho para um ponto qualquer na parede de pedra. Não quero admitir em voz alta que fui uma covarde e abandonei o meu irmão. Não quero que Lauren me olhe com um olhar de julgamento, mesmo que eu mereça ele, por isso, minto para ela.
— Na fuga acabamos por nos separar na floresta, agora não faço a menor ideia de onde ele está — penso em tudo que me aconteceu até agora, e então, percebo que quase deixei uma pista passar batido — Mas talvez eu tenha uma pista — falo empolgada — Quando eu cheguei aqui alguém disse para a criatura: “você trouxe outro lanche, Urias”. Se eu era o “outro lanche” alguém chegou aqui antes de mim. Pode ter sido o meu irmão! Certamente o outro demônio trouxe ele para cá! É isso. O meu irmão está aqui, Lauren! — agarro nos ombros de Lauren, tamanha é minha empolgação — Ele não está morto!
Mas Lauren não parece tão convencida disso quando eu, pois ela pega na minha mão e olha no fundo dos meus olhos.
— É uma possibilidade, mas você não tem certeza de nada. Eu não quero acabar com a sua alegria, mas você não pode se iludir com uma falsa esperança.
— Eu sei o que estou dizendo — puxo a minha mão da sua — Ele está aqui, posso até sentir.
— Se você diz — ela suspira derrotada.
Encaro Lauren, e agora observo melhor a sua figura. Ela está magra, bem desnutrida, e o seu semblante é frágil e cansando. Não se parece em nada com a garota alegre e saudável que conheci.
— O que aconteceu com você? Como veio parar aqui? — decido trocar de assunto.
— Estou aqui por pura tolice minha, as pessoas no vilarejo começaram a comentar que a lady precisava de uma costureira, a minha mãe incentivou-me a tentar. Você sabe, ela é uma ótima costureira, e ter uma filha costurando para a lady seria como ter um sonho realizado, ela não imaginava um futuro melhor para mim, e até eu mesma não imaginava. Então me candidatei e infelizmente fui aceita, agora estou aqui, como escrava. Um belo futuro esse que arrumei — os olhos de Lauren estão vazios, mergulhados na tristeza.
— Sinto muito — agora sou eu quem pega em sua mão tentando transmitir conforto.
— Não precisa me consolar, já passei dessa fase, já faz três meses que estou aqui, já me acostumei com a minha nova vida — tenta soar indiferente.
— Será que dá para vocês calarem a maldita boca aí?! Tem gente tentando dormir aqui! — uma das garotas da cela do lado grita para nós.
Olho para Lauren e ela está segurando o riso.
— Acho melhor a gente ir dormir, se não a Gretta vai jogar urina na gente — sussurra para mim.
Faço uma careta de nojo e concordo com ela. Eu também estou exausta, tanto fisicamente quanto psicologicamente.
Nós duas nos deitamos no fino colchão de feno, e tentamos nos aconchegar da melhor forma possível. Lauren faz o meu braço de travesseiro, e eu, com o outro braço, envolvo a sua cintura. Ficamos em uma conchinha meio desajeitada, mas confortável.
Não temos nada para nos cobrir, e a noite está fria. Os nossos corpos terão que dar conta de nos aquecer.
— Boa noite, Vanessa.
— Boa noite, Lauren — afundo o meu rosto no seu pescoço e fecho os meus olhos.
Desta vez a escuridão não é algo que me assusta.
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