Era tarde da noite e Zeke rolava de um lado para o outro da cama sobre a cama, sofrendo mais uma vez para dormir, não por falta de sono uma vez que seu corpo estava cansado do esforço do dia e as pálpebras estavam, como também estava coberto por seus lençóis favoritos e confortável na cama. Mas mesmo assim, não conseguia relaxar e dormir com tranquilidade.
Afinal, ele tem motivos para conseguir ter uma noite de sono boa.
Ele estava tenso e em alerta com cada ruído emitido pela casa, e conseguia reconhecer quem estava caminhando no andar debaixo apenas pela força da pisada sobre o chão.
Escutara passos de repente. Eram pesados, lentos, forçando o piso de lajotas a sair de seu lugar original e provocava estalo assim que pisava sobre ele. Demorou mais dois segundos para um novo estalo ser ouvido. Apenas por este detalhe, Zeke já sabia de quem se tratava.
Era seu avô.
— Ainda duvido muito que o Zeke consiga se virar sozinho nessa vida.
Zeke escutou-o e, apesar do medo da bronca do mais velho, desceu as escadas na ponta dos pês e se encostou no batente da porta, inclinando a cabeça na pequena abertura o suficiente para compreender os cochichos de seus avós na sala de estar.
Não era a primeira vez que fazia isso, e na verdade, situações assim eram comuns naquele horário.
— Mas querido — A avó Jaeger tocou na mão repleta de rugas do marido —, o nosso neto não faz tantas coisas em casa porque você quer que ele foque em estudos.
— Mas ainda não está sendo o suficiente. Ele precisa ser alguém melhor, um rapaz digno, estudado e inteligente e saber fazer tudo o que aparecer na frente dele. Você viu como ficou a situação do Grisha quando deixamos ele só um pouco solto? Tá aí, sem rumo na vida e vivendo em vários cabarés, torrando o dinheiro que ganha em cada bico que faz e nós ficamos como? Vamos ficar na miséria por causa dele?
— Não acha que está colocando pressão demais sobre o Zeke?
— Que pressão? Ele tem tudo de mão beijada praticamente, pra quê melhor? Ah, se fosse na minha época, que tinha que acordar de madrugada-
— E catar argila pra fazer tijolo em meio a sol quente durante a manhã e tarde — A senhora mais velha resmungou, repetindo a história de infância de seu marido —, viajava por horas só pra chegar na escola, comer bolacha com suco e quando voltar pra casa, ainda ter que cuidar de seus sete irmãos mais novos já que a mãe estava adoentada. Eu sei que sua rotina era pesada pra caramba, mas não precisa descontar tudo no nosso neto. Ele está crescendo e não é trancando ele no quarto e estudando mais de doze horas por dia que vai fazer ele se dar bem nessa vida. Ele precisa viver.
— Pensa, mulher, pensa. Se ele for bom em todas as áreas do conhecimento, não vai faltar oportunidade para ele, e sabe muito bem como está a concorrência nos mercados hoje em dia. Por isso que ele tem que estudar e só estudar, e isso já basta. Todo resto é perda de tempo, e ai de mim se ele voltar pra casa com um boletim com uma nota abaixo de oito. Não vou aceitar um negócio desses de jeito nenhum.
— Mas na vida é muito mais do que teorias e boletins.
— É por isso que assim que ele terminar a escola, vou mandar ele arranjar um trabalho. Melhor, amanhã mesmo já dou meu jeito de arranjar uma vaga de emprego pra ele. Eu não vou deixar que o que aconteceu com o nosso filho aconteça com o nosso neto. Não vou cometer os mesmos erros que cometi com Grisha. O Zeke vai ter que ser o filho perfeito, o que queríamos que o Grisha fosse mas não foi por pura incompetência.
Com aquelas palavras brutas, o Jaeger mais novo, novamente na ponta dos pés, voltou ao quarto e se agasalhou nos lençóis, como uma tartaruga se recolhe no próprio casco para se proteger dos perigos.
E outra, o que seria uma pessoa perfeita, segundo a concepção de seu avô? Alguém que é faz tudo? Que é superinteligente? É quanto a aparência? É quanto a habilidades? Não compreendeu a princípio, e falta de entendimento não estava em seu vocabulário, se não soubesse dar alguma resposta precisa sobre o que sentira, seria alvo de críticas severas.
Escutava com frequência de seu próprio avô que o pai não aparecia naquela casa porque estava “se engraçando” com outras mulheres e esqueceu da existência do filho. Não foram menções soltas, sempre as usava quando o mais novo falhava em alguma tarefa.
Apesar de não conhecer Grisha tão bem, sabia que aquelas palavras do avô eram mentiras. Grisha não demonstrava ser o tipo de homem que vivia nos tais cabarés. Ele procurava bicos lá e acolá na tentativa de tirá-lo do seu avô, que jura de pé junto que estará melhor sob seus cuidados.
“Acha que seu pai se orgulharia de alguém como você?”
“Nossa, tirou nove? Por quê não aproveitou para tirar um dez logo?”
“Como assim não decidiu o que quer fazer da vida? Céus, isso é vergonhoso demais para alguém da sua idade.”
— Ele não vai gostar de mim se eu não for bom.
Nisso, se esforçava além de seus limites, chegando a ter colapsos frequentemente por conta do esforço excessivo. Não era incomum de seus colegas de turma notarem o quão isolado ele era na sala de aula.
Nas atividades tanto normais quanto as em grupo, ele se responsabilizava por todos os aspectos, desde a separação de conteúdo à apresentação do mesmo, porque, nas palavras de seu avô: Um homem bom é líder. Se quer ser um homem de destaque, tem que tomar a frente sempre e mostrar que você é dominante daquilo que se propõe a fazer.
Por conta disto, abriu de mão de muitas etapas de sua infância e adolescência. Não comparecia a aniversários de amigos, não saia com eles, não se sentia confortável conversando com alguém.
A vida do Jaeger se resumia a acordar, estudar até não aguentar mais, tomar esporro do avô, ouvir reclamações dos motivos mais ridículos possíveis e dormir.
Dormia e acordava pensando qual seria o surto que teria de aturar no dia seguinte, e dava tudo de si para não acontecer. Ele ultrapassou todos os limites e jogou fora sua vida apenas para manter a paz naquela casa.
Os anos foram se passando e ele chegou ao ensino médio, passando em segundo colocado na avaliação de admissão, tendo apenas cinco pontos de diferença do primeiro colocado. Apesar da aprovação ser motivo de comemoração, algo lhe faltava naquele momento.
Talvez fosse sentir uma sensação de liberdade, uma folga, um descanso depois de tanto esforço. Provavelmente também carecia de sensação de pertencimento, mas “sentir” qualquer emoção era algo alienígena para ele. O simples conceito de “sentir” fora apagado ao longo dos anos, e chegara a segunda fase da educação como uma máquina de estudos, pronto para ter avaliações gabaritadas sempre.
Ainda que tais habilidades e competências fossem admiráveis, foi justamente isto que o fez ficar distante da turma. Não que fosse esnobe, nem egoísta, nem de personalidade ruim. Ele sempre fora atencioso e fazia o que era pedido com agilidade e perfeição, mas tanto colegas de sala de aula como familiares o julgavam como alguém que passava a impressão de ser inacessível a qualquer um.
Comentários do tipo não eram incomuns em sua turma de mais de quarenta alunos. Se perguntasse a qualquer um dos alunos o que diriam sobre ele, dariam as seguintes respostas:
“Alguém difícil de conversar.”
“Falar com ele é como falar com uma porta.”
“Não consigo gostar dele, mas não sei bem o motivo. Eu simplesmente acho ele chato.”
Entretanto, assim como toda regra tem sua exceção, isto se aplica aqui. Em meio a tantos alunos, apenas duas colegas eram próximas de Zeke Jaeger.
Pieck Finger, e a outra garota da qual tanto o rosto quanto nome não retornaram a memória.
A presença das duas garotas fizeram o ensino médio se tornar suportável. Eram as únicas pessoas em anos que conseguiram se aproximar e compreender o porquê dele ser fechado do jeito que é, e nunca o julgaram por isso. Aliás, elas tentavam o tirar da prisão que ele vivia, não no sentido literal de o fazer fugir da casa dos avós, mas no sentido de testar coisas que nunca fez quando criança.
Ir ao parque para soprar bolhas, subir em casas na árvore, brincar de pega-pega, esconde-esconde, empinar pipa, fazer um piquenique e ter a bunda sendo mordida por formigas. A lista só tende a aumentar.
Foi por elas que ele decidiu continuar sobreviver naquele inferno, porque mesmo após tantos anos isolado da sociedade, sabia que havia um mundo bonito e pronto para ser explorado.
Não demorou muito para os anos voarem e já estarem no terceiro ano do ensino médio. Um problema não comentado desde então, que não era mais novidade para ninguém, é que ninguém dava notícias do paradeiro de seu pai. É como se ele tivesse evaporado da face da terra. Nenhum familiar sabia o paradeiro do Jaeger, nenhum amigo, nenhum conhecido sabia dizer uma informação sobre ele. O período de finalização do ensino médio se aproximava e Grisha nem aparecia para dar um sinal de vida? Nem para dar um telefonema nem nada?
Foi naquele momento que Zeke realmente começou a temer se seu futuro seria sombrio, ainda mais vivendo com o avô que tem.
No fim do ano, não, a vida inteira dele poderia ser resumida em uma simples frase:
“Viver com o avô Jaeger é lutar diariamente para não pisar em ovos.”
E não foi diferente naquele ano. O mais velho se tornou obcecado pelo conceito da “perfeição” que um homem pode alcançar, a ponto de opinar constantemente sobre qualquer atitude vinda de Zeke, como também postura e quanto ao corpo dele. Qualquer coisa, qualquer coisa poderia se tornar motivos de chacota. Poderia ter a ação mais simples, como sorrir, chorar, abaixar a cabeça, olhar para outro canto durante uma conversa ou suspirar pesado, assim como, se ousasse comer um pouco mais do que deveria, segundo o mais velho, ganharia sermões gratuitos.
A avó interferiu mais de uma vez nessas brigas tentando proteger seu neto, e quando saiam da cozinha juntos, escutavam os gritos e ameaças do marido. Era algo tão recorrente a ponto de, ao Zeke tentar dormir, sonhar com as ameaças de seu avô se tornando realidade.
Não era incomum acordar no meio da madrugada para checar se sua avó estava bem, e sempre que a via dormindo no sofá, sentava no chão ao lado do móvel e sussurrava que daria um jeito de, mesmo que estivesse nos últimos anos de vida, sair daquele inferno e dar uma vida digna para ela.
Todos os dias, fazia a mesma pergunta:
— E se eu tivesse feito diferente? E se eu não tivesse sido tão submisso?
A partir dali, pouco a pouco, mais fragmentos de memórias perdidas retornavam a sua mente. Como um disco de vinil ralado, as lembranças ditas se repetiram mais de uma vez, sem indício de ter um fim.
As falas brutas de seu avô, isolamento social, pressão para se adequar a padrões impossíveis, os curtos momentos de leveza com a garota que amava, a repentina morte dela, a ausência das figuras materna e paterna durante infância e adolescência. Eventos e falas marcantes se amontoavam criando a receita perfeita para uma catástrofe.
Frases como:
— Você não vai ser ninguém na vida se continuar agindo assim!
Ou:
— Mesmo que isso te deixe desconfortável, permaneça calado. Contenha sua raiva. Engula esse choro. Ignore esses sentimentos desnecessários. Não há necessidade de falar o que está acontecendo contigo. Você é um homem, Zeke. Ninguém vai parar para te ajudar se estiver tendo dificuldade. Por isso, pare com essa frescura e vá fazer algo de útil.
— Não está bom o suficiente.
— Mais. Mais. Mais. Você precisa fazer mais!
E, certamente, a pior dentre todas.
— Você e seu pai são as piores coisas que já aconteceram na minha vida.
…
— Talvez por isso que hoje eu seja tão estúpido.
É, talvez esteja certo nisso.
—…Como? Como assim “esteja certo”?
Oh, não me diga que não percebeu? Você aceita migalhas dos outros como se fossem remessas de pão de padaria que acabaram de sair do forno. O simples fato de alguém te agradecer, quando era adolescente, já era motivo para sorrir de orelha a orelha. Já era motivo para saltar e querer abraçar a pessoa. Não é atoa que te achavam estranho.
— Porque quase nunca tive isso em casa.
Mas por que não teve?
—…
Nem sei porquê estou perguntando isso. Já sabemos muito bem o motivo. Porque foi fraco e nunca alcançou as expectativas dele. Além do mais, você poderia ter saído dessa situação mais fácil se agisse como uma pessoa age de acordo com sua idade.
— Se eu agisse, provavelmente perderia teto, comida, uma cama para dormir. Eu só tinha minha avó para me defender.
Mas você é homem, não é? Se sim, por que não correu atrás de emprego em vez de se esconder debaixo da saia da avó, como sempre fez desde criança? Hum? Tem alguma resposta que responda a sua pergunta?
Se fosse homem de verdade, iria atrás de um emprego para sair daquela casa, se sabe que viver sob o mesmo teto que seu avô é um inferno. Não viu o que seus amigos fizeram assim que terminaram a escola? Cada um tomou um rumo na vida, e você demorou para o fazer. Assim como também permitiu que seu avô tomasse controle de sua persona.
Responda: Você realmente é homem de verdade se deixa ser dominado por um familiar?
Além do mais, na tentativa de manter a paz em casa, você se prejudicou. Você ficou fraco. Você é fraco. Sua fraqueza levou a tragédias irreparáveis. Foi por sua culpa que seu pai te abandonou. Não acha muita coincidência que ele sumiu da sua vida depois que nasceu?
— Eu não estou gostando disso.
Está tão acuado que não consegue responder? Oh, porquê essa tremedeira? Deixa de frescura e me escuta, ouviu bem? Você tem muito o que ouvir ainda.
— Eu não quero mais. Eu não quero mais.
Mas você vai ouvir. Eu sou seu subconsciente. Mesmo que memórias tenham sido apagadas de suas recordações, elas ainda existem no fundo de sua mente. Elas simplesmente “sumiram” para te proteger de algo pior, mas vejo que não conseguiu proteger outras coisas em sua vida. Não foram poucas, para variar.
Oh… Quase ia me esquecendo. Se lembra daquela garota que você era apaixonado? Também se lembra daquele cara que te deu o primeiro cigarro que você tragou e quis mais daquilo?
— Eu não quero me lembrar.
Sério, pois permita-me te lembrar.
Sempre que ela fazia o mínimo por ti, você a correspondia como se fosse uma rainha, jurando que estava sendo romântico, mas estava parecendo um louco e desesperado pela atenção dela. Ela era educada e você distorcia para se encaixar nas suas narrativas de que ela te amava. Não, Zeke, o máximo que ela sentiu por você não foi amor, muito menos paixão. Foi pena.
— Não. Não é verdade. A gente se amava!
Conversa fiada. Isso é pura balela. Ela nunca te amou e nem demonstrou amar.
— É claro que demonstrou. Nós fazíamos tantas coisas juntos, e eu sentia que éramos destinados um ao outro!
Então por que ela te abandonou naquele parque? Se realmente te amava, ela teria ficado e desmentido a tal aposta com as amigas dela, não? Ao menos fingir que aquilo não se tratava de uma mentira para te enganar. Mas não, ela abandonou sem mais nem menos.
— Ah…
E coincidentemente, dias depois aquela sua amiga, Pieck, o nome dela? Ela viu que essa garota estava saindo com o cara que te ofereceu o cigarro. Qual o nome dele, você se lembra? Imagino que não também.
— Não, mas desde sempre eu tive um mau pressentimento quanto a ele.
E mesmo sabendo disso, por que não tentou os separar?
— Porque… Eu não tinha força para bater de frente com ele.
E por que não tinha força pra bater de frente com ele? Hm… Posso te sugerir um motivo? Talvez foi porque você não teve a fase rebelde que um adolescente normal tem, assim como era submisso demais.
Vamos aos fatos: Você sabia do relacionamento dos dois, percebeu mais de uma vez que ela não estava bem, e reparou que ela estava faltando na escola. Primeiro dia sim e dia não, depois a cada dois dias, depois a cada semana, até sumir de vez. Mesmo você dizendo que simpatizava com ela, não fez um esforço para tentar saber o que houve com ela. Por que não avisou para os superiores então?
— Eles falei com eles mas não deram ouvidos. Disseram que problemas fora da escola não são da conta deles.
Mesmo assim, poderia ter contatado um familiar ou algo do tipo. Você podia fazer isso, não podia? E se isso não fosse possível, você mesmo daria um jeito de entrar na briga e salvar ela, afinal, segundo sua concepção, se ama alguém, faria o possível e impossível para proteger alguém, assim como você mesmo disse para o Arthur há poucos minutos. Mas não o fez. Não o fez em ambos os casos.
Sua fraqueza foi o que causou a perdição deles dois.
— Quê?! N-não! Uma coisa não tem nada a ver com a outra!
Como assim não tem a ver? Você sabia desde o começo da situação de ambos. Sabia muito bem quem estava os perseguindo nos dois casos. Sabia dos perigos que eles corriam, mas preferiu ficar acuado, escondido e esperando uma oportunidade para tomar uma atitude, e quando tomou, já era tarde demais, o que causou o sumiço dos dois.
— Não é nada disso! Eu juro que tentei!
Não foi insistente o suficiente para dizer que tentou.
— É claro que tentei!
Isso é o que você acha.
— Por que está duvidando tanto de mim?! Eu fiz o que estava ao meu alcance mas nunca parece que é o suficiente!
Por que estou te fazendo enxergar os fatos. Quem está ao seu lado está fadado ou a se decepcionar ou a morrer. Sua família não liga para ti porquê não seguiu o rumo que eles queriam. As pessoas que você ama atraem pessoas tóxicas e perigosas, e, Zeke, você não tentou proteger ambos nem um pouco. Admita.
— Chega! Para com isso!
Você sabe que não tem como calar o subconsciente.
— Eu não aguento mais, para!
Você sabe que não tem como fugir disso.
— Para, por favor!
Você deixou isso acontecer. Encare os fatos. Você é um homem fraco que fracassou em todas as esferas, e continua fingindo que está tudo bem quando não está.
— Chega!
Isso tudo é culpa sua.
— Não!
Isso tudo é culpa sua.
— Não!
Isso tudo é culpa sua.
— Não!
…
Zeke, ei! Zeke Jaeger! Reage!
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