Aquele seria o outono mais quente em anos, e ainda assim, parecia congelante.
Gon estava sentado na borda da piscina, eram onze horas da manhã, e Killua havia lhe convencido a matar aula — por mais que estivesse morrendo de medo de ser pego, decidiu que deveria experimentar, pelo menos uma vez.
Tinha um cheiro forte de cloro no ar, e haviam folhas boiando na superfície — por isso, sabia que Killua não arriscaria entrar —, os dois estavam dividindo um único suéter — agradeceria à sua bisavó por tê-lo feito extra-largo mais tarde —, e comiam os almoços que Mito havia preparado.
— Espera. Tive uma ideia! — exclamou, alegre, e colocou a lancheira de lado.
Era difícil sair de dentro do suéter. Quando conseguiu, teve calafrios. Sentou atrás de Killua e abriu as pernas, tentando se encaixar. Ele estava lhe observando, com a boca cheia de arroz e um olhar curioso.
Passou a mão por baixo das axilas dele e sorriu.
— Sou os seus braços!
Killua mastigou um pouco mais, em silêncio. Assim que engoliu, perguntou:
— Pra' que isso?
— Precisa de motivo?
Ele deu de ombros.
— Olhando dessa forma... me alimente!
— Sim, capitão! Seja meus olhos!
Moveu o braço.
— Frio — ele anunciou —, frio. Ainda frio. Ok, 'tá esquentando. Quente. Quente. Pelando.
Inclinou-se para frente.
— É aqui? — questionou.
Killua acenou.
— Só abaixar a mão.
— Isso é difícil — resmungou, tendo dificuldades em descer —, é o garfo ou a faca?
No segundo seguinte, tocou em algo molhado e macio. Levantou a cabeça, por cima dos ombros de Killua. Viu água, uma folha amassada. Tinha enfiado a mão na piscina. E a água estava extremamente gelada.
Ouviu ele rir.
— Killua! Que vacilo!
Ele virou o rosto, sorridente.
— Você acha?
Levantou a cabeça.
— Obviamente. Não é a sua mão que está virando um picolé!
Killua puxou uma ponta do seu suéter — se desfazendo de uma das mangas —, convidando que voltasse para dentro. Aceitou, passando por baixo e vestindo-a, seus ombros voltaram a se tocar.
Assim que sua cabeça emergiu pela gola — já bastante esticada, por sinal — bateu com o nariz no queixo de Killua.
— Gon! Filho da...-
Estavam muito perto. Sentia a respiração quente dele bater em seu rosto, e segurava o próprio nariz, dolorido pelo impacto.
— Você 'tá bem? — Killua perguntou.
— 'Tô.
Ele levou as mãos até as suas, cuidadosamente, e as tirou dali.
— Caralho... — o ouviu resmungar, em baixo tom.
— Que foi?
— Você 'tá sangrando.
Arregalou os olhos, e tocou uma narina. Não tinha absolutamente nada, nenhum sinal de sangue. Ele sorriu — um daqueles sorrisos largos e gatunos, que não mostravam os dentes, e só ele conseguia dar.
— Sabia que não tem graça quando você faz essas coisas?!
— Eu achei engraçado! Você também acharia se tivesse visto sua cara, parecia um idiota.
Uma ideia tomou sua cabeça, e foi rápido em executá-la. Segurou as bochechas de Killua, fechou os olhos com força e em um único movimento uniu suas bocas. Beijava-o.
Estranhamente, era mais macio do que imaginava, mas os lábios do garoto estavam frios, secos e cortados — ele tinha um péssimo hábito de mordê-los. Depois de alguns segundos pressionando, separou-se. Isso, para se deparar com o rosto de Killua mais vermelho que nunca — e seus olhos arregalados.
— Quem parece um idiota agora? — Sorriu.
Ele abaixou a cabeça, e se desfez do suéter em uma velocidade incrível — se afastando —, o sorriso já não estava mais em seu rosto.
Passado um tempo calado — tempo o suficiente para Gon perceber que não deveria ter feito isso —, Killua riu novamente e respondeu:
— Eu, eu acho.
[...]
Killua estava tentando dormir fazia um tempo, Gon sabia disso.
Ele estava sentado atrás de si, a cabeça apoiada em seu ombro — em tentativa de restringir seus movimentos — e costas encostadas no sofá. E simplesmente não conseguia fechar os olhos em paz.
Gon estava em sua frente, sentado entre as suas pernas, se mexendo constantemente. Seja para ir para mais perto da televisão, ou se afastar dela bruscamente — assim, batendo o cotovelo na sua barriga, o que era justo dizer que tinha acontecido mais de uma vez naquele curto período de tempo.
Tinha colocado uma vasilha de pipoca bem em cima do sofá — o qual, por algum motivo, nenhum dos dois ocupava —, apenas para ter mais uma desculpa para ficar em um vaivém entre Killua e o chão. E não é como se estivesse fazendo isso em vão, realmente não queria deixar que ele dormisse por algo lógico — claro, lógico no limite de racionalidade que sua mente permitia —, mas a cada vez que a oportunidade surgia, Gon perdia a coragem.
Fazia meia hora que a chuva havia engrossado, quinze minutos que Mito fechou a floricultura — pois ela tinha certeza que poucos viriam diante daquela chuvarada —, e treze que ela lhe mandou um olhar que definitivamente não conseguiu entender, e desde isso nem encará-lo parecia aceitável.
Então, é, estava o mantendo acordado atoa, e talvez isso fosse um pouco maldoso, porque Killua não era o que chamaria de diurno, entretanto, tinha uma pergunta presa em sua garganta que ainda não tinha conseguido fazer.
Não estava mais prestando atenção no filme fazia um bom tempo, se fosse sincero. Não desde que a trilha sonora animada mesclou-se com as vozes dos personagens, Gon não conseguiu mais manter os olhos firmes tempo o suficiente para distinguir o cenário.
Precisava muito perguntar algo para Killua.
Ele bocejou, mexeu o rosto e lhe puxou um pouquinho mais para perto, onde jogou o peso do corpo.
Estranhamente, Killua estava com sono o suficiente para nem ter dado chilique pela proximidade que estavam. E, por mais curioso que estivesse para saber o motivo disso, percebeu que essa era a oportunidade perfeita para perguntar. Se ele não estava com vergonha disso, talvez não reclamasse tanto das suas dúvidas.
— Killua...? — chamou.
— O quê? — ele resmungou, a voz arrastada pelo sono.
— Você já gostou, tipo, gostou, de alguém?
Ele levantou a cabeça.
Não sabia se deveria olhar para ele ou não — provavelmente estava lhe encarando com uma expressão terrível.
Decidiu que era melhor continuar olhando para a televisão.
— Por que quer saber?
— Curiosidade.
Killua abaixou a cabeça, inclinando-a na direção do seu pescoço. O cabelo dele era bem macio, fios e mechas estavam raspando na sua pele.
— Oitavo ano, Anita — respondeu, e Gon fez uma careta. Costumava se dar bem com muitas pessoas, mas não gostava nem um pouco dessa garota. — Mas, se está falando de antes de te conhecer, teve uma Karina... ou era Konan...? Acho que era alguma coisa estrangeira. Ah. — Ele levantou o rosto, devagar. — Era Kogane.
Olhou para ele também.
— E o que aconteceu?
— Com a Kogane?
— Com as duas — retrucou, rapidamente.
Killua estalou a língua no céu da boca, pensativo.
— Hum... acho que perdi o interesse quando percebi que ela gostava de mim. 'Tava ficando muito grudenta. — Suspirou. — E a Anita...
— Eu não gostava nem um pouco dela — interrompeu, enojado.
Ele riu — baixinho.
— Só que ela gostava de você. Talvez até de mais.
— E então você parou de gostar dela?
— Eu não colocaria dessa forma, mas eu parei, então tanto faz. — Bocejou, mais uma vez. — Você tem mais alguma outra pergunta ou eu posso dormir?
Foi sua vez de abaixar a cabeça.
— Você acha que é estranho eu nunca ter gostado de alguém?
— Não.
Mordeu o interior da boca, franzindo as sobrancelhas.
— E... E se eu nunca gostar? Não quero morrer sozinho...
— Acho isso meio difícil de acontecer, mas,... você precisa mesmo se apaixonar? Consigo te ver muito bem solteiro. — Ele cutucou seu ombro. Olhou para ele. Killua estava sorrindo. — E, você não vai morrer sozinho. Eu 'tô aqui. Sempre vou estar.
Sorriu também — suas bochechas esquentando.
— Eu amo você — disse, antes mesmo de perceber.
Ele coçou a garganta, escondendo o rosto no seu pescoço, envergonhado. Se Gon tentasse, conseguiria ver a ponta da orelha de Killua vermelha.
— É, eu- eu-... T-Tipo isso,... uh, você sabe… também… Argh, esse lance aí!
Riu.
— É, eu sei.
Talvez, ele estivesse certo. Não precisava de nada disso. Porque se isso fosse significar que passaria o resto de sua vida com Killua, que aquele sentimento bom se instalando em seu peito e a quentura em suas bochechas para sempre seriam uma constante em sua vida, ou que seu estômago reviraria e seu coração aceleraria intermináveis vezes, e que passariam todos os dias chuvosos assim, abraçados, talvez Gon nunca precisasse de outra pessoa.
Não saberia dizer muito bem quando pegou um dos braços de Killua e passou ao seu redor, apenas para poder se agarrar a ele como se fosse seu bem mais precioso — o que provavelmente não era uma mentira —, muito menos quando segurou sua mão mais uma vez e entrelaçou seus dedos.
Mas diria com certeza que assistir o modo que os dedos dele eram longos e magros comparados aos seus — curtos e gordinhos —, como a pele dele era clara e a sua própria tão vibrante, ou como a mão dele parecia estranhamente feita para a sua, era bem mais interessante que qualquer filme que estivesse passando na televisão.
[...]
Andavam juntos pelas ruas molhadas, o céu estava escuro e estrelas brilhavam com força — mas os postes da rua ofuscaram parte de seu brilho — as nuvens chuvosas já tinham se dissipado — tomado outro rumo —, e toda aquela chuva tinha tido seu fim — por ora, ao menos, porque novas nuvens cinzentas eram visíveis no horizonte.
O que definitivamente não impedia aquela brisa gelada de estar bagunçando seus cabelos e arrepiando os pelos da sua nuca.
Poças desregulares foram formadas, rios de água entravam nos esgotos e o asfalto quase reluzia sob a luz. Apesar disso, o caminho íngreme que pegavam para a casa de Killua não estava tão escorregadio. A subida na calçada — geralmente desafiadora durante períodos de chuva —, de alguma forma, estava estabilizando seus pés no chão. Talvez fosse o fato de que, por algum motivo, não estavam tão molhadas. Mesmo assim, o mais alto de ambos não parecia estar apreciando muito o caminho.
Estavam com casacos grossos, botas, luvas e camisas de frio por baixo, mesmo assim, ele fazia caretas toda vez que saiam do rumo e pisava em uma poça.
As ruas estavam vazias, o trânsito tinha acabado e nenhum carro passava; por isso, Gon revezava entre ficar na calçada e ir para a rua toda vez que via uma poça de água — em um "splash" alto que costumava incomodar Killua, e não se arrependia nada disso.
Estava animado.
Gostava do cheiro do chão molhado, de ver as poucas folhas — pois a maioria ainda estava para nascer — das árvores pingando, e, tudo bem, poderia ser algo infantil de se fazer, mas sempre adorou pular em poças. Era divertido ouví-las, ver a água voando e a calmaria sendo perturbada por uma pisada forte. Tudo o que mais queria naquele momento era puxar Killua pelo braço e sair correndo pela rua com ele, girar nos postes e pular em todas as poças que encontrava — entretanto, tinha certeza que receberia um tapa se fizesse isso, e o garoto não costumava dosar a força, então não, obrigado, Gon não estava eufórico o suficiente para arriscar que ele lhe batesse.
Era visível o quanto gostava dessa época do ano.
Quando uma das luzes dos postes começou a falhar, algo em si pareceu ascender. Seu coração acelerou, sentiu seus olhos lacrimejarem e suas bochechas começaram a subir. Estava extremamente feliz, a empolgação tinha atingido-lhe com uma força inexplicável, e nem se deu o trabalho de virar para ver o quão longe estava de Killua, apenas começou a correr até o poste, sorrindo. Segurou nele — sorridente —, o metal frio e completamente molhado ajudando-o a girar com uma facilidade absurda, e parou na calçada, inclinado — aquilo sendo a única coisa lhe mantendo em pé, um pé no ar e o outro em um ângulo de 30° graus com o chão — esperando Killua chegar até si. Ele ainda caminhava devagar quando parou em sua frente, uma sobrancelha levantada e um sorriso pequeno querendo surgir em resposta ao seu.
— Você não deveria correr — Killua murmurou. Algo no jeito que ele falava deixou claro o afeto que suas palavras seguravam.
Sorriu ainda mais com isso.
— Eh? Por quê? — Soltou o poste, voltando a ficar de pé, e pulou para a calçada.
— E também não deveria fazer isso.
Começou a andar em círculos ao redor dele.
— Uhum,... e o que mais?
— Fazer qualquer coisa que envolva se mexer muito, porque... — Gon ainda estava passando pela frente dele quando escorregou. Killua segurou suas costas rapidamente e puxou sua mão. —... você pode cair.
Céus, Gon tinha consciência do que estava fazendo, que seus sapatos estavam completamente molhados por pular em poças — as meias encharcadas por dentro deles deixavam isso claro —, e iria escorregar hora ou outra, mas tinham muitos quês em Killua naquele dia que não imaginou que veria.
O jeito que ele era iluminado pelo poste — por trás — e seu contorno se tornava absolutamente brilhante, ou como os olhos dele ficaram escuros e o sorriso convencido pareceu absurdamente perfeito — mesmo como estavam próximos o suficiente para que sentisse a respiração dele bater em seu rosto —, certamente fazia parte desses "quês".
A parte mais romântica de seu cérebro — aquela que ele costumava dizer que estava completamente apodrecida e corroída pelas comédias românticas que era tão aficionado por — parecia ter falhado momentaneamente, porém, gritava para ter uma aparição ali. Gon acabou cedendo, e, realmente, ela acabou tendo.
Outra vez, não mediu as palavras ao sussurrar:
— Agora é a hora que você me beija?
Não fazia ideia do porquê disse, do porquê, em seu âmago, sabia que não era apenas uma das cantadas vãs que trocavam por brincadeira, mas foi o que cochichou — porque parecia e sentia que algo dito em um tom maior seria ensurdecedor —, e foi o que preferiu acreditar. Porque, ao seu ver, era assim. Uma vez dito, nunca poderia ser retirado, não era um covarde para dar atrás com suas palavras.
Pensaria nisso depois, quando estivesse sozinho, no seu próprio quarto, o momento atual não parecia exatamente ideal para tal.
E, dessa forma, percebeu que suas ações tinham desestabilizado Killua tanto quanto lhe desestabilizaram. Pois o aperto em seu braço diminuiu, os dedos — abertos — nas suas costas foram fechados em um punho, e ele desviou o olhar — sua face estava em chamas.
— Eu deveria te soltar.
Gon riu — tímido.
— Mas não vai.
— Não vou... — Killua resmungou, os olhos então movendo para se encontrarem e assim ficarem vidrados nos seus.
Foi ridículo o quão rápido seu fôlego sumiu. A forma em que seu olhar se firmou — inconscientemente — nos lábios finos do garoto, e sua mente se esvaziou.
Ele lhe pôs de pé — jogando-lhe para cima —, e voltou a caminhar, tomando a frente pela primeira vez na noite.
— Ainda falta um pouco pra' minha casa, deveríamos ir logo. Não quero que você tenha que voltar sozinho tarde.
Abaixou a cabeça — ainda sorrindo.
Um sentimento forte continuava a dominar, entretanto, não era a mesma empolgação que esteve sentindo. Esse era nauseante, lhe deixava um pouco mais leve do que deveria, e a agitação retornava.
— Sim, capitão.
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