Frio. Era tudo em que Nayara conseguia pensar. Um vento gélido vinha de uma janela entreaberta. Nayara estava deitada num canto, com as mãos e pés amarrados por cordas brancas com listras coloridas feitas para crianças.
O local onde ela estava presa a lembrava do século 19, com gesso desenhado no teto coberto de manchas de mofo. O chão era um carpete de madeira escuro e gelado, e a parede estava tão mofada quanto o teto e tinha buracos, de onde saíam ratos e aranhas.
O chão começou a estralar, enquanto uma mulher loira vinha caminhando em direção a Nayara, protegida por vários homens em roupas pretas e empacotada em um longo sobretudo, cobrindo o máximo possível de seu corpo com luvas, gorros e cachecóis.
-Olá, querida.
-Susana.
-Surpresa?
-Na verdade não.
-Então você acreditou na historinha do Tony.
-Não na primeira vez. E como você sabe disso?
-Acha que eu não saberia de algo que meu irmãozinho disse? Eu deixei ele sair de casa naquele dia. Sabia que ele iria a você.
-Deixa eu entender. Você é uma jiboia.
-Jararaca.
-Jararaca, que seja, que suga energia vital de pessoas aleatórias para manter sua forma humana.
-Sim.
-Mas ainda tenho uma pergunta:por que eu?
-Essa é uma ótima pergunta. Digamos que você é especial, como aqueles protagonistas de filmes. Se não matou aula de biologia pra ficar com macho no banheiro, sabe que cobras são répteis, e répteis têm sangue frio. Bem, estou me ferrando toda aqui. Os invernos sempre são difíceis para mim. Eu preciso de muito mais energia para sobreviver. E você é nova, bonita, gostosa, rainha da laje, como quiser. Além disso, consigo sugar mais de pessoas queridas pelas outras. Foi por isso que os pais do Tony foram um excelente começo. Agora, você? Você tem pais que te amam, família grande, pencas de amigos em dois estados... você é justamente o que eu preciso.
-Muito bem. Então por que não vai logo?
-Existe todo um ritual para a garota dourada. Além disso, gosto de me gabar de minha engenhosidade.
-O que aconteceu com o Tony?
-Uau, você está rápida nas perguntas. O Tony sempre esteve destinado a ser o messias das jararacas. Ele só precisava de uma forcinha.
-Messias?
-É. No momento,ele está me ajudando, mas fará muito mais. Ele salvará as cobras e outros animais. Em outras palavras, extinguirá a raça humana.
-Que treta.
-Tão profundo que achei petróleo.
-Tá, última. Quem é Isaak?
-Filho de Abraão, pai de Jacó e Esaú.
-Tô falando sério.
-Eu também. Mas se não for esse que você está procurando, tem um pentelho que faz vine.
-Não é só vine. É arte-falou uma voz fina vinda da porta.
Quando Susana e Nayara se viraram, procurando o dono da voz, viram um dos homens de preto se aproximar. Ele era baixo, tinha feições infantis e cabelos volumosos e cacheados.
-Porra, Isaak, falei pra não ficar se metendo.
-Pera. Isaac do Vine? Seu nome não era com C?
-Meu nome agora é "Grande e Poderoso Isaak, Mensageiro do Armagedom". Sou dedicado de corpo e alma à causa das grandiosas jararacas amazônicas.
-Um bom garoto, vou matar por ultimo-sussurrou Susana no ouvido de Nayara.
-O que devo fazer, senhora?
-Mantenha nossa prisioneira entretida-respondeu Susana com um sorriso malicioso.
-É pra já! Você gosta de paródias?
-Pera, o quê?
Susana saiu e começou a andar pelo corredor, ouvindo os gritos de Nayara e a voz estridente de Isaak.
-Mande buscar o Tony-falou Susana a um de seus guarda-costas.
_____________
Otaviano abriu a porta do carro e sentou-se no banco da frente. Enquanto seu pai dirigia pelas ruas movimentadas do Rio de Janeiro, Otaviano olhava fixamente para o rádio enquanto sua mente ia até Nayara, que havia sumido sem deixar rastros. Ela deveria estar triste. E com frio. E se estivesse sendo torturada? E se... Otaviano se assombrou ao pensar no pior,enquanto seus olhos continuavam fixos nas letras do nome da música rolando na pequena tela do velho radinho.
-PÂRPOL REIN,PÂAAARPOL REIIIN... filho, você tá bem?
-Âhn? Ah sim, tô bem.
-Não tá não. Eu te conheço, Otaviano, me fala o que aconteceu.
-Uma amiga minha sumiu.
-Como assim, sumiu?
-Sumiu. Ninguém sabe onde ela tá.
-Não deve ser nada. Eu, quando tinha a sua idade, costumava sumir por horas. Geralmente eu ia jogar bola ou paquerar as meninas.
-Sem sessão nostalgia, pai. Eu acho que é mais sério. Acho que a Nayara foi sequestrada.
-Nayara? A famosa Nayara?
-Ela não é famosa.
-Não mesmo, só lá em casa. Você fala dela o tempo inteiro.
-Não falo não.
- Se você pudesse ver o mundo do meu ponto de vista por um dia, veria o quanto fala dela. "Filho, pega uma água pra mim?", "sabe quem mais gosta de água? A Nayara". "Nossa, tô com uma dor de cabeça... ", "a Nayara teve dor de cabeça esses dias".
-Pai...
-Tá. Mas por que você acha que a famosa Nayara foi sequestrada?
-Ela recebeu um bilhete ameaçador de um cara chamado Isaak.
-Bilhete ameaçador, é? Deve ser algum vadio assustando pessoas aleatórias.
-Ela também me disse isso, mas eu não consigo tirar da cabeça que é algo mais.
-Se você está tão convencido, investigue.
-Investigar o quê?
-Parta da hipótese de que ela foi sequestrada. Quem poderia ter sido?
-Eu não sei, eu... aquela mulher.
-Que mulher?
-Um dia uma mulher muito esquisita foi lá no colégio falar com a Nayara e ela parecia atordoada depois.
-Que brisa.
-É.
-Quem tanto sabe disso?
-Acho que só eu, você e a mãe da Nayara. Deus, o Evaristo não sabe.
-Evaristo?
-O melhor amigo dela.
-Concorrência, é?
-Não.
-Ha, tá bom. Nesse caso você deveria avisá-lo.
-Deveria, mas não tenho como. Não sei o telefone dele, nem onde ele mora.
-Poxa. Quer cancelar nosso passeio? Tudo bem por mim.
-Não-disse Otaviano, sendo realmente sincero daquela vez.
-Nesse caso, chegamos.
-Ué, já?
-É pra não encher a história de momentos desnecessários.
-Beleza então.
Otaviano e seu pai entraram em uma lanchonete aconchegante e surpreendentemente grande, com mesinha redondas de madeira escura para duas pessoas e paredes verde-musgo. Detrás do balcão, estavam uma moça loira anotando os pedidos e uma mulher gorda e um tanto assustadora cuidando da grelha e do forninho dos salgados, com os cabelos pretos enfiados em uma touca de cozinha. Em uma das mesinhas, estavam sentadas duas figuras muito familiares, comendo e rindo.
-William? Fátima?-perguntou Otaviano, se aproximando.
-Otaviano? Caraca, há quanto tempo! Firmeza?-disse William, se levantando e dando um abraço apertado no amigo.
-Tô levando, né cara. Oi Fatima-disse Otaviano, recebendo um aceno tímido da moça sentada à mesa como resposta.
-Como você tá? E o seu pai?
-Tá tudo bem, sério. Já fazem dois anos, a gente precisava superar um dia, né.
-Bom saber, cara. Fica bem, tá?
-Vou ficar. Ei, pai, lembra do William?
-E como eu poderia esquecer? Não se desgrudam desde que eram pentelhos. Vocês ficavam vendo os jogos de futebol na TV e discutindo sobre quem era o melhor jogador. Né, Garoto Ronaldinho?
-Ninguém me chama assim há um tempão. Nossa, passa rápido, né?
-Ah, se passa. Eu vou pedir um café. Animem o Otaviano aí, ele tá preocupado com a namorada.
-POXA, PAI!
-Namorada, é? Garanhão.
-Não é minha namorada. É a Nayara. Ela sumiu.
-Nayara?-perguntou Fátima.
-É. Aluna nova, negra, cabelo crespo, altona. Conhece ela?
-Eu vi ela conversar com a Sandra no primeiro dia de aula.
-Essa mesmo! Ela desapareceu, escafedeu-se, tomou chá de sumiço, sei lá.
-Mas se a namorada do meu amigão sumiu, a gente encontra.
-Já falei que não é minha namorada.
-Mas podia ser, né?
-Pode contar com a gente, Otaviano-disse Fátima, com um sorriso sincero.
-Valeu, gente.
-Senta aí, puxa uma cadeira.
-Valeu, mas não quero atrapalhar os pombinhos-disse Otaviano, dando uma piscadela marota e indo sentar em uma mesa no canto.
____________
O homem esperava na fila da lanchonete, atrás de um garoto alto de ombros largos, que tamborilava nervosamente as unhas no balcão escuro, tentando evitar contato visual com a atendente loira à sua frente.
-CHISBEICO-gritou a mulher da grelha, colocando um apetitoso x-bacon em um pratinho azul de plástico e dando-o a sua colega de trabalho.
-São 12 reais, moço-disse a garotinha loira, quase num sussurro.
-12. Tá. Pera. 5, 7, 9, 11, 11 e 25, 11 e 75... ai Jesus, minha moeda. Ai moça, espera um pouco. Cadê essa bosta...
Evaristo se surpreendeu com uma mão masculina passando ao lado de sua cabeça, segurando uma moeda de 25 centavos que deu à moça do caixa.
-Bom apetite, senhor. Próximo.
-Obrigado, moço.
-Não foi nada, o que são 25 centavos? Já perdi muitas moedas na vida, garoto. Sei como é. Dois cafezinhos, por favor. Meu nome é Osvaldo. Qual é seu nome, meu filho?
-E-Evaristo.
-Evaristo? Você conhece uma garota chamada Nayara?
-Sim, ela é minha amiga. Por quê?
-E um Otaviano?
-Estuda na minha sala.
-Só pode ser sacanagem do destino. Pode vir à minha mesa, por favor?
-Ah, claro. Tudo bem-falou Evaristo, receoso.
-CAFEEEEEE-gritou a mulher gorda.
-Dois cafezinhos, senhor.
-Obrigado.
Assim, o pai de Otaviano se dirigiu à mesa onde o filho estava sentado, seguido por Evaristo.
-Otaviano?
-Evaristo?
-Masoque? Conhece esse cara?
-É meu pai.
-Sério?
-Acho que sim, né?
-Eu não tô entendendo mais nada.
-Achei essa figurinha lá na fila.
-Gente, mas que estranho.
-Por que eu tô aqui exatamente?-perguntou Evaristo.
-Eu preciso te contar uma coisa. É sobre a Nayara.
-O que aconteceu com ela?
-Ela... desapareceu.
-Como assim, desapareceu?
-Desapareceu. Eu acho que ela foi raptada.
-Raptada? Mas com-
-GORDINHO?-gritou William, atraindo olhares de vários outros clientes.
-William Atleta?
-Caraca, a gente te zoa muito. Lembra quando você escorregou naquela poça de água?
-Eu não escorreguei na poça, ela deslizou quando eu passei por cima.
-Caraca, te amo bicho.
-Você é um cu, sabia?
-Mas o que tá acontecendo?-perguntou Fátima, vindo na direção da mesa.
-Fátima, lembra do gordinho?
-Meu Deus, William, deixa o menino.
-Concordo com ela- disse Evaristo.
-Ô POVO!-disse Otaviano-PAROU A PUTARIA AQUI.
-Mas nossa.
-William, lembra a amiga que eu te falei?
-Sua namorada?
-Ela não... quer saber? Deixa. Esse é o melhor amigo dela.
-Então a gente ajuda.
-Vocês ao menos têm uma base pra começar essa "investigação"?
-Tenho um bilhete ameaçador-falou Otaviano, tirando o papelzinho do bolso.
-Espera, vira isso aí-disse Fátima.
No verso, havia um recibo de uma compra muito suspeita, com o nome de um mercado escrito abaixo.
-Mercadinho do Clóvis?
-É meu tio.-disse Fátima-Vamos.
-Ô pai!
-Já sei, já sei.
E subiram os cinco no velho Fiesta cinza-escuro, rumo a uma incrível e épica aventura.
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