Você brilhou tão forte
E me manteve à salvo da chuva
Você era a minha luz do sol
O sol que deixei partir
Adeus
(Paul Kim – Rain)
Relâmpagos percorriam violentamente o céu, grossos pingos de chuva tamborilavam por entre as ruas de pedra e, ignorando os pés descalços já machucados, Juvia continuava correndo. Já havia perdido a noção das horas; suas pernas cambaleavam, sangue escorria dos joelhos ralados e lágrimas se mesclavam ao cabelo grudado no rosto. No entanto, mesmo que a guilda já fosse algo próximo de um borrão na escuridão, mesmo que não houvesse ninguém que pudesse julgá-la… Ela continuava fugindo, tropeçando no vazio, tentando desesperadamente se desfazer daquela amarga sensação de nostalgia. Porque lá estava ela de novo, perambulando por ruas desertas como um fantasma, carregando a sua maldição particular para algum lugar onde não fosse incomodar ninguém.
Era patética.
Porque Juvia havia pensado em voltar para a guilda muito mais vezes do que gostaria de admitir, só para vê-lo mais uma vez. Havia até dado alguns passos, ensaiando uma desculpa para fazer de conta que nunca tinha saído da festa… Mas, mesmo que fingissem não perceber sua maquiagem desfeita ou seus joelhos sangrando, era impossível ignorar a monumental nuvem negra que se arrastava silenciosamente em seu encalço. Tentou engolir as lágrimas, afogar sua dor e desfazer a tempestade com sua magia, contudo, frágil demais para ir de encontro à impetuosa natureza, adentrou timidamente a estação de trem e deixou-se cair num banco qualquer.
Estava perdida. Porque, mesmo que não fosse nem de longe o destino, mesmo que Gray não lhe oferecesse muito mais que farelos de seu amor, ainda foi ele quem manteve aquela tormenta afastada durante todos aqueles anos. A Lockser colocou os pés sobre o banco, abraçando as próprias pernas numa tentativa infantil de esconder as lágrimas; quer fossem acasos ou migalhas, Gray Fullbuster e seu céu azul eram a melhor coisa que já tinha acontecido na vida dela.
Mas a chuva estava de volta, e ela não tinha mais nada em que se agarrar.
Nenhum plano b, nenhum porto seguro. Nada. Sem ele, não havia sol, nem amigos, nem guilda… Porque, acostumada a viver de pedaços, Juvia não tinha criado nada de inteiro para si mesma. Era tudo dele, sempre havia sido. Um sorriso amargo surgiu no rosto pálido e, exausta demais para lutar contra o inevitável, ela deitou no banco da estação e deixou que a chuva caísse. Porque, no fim, ainda era uma força da natureza; tudo o que ela sabia fazer era afogar, devastar e destruir. Juvia não merecia portos seguros.
Estava só.
— Juvia! — Uma voz ecoou na escuridão; o trem apitou uma vez e, então, a silhueta molhada do seu companheiro de guilda se tornou nítida em meio à chuva forte. — Juvia!
Os cabelos rosados se destacavam mesmo com a parca luz da estação e o sorriso, emoldurado por olhos negros inchados, continuava estampado no rosto dele. Um sorriso irritante e surpreendentemente familiar, que fazia seu coração se apertar de vontade de voltar para casa.
— Juvia, oe! — A maga cerrou os dentes, cravando as unhas na própria pele, e, resistindo à vontade de correr para os braços dele, cambaleou às pressas para o guichê. — Oe, você tá me ouvindo?
Sim, ela estava ouvindo perfeitamente, mas não podia se dar ao capricho de atendê-lo.
— Pra onde esse trem está indo? — A Lockser perguntou em tom de urgência, tentando ao máximo não parecer muito desesperada ao olhar para trás.
No fundo, desespero era tudo o que conseguia sentir naquele instante.
Mas o trem apitou outra vez, e os olhos azuis se encheram de lágrimas; depois de dois anos chorando pelos cantos, segurando o céu anil com a mesquinha esperança de que a qualquer momento ele voltaria aos sentidos e perceberia que a Heartfilia não era seu verdadeiro amor, confrontar a cinzenta realidade era doloroso demais. E a última coisa que queria ouvir era aquele papo romântico de Natsu sobre a guilda ser uma família, que Gray e Lucy estavam bem com a presença deles e blá, blá, blá… Era muito fácil falar quando não tinha uma nuvem gigantesca perseguindo-o daquele jeito. Era muito mais fácil manter o orgulho quando suas emoções não estavam tão covardemente escancaradas… Mas, como sempre, ele não entenderia.
Juvia tirou, então, um rolo de dinheiro molhado do vão entre os seios e disse:
— Não importa. Me dê uma cabine.
Tomou o bilhete e o troco das mãos do senhor e, ignorando os chamados do Dragneel, subiu no trem. Pediria desculpas depois; precisava a todo custo sair dali, não importava o destino.
Era tarde demais, mas, sim, estava fugindo.
Usando a companheira de guilda como desculpa, porque, mesmo que não fosse nem um pouco bem-vindo, Natsu simplesmente não conseguira reunir coragem para abandonar aquela festa com os próprios pés.
Apesar de tudo, ainda era um covarde quando se tratava de Lucy Heartfilia. Embora os botões do colarinho de sua camisa já estivessem folgados e as unhas, roídas ao ponto de sangrar, não queria que ela entendesse errado… Que achasse que ele estava desistindo da amizade de uma vida inteira por causa do amor que sentia por ela.
Natsu só precisava de um tempo. Um tempo para, talvez, provar a teoria de o que os olhos não veem, o coração também não sente, mesmo que no fundo soubesse que era impossível. Então, quando Gajeel surgiu, questionando desesperadamente se Juvia havia saído, Natsu ignorou seus instintos, a sensação fantasmagórica que o toque da mão dela na sua havia lhe causado mais cedo e, sem pensar duas vezes, se ofereceu para trazê-la de volta.
Só que algumas horas já haviam se passado, seus ossos estavam congelando e a chuva em questão não estava ajudando nem um pouco. Bufou, passando os dedos no cabelo com força e murmurando todos os palavrões que conseguia lembrar; não queria estar ali, com aquele sorriso falso que era tudo o que queria evitar e embarcando numa maldita lata velha que o fazia ter enjoos só de colocar os pés. Mas havia dado sua palavra, então engoliu as próprias reclamações e adentrou o vagão.
— Juvia… — chamou num sussurro, tentando não parecer tão aborrecido quanto realmente estava. Atraiu todos os olhares possíveis menos o da Lockser, que seguiu em disparada pelo corredor como se não o conhecesse. Inferno! — Juvia, Gajeel me pediu pra… — Trincou os dentes ao vê-la fechar a porta da cabine com força, deixando bem claro que não o queria ali, e o Dragneel teve que respirar algumas vezes para não fazer uma cena. — Juvia, por favor… Juvia!
O trem da madrugada repetiu o anúncio de partida, e Natsu bateu com mais força; seus olhos ardiam, o estômago revirava em antecipação e tudo o que queria era estar em casa tomando algo bem forte.
Ela não era a única que se sentia um lixo naquele momento.
— Juvia, caralho! Dá pra parar de fazer birra e abrir a merda dessa porta?
— Não! — ela gritou, feroz; os soluços e os raios sacudindo as janelas diziam outra coisa, mas Natsu estava exausto demais para ler entrelinhas. — Me deixa em paz!
— Pra você amaldiçoar alguma cidadezinha com essa sua chuva e eu ter que ir te resgatar igual à última vez? — ele murmurou irritado, falando mais para si mesmo do que para ela.
Assim que terminou de pronunciar aquelas palavras, a verdade caiu sobre Natsu com um choque. Merda. A chuva ficou mais forte, os soluços se transformaram num abafado gemido de dor; havia cutucado a maior ferida de Juvia, e agora era tarde demais para desfazer o estrago que fizera.
— Desculpa… Me desculpa, por favor. — disse baixinho, mas suas palavras nunca pareceram tão vazias. Respirou fundo, tentando ignorar as mãos trêmulas e o suor frio que começava a descer pelas têmporas; a chuva parecia ter drenado toda a sua magia, e tudo o que conseguia era repetir um ridículo coro de desculpas. — Não era isso que eu queria dizer...
Tirou o terno e esfregou com força o rosto com a palma das mãos; não precisava ser muito inteligente para descobrir que qualquer chance de levá-la de volta para casa tinha morrido ali — e, talvez, o respeito e a consideração que Juvia pudesse ter por ele também. Bruto, impulsivo, imaturo; as palavras de Lucy reverberaram outra vez em sua cabeça e, com um sorriso amargo, Natsu se viu obrigado a concordar.
Estava cometendo os mesmos erros.
Entretanto, contrariando todas as suas expectativas, uma fresta de luz surgiu.
— Muito obrigada por dizer o óbvio, idiota. — Juvia rosnou, com os olhos azuis brilhando, numa mistura de tristeza e mágoa, à luz dos relâmpagos. Natsu abriu a boca, pensando em se desculpar ou dizer qualquer coisa que pudesse convencê-la, mas o estridente rangido das engrenagens o calou. — Agora, se já terminou de bancar o herói, pegue esse seu sorrisinho de merda e deixe Juvia em paz. Só... — Ela suspirou, deixando transparecer a raiva e a exaustão em uma terceira pessoa que não usava há anos. — Vá embora, por favor.
Juvia fechou a porta e o apito final soou, dando um ponto final àquela conversa. Droga. Tentou mover os pés em direção à saída, sentindo a bile queimar na garganta, mas o máximo que conseguiu foi escorregar até o chão do corredor. Um relâmpago brilhou nos olhos turvos, o estômago vazio se revirava cada vez mais forte e, mesmo sabendo que não tinha qualquer direito, era inevitável desejar que Lucy estivesse ali.
Lucy, sim, era uma heroína de verdade. Ela tinha o sorriso, a simpatia e com certeza saberia o que dizer a Juvia… Natsu, por outro lado, era apenas um grande idiota. Lento demais para ler entrelinhas, imaturo demais para perceber que o tempo havia passado e missões, festas e uma amizade colorida não eram mais o suficiente para mantê-la por perto.
Arrastou-se deploravelmente até o vaso de flores mais próximo; álcool, bile e lágrimas queimavam, amargos, em seus lábios, recordando-o de que estava pagando o preço de se tornar um herói, o mago mais forte. Porque Lucy queria construir uma família, mas Natsu não sabia fazer nada além brigar, queimar e destruir… E ela já estava cansada de consertar as merdas do Dragneel e esperar que ele crescesse.
Herói? Limpou a boca com a manga da camisa já não tão alva e, vendo as fúnebres flores amarelas ficarem mais e mais borradas, sorriu com amargura. Não queria esse título ridículo, não quando ser herói significava ser forte e inalcançável. Não valia a pena porque, no fim do dia, sua amada guilda fechava as portas e todo mundo voltava pra casa, já Natsu… Agarrou-se ao vaso e vomitou novamente; Natsu não tinha ninguém, tudo porque era covarde demais para admitir a verdade.
— Juvia… — chamou, com duas batidas na porta e uma voz embargada e frágil que certamente não parecia sua. Você ainda está aí? Juvia não se dignou a responder, apenas fungou, tentando conter as lágrimas e a magia, que fazia ondular o ar ao seu redor. — Desculpa.
Ela sibilou, revirando os olhos, mas a cabeça de Natsu estava nublada demais para se importar. A culpa pesava em seus ombros, um sorriso melancólico tremia nos lábios rachados, mas, ignorando o estranho frio que sentia, o Dragneel seguiu falando:
— Sou o último amigo que você deve querer por perto, não é… — Riu fraco, secando as lágrimas com força, sem saber exatamente porque falava aquilo. Talvez fosse por causa do enjoo, que nublava sua consciência; talvez porque, mesmo que ela o odiasse, Juvia fosse o mais próximo de casa que tinha naquele momento. — Já que eu sou o culpado por isso tudo acontecer.
Juvia suspirou alto, passando os dedos pelo cabelo, quase achando fofa a ingenuidade de Natsu. O mundo não gira em torno de você, ela quis dizer; quis ficar brava, esfregar na cara dele a culpa por não ter correspondido Lucy enquanto podia, mas… Estava todo mundo na merda, disputar para ver quem tinha sofrido naquela história só tornaria as coisas ainda mais difíceis.
Porque, honestamente, Juvia só queria esquecer. Embora fosse quase impossível, seu único desejo era enterrar seu passado e encontrar em algum lugar forças para recomeçar. E, mesmo que estivesse com vontade de fazer picadinho de Dragneel, sabia que ele sentia o mesmo. Então, engolindo por um instante os próprios sentimentos, ela ergueu o braço e deixou que a porta lentamente se abrisse.
Abandonado no corredor, com a cabeça apoiada num vaso solitário de crisântemos amarelos, Juvia nunca o tinha visto tão vulnerável.
— Isso não combina com você… — A Lockser arqueou uma sobrancelha e, com um bom humor que destoava da tempestade lá fora, tocou gentilmente a mão dele. Um sutil choque arrepiou a ambos, contudo, entorpecido demais para fingir que não precisava daquele contato, Natsu apertou de leve a mão fria e sorriu. Um sorriso doloroso, banhado por lágrimas, medos e culpas, exatamente como o dela.
— Eu sei. — ele respondeu num fio de voz e, no momento seguinte, tudo era escuridão.
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