Era vermelho, vermelho como sangue, vermelho vivo misturado às silhuetas negras, vermelho vivo, preto e azul, azul do sangue, talvez, e os sons, estridentes ferindo sua audição, os gritos perfurando seus tímpanos feridos, e as lâminas raspando em sua alma, se sentia estranho, leve, mas ao mesmo tempo com peso sob os ombros, especialmente o ombro ferido que expelia aquele liquido azulado que nem sabia se era realmente sangue, mas o cheiro era, odor pungente que sempre o nausearia, receou que a insanidade o houvesse tomado por completo, que talvez o mundo houvesse mudado seus tons, ou fosse apenas uma ilusão, causada por algum veneno, veneno podre com sabor metálico, mas sem o adocicado do sangue que tanto conhecia, era apenas o metálico, mas não, não havia veneno, apenas o bater de seu coração, descompassado, soando como corvos que grasnam naquela madrugada gélida, os corvos se calaram por alguns instantes, deixando-o ouvir a própria insanidade, e voltaram a grasnar, ferindo-o, ferindo-o, pareciam repetir a mesma palavra.
Em determinado momento perdeu a noção de onde estava, talvez estivesse em casa, mas não tinha uma, talvez estivesse apenas vagando, em poços de perdição e pecado, não, não estava só vagando, tinha cheiro de sangue, sangue fresco, onde estava? Por que era tudo vermelho? De quem eram aquelas silhuetas e quem eram aquelas criaturas que voavam. Segurava algo, apesar do aperto frouxo, aquela não era a mão que usava, e não usava a outra por causa do sangue que escorria de seu ombro, ergueu a mão, era uma espada, espada negra como as silhuetas que o cercavam, como se fosse pontilhada, como um desenho, uma espada negra suja de azul no meio do vermelho, será que era apenas um personagem? Em uma historia a ser esquecida, como aquela dos grandes escritores de décadas passadas? Não, não era seu coração batia, sua respiração falhava, e havia aquele sangue, por que sempre voltava a ele como se o mesmo fosse importante? Era apenas sangue, como quando se cai, como quando se corta, apenas sangue e tal não merecia tanta observação, eram as silhuetas que importavam, correndo, gritando esganiçadas, gritando coisas, apenas gritando, e uma daquelas silhuetas vinha em sua direção, correndo, tinha assim como ele uma espada, cabelos longos, vestes rasgadas, e aquele liquido azulado, sangue, escorrendo por feridas, gritava assim como as demais vozes, e se aproximou, dava para ouvir o que dizia o que gritava.
—Nico não fica parado ai! Nico me ajuda! NICO! — Gritava. Ele tinha um nome, assim como o cenário tinha cores além do vermelho e azul.
Não é como se o mundo houvesse ganhado cores de repente, ele apenas acordou dos devaneios delirantes que tinha desde que fora torturado, sentia os braços moles, um deles talvez por causa da ferida no ombro, que minava sangue ralo, se perguntava quanto tempo duraria e quanto de sangue ainda tinha para esgotar de seu corpo, parecia haver muito ali, considerando o corpo pequeno e magro, definitivamente eram os mesmos seis litros de sangue para todo mundo, sete ou oito por cento matematicamente, mas não, não era possível, talvez ainda estivesse delirando por causa daquele cheiro pungente ou por causa da sensação, sensação da qual não se livrava sensação de morte que tomava Manhattan e vinha em sua direção, como se ele fosse um imã, e as mortes sempre o atingiam, como se fosse ele o ferido e morto, como se fosse ele um portal, odiava essa ideia, odiava essa sensação mais do que qualquer coisa, porem odiava menos do que a sensação de perder alguém que amava, e não queria sentir a ela mais, depois daquele navio, aquela sensação era a ultima que queria sentir.
Aquela garota agarrou seu pulso e puxou-o ainda correndo, passou por cafeterias abertas com pessoas dormindo encima das mesas e no chão, passar por pequenas lojas, até que ela virou uma esquina e se escondeu naquele beco, estava ofegante, ferida, olhos escuros arregalados, sangue sujando as bochechas o pescoço e mãos, estava tremula, talvez de cansaço, talvez de medo ou adrenalina, não saberia ao certo qual deles ela tinha, e provavelmente não conseguiria formular uma pergunta, estava travado em pensamentos estranhos em um lugar inapropriado, com aquela garota exausta o encarando indignada e assustada, ou talvez estivesse preocupada, não sabia. Ela tocou seu ombro bom, aproximando mais dele, seu hálito era de hortelã e sangue, seu cheiro podia ser comparado ao de um cão molhado, agora percebia os detalhes a sua volta, estava chovendo, ele estava molhado, assim como ela, e ambos estavam embaixo de uma marquise que os protegia dos pingos incessantes.
—Nico, você quer parar? Se quiser tudo bem— Ela fez uma pausa, não houve respostas— Nós concordamos que nem você nem Annabeth deviam estar aqui. A gente pode esconder vocês, Klaus pode levar vocês ao acampamento— Silêncio. Reyna inclinou a cabeça para o lado, estava preocupada, não assustada, preocupada com ele, com seu cansaço, mas mal sabia ela que ele não passaria.
—Estou bem— Disse balançando a cabeça, tentando espantar aquela sensação de ilusão.
—Nico...
—Hazel está aqui, assim como Salim, não vou deixa-las para trás Reyna.
—Eu não quero ver seu corpo se juntando à pilha no molhado, por favor, pare, não precisa mostrar que é forte, não precisa... Não precisa enfrenta-la para se vingar— Estava suplicando, talvez a devesse escutar, talvez estivesse certa afinal, mas a vontade era mais forte que a razão, a raiva, o ódio que sentia era mais forte que qualquer pensamento.
—Eu tenho contas a acertar com a primeira escolhida desde que ela me torturou naquela sala fechada, desde que ela explodiu aquele navio, desde que ela se tornou isso e feriu Annabeth, ela não merece ser morta por outras mãos, nem mesmo a de Thalia Grace.
—Posso te convencer do contrário? — Definitivamente estava preocupada, não como quando levaram a estátua de Atena para o acampamento, ou quando fora envenenado, não viu tal preocupação assim naquela garota até o momento, se perguntava se estava tão ruim assim, se ele estava tão destruído fisicamente, ou aparentava seu cansaço psicológico. Percebeu que a encarava em silencio, que ela esperava sua resposta, que a aflição daquela garota aumentava juntamente com sua preocupação. Tentou lhe lançar um sorriso, não conseguia exibir tal ato, era estranho, estava mergulhando novamente naquele poço escuro onde não havia felicidade ou compaixão, era apenas o vazio.
—Não, você não pode me convencer do contrario Reyna, me desculpe.
—Por que está tentando se matar? Por que... Nico olha estamos todos aqui, fomos todos atrás de ti, nos preocupamos contigo, por favor, por favor, não faz nenhuma loucura, não se mate por nada, você tem a mim, Hazel, Salim, tem Will e acredite ele está preocupado contigo, vai pra casa, não fica aqui.
—Eu não tenho uma casa, Reyna— Sua voz soou diferente, quase como um lamento disfarçado, quase como a verdadeira e pura tristeza e solidão.
—Sua casa, antes de tudo isso, era em um cassino, certo? Depois aquela mansão velha que cheira a mofo, estes eram apenas lugares Nico, sua casa... Nossa casa é onde estão eles, onde estão Percy, Annabeth, Salim, Will, é onde ficamos juntos, pode até ser naquela torre de relógio apertada e fria, sua casa, agora, e esperando a gente naquele acampamento, é longe dessa loucura, é onde nos reuniremos e... Eu sei lá, teremos dias de sol? Por favor— Ela abaixou o tom da voz, fazendo com que suas ultimas palavras soassem em meio a um sussurro desesperado.
Olhou-a, aqueles olhos escuros marcados pelo vermelho, ela andará chorando, provavelmente descontou sua ira, sua dor em algum escolhido ou monstro, provavelmente foi após a luta contra a titã Selene, provavelmente Jason tomou sua decisão ou ela tomou a dela e sofria com isso, sofria sozinha, afundando em seu próprio lago de escuridão, ele via isso naquela garota, se encontrava sozinha, nem mesmo teria uma foda rápida, ou a esperança de um amor eterno, sentia por ela, mas nada durava para sempre, no final todo mundo partia de uma forma ou de outra e com o tempo se tornaria esquecido pelo vácuo do mundo, era tudo... Vazio.
—Jason escolheu a Piper, não foi? — Ele perguntou fazendo-a sorrir.
—Ele me escolheu, mas não achei justo, Jason não me pertence, acho que ninguém pertence, então disse a ele que não estava mais apaixonada por ele, eu menti, fiz com que voltasse para Piper, ela sim pertence a ele, e ele pertence a ela.
—Por que mentir? — Perguntou
—Por que lutar? — Rebateu sua pergunta, tornando ela outra.
—Me desculpe Reyna, eu tenho que fazer isso— Deu as costas para a garota, obrigou o corpo a caminhar para fora do beco, indo da temporária calmaria a insanidade daquela luta com corpos e mortes, mas antes escutou aquela voz, voz de Reyna respondendo sua pergunta.
—Porque mentir é necessário para sobreviver.
São olhos negros, encarando aquela escuridão, escuridão da alma, escuridão do coração, que reflete em minha imagem quem sou e para onde vou. Sou homem caído, ferido, homem que sangra que chora que luta, que se ergue e segue, homem em meio as mortalhas, homem em meio aos corpos dos feridos, andando descalço naquele chão molhado, pés desnudos a tocar em mãos gélidas, mãos sangrentas de um corpo que um dia foi alguém. Homem feito de mortalha, feito de morte, sofrimento e solidão, formado pelos meus próprios demônios, homem embaixo daquele manto, vestindo aquele manto, manto de assassinato e ódio. São meus próprios olhos, negros, e o reflexo no espelho e os fantasmas que me rodeiam.
Aprenderá com Bianca à dança de corpos a luta física, que cedo ou tarde faria doer os nós dos dedos, aprenderá a lutar com a garota, e a principio teve medo de feri-la, apenas dançava, desviando de seus golpes ou sendo pego por suas mãos tão pequenas e pálidas, mas que eram envoltas em uma força bruta. Aprenderá com Klaus à dança de espadas, o choque de lâminas, a força das armas e dos músculos, aprenderá que doeriam as palmas das mãos, os joelhos, e que arderiam os cortes. Em pouco tempo passou a abrir talhos nas cortinas da mansão agourenta, deixando-as com rasgos por onde entravam filetes de sol, cortava a pele de seu amante, deixava hematomas em sua irmã, se considerava invencível, não havia uma falha, não havia um golpe que não previsse, e talvez o ego tenha atrapalhado seu desenvolvimento, ficará estagnado naquele mesmo ponto, sem evoluir ou regredir, e não sentia porque lutava apenas com as mesmas pessoas. E Percy lhe mostrou, em um período curto antes de deixa-lo, o que era uma luta, o que eram feridas abertas e talhos sangrentos, sem dó, sem parar, e de novo, do inicio, pegue a espada do chão, ataque, defesa, ataque. E quando Percy se foi, aqueles que Nico trazia dos mortos lutavam com ele, como cães sedentos por sangue.
E lutava com cães sedentos por sangue, monstros, escolhidos e titãs, erguia a espada, girava-a sem sentir, abria talhos em corpos inimigos sem se importar com as feridas que lhe abriam, com os golpes que desferiam contra ele, não sabia direito se havia ganhado resistência quando a primeira escolhida o torturou, ou se estava em modo automático, como fora contra os gigantes, ele apenas lutava, naquela dança frenética, naquela guerra frenética que ocupava as ruas molhadas e frias de Manhattan.
Ele estava ao lado de Reyna com Salim as suas costas, podia sentir a respiração ofegante da garota lince contra a pele desnuda de seu braço, mantinha sua espada negra abaixada, apesar de se encontrar em posição de ataque, a chuva, com seus pingos grossos e incessantes faziam pesar as bandagens em seu ombro ferido, faziam doer mais, e parecia fazer sangrar menos também, seus cabelos, molhados, encharcados e pingando colados contra a pele fria. Estavam eles cercados, encurralados no centro de monstros e escolhidos, e a julgar a cena, pelos olhos de alguém pessimista, não havia saída. Eram pelo menos cinco escolhidos, liderados por Octavian, uma dúzia de harpias e logo atrás vinha à esfinge, ele estava adorando isso.
Sorte a deles que tinha Salim, pois quanto ele e Reyna lutavam contra Octavian que estava estranhamente mais forte e habilidoso, a garota lince comia as harpias e atrasava a esfinge. Sobre Octavian, ele era um babaca, apesar de ter melhorado ainda tinha falhas em sua luta, como posição das mãos e dos pés, mas por algum motivo demoraram a desarma-lo. Não foi uma luta daqueles que se diga digna, porque ele preferia ter trocado golpes com as harpias, e pessoalmente deixou a maior parte da luta com Reyna, aquela batalha era dela, ele estava ali apenas para atrasar o escolhido. E Reyna tomou distância assim como ele, ambos com a espada erguida, e correram, ela na direção de Nico, Nico na direção dela, mas Octavian estava no centro, e a espada de ambos atingiram aquele corpo que dissolveu aos poucos.
Reyna sorriu.
—Gente, temos problema! — Salim gritou.
Ela não conseguia mais segurar a esfinge que parecia furiosa vindo na direção deles, estava um tanto ferida, obviamente feridas feitas pelas garras de Salim que corria.
—Oh merda— Murmurou— Nós estamos ferrados, ferradinhos, já era.
—Cala a boca Nico! — Reyna engoliu em seco.
—Se afastem! — Thalia gritou, era a salvadora deles, montada em um pegaso caramelo, voando baixo com uma lança em mãos— Andem vocês, saiam dai! — Ordenou e Salim o puxou e a Reyna, e a filha de Zeus, encima daquele Pégaso apontou sua lança para os escolhidos e a esfinge, ela invocou os raios, usou a lança como condutor, mas aquela escolhida, cabelos curtos, sardas, olhos verdes atirou a flecha, ele viu dois movimentos contrários, os raios que atingiram a garota lá embaixo, assim como seus amigos e a esfinge, e a flecha que incrivelmente acertou Thalia, viu-a despencar e atingir o chão viu os escolhidos se desfazerem em fumaça. E Reyna mandara esfinge de volta ao lugar que ela pertencia.
O corpo de Thalia Grace jazia no chão, aqueles olhos azulados relâmpagos na tempestade apagados, vazios, a vida a havia deixado, assim como havia deixado sangue escuro no chão, formando uma poça embaixo de seu corpo. Tinha ela mechas de seu cabelo mediano colado à face, com água da chuva e respingos avermelhados. Ele sentiu por Jason, pois uma hora ou outra, quando acabassem as distintas e destruidoras batalhas, ele descobriria a morte da irmã, e pessoalmente sabia o quanto doía. Nico se ajoelhou ao lado do corpo da garota, apesar de não nutrir exatamente bons sentimentos por ela, ouvirá grandiosas histórias a seu respeito, tocou as pálpebras da garota, sentiu os cílios roçarem em seus dedos, e fechou os olhos da garota.
—Talvez devêssemos levar ela para um lugar menos agitado— Salim era misericordiosa, apesar da alma escura que lhe pertencia. Carregou o corpo da garota de Zeus por todo aquele campo de batalha, com Nico atrás, caminhando ao seu lado tentando fazer a mente perturbada não entrar em colapso. Em determinado momento Salim parou, deitou aquele corpo sem vida no chão, encima da grama molhada, distante das batalhas e se virou para Nico— Merecemos descanso? — Perguntou. Aqueles olhos negros brilhando, a calda molhada movendo lentamente de um lado para o outro.
—Eu preciso de férias eternas Lince.
Ela sorriu, por um espaço pequeno de tempo pareceu humana, pode até imagina-la como tal, talvez estivesse começando a aceita-la, afinal, ele não era a pessoa mais normal do mundo, e nenhuma das pessoas que o cercava eram, Hazel, assim como ele, era de outro século, discriminada por sua pele, que pessoalmente julgava ser encantadora, por seus olhos, por seus metais preciosos, por sua magia, e ele a julgava magnifica. Bianca era como ele, só que mais bruta mais mentirosa e rancorosa, era uma rainha de porcelana, a rainha de copas, apenas não gritava para que cortassem cabeças na época, depois se tornou um monstro, e realmente se tornou a rainha de copas, só que continuava sem gritar para que os outros cortassem a cabeça, ela, pessoalmente as cortava, e havia uma parte dele, uma pequena parte doente e possuída pelas trevas que tanto controlava que admirava ela, admirava a primeira escolhida e queria ser como tal, mas nunca admitiria em voz alta, nem para si mesmo. Então, algo em si passou a aceitar Salim, ela não era um monstro, apesar de ser classificada como um, era apenas uma criatura de Hades, como ele, Hazel e Bianca.
—Yeah— Ela suspirou— Talvez eu fique no acampamento por algumas temporadas, cantar enquanto observo aquela fogueira, comer no pavilhão, treinar, realmente treinar como nunca antes, talvez até desembolar com Kaya e embolar os lençóis dela— Gargalhou.
—Você está pensando em sexo? Salim!
—Não é surpresa nenhuma que transo com aquela garota— Ela se aproximou— Também sei que transou com o garoto Solace.
Antes que Nico pudesse contestar com uma mentira que inventaria, ela o puxou pelas ruas, arrastando-o para longe de conflitos, de batalhas e espadas, passou por diversas ruas, por entre conhecidos e reconhecidos, até que entrou em uma loja de roupas.
—Por que me... Salim?!
—Antes que comece com a discursão de sempre sobre “você não devia” eu tenho que te contar algumas coisas... Sobre mim, coisas que você não sabe, que devia saber, já foi segredo por tempo demais e... Bom, Hazel já sabe, o pessoal já sabe, eu só queria te observar antes de pensar nas suas possíveis reações.
—Do que está falando? — Perguntou— Eu sei tudo sobre você, papai...
—Papai te contou mentiras— Ela passeava por entre as araras de roupas— Mentiras para te proteger, e principalmente, para me proteger, eu queria te contar, queria te mostrar como eu era antes de tudo, mas...
—Mas?
—Papai me fez jurar guardar segredo até que chegasse a hora, ele me fez mentir para você, e foi bom, porque você realmente me odiou, quanto mais afastado se mantinha, mais fácil era mentir.
—Não entendo...
—A criança, eu, tinha o toque da morte, era horrível, tudo que eu tocava, pessoas, animais, plantas, tudo morria, eu não podia... Era como Hazel e seus diamantes, mas sem os diamantes, a maldição era minha pele, era meu toque, e nem minha vontade fazia com que eles parassem...
—Salim?
—Eu nasci durante a segunda guerra mundial, com essa maldição impregnada em mim, pelo simples fato de que nenhuma criança vinda de nosso pai pode ser feliz, nós estamos destinados a isso, a dor, ao fracasso, a solidão, nós somos assim naturalmente, sempre seremos, e peço que entenda...
—Que entenda o que? — Ele estava ficando interessado, ouvia o coração martelar com a ansiedade.
—Hazel...
—Entender Hazel? Eu entendo a Hazel, por que diabos eu não entenderia a Hazel?
—Não é isso idiota, Hazel... Hazel, nossa irmã.
—Não entendi nada.
Ela grunhiu inclinando o corpo, então o olhou com aqueles olhos demoníacos.
—Hazel está lutando contra a primeira escolhida, agora entendeu? — E mais uma vez Salim o puxou pelas ruas molhadas, pelas pessoas, pelos corpos, pelas batalhas, ficaram zanzando por tanto tempo que ele receou ficar tonto, mas ela então parou, ele parou, e ambos observaram a primeira escolhida e sua lança observaram Hazel, com olhos ferozes e sua espada.
—Salim! — Hazel a chamou. Tinha um grande corte sangrento na bochecha esquerda, assim como arranhões nos braços, cortes e feridas espalhados pelo corpo, ela segurava uma espada de ponta curva, que reluzia dourada naquele inicio de noite cinzento que cheirava a morte, tinha os volumosos cabelos cacheados molhados e despenteados, modelando insanidade em seu rosto, especialmente quando seus olhos, de um intenso dourado se encontravam arregrados daquela forma.
A garota lince balançou a cabeça positivamente, olhou dentro dos olhos de Nico por um instante, lhe dirigiu um sorriso e tocou seu ombro bom.
—Mais tarde, quando essa confusão acabar, eu vou realmente te contar tudo que não sabe, irmão— Havia determinado peso naqueles demoníacos olhos, não soube reconhece-los, nunca aprendeu a observar Salim, e receava que mesmo com a mudança dos anos e das estações não aprenderia a resolver o enigma por de trás de seus escuros olhos.
E ela correu, com suas garras raspando no chão, indo ao encontro de Hazel que travava sua lâmina contra a lâmina da lança de Bianca de tempos em tempos, ele estava indo atrás, atrás de Hazel e Salim, desejava mais do que qualquer coisa matar a primeira escolhida. Mas aquela barreira o segurou, Estava ele impedido de passar, preso do lado de fora da redoma que incluía apenas Hazel, Salim e Bianca, e quando tocava com os dedos feridos a parede invisível, a mesma vibrava em silêncio, liberando aquela luz rosada que logo sumiria. Afastou, abrindo os lábios deixando escapar um som baixo de incredibilidade e determinada surpresa.
Hazel era feroz, atacava sem desviar, se deixava ferir para abrir talhos na pele do inimigo, ela tinha um estilo de luta ofensivo, que feria o outro apesar de qualquer coisa, que tinha como foco ferir, acertar, abrir e deixar sangrar, ela corria pela redoma, atingia Bianca, fazia com que a primeira escolhida desequilibrasse, mas nunca a abalava demais, e quando era arremessada, quando caia naquele chão sujo e molhado usava a magia a seu favor, usava a nevoa que prendia Bianca, e sempre a encarava nos olhos, sem nunca olhar para os lados, era como se estivessem em uma redoma dentro da redoma, era frenético e confuso, era belo e perigoso. Então vinha Salim, com suas garras e sua rapidez, era indomável, era forte, diferente de Hazel era como se ela se divertisse, pois sorria quando Hazel caia e ela assumia seu lugar, raspava suas garras na lâmina de Bianca, rasgava a face da garota e a fazia sangrar.
Ouviu Hazel a gritar, largar a espada, e se ajoelhar, e Salim atacava, sem dar tempo ou espaço, havia retirado a lança de Bianca, havia aberto feridas em sua pele, e rasgos em seu manto, elas pareciam invencíveis, era incrível, e Salim segurou a morena contra o chão e Hazel se ergueu, as palmas das mãos viradas para cima, seus olhos dourados mais intensos, era murmurava algo em latim, como um canto, como uma oração, e espinhos feitos de névoa passaram a abrir o chão, fazendo buracos no asfalto, abrindo buracos em Bianca e se tornavam solidas em segundos, prendendo a garota naquele chão, viu um sorriso surgir nos próprios lábios enquanto observava a cena, e Salim se afastou, e ficaram ambas a contemplar a primeira escolhida presa naquele chão.
—Hora de morrer— Salim sorriu.
—Não— Pode ouvir a voz de Hazel, pesada pelo cansaço— Eu faço
—Como queira irmã— Salim fez uma reverencia piscando.
A garota de olhos dourados recuperou a espada do chão, deu dois passos na direção de Bianca e foi quando ele percebeu que havia algo errado. Hazel parou estática, tinha os olhos distantes, sem aquele brilho intenso no opaco, deixou os lábios abrirem um pouco, e um suspiro quase inaudível por ali escapar, o aperto de suas mãos contra a espada se desfizeram, deixando-a cair no chão em um baque abafado pelo trovão, a tempestade aumentava e ninguém ali estava apto a para-la. Houve um relâmpago, que iluminou o céu carregado de nuvens pesadas e cinzentas. Não soube exatamente como, mas iluminou Hazel também, era como uma aura azulada e opaca, movendo-se preguiçosamente ao redor da garota, e desgarrando de seu corpo, desaparecendo, assim como o relâmpago e a consciência que ela tinha. Viu-a cair no chão, olhos fechados, corpo empalidecendo tão rápido que parecia quase impossível, viu Salim correr até ela, sacudir seu corpo com delicadeza.
Só que os olhos treinados de Nico estavam distantes de suas irmãs, observava aquela criatura que estava presa em meio aos espinhos que Hazel fez magicamente, ela estava se libertando, saindo aos poucos de sua prisão, e isso acontecia à medida que os espinhos sumiam, um a um deixando o chão rachado, perfurado, com pequenas crateras ali formadas. A primeira escolhida movia-se, os cabelos negros como os dele caindo no rosto, cobrindo seus olhos. Viu-a se libertar, o manto, assim como o vestido negro que usava rasgado, a pele ferida, umedecida pelo liquido avermelhado, ela se livrou do manto, dos saltos, agarrou a lança, e passou a caminhar em direção a Salim, que parecia tentar acordar Hazel, mas como estavam elas de costas, ele não podia dizer. E a primeira escolhida ergueu a lança, Lince parecia não percebe-la ali, o coração do garoto batia descompassado, enquanto suas mãos pálidas e feridas tocavam a redoma.
—Salim! — Gritou. A redoma enviava pequenos choques às mãos de Nico— Salim, atrás de você!
E a garota lince se virou rápida, ágil, colocou seu corpo empalidecido entre o de Hazel e de Bianca, arrancou das mãos da primeira escolhida à lança e a arremessou para longe.
—Não se atreva a tocar em mim— Disse. Tinha os olhos demoníacos firmes à mão agarrando o vestido da primeira escolhida, deixando os nós dos dedos avermelhados— Não se atreva a tentar tocar nos meus irmãos, e não tente nos matar.
E ambas voltaram a batalhar entre si, Salim a afastando de Hazel, o que a deixava debilitada, mais lenta, e a primeira escolhida abusava disso, feria Salim, a cortava, avançava contra ela. Em determinado momento, Bianca perfurou uma das mãos de Salim com a lança, fazendo-a gemer, não de dor, mas de frustração, e quando puxou a lança a chutou fazendo-a recuar alguns passos, então ergueu a espada, olhos maníacos, insanos, observando Salim, e aquela lança apontada para o peito da garota lince.
—Não— Murmurou— Não... — Batia as mãos contra a redoma, ela não caia, ela não ia, Salim ira morrer, e ele não faria nada, estava desesperando, e a ouviu dizer.
—Não na frente dele— Era Salim, era o mesmo impasse, era a mesma cena, só invertia as pessoas e o lugar, era Salim quem estava entre seu corpo e daquele que o queria morto, pedindo para que o inimigo não a matasse em sua frente, e o inimigo, era Bianca, não a garota de Zeus, sabia o que viria a seguir, sabia o que Bianca faria, pois tinha estampado na face aquele mesmo sorriso, e ele não pode impedir.
CONTINUA...
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