Quando Murdoc e a cyborg voltaram naquela tarde, encontraram um 2-D murcho e deprimido sentado no chão do banheiro com o rosto enterrado nos joelhos, que prendia muito forte junto de si. Ele levantou-se rapidamente quando ouviu o clique da porta sendo aberta, empertigando-se enquanto segurava um dos pulsos atrás das costas – um trejeito seu que era muito conhecido entre os fãs.
Murdoc o observou com atenção de cima a baixo. Os olhos de seu vocalista estavam inchados e vermelhos, o rosto pálido ainda estava meio manchado. Era óbvio que 2-D estivera chorando por um longo tempo. Porém, o baixista preferiu não dizer nada. Afinal, o que poderia fazer? Pegar 2-D no colo e consolá-lo? A ideia o fez rir, mas também estremecer. Diabo, por que sempre sentia “coisas” quando pensava no outro?
- Consegui pegar a grana. – Murdoc disse por fim. – Parece que ainda lembram quem somos. – Um sorriso enviesado e desconcertado percorreu seu rosto. Não era seu riso costumeiro e diabólico. Ele estava pisando em ovos.
- É claro... – 2-D respondeu apenas. Seus olhos fitavam os pés do líder. Algo lhe dizia que se olhasse diretamente para Murdoc toda a tempestade voltaria.
O esverdeado percorreu a sala meio inquieto, então, parou diante de uma mesa de canto e se apoiou nela. Sua mente deteriorada tentava entender porque raios estava agindo assim. Ele nunca se importara muito com as consequências de seus atos, muito menos com as pessoas que eram atingidas por eles. Mas, desta vez, desconfiava que tinha ido longe demais.
- Nós vamos voltar. Quero dizer, vamos lançar um novo álbum. – Murdoc falou de repente, quase gritando.
- Quer lançar um álbum? Agora? – 2-D estreitou os olhos, sentindo uma pontada de irritação. – E onde você pretende gravar agora que queimou nosso estúdio? – a voz do azulado saía calma e compassada, embora por dentro fosse capaz de chutar seu líder.
- Ora, isso não é problema. Eu tenho meus contatos e-
- Não conte comigo para isso. – 2-D interrompeu Murdoc sem pensar duas vezes.
- Como é? – Murdoc retrucou, seus músculos endurecendo no mesmo instante.
- Eu tô fora. Não vou fazer isso, pra mim já deu! – o vocalista aproximou-se um pouco, talvez para provar que havia firmeza em sua decisão. – Não é justo com os fãs. Eu não vou fazer isso com aquilo.
Enquanto 2-D apontava para a cyborg, Murdoc tentava controlar-se para não voar no pescoço magro do outro. Mas ele sabia que já tinha feito merda o suficiente. Por alguns segundos, o esverdeado inspirou e respirou com dificuldade. Talvez se apelasse...
- Isso mesmo, Pot. – Murdoc sibilou, cuspindo junto as palavras. – Você não vai querer desapontar seus fãs, vai? Eles já não têm a Noodle. Como acha que vão receber a notícia de que seu adorado vocalista deixou o grupo? Vão ficar tão tristinhos... – ele remexia os dedos entre si freneticamente, como sempre fazia em momentos de maquinações.
Murdoc observava 2-D a sua frente, fortemente balançado com a menção de Noodle e seus fãs. Eram as únicas pessoas que ele jamais cogitaria desapontar, e o líder sabia muito bem disso. Mesmo assim, algo no rosto pálido do vocalista ainda dizia que ele estava irredutível, e isso endureceu o outro ainda mais.
- Meus... meus fãs sempre souberam seu valor. – o azulado começou. – Você sempre disse a eles que éramos uma família e eles acreditaram. Mas, mas, mas não somos. – a voz partida de 2-D causava uma estranha sensação na pele de Murdoc, como se formigasse. Um ardor preenchia seu peito. O que significava isso?
- Lá vem você com esse papinho de família de novo. – Murdoc resmungou, quase para si mesmo do que para o outro. – Você sabe que isso era só para atrair atenção, né? Vê se cresce, Pot...
- Mas éramos para ela. – os olhos de 2-D, que até então fitavam o chão, fixaram-se de repente nos de Murdoc. – Para a Noodle, éramos a família dela! E mesmo assim você trocou ela por, por esse monte de parafusos! Mesmo assim a deixou ir! Você a mandou direto para a morte!
2-D paralisou-se por alguns instantes ao ouvir as próprias palavras. Era a primeira vez que dizia aquilo em voz alta. Durante todos os quatro longos anos desde que o El Mañana afundara no desfiladeiro da Kong, jamais perdera as esperanças. Jamais acreditara que Noodle realmente havia morrido naqueles escombros. Algo dentro dele tinha certeza disso. Mas, ao proferir aquilo para Murdoc, era como se tivesse aceitado. Como se tivesse, enfim, desistido.
- Inferno! Mas você só fala daquela garota! – Murdoc esbravejou, se aproximando violentamente do vocalista. – Quando vai enfiar nessa sua cabeça oca que ela mesma se matou? Ela procurou isso no momento em que foi atrás daqueles japoneses!
O esverdeado agarrou 2-D, ainda petrificado, pelos braços. Assim como o outro fizera naquela manhã, sacudia-o, irritado, para que recobrasse a consciência. Na verdade, o que mais o irritava era a insistência do azulado em Noodle. Nada podia ser mais enfadonho do que suas melosas declarações. Estava farto daquele assunto.
- Não! Foi culpa sua! Se não tivesse tido aquela ideia estúpida de separar o grupo depois do primeiro álbum, ela nunca teria ido! – instintivamente 2-D agarrou-se aos braços de Murdoc, empurrando-o para trás. – Se você não fosse tão idiota, ela ainda estaria aqui!
- Sua anta, se eu não tivesse separado o grupo, Noodle ainda seria uma completa ignorante! Até mesmo Russel não teria exorcizado aquela coisa! – Murdoc retrucou, elevando sua voz rouca acima a de 2-D, embora achasse que o exorcismo do rapper-fantasma de Russel fosse uma perca total para a banda.
Os dois ainda lutavam um contra o outro corporalmente. 2-D não estava disposto a ceder de novo para Murdoc, enquanto este não aceitaria de bom grado perder aquele vocalista, que ele sabia, era perfeito e único para o Gorillaz. Já estava em desvantagem demais sem sua guitarrista – para ajudar, sua cópia era incapaz de reproduzi-la. A desistência de 2-D não podia acontecer. Nunca!
- Você vai continuar cantando pra mim, Pot! Nem que eu precise amarrar o microfone na sua boca! – Murdoc berrou, agora agarrado à camisa de 2-D.
- Você não vai me obrigar. Não pode fazer isso. Você não manda em mim! – o azulado respondeu entre dentes.
Murdoc havia dito a si mesmo que iria se controlar. Havia refletido que de nada adiantaria colocar 2-D contra ele agora. É claro, o azulado estava sensibilizado demais com a perca da Kong. Sendo assim, era bom que maneirasse com ele, que o deixasse sentir que tinha certa relevância, do contrário, poderia se tornar impertinentemente difícil de lidar. E tudo o que o esverdeado não queria agora, era ter que lidar com a parte emocionada de 2-D.
Mas, ao ouvi-lo insistir que não poderia ser persuadido, foi tomado por uma chama crescente e maligna. Ora essa! Todos sempre faziam o que ele queria. 2-D sempre fazia o que ele queria! Por que, diabo, estava se rebelando agora? A ideia de que o bondoso vocalista não era mais o jovem inocente que sucumbia aos seus desejos, que tentava desesperadamente buscar sua aprovação, de repente pareceu assustadora. Murdoc não havia percebido, mas, assim como Noodle, 2-D também havia crescido. Era um homem agora. Um homem que tomava decisões.
Ao se dar conta disso, um sentimento de raiva percorreu o corpo de Murdoc. 2-D continuava resistindo a ele, mas em vão, nunca poderia vencer o líder em força bruta, mas também não deixaria que fosse humilhado de novo. Juntando todas as forças que tinha nos braços, o azulado segurou e empurrou o peito de Murdoc, que arrancado subitamente de seus pensamentos teve, como primeiro reflexo, o rompante de soltá-lo com um impulso.
Murdoc nunca percebera, até então, o contraste que havia entre ele e 2-D. Enquanto ele próprio era um homem médio e magricela, podia muito bem puxar um carro se quisesse. Por outro lado, 2-D, que era um rapaz alto e também muito magro, não era capaz de abrir um pote de conservas, tamanha era sua delicadeza. E naquele momento, ficou evidente que o mínimo descuido e desatenção de Murdoc podia ferir 2-D.
Com a força do impulso do líder, o azulado foi arremessado para trás e, cambaleando, caiu batendo a cabeça com força no chão. Sem reação, Murdoc o observou enquanto o outro tentava se sentar. A cyborg, que observava tudo em silêncio, esboçou um sorriso maldoso.
- Puta merda, você tem um imã na cabeça? – Murdoc resmungou, agora tentando erguer 2-D, enquanto lembrava-se do tanto de vezes que acidentes do tipo tinham acontecido com o outro.
O líder o colocou sentado na cama, agachando-se a sua frente para verificar se seus olhos se mantinham intactos. Embora estivesse quieto e parado, a íris de 2-D movia-se com rapidez. Ele fitava Murdoc com ressentimento, seus olhos negros praticamente diziam o quanto ele culpava o outro por seus acidentes. O ardor no peito de Murdoc voltou com mais força, ele não podia controlar.
- Murdoc, eu... – 2-D balbuciou.
- O quê? O que você está dizendo, Pot? – Murdoc o questionou com ansiedade.
- Eu tô com sono... eu vou-
Tudo ao redor de 2-D escureceu. Ele conhecia aquela escuridão, aquela sensação. O nada o abraçou, confortando-o e lhe dando a impressão de que tudo ficaria bem. Ao fechar os olhos, sentiu seu corpo ficar mais leve. Não havia problemas, não havia sofrimento, não havia nada. Ele sentiu-se ser envolvido por uma nuvem convidativa e aconchegante. Ao fundo ele ainda podia ouvir uma voz, cada vez mais distante. “Pot, fique acordado! Não ouse fechar esses olhos! Pot!”. Mas era impossível, era consolador demais para voltar.
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