Capítulo LXII - Me diga com quem andas...
Julho mostrou sua face calorosa no santuário, a princípio tímida, mas logo envolvendo a todos completamente. Com a situação alimentícia contornada e as aulas de Go menos espartanas e mais ocasionais, Shiryu conseguiu ter mais tempo com seu pequeno Shoryu.
O garoto já tinha cabelo suficiente para seu primeiro penteado, dois rabos de cavalo laterais e um no topo da cabeça, o que o deixava incrivelmente ridículo, mas Shunrei estava tão feliz com o evento que preferiu não comentar.
Talvez fosse coisa de mães, porque além da chinesa, Marin foi a única que achou o penteado uma boa ideia. Isso se excluísse seu mestre que achava tudo muito engraçado.
Shoryu ainda possuía muita dificuldade em andar, mas sua fala estava se desenvolvendo bem rápido, forçando o Grande Mestre a elaborar um dicionário mental em sua cabeça sobre as coisas que seu filho tentava dizer, embora tudo que saía de sua boca pareciam ser apenas variações de “ga”. Novamente os únicos que pareciam entendê-lo realmente eram Shunrei e Dohko, mas Shion sempre tinha bons acertos.
No início da segunda semana do mês, em uma das descidas do pequeno pelas doze casas, acabou encontrando-o com Aioria, que parecia determinado em entender, de acordo com ele mesmo, a complexa linguagem dos bebês.
Era notável o quanto o leonino estava se esforçando para entender o universo paternal, havia até mesmo se unido as ajudas nas lavouras, que era atividade até então exclusiva dos cavaleiros de bronze, para conseguir algum dinheiro para reunir mais informações.
Assim, numa quarta-feira razoavelmente quente, arrastou seu irmão, quando assumiu ter dinheiro suficiente, para visitar uma pequena livraria da cidade vizinha. No local chamado "Sábios de Atenas" o grego adquiriu tantos livros sobre paternidade e bebês quanto foi possível, enquanto Aiolos saiu do lugar emocionado, levando consigo uma história em quadrinhos de um soldado que ficou congelado por décadas e, por isso, tinha que reaprender sobre o mundo moderno. Sagitário havia se identificado muito com os dilemas do personagem, embora no seu caso, esteve morto por mais de treze anos e não necessariamente congelado, embora sua alma perecia no Cócitos congelado.
Aiolos parecia tão determinado em entender o mundo de agora quanto seu irmão estava em entender como salvar um bebê de um engasgo sem quebrar sua coluna graças a sua grande força. Foi dessa forma, conversando com o povo de Rodorio, Shina, com quem se dava cada vez melhor, e mesmo com os cavaleiros de bronze e Kiki, que descobriu o que eram os vídeo games e o cinema. Havia despertado um interesse tão grande sobre esse segundo tema, que descrevia como um teatro com atores que desenvolveram técnicas de ilusão, que Shina usou suas velhas economias, adquiridas de missões passadas, para levar o adolescente para ver seu primeiro filme. Era sobre um homem que ficava sentado num ponto de ônibus contando histórias da sua vida para pessoas aleatórias, e se o enredo não parecia exatamente comovente à primeira vista, para Aiolos foi a coisa mais emocionante de sua vida desde o nascimento de Aioria. De fato, sua emoção foi tamanha, que ao final do filme socou a grande tela para ter certeza que não havia ninguém por trás do enorme pano branco.
O incidente só não acabou numa terrível repercussão de força sobre-humana porque, por sorte, o cinema em questão estava passando por reformas, e a tela daquela sala não havia sido devidamente firmada ainda. Mesmo assim, sendo o guerreiro honrado que era, o grego se sentiu culpado e insistiu veementemente em ajudar na ampliação do local.
O dono, senhor Hugo, ficou encantado com a resistência e determinação do cavaleiro, que fez com que tudo acabasse em um terço do tempo planejado, então decidiu retribuir o esforço com entradas vitalícias para ele e sua "namorada". Apesar de extremamente constrangido, Aiolos aceitou o regalo contente.
Desde então, não era incomum ver os dois, uma vez compridas suas próprias obrigações, deixando as terras de Athena para descobrir um pouco mais sobre o mundo através do cinema.
Essa vontade, tanto de Aioria quanto de Aiolos, em conhecer e descobrir mais do universo ao seu redor, além das paredes do santuário, e o que havia dito Dohko sobre os cavaleiros serem criados apenas como soldados, não sabendo e não estando preparados para encarar a vida, motivou o Grande Mestre a começar a conversa que estava tendo nesse momento no décimo terceiro templo.
- Eu gostaria de poder ampliar os horizontes dos nossos guerreiros, não os limitar apenas a treinamentos físicos voltados a guerra. Quero poder dar a chance real de terem uma vida fora das terras de Athena, que realmente saibam gozar do mundo que morreram para salvar.
Estava de pé frente ao trono do Grande Mestre, Shion e Dohko, um ao lado do outro, parados à sua frente.
- Me permita, por favor, uma correção Grande Mestre, pois é importante que tenha conhecimento sobre isso - Interveio Shion - Nem todos os treinamentos, principalmente os de ouro, se limitam em melhoras ao corpo. Câncer, Virgem e Áries, por exemplo, recebem exaustivos treinamentos mentais, devido às suas técnicas delicadas, Câncer, como Áries, ainda desenvolve o uso de telecinese, o que exige ir muito além do cosmo. Ao mesmo tempo, Gêmeos e Virgem precisam ter um controle excepcional de sua cosmo energia, pois seus golpes exigem uma massa muito grande da mesma. Libra, como bem sabe, exige um equilíbrio entre o físico e o mental, Peixes precisa desenvolver níveis muito avançados de conhecimento em botânica, venenos e antídotos. Porém penso que o exemplo de Aquário e Escorpião são mais gráficos, pois junto a Áries, Virgem e o próprio signo de Peixes, são os que despontam mais de um treinamento padrão.
Fechou os olhos e abriu as palmas das mãos próximas uma da outra. Em seu centro, uma pequena esfera de energia começou a se formar, até iniciar um estranho rodopio, e então, para surpresa de Shiryu, pôde sentir um pequeno vento partindo das mãos do antigo patriarca, como se estivesse segurando um ventilador de fraca potência. Logo tudo se desmanchou e Shion soltou um suspiro cansado.
- Manejar um elemento é algo extremamente difícil*, é necessário um grande nível de controle e concentração.
- Ou usar a força do ódio acumulado como era o caso de Ikki – Acrescentou casualmente Dohko. – Embora sua armadura e constelação davam uma forcinha também.
-... É, isso também. – Concordou Áries a contragosto pela interrupção – Voltando ao que eu estava dizendo, Aquário, por exemplo, é um signo reconhecido por controlar o gelo, um estado da água, isso exige ainda mais concentração e-
- Literalmente manter a cabeça fria!
Shion parou, lançando um aborrecido olhar ao seu melhor amigo, que se limitou a sorrir inocente. Shiryu, por sua vez, colocou a língua entre os dentes para evitar de rir.
-...Enfim, embora a exigência do controle das emoções tenha partido do que aconteceu com Erisictão, é verdade que eles precisam se concentrar para poder manifestar o gelo, o que não acontecerá devidamente se seus sentimentos estiverem exacerbados e perderem sua concentração. Por isso se tornou uma tradição da décima primeira casa uma intensa imersão nos livros. Conhecendo melhor a natureza e o mundo, trabalhando seu cérebro ao invés de seus músculos, proporcionou com mais perfeição o alcance do zero absoluto. No caso de Escorpião, como sua técnica se baseia em catorze golpes antes do derradeiro movimento final, a oitava casa desenvolveu seu próprio método de distrair seus inimigos para desestabilizá-los, deixando-os instáveis para que o Restriction tenha maior efeito, e fiquem assim a completa mercê da Antares. As palavras podem chegar a ser tão afiadas como facas, e na tradição grega há mais de uma forma de usá-las para incomodar ou persuadir os demais.
- É, os gregos gostavam de criar formas diferentes de discutir uns com os outros usando suas “artes de falar”. – Acrescentou mestre ancião.
- Em suma Shiryu, é um equívoco afirmar que os cavaleiros possuem treinamento apenas para seus corpos, embora admita que, de fato, alguns se resumem a isso.
- Mas tudo ainda se resume a tradição de suas próprias casas – Contra argumentou o Grande Mestre – Limitado aos estilos pré-dispostos de cada cavaleiro. O que impede que um cavaleiro de Touro seja tão letrado quanto um de Aquário? Ou mesmo um de Leão? Isso poderia gerar mais gênios no manejo de elementos como foram Regulos e seu pai. Ou mesmo, porque um cavaleiro de Peixe não pode aprender sobre a arte das palavras se o interessar? Ludibriar seus adversários assim poderia fazer com que caíssem em seus venenos antes mesmo que percebessem. Imagine um cavaleiro de Capricórnio com um treinamento mental semelhante ao de um ariano? Podendo desenvolver mais do que golpes brutos, como ter um senso crítico e de julgamento, assim não cairiam na mesma armadilha que Shura caiu na traição de Saga. Evitar que algo como a trágica batalha no santuário volte a se repetir. Se nossos guerreiros pudessem escolher o que estudar e aprender, poderiam alcançar um potencial ainda mais excepcional que os de hoje, e que isso não se limite apenas a elite, que todos possam optar. E ainda mais avançaríamos se não os limitasse apenas no que diz respeito ao campo de batalha. Eu pude perceber que, sem as habilidades que Máscara da Morte desenvolveu por si mesmo na gestão de alimentos, teríamos passado por aquela crise muito antes, e talvez seu impacto fosse ainda pior. Mesmo se o ensinamento de línguas fosse mais abrangente, teríamos muito mais cavaleiros possíveis para missões no exterior, afinal, temos guerreiros aqui de várias partes do mundo. Se dividíssemos nossos conhecimentos, já estaríamos dando um grande passo para o futuro. Estamos no santuário de Athena, a deusa da sabedoria, construir um Partenon em que nossos companheiros pudessem desenvolver suas mentes, seria a maior honraria a história de Atenas e de toda a Grécia e seus ensinamentos que eu consigo imaginar.
Shion manteve silêncio por alguns instantes, ligeiramente impressionado, enquanto Dohko exibia um gigantesco sorriso.
-Admito que esse é um ótimo argumento. – Aceitou – Mas não será fácil, nem barato desenvolver algo assim.
- Agora sim você está pensando no todo ao invés da parte, Shiryu! – Animou-se a dizer seu mestre – Exatamente como no Go.
Os três sentiram uma presença aproximando-se e anunciando-se ainda no começo da escadaria saindo de Peixes para a décima terceira casa, Shaka de Virgem. Franzindo a sobrancelha para tal visita, Shiryu concedeu passagem.
- Creio que podemos seguir com esse assunto mais tarde então, vou tentar readequar o orçamento. O que será que Shaka deseja?
- Ah, não se preocupe, eu pedi que ele viesse – Informou tranquilamente Dohko – Infelizmente, devido aos...Últimos acontecimentos, Shaka ficou sem aprendiz ou sucessor, por isso, estamos pesquisando qual seria a melhor região para que ele possa procurar por um. São pormenores, eu e Shion podemos lidar com isso, além do mais, Shunrei me pediu para liberá-lo hoje, há algum tempo ela gostaria de passear por Rodorio contigo e Shoryu, essa é sua oportunidade.
O mais novo não pôde evitar abrir um grande sorriso.
- Tem certeza mest- Dohko? -Shiryu voltou-se a Shion, que apenas manteve-se impassível, afirmando com a cabeça.
- Claro! Não se preocupe!
-...Muito bem então... Vou me retirar por hora, conhecendo Shunrei ela irá querer aproveitar o máximo do dia – Acrescentou com carinho - Muito obrigado por isso mestres.
- Você mereceu depois de tudo!
Shiryu inclinou-se a modo oriental para o velho Libra, repetindo o gesto para Áries, e então retirou-se a seus aposentos pessoais. Quando já não estava à vista, Shion bufou irritado.
- Você é simplesmente o pior Dohko! Como pode mentir para o Grande Mestre desse jeito? – Questionou contrariado, encarando a expressão falsamente inocente do mais velho. – Pior, para seu aprendiz.
- Ora vamos, eu não menti para ele, apenas omiti algumas coisas – Cruzou de braços – Você nunca teve que mentir para Muh? Nem quando ele tinha quatro anos e perguntou como os nenês nascem?
- Não mude de assunto Dohko de Libra – Taxou levemente envergonhado. – Ele é o líder do santuário agora, não se esqueça disso.
- Não estou mudando! – Defendeu-se – Além do mais, vai me dizer que você nunca mentiu para o velho Sage? Pelo menos para me proteger você já fez isso algumas vezes.
- Isso é diferente, não era sobre nada sério – Contra argumentou – É dever dos cavaleiros de Athena sempre comunicar tudo que acontece nesse santuário ao seu representante humano – Finalizou com pompa.
-...Shion, sinto ser eu a te dizer isso, mas com toda a certeza ocultavam muitas coisas de você quando Patriarca – Disse com um deixe de graça – Principalmente Máscara da Morte e Afrodite. Lembra que você me dizia que Milo, quando criança, era como um pequeno demoniozinho? Camus deve ter muitas histórias que ele propositalmente deve ter esquecido de te contar sobre essa fase também.
- Ao menos, ele teve mais sorte que Dégel, porque um dia Milo tomou juízo, ou o mais próximo que um Escorpião pode chegar disso, mesmo que eu não estivesse aqui para ver. – Seguiu com um deixe de melancolia.
- Você se lembra quantas e quantas vezes Sage chamava Dégel e Albafica para explicarem os problemas que seus companheiros haviam se metido? – Perguntou sorrindo o libriano – Se eles não tivessem acobertado aquela dupla problemática, os dois teriam passado a maior parte de suas vidas cumprindo castigos. Claro que, ser o favorito de Athena e pupilo do Grande Mestre também ajudava, eu acho.
Mas a conversa sobre o passado teve que ser interrompida quando Shaka surgiu a sala, o som das solas metálicas de sua armadura procedendo sua chegada, logo ele se inclinou em respeito.
- Senhor Dohko, Senhor Shion, bom dia.
- Bom dia Shaka, obrigado por ter vindo – Anunciou o chinês, que a igual que seu melhor amigo, se voltaram ao virginiano. – Porém, antes de tratarmos de Máscara da Morte, gostaria de te perguntar sua opinião sobre um tema que discutíamos agora a pouco antes do Grande Mestre se retirar.
E então se pós a explicar os argumentos que Shiryu havia dado instantes antes sobre a educação diversificada dos cavaleiros do santuário, enquanto o mais novo escutava atentamente.
- Aumentar o horizonte de conhecimento dos cavaleiros – Repetiu Shaka em seu tom neutro – Entendo. normalmente eu diria que tal iniciativa seria incongruente e desnecessária, que quase nenhum cavaleiro aceitaria a premissa de que sua educação é incompleta, se dispondo a retornar a uma situação semelhante ao tempo que era um aprendiz, para assim ser guiado em novos conhecimentos.
- Compreendo isso – Uniu-se Shion – Não é uma situação que os vejo aceitando facilmente.
- No entanto – Seguiu Virgem – Nos últimos meses eu pude entender que independente do quanto já sabemos e experimentamos nessa vida, sempre teremos algo novo a aprender. – Isso fez Áries erguer a sobrancelha verdadeiramente surpreso - Essa curiosidade e desejo por conhecimento é o que mais difere os humanos dos deuses. Por isso, estaria disposto, tanto a instruir-me mais, quanto a ensinar algo para alguém de outra casa que tenha o devido interesse.
- Muito bem, estou grato por sua opinião – Colocou satisfeito, dando uma sutil cotovelada em seu companheiro que sem notar estava de boca aberta pela impressão, com isso rapidamente a fechou – Agora, quanto a Máscara da Morte... O que me diz? Ele vem fazendo algo que devemos nos preocupar?
- Conforme me foi pedido, eu venho vigiando ele a distância, para não ser descoberto, e ainda não relatei nada em suas ações contra outras pessoas que poderiam ser consideradas erradas, ou mesmo suficientes para uma intervenção do santuário.
- Entendo. – Confirmou Dohko – Isso me deixa aliviado, não quero que ele estrague essa oportunidade de redenção.
- No entanto – Isso fez o libriano franzir a expressão, sério – O pouco caso que vem fazendo a sua própria saúde pode vir a se agravar em breve.
- Em outras palavras, ele adquiriu ainda mais atitudes autodestrutivas? – Questionou Shion preocupado.
- Exato.
Dohko suspirou longamente.
- ...Isso, infelizmente, encaixa no que Afrodite te disse Shion, sobre a saúde mental dele. Meu receio é que isso se agrave a uma situação de suicídio. Infelizmente, não seria a primeira vez que um cavaleiro cometeria tal ato no pós-guerra. Tudo que enfrentamos nesses conflitos divinos sem dúvida são experiências traumáticas que nos marcam inevitavelmente. – Pela primeira vez havia uma dor implícita em suas palavras, numa melancolia que se assemelhava a do antigo Grande Mestre, mas tão rápido como surgiu, tal expressão desapareceu dando lugar a uma mais casual, como um ator discípulo de Dionísio, que trocava sua máscara teatral para encenar outro personagem, contudo, isso não passou despercebido a seu melhor amigo – De qualquer forma, não podemos desanimar, peço que, se sentir que essa situação persistir, me informe imediatamente, então enviaremos Afrodite pra a Itália, acredito que ele é o mais indicado para colocar um pouco de razão na cabeça de Máscara.
Shaka confirmou com a cabeça.
- Eu o farei.
- Muito obrigado novamente Shaka, quanto a busca de um novo aprendiz, eu e Shion ainda não tivemos muito avanço, por isso seguimos buscando orientação pela Star Hill, uma vez que um cavaleiro capaz de herdar a sexta casa são dos mais difíceis de se encontrar, assim que obtermos algum sinal, te informaremos.
- Eu também sigo meditando e tentando localizar algum ser humano extraordinário em algum lugar desse mundo, cheguei a sentir um suave estralo ontem na Sibéria, mas se apagou rapidamente.
- Nós também sentimos – Confirmou Áries – Porém como Camus se encontra na região, não há com que nos preocuparmos, ele se dirigiu ao local, e constatou apenas ruínas no local da antiga Bluegraad, provavelmente foi algum resquício dos antigos cavaleiros azuis, já que suas armaduras continuam seladas na neve.
Em resposta, o cavaleiro apenas confirmou com a cabeça, não se importando em averiguar a fundo a questão.
- Pode se retirar agora. – Retornou a palavra Dohko – E tenha um bom dia.
E com mais um assentimento, o sexto guardião retirou-se, deixando novamente os dois anciões a sós.
- Dohko - Recomeçou Shion em tom sério - O que você falou antes...
- Shion - Respondeu sem encarar o outro - Daqui a pouco Shiryu e Shunrei vão sair com Shoryu, eu não quero atrapalhar o clima de romance. Eu comprei uma bebida especial para nossos velhos amigos e deixei na casa de Libra, o que me diz de passarmos lá e brindar com todos?
O ariano suspirou, cedendo.
- Tudo bem, faz tempo que não os visitamos juntos.
-.-.-
Hasgard, Aspros, Defteros, Manigold, Regulus, Asmita, Kárdia, Sisifo, El Cid, Dégel, Albafica, Sage, Hakurei, Tenma, Yuzuriha, Yato, Sasha e um túmulo afastado identificado apenas pelo número zero. Frente a essas dezoito lápides, o velho libriano depositou dezoito copos, enchendo-os com um pouco de uma garrafa verde, até voltar a seu amigo vivo, preenchendo seus próprios copos, sentando frente as pedras de Touro e Câncer.
- Um brinde àqueles que vivem em nossos corações! - O chinês bebeu de uma única vez, enquanto o lemuriano o fez em três goles.
- É curioso que estejamos aqui fazendo um brinde ao túmulo de Asmita, quando há pouco falamos com sua reencarnação. - Comentou Áries observando seu copo vazio.
- Sinceramente é mais fácil bebermos com os ossos de Asmita do que Shaka aceitar sair conosco para isso - Respondeu o outro com deixe de graça, apesar do tétrico de seu comentário.
- Eu não teria mais tanta certeza - Deixou o copo a um lado - Vê-lo admitindo que tem muito a aprender foi o mais perto da humildade que eu já vi um cavaleiro de ouro como ele chegar, se você tivesse me contado, eu não acreditaria.
- É impressionante, não é? - Colocou maravilhado, deitando o tronco contra a grama baixa - Eu mesmo custo a acreditar que o convívio com Máscara da Morte pode ter lhe ensinado tanto, mas se pensarmos bem, eles aparentemente são opostos, mas tem suas semelhanças. Além disso, apesar de tudo, Shaka é humano, tenho certeza que ele se sentiu sozinho alguma vez, mesmo quando Asmita. É muito bom que ele finalmente tenha um amigo, são coisas assim que nos fazem sentir realmente vivos.
Fechou os olhos com um sorriso confortável.
-...Você me perguntou sobre o que disse antes a Shaka...
- Eu te conheço há mais de duzentos anos Dohko – Comentou Shion com seu tom sereno, passando a vista pelas pedras frias com os nomes tão familiares. – Mesmo que não nos tenhamos visto em décadas inteiras, eu ainda saberia ler o que há por trás de suas expressões e dizeres.
- Em outras palavras, você quer dizer que eu não poderia mentir para você?
- Você acha que seria necessário? – Questionou maiêutico.
Libra não respondeu a princípio. Como se ponderasse dentro de seus próprios pensamentos.
- O que eu disse a Shaka é verdade – Resolveu por fim, depois de um longo silêncio - Sobre não ser a primeira vez que um cavaleiro tentou ou mesmo cometeu suicídio no pós-guerra, Saga mesmo, ao ser encurralado por suas próprias ações, acabou por cometer esse ato através do báculo de Athena. E não podemos esquecer do triste suicídio de Erisictão ou mesmo o de Zaphiri, entre tantos outros casos ao longo da história.
- Dohko - Nomeou em tom recriminatório, como se falasse com uma criança, mesmo que o outro fosse pelo menos uma década mais velho.
- Está bem - Confessou, voltando a se sentar, inclinado para a frente - Assim que Saga fez seu movimento há mais de treze anos, não era possível ter certeza do que tinha acontecido, quem era o traidor, ou mesmo se o bebê Athena realmente seguia no santuário ou havia morrido. Tudo era muito suspeito e contraditório. A maioria dos cavaleiros de ouro eram muito jovens para ter algum julgamento e haviam passado pouco tempo ao seu lado para saber se havia um impostor ou não em seu lugar. Eu estava impedido de abandonar a cachoeira de Rozan e o selo dos espectros pelas ordens de Athena, Muh era o único contato que eu ainda possuía no santuário. A mudança brusca nas ações do Grande Mestre foram dicas suficientes para ele que alguém havia tomado seu lugar, afinal, sempre foi um garoto esperto - Áries apenas confirmou com a cabeça, sério, esperando o desfecho do relato - Quando a poeira baixou, ele veio avisar-me de sua suspeita, de que havia um usurpador e que algo havia acontecido contigo. Por Zeus Shion, você era como o pai dele, e Muh tinha apenas sete anos, o que eu poderia dizer? - Novamente a dor assumiu sua expressão, mostrando-se ímpar em sua face geralmente otimista. - Mesmo sendo um cavaleiro de ouro, ele era uma criança. Eu já vi a dor de alguém que perdeu tudo na face de Tenma, de Sasha, e mesmo na sua, ah amigo, eu daria todo o meu cosmo se pudesse evitar presenciar essa cena novamente, mas o mundo infelizmente não funciona assim, somos obrigados a passar descalços e lentos pelas brasas da dor incontáveis vezes em nossas vidas.
-...Dohko... – Não sentia essa tristeza pulsante em seu companheiro desde o fim da anterior Guerra Santa, onde ambos, ombro a ombro, contemplaram o campo de batalha devastado e cheio de corpos de antigos camaradas.
- Eu não tive coragem de dizer que senti sua morte, senti sua estrela cruzar o céu, mesmo que suspeitasse que Muh também havia sentido, em seu coração ele tentava negar que havia perdido sua única família. Porém, ainda assim a dor que receava presenciar estava lá quando o orientei a abandonar o santuário, eu temi que Saga foiceasse sua vida como fez com você Shion.
- Eu só posso te agradecer por isso meu amigo – Declarou o ariano, erguendo a mão para encostar no ombro contrário. – Minha alma sofreria ainda mais no Cócitos se visse Muh, tão jovem, condenado ao meu lado naquele rio congelado.
- Não me agradeça Shion – Negou com a cabeça - Foi o mínimo que eu poderia fazer, e ainda assim, eu me amaldiçoei incontáveis vezes por não permitir que Muh ficasse ao meu lado em Rozan, para que eu pudesse cuidar dele como merecia. Eu tinha claro em minha mente que era uma questão de tempo para que o traidor viesse atrás de minha vida. Minha existência não era exatamente um segredo, comigo ele seguiria em perigo.
- Eu tentei ocultar a existência de outro cavaleiro de ouro lendário que sobreviveu a Guerra Santa, porém era impossível que o suave cosmo que você emanava por vezes para perdurar o selo de Athena não fosse sentido no santuário. – Desviou o olhar para os túmulos – Por isso, optei por propagar a história de que você era como um eremita, isolado em sua própria penitência por ordens dos deuses, e que jamais deveria ser importunado, à custa do castigo divino se alguém desobedecesse meu aviso, para que nenhum curioso te importunasse em sua missão e pudesse ocasionar no rompimento do selo antes da hora. Porém, acredito que no final, minhas palavras se voltaram contra mim, foi conveniente para Saga que você se mantivesse isolado, se não fosse assim, provavelmente Aioria, ou até mesmo Shura, Camus e Milo teriam buscado orientação de um antigo guerreiro lendário muito antes da batalha do santuário acontecer, isso poderia ter evitado tanta coisa...
- É inútil pensarmos no que poderia ter sido agora, nós erramos nisso juntos Shion, eu também cheguei à conclusão que isolar-me era a forma correta de cumprir com minha missão. Por isso forjei a aparência de ancião usando da habilidade que me ensinou meu mestre pouco antes de partir.
- Sinceramente Dohko – Sorriu suavemente de lado – Ser um ancião roxo de pouco mais de noventa centímetros não foi exatamente a ideia mais discreta ou genial que você já teve...
E agradeceu que seu comentário teve o resultado esperado, Libra enfim abriu um sorriso, aliviando um pouco clima pesado.
- Você sabe, nunca fui o arguto entre nós. Porém, você tem que admitir que é mais discreto do que um dragão, ou um ancião com barba e cabelos feitos de grama, como era o do meu mestre.
- Bem...- Admitiu sorrindo também - Quanto a isso, não há dúvidas.
- Porém quando você morreu - Seu tom voltou a soar pesado - Percebi que era o último de todos nós, o único sobrevivente, foi quando a realidade de estar completamente sozinho caiu sobre mim. Ao menos, foi o que eu pensei na época. Então eu pude entender porque Krest e Itia acabaram por trair Athena depois de suas seculares vidas. Pude me colocar no lugar deles.
- O que quer dizer? - Não pôde evitar que a preocupação soasse em sua voz.
- A solidão Shion, pode enlouquecer até a mais sã das mentes. Eu me vi exilado, desenganado com todas as minhas convicções, eu sei que soa como uma blasfêmia, mas meus duzentos anos me pesaram de tal modo que eu não me sentia capaz de suportar nem mais um dia, o Misopethamenos não parecia mais uma bênção de Athena, e sim uma maldição. Não tinha percebido, até aquele momento, o quanto eu me apoiava em você para cumprir minha missão amigo, por mais que apenas houvesse a telepatia que nos unisse, isso era suficiente.
Dohko fez uma pausa, talvez larga demais, ou era a tensão que a fazia sentir-se assim.
- Vendo a história de Marin e Shun, eu pensei que talvez tivesse sido influenciado pelo miasma que irrompia do selo, mas não faz sentido, não depois que passei tanto tempo naquele lugar. - Respirou fundo - Ainda assim, as águas de Rozan estavam mais baixas naquele dia, era uma época extremamente quente, eu podia ver algumas rochas expostas na margem, acuminadas pela ação da erosão da cachoeira - Levou automaticamente a mão ao topo de sua cabeça - E ainda assim a corrente poderia afogar um desavisado. Eu só queria que tudo desaparecesse. - Soltou o ar, que não sabia estar segurando - Foi inútil, é claro, eu só causei dano "àquele" corpo. Mesmo a correnteza não foi suficiente, só conseguiu me arrastar para próximo de minha casa. Ainda assim, eu ainda podia me afogar se insistisse com aquilo, e, no entanto, eu ouvi um choro - Voltou a sorrir, mesmo que fosse um sorriso pesaroso - Era Shunrei, eu estava tão ensimesmado com minha dor, que havia esquecido que não, eu não estava sozinho, eu estava sendo egoísta, ela ainda precisava de mim, Muh ainda precisava de mim, eu desonraria todos vocês se desistisse naquela altura de minha própria vida. Eu não tinha esse direito, porque a vida, não pertencia só a mim.
Tampou o rosto com uma das mãos ocultando as lágrimas que começaram a correr por seus olhos.
- Me perdoe, meu amigo, eu quase falhei em minha missão, quase falhei com todos vocês.
- Por que não me disse isso antes? - Foi a única resposta de Shion em tom neutro.
- Eu apenas queria esquecer, eu me sentia desleal, envergonhado.
Nesse momento, no entanto, sentiu os braços de seu melhor amigo o envolver em um reconfortante e consolador abraço, e sem mais conseguir evitar, deixou escorrer o sofrimento contido por quase trezentos anos. Shion não o soltou, até que o último lamento se esvaísse, e assim os segundos transcorreram como horas. Era a primeira vez que via seu companheiro assim tão exposto e quebrado, não pôde deixar de se preocupar sobre o que o dever de guardar o selo dos espectros por tantos anos haviam feito, mesmo que obscuramente, a alma e mente de seu melhor amigo.
Com tal situação, nenhum dos dois teve condições de notar o russo aquariano se aproximar do cemitério, mas que ao presenciar a cena, deixou rapidamente o local para dar-lhes privacidade.
Finalmente tranquilizado, o ariano liberou seu companheiro, que se deixou cair na grama novamente, com uma expressão muito mais leve, embora ainda inchada e avermelhada.
- Me sinto pelo menos 113 anos mais jovem depois disso, obrigado.
- Me perdoe a mim Dohko, se eu tivesse sido mais atento a Saga e Kanon, não teria causado tanta dor a todos vocês. - Limitou-se a dizer o lemuriano.
- Tudo está bem agora, é o que importa - Fechou seus olhos. - É por isso que eu quero ajudar Máscara da Morte, quando ele me atacou na cachoeira há quatro anos, eu percebi que ele era alguém completamente submergido em seus ideais equivocados, mas acima de tudo isso, alguém que havia se tingido de escuridão por presenciar o pior do mundo. Eu me lembrei de como você disse que o encontrou, e o quanto a história dele e sua mãe se parecem com a de minha família, mas talvez o mais triste é que ele próprio não havia percebido o quanto estava se afogando. No entanto, nessa nova oportunidade que temos agora, parece que algo enfim estralou em sua mente, mas graças a isso ele está sofrendo sob o peso de suas próprias ações. E da mesma forma que eu no passado, ele pensa estar completamente sozinho, pensa não fazer diferença para as pessoas. E como eu, ele não poderia estar mais enganado.
- Eu entendo, e concordo contigo. É muito importante que o apoiemos nesse momento, porque se o perdermos agora, o perderemos para sempre. - Desviou o olhar para o céu, lembrando-se de seu velho companheiro Manigold – Câncer é um signo engraçado, por tantas vezes parece o mais desrespeitoso e ultrajante entre nós, mas no fundo, é apenas o mais humano.
- Provavelmente você tenha razão.
Os dois se mantiveram assim, apenas sentados, sentido o vento contra seus rostos, apreciando o simples fato de estarem vivos, e juntos novamente depois de tanto tempo, longe do tormento que a solidão pode submeter o mais forte dos homens, com uma força e implacabilidade que faria mesmo um golpe divino soar como um arranhão.
No entanto, em meio a suas próprias divagações, algo preocupante ocorreu a Shion.
- Dohko, isso me fez pensar uma coisa...Sobre o que Shaka disse.
- O quê? - Tornou a sentar-se, seu rosto ainda um pouco inchado pelas lágrimas de minutos atrás.
- Ele mencionou que Máscara não fez nada "considerado errado" para que o santuário tenha que se preocupar.
- Sim - Concordou - Foi isso que ele disse. O que tem?
- Por um acaso, você considerou o fato de que, de acordo apenas com a visão de Shaka, que é um tanto extremista, pois concordava plenamente com Saga em seu estado insano, que Máscara da Morte não está fazendo nada "errado"?
Um pequeno silêncio se fez em que Dohko apenas piscou, considerando as palavras de seu amigo, ao mesmo tempo que a expressão de Shion começava a se azedar.
- Ah...- Foi tudo que saiu de sua boca, sorrindo amarelo.
- Dohko - Seguiu em tom rígido, cruzando os braços - Como não pode ter considerado algo simples assim?
- Vamos! Não é para tanto! - Defendeu-se erguendo as mãos, como se pedindo que o outro esperasse. - Mesmo assim, provavelmente Shaka nos diria se Máscara da Morte fosse particularmente violento.
- "Provavelmente" - Repetiu Áries desgostoso - Dohko, como pode ser tão irresponsável?! Eu também quero que Máscara se adapte a essa nova vida, mas isso não apaga o fato de que ele é um psicopata potencialmente perigoso entre civis, sendo vigiado apenas por alguém de princípios no mínimo radicais. Você deveria ter considerado isso. Eu sabia que não devia ter deixado você lidar com essa história sozinho. Deixar Máscara “brincar” com seu neto já foi prova o bastante que você é confiante demais - Levantou-se - Irei tomar uma providência quanto a isso imediatamente.
- Vaaamos Shion, relaxe, você está exagerando, não acha? Lembra que não é mais o Grande Mestre? - Tudo que recebeu em troca foi um olhar frígido, que faziam as expressões de Camus parecerem simpáticas. Então começou a se retirar do cemitério. - Sabe, continue com atitudes assim que você vai acabar careca e impotente antes dos trezentos!
Estava se levantando quando o lemuriano se virou claramente irritado, ofendido e envergonhado em partes iguais, por isso não pôde evitar a colisão quando uma muralha de cristal foi chamada, batendo diretamente em sua cara, lançando-o longe, em cima do túmulo de Kárdia, enquanto o mais novo saía batendo os pés após um raro momento de fúria.
Desancado e com o nariz sangrando pela colisão repentina, Dohko se pôs a gargalhar, abraçando a lápide do antigo escorpiano, em completo contraste com minutos atrás.
- Viu isso Kárdia? Rapazes? Shion não mudou nada em mais de duzentos anos! Apesar de sua eutimia, eu ainda consigo fazê-lo se irritar!
E continuou rindo sozinho, em meio ao campo-santo.
-.-.-.-.-
Por alguma razão sentiu a repentina vontade de rir, mas conseguiu se limitar a apenas sorrir, afinal sua situação era tudo, menos engraçada. Ainda assim, possuía uma sensação estranha, um formigamento nos ombros, como se uma mão invisível estivesse envolvida neles. Até mesmo olhou ao redor, mas não havia ninguém além dele e do senhor naquela pequena casa.
- Mito - Chamou sua atenção do outro lado da mesa, deixando de moer algumas ervas para vê-lo. - Sente mais alguma dor?
Estava a ponto de corrigir o idoso, esclarecendo que se chamava Milo, mas engoliu suas palavras antes delas saírem de sua garganta, seria inútil, além de grosseiro de sua parte.
- Não, só senti um arrepio, apenas isso. - Retou importância.
O senhor o lançou um olhar severo, por cima de suas lentes grossas.
- Foi uma atitude descuidada assim que causou uma infecção dessas - Ralhou.- Desde criança você sempre foi teimoso, Albert sempre te trazia aqui por causa disso.
Estavam em uma pequena e humilde morada de Rodorio, onde vivia um velho curandeiro, um dos únicos da pacata vila, e ainda assim, os demais curandeiros do vilarejo pertenciam à mesma família atendendo naquela casa há gerações. E devido justamente a isso, e pelo sucateamento da Fonte de Athena na administração de Saga, que muitas vezes frequentou esse lugar quando criança ao lado de Camus, que por alguma estranha razão o velho senhor Iatrós sempre chamou de Albert, que por razão ainda mais estranha sempre fazia o aquariano sorrir, nunca se dando trabalho de corrigi-lo.
- Eu tenho um trabalho de risco, isso é tudo.
- Esse santuário exige muito de vocês, ano passado mesmo, um rapazinho ficou um mês internado aqui comigo por exaustão, pobrezinho, acho que se chamava...Ikea?
- Essa não seria a loja de móveis? – Questionou com graça, ainda assim, achando estranho que algum cavaleiro tivesse permanecido de cama por tanto tempo. Estaria falando de Kanon? Afinal, ele foi um dos que reagiu pior a voltar a vida.
- Ah, não importa, ele saiu saudável, isso sim é importante. De qualquer forma Mito, Albert que eu saiba tem o mesmo trabalho e nunca chegou tão machucado como você – Comentou simplesmente, voltando a triturar as ervas.
Milo abriu a boca para reclamar, inconformado, mas logo a fechou, cruzando os braços irritado.
- Como eu dizia, o que você teve foi Septicemia, síndrome de resposta inflamatória sistêmica. Que muito provavelmente se originou nessa sua queimadura no punho – Automaticamente o escorpiano desviou o olhar para a queimadura que ele mesmo havia feito, numa tentativa desesperada de parar seu sangramento – Pois essa doença sempre inicia numa infecção local, que acaba gerando uma infecção sanguínea mais grave, se você tivesse demorado mais, poderia ter sido fatal, é assim na metade dos casos.
- Eu já me feri muitas vezes antes e algo assim nunca aconteceu – Rebateu simplesmente, por simples teimosia.
- Claro, nem todo o ferimento acaba numa SIRS. É uma doença que ainda está sendo estudada, mas podemos dizer que funciona como qualquer infecção, que sem cuidado acaba se agravando, mas existem alguns grupos de risco em que ela se manifesta com maior facilidade, e você está em pelo menos dois deles. – Voltou novamente seu olhar para o cavaleiro, sentado do outro lado da mesa de carvalho velha - Pessoas desnutridas e que sofreram queimaduras. Você não andou se alimentando como deveria, não é?
Não respondeu, não que fosse necessário, visualmente estava mais magro, não era algo tão gritante, mas visível em alguém de estatura musculosa como a dele. Como todos no santuário, reduziu drasticamente sua alimentação durante a crise alimentícia, mas não pensou que isso poderia causar um resultado tão catastrófico em seu caso.
- Não estava. – Resolveu por confessar.
- Mito – Parou o que fazia voltando-se novamente ao mais novo – Eu só pude te ajudar porque minha netinha trabalha em um hospital em Atenas, mas isso – Indicou o que estava moendo – É tudo que eu sei fazer, nada de remédios complicados para doenças delicadas, você precisa ir imediatamente para Atenas e lá se tratar da forma certa. Os remédios que ela te mandou – Indicou na mão esquerda do escorpião – Podem não eliminar completamente o problema.
- Eu não tenho dinheiro para algo assim - Jogou o peso do corpo contra o encosto da cadeira – E eu não quero preocupar os outros com isso, digamos que o santuário não está em sua melhor performance financeira.
- Você só vai esperar morrer? Onde isso seria uma preocupação menor para seus companheiros? – Seu questionamento foi curto e grosso. – Albert e você são como irmãos, como acha que ele se sentiria com tudo isso?
Milo não respondeu.
Iatrós respirou fundo e levantou-se, saindo por uma porta daquele cômodo. Sem saber o porquê da repentina ação, Escorpião se pôs a olhar os quadros da parede, pendurados de forma inclinada, o que denunciavam sua idade. Alguns eram fotos do senhor e sua esposa Kyría mais jovens. Ele de cabelos castanhos longos e ela azuis. Ao lado haviam uma pintura de um homem que poderia ser o pai de um dos dois, já idoso de cabelos brancos, mas haviam muitos outros, de geração a geração, vestindo batas médicas com suas caras sérias. Até terminar num retrato mais antigo que a própria casa, de uma jovem de longos cabelos castanhos presos num rabo de cavalo, segurando uma rosa em suas mãos.
E então ao cabo de uns minutos, o idoso finalmente retornou segurando uma bolsa pesada e colocando nas mãos de Milo.
- O que é isso?
- Abra.
Resolveu obedecer, espantando-se imediatamente.
- Eu sei que não é seguro guardar essas coisas em casa, mas morando tão perto de um lugar com jovens como vocês, nunca vi realmente perigo. Deve ter o suficiente para você conseguir se tratar, pode me devolver com calma, sei que é um jovem honrado e não faltará com sua palavra.
- Eu não posso aceitar algo assim! – Disse indicando a bolsa forrada de dinheiro.
- Eu venho cuidando de vocês desde crianças, Mito, me sentiria culpado se o deixasse morrer tão jovem – Insistiu, ainda de pé, e então desviou o olhar para os quadros – Há gerações minha família ajuda a cuidar das pessoas daquele grande Santuário, sabemos que vocês sempre nos protegeram e essa é nossa forma de retribuir. – Voltou-se novamente a ele. – Além disso, não ganhei esse dinheiro de uma forma que possa me orgulhar. Seria bom usá-lo para algo bom, para variar, e como disse, pode me devolver com calma.
Hesitou, olhando novamente para as moedas e notas presentes no objeto em suas mãos, não fazia a menor ideia de quanto um tratamento desses poderia custar, e provavelmente não teria tempo para descobrir. Depois que lidasse com essa infecção, podia se dedicar a algum serviço local que pudesse ajudá-lo a pagar essa dívida. Era o mais inteligente a ser feito.
Muito embora, por alguma razão, só a ideia de ir a um hospital causava um aperto em seu coração.
- Muito bem...- Bufou cedendo, fechando a bolsa – Poderia me passar o endereço de onde sua neta trabalha?
Com um enorme sorriso o curandeiro afirmou com a cabeça, sentando-se novamente para escrever as indicações.
-...Senhor Iatrós - Milo recomeçou – O que o senhor sabe sobre Hemofilia? E um médico grego chamado Épios?
- Hmmm – Murmurou enquanto escrevia - Hemofilia é uma doença no sangue, basicamente o corpo não tem a capacidade de coagular um ferimento. Porém é uma doença muito rara.
- Ela tem cura?
- Que eu saiba não, só tratamento. Porém não precisa se preocupar com isso Mito, eu já vi seus ferimentos se fecharem várias vezes, desse mal você não padece. Quanto ao médico, não é como se conhecesse muitos, mas você pode perguntar para minha netinha.
- Farei isso – Disse tentando lembrar-se melhor do homem de longos cabelos negros que o ajudou na infância, curando-o aparentemente do impossível, sem pedir nada em troca.
Era sem dúvida um sujeito muito estranho.
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- Eu vou dizer apenas mais uma vez. – Sua voz era cortante, mas carregada de uma alegria doentia, quase como se o divertisse a situação em que estava. - Eu busco uma prostituta chamada Angelina. E como é um péssimo nome para o negócio, a chamavam de Rose
- Existem muitas prostitutas na Itália. - Respondeu desafiante.
- Resposta errada - Pegou o homem pelos cabelos curtos e negros, e bateu sua cabeça na grande mesa de mogno, o som do impacto ressoando pela sala.
Era uma casa antiga e cheia de riqueza, quadros renascentistas apinhados por praticamente todas as paredes. O piso, antes de mármore branco, estava manchado em diversas partes pelo sangue que escorria de pelo menos dez homens, espalhados em posições estranhas pelo chão.
Havia apenas três pessoas conscientes naquele cômodo. O homem que torturava, tinha cabelos azuis espetados, uma barba despontando no queixo, sua blusa branca e jeans escuros impecavelmente limpos, apesar de tudo, e usava luvas negras. O velho torturado, que ao ter a cabeça erguida exibia um dente faltante e uma concussão na testa. Contudo, quem se destacava mais era uma mulher, alta, de pele morena, cabelos extremamente curtos, usava um longo casaco negro e um cachecol da mesma cor, também usava luvas e observava a cena com estranha fascinação.
- Como eu ia dizendo, há 18 anos ela tinha cabelos longos e azuis, um rosto fino, e olhos claros, uma marca de nascença nas costas. Além disso tinha um péssimo gênio e dois de seus principais clientes morreram de forma misteriosa, um se chamava Francesco Castiglia e o outro Alberto Anastasio
- Há, mortes misteriosas acontecem todos os dias dentro da máfia - Seguiu valente - Um homem a mais, um a menos, não faz diferença.
- Eles não foram mortos pela máfia, disso tenho certeza. - Declarou em tom seco, fazendo os olhos da vítima se estreitarem - Porque fui eu que os matei. E o mesmo acontecerá contigo se não me dizer o que quero. - Seu tom agora era muito mais demandante e perigoso.
- Faça o que quiser, mas eu não vou quebrar o Omertà!
Máscara da Morte afastou-se, encarando com verdadeiro ódio o homem à sua frente, instintivamente começou a imbuir seu braço direito com cosmo, já podia vê-la, a jugular rompida, o sangue encharcando o salão, a cabeça arrancada com uma expressão de dor.
Ergueu o braço.
- Onde estão as meninas? - A voz seca da única mulher presente irrompeu.
Diferiu seu golpe. Gritos de assombro.
O mafioso se afastou, em pânico, vendo como a mesa de mogno puro tinha sido quebrada pela metade.
- Você ouviu a moça, onde elas estão?
Trêmulo, o rapaz indicou um corredor a direita.
- Muito bem, agora que você parece estar cooperando, sobre Rose?
- Eu nunca ouvi falar! Eu juro! - Disse praticamente de joelhos, sua pele branca como papel.
O cavaleiro bufou, dando um chute na cara do ser, o enviando para o outro lado da sala. Caindo inconsciente, como todos os outros naquele cômodo.
Sem trocar mais palavras, Máscara e a jovem saíram pelo caminho indicado, que acabava sem saída.
- E agora?
Ainda sem responder, o canceriano deu uma forte pisada numa parte gasta do piso, revelando a passagem para um porão. De onde vários gritos surpresos tinham saído.
- Você cuida disso, eu vou fumar – Disse simplesmente, tirando um cigarro e um isqueiro de bronze do bolso, encostando na parede enquanto sua acompanhante se preparava para descer – É mais fácil terem medo de mim do que de você, Celina.
Se manteve ali, como estátua, vendo como uma a uma, mulheres magras, bonitas, porém judiadas subiam uma a uma a superfície.
-.-.-
Abriu a porta do quarto de hotel sujo e maltrapilho, as paredes eram descascadas, e a cama de casal era visivelmente inclinada para o centro, havia uma infiltração no teto que culminavam numa goteira que caia em um balde velho e seco.
Máscara entrou sem cerimônias, tirando sua blusa e lançando sobre uma cômoda velha, em seguida jogando-se na cama sob um forte rangido.
Logo atrás, Celina fez o mesmo, fechando a porta ao entrar, passando pelo menos três trancas na mesma.
- Você sabe que isso não é necessário – Resmungou observando o que ela fazia de canto de olho – Você viu do que eu sou capaz.
- Eu prefiro me precaver. – Explicou somente. Começando a tirar suas luvas. – As pessoas não costumam sair vivas quando lidam com a máfia.
- As pessoas também não costumam quebrar uma mesa de madeira pura com as mãos – Declarou simplesmente, pegando o controle de uma velha televisão e ligando em um programa aleatório, aparentemente um jornal, porém o aparelho estava sem som, emitindo apenas um chiado.
- Isso é verdade – Ela sentou-se na beirada da cama – Normalmente a polícia ignoraria a denúncia, existem dezenas deles, que são comprados e respeitam a Omertà. Mas quando tantas famílias são atacadas assim, e tantas garotas e rapazes enfim são livres, é difícil conseguir abafar completamente.
- Na TV apenas diz que a mansão foi atingida por um incêndio. – Declarou sem interesse.
- Claro, como se as autoridades fossem divulgar abertamente que alguém misterioso e sem nome está fazendo o que ela não fez em anos, colocar as famílias mafiosas em seus devidos lugares. – Respondeu com sarcasmo e repulsa. – Mas o importante é que eles não vão conseguir ignorar aquelas pessoas, mesmo que quisessem, há muitas testemunhas. Não haverão mais fantasmas esquecidos nessa cidade*.
- Hunf – Bufou, voltando-se a ela.- Acha mesmo? Você não pode mudar o mundo apenas com força bruta, subjugando os que você pensa serem mais fracos que você, acredite, eu já tentei – Voltou-se novamente para o televisor – No final, as pessoas mais inteligentes e preparadas vão passar por cima de você e de suas convicções. O fato de ter passado tranca nessa porta só prova que você sabe disso.
Ela não respondeu, lançando um olhar zangado a ele, enquanto o mesmo ignorava completamente, lendo a manchete da seguinte notícia.
-“Família rica sendo feita de refém na Dinamarca”. Há, esse mundo está mesmo podre. É fácil entender porque alguns querem destruí-lo.
- As vezes você fala coisas tão estranhas. – Disse franzindo o rosto.
- Sabe o que é estranho? – Sentou-se na cama – Faz quase dois malditos meses daquela noite que eu te ajudei com aquele vagabundo que queria “serviço grátis” naquele beco, e você disse que sabia de algumas pessoas que poderiam me ajudar. Eu estou procurando a porcaria de uma prostituta barata, dessas que você paga com menos de três notas - Colocou as mãos para cima, em sinal de rendição – Seem querer ofender a profissão de vocês. Porém em vez disso – Abriu a gaveta de outra cabeceira velha, tirando de lá um papel enrolado, tirou seu isqueiro do bolso e acendeu-o – Máfia, trafico de pessoas, redes de prostituição. Qual é o próximo? Acabar com a miséria? Ajudar os pobres e desamparados? Você acha que eu sou imbecil? – Virou-se irritado para a mulher, que engolia em seco, sem dizer nada – Você está se aproveitando da minha força para fazer a justiça que você é incapaz de fazer com as próprias mãos. Cansada de esperar algo dessas autoridades de merda que temos na porcaria do nosso País*. Mas saiba que eu cansei dessa brincadeira, eu nunca fui bem em fazer o papel do herói bonzinho.
- Quando nos conhecemos – Recomeçou ela, e apesar de tudo, mantinha seu tom petulante – Eu perguntei quem era e como era tão forte. Você me respondeu apenas que era um indesejado, que aprendeu a matar para servir de alguma coisa nesse mundo para uma mulher detestada pelos deuses. Eu sinceramente achei que você estava drogado ou bêbado.
- Eu não lembro direito, talvez eu estivesse – Retou importância – Por que isso agora?
- Você disse que essa mulher pela qual “luta” não é a mesma que está procurando. Além disso, apesar de se auto intitular um assassino, não te vi matar uma pessoa sequer até agora.
Soltou uma longa baforada do que fumava, encarando a mancha de infiltração no teto.
- Estou tentando manter as mãos limpas, o que está sendo muito difícil com essa escória humana que você tão educadamente vem me apresentando. Se eu tiver uma recaída a culpa será sua, vou te arrastar comigo para o submundo, e VOCÊ vai ter que explicar para o juiz porque a lista de porcarias que eu fiz na vida aumentou.
Em resposta ela deu um tapa no papel, que mandou seu fumo até o outro lado do quarto, apagando no processo.
- Pare de fumar essa merda. Já está falando besteira – Disse em tom cortante. Antes que ele pudesse retrucar, ela se levantou, pegando uma mochila jogada na entrada do quarto, que vinha trazendo consigo desde que alugaram aquele apartamento moribundo, lançou para ele, que a pegou no ar.- Eu roubei. São vários itens valiosos das mansões e casas que visitamos.
- Quando você fez isso? – Questionou impressionado, tirando um castiçal de prata e um colar de joias do bornal.
- Não importa. Pegue isso como pagamento. Você perguntou qual é o próximo passo. Um dos caras que você socou disse que existe um grande cafetão que trabalha com a família que atacamos hoje. Ele vem atuando nesse ramo há mais de vinte anos, não há uma única de nós que pode abrir as pernas na Sicília sem que ele fique sabendo.
- E por que não fomos atrás dele em primeiro lugar? – Questionou irritado.
Ela cruzou os braços, fazendo uma expressão de deboche, como se ele tivesse acabado de fazer a pergunta mais estúpida do mundo.
- Acha mesmo que eu conhecia esse merda? Caras como ele não saem por aí entregando cartões de visitas para qualquer puta da rua.
Máscara não respondeu, observando os objetos na bolsa, para logo a empurrar para fora da cama.
- Ainda assim, isso não é suficiente para pagar meus preciosos serviços. – Esnobou erguendo o rosto com arrogância - Tampouco é o suficiente para me convencer que você esteja falando a verdade, e não esteja querendo posar de heroína as minhas custas.
- E isso então?
Voltou o rosto à jovem, o casaco dela estava no chão, revelando um sutiã negro, com três faixas embaixo em direção ao umbigo, e uma peça na cintura que era difícil saber se era um short ou uma calcinha pelo tamanho.
- Agora sim sua oferta começa a me interessar. – Disse abrindo um ladino sorriso. – Acho que podemos seguir com as negociações.
E ela caminhou lentamente em sua direção, com um sorriso par em seu rosto.
-.-.-.-.-
Há quase um mês Kiki passava a maior parte do tempo, que não estava no coliseu treinando com seu mestre, sentado em alguma parte silenciosa e deserta do santuário, lendo, aparentemente, um livro sobre mitologia grega.
Sem que ninguém soubesse, na verdade, havia arrancado a capa de um livro velho que encontrou na pilha mofada que Hyoga estava tentando organizar na casa de Aquário, e prendeu no códex que lia, para esconder sua real identidade.
Esse misterioso exemplar que devorava havia adquirido no início de julho, quando Shiryu o chamou ao salão do Grande Mestre, sozinho.
-...Shir...Hãa...Digo...Grande Mestre – Anunciou parando à sua frente, depois lembrou-se que deveria ajoelhar-se, estava prestes a fazê-lo quando o chinês começou a rir.
- Não se preocupe com isso Kiki, estamos sozinhos – Tranquilizou – Sabe por que eu o chamei aqui?
- Se for pela minha luta com Nachi, eu juro que não quis quebrar o nariz dele! – Apressou-se a se defender.
- Na verdade-
- Eu já pedi desculpas a Ban – Interrompeu o lemuriano – Ersa disse que ele deve poder voltar a mexer o braço no mês que vem! Ontem mesmo fui ao curandeiro de Rodorio conseguir mais ervas para ajudar a concussão.
- Sim, eu sei Kiki, mas...
- O punho de Ichi já está melhorando também...
- ...Kiki...
- Quanto a perna de Jabu-
- KIKI! – Exclamou, finalmente parando a confissão nervosa e culpada – Não, não é por nenhuma dessas coisas que eu pedi que você viesse aqui, ferimentos assim acontecem durante o treinamento. Ainda assim, creio ser melhor rever a ideia de permitir que você treine com os cavaleiros de bronze... Antes que alguém se machuque de verdade.
O lemuriano sorriu sem graça, passando o dedo indicador por baixo do nariz, como era sua marca característica.
O adolescente já quase havia alcançado a altura que Shun tinha antes de falecer, seu corpo era robusto e mais bem formado que muitos adultos, embora não fosse tão expressivo quanto Aldebaran, Aioria ou Milo. Seu cabelo castanho-ruivo já chegava aos seus ombros, e por isso muitas vezes, como agora, o mantinha preso num rabo de cavalo baixo às suas costas.
- Então o que seria Shi..nde Mestre.
Shiryu sorriu, ainda assim, no fundo ainda tinha muito de uma criança. E esperava realmente que uma parte disso se mantivesse sempre dentro de si.
- Estive conversando com Muh e Shion, e resolvermos já ser a hora de dar um passo importante em seu treinamento.- O menor apenas manteve silêncio, expectante – Isso significa, permitir que você visite a câmara dos antigos, e lá, tenha contato com os pertences dos cavaleiros de Áries que serviram a primeira casa antes de você.
Isso surpreendeu o jovem.
- M-mas...Eu ainda não sou.
- Sim, mas Shun também adentrou a esse local antes de ascender como cavaleiro de virgem. – Kiki apertou os punhos – Embora seja tradição que um cavaleiro só ingresse nessa câmara quando não há um antigo dourado de sua casa para guia-lo em seu treinamento, para a primeira casa, essa regra se quebra, pois há conhecimentos, principalmente sobre o manejo das armaduras, que o aprendiz deve desenvolver com o mínimo de auxílio, tendo como base apenas as escritas antigas desenvolvidas pelo primeiro cavaleiro de Áries, Sólon, responsável direto pela criação das armaduras de ouro.
- Sólon – Repetiu Kiki, imediatamente lembrando-se das palavras de Kárdia.
“- Você ficaria surpreso com o quanto da sua história você desconhece – Colocou Escorpião com um olhar misterioso - Procure informações sobre o velho Sólon que você entenderá o que eu quero dizer.”
-...Grande Mestre – Seguiu muito sério, surpreendendo Shiryu - ...O que sabe sobre Sólon?
-...Muh nunca te falou sobre ele?
- Sim, mas...Eu queria poder conhecê-lo...Melhor – Disse, sem saber explicar exatamente sem tocar no assunto de Kárdia.
- Sólon é um antigo ancestral seu, de Muh e Shion. Por mais que vocês não sejam filho, pai e avô realmente, todos vocês possuem alguma relação sanguínea, mesmo que distante, afinal, infelizmente, os lemurianos são um povo em extinção. – Explicou, uma vez que estudar esse tipo de coisa fez parte de seu treinamento como patriarca – Ele foi o primeiro Grande Mestre, um dos sete sábios da Grécia. E um dos principais responsáveis na criação das armaduras de ouro.
Kiki confirmou com a cabeça, desanimado, não havia nada dito que já não sabia.
- Mas se está interessado em algo mais, por que não vamos logo por seus antigos registros? – Sorriu.
Isso rapidamente animou o ariano, realmente, essa era a sua oportunidade, além de que visitar essa câmara era claramente uma enorme honra. Um grande sorriso abriu em seus lábios.
- Sim!
Seu coração já estava disparado quando o trono do Grande Mestre se moveu, porém mais impressionante foi ver Shiryu concentrar seu cosmo na palma de sua mão, e nela simplesmente se manifestar...
- O báculo de Athena?! – Colocou fascinado.
- O báculo permanece no santuário para ocasiões como essa – Explicou começando a descer a escadaria. – Apenas com ele é possível descer a esse lugar.
Ao fim de uma escadaria, pararam frente a um beco sem saída. O lemuriano estava prestes a perguntar como iam passar, quando Shiryu colocou o cetro perante o que parecia uma parede lisa de mármore. A mesma começou a brilhar num intenso dourado, para em seguida as pedras começarem a se recolher sobre elas mesmas, como enormes engrenagens feitas de pedra, abrindo aos poucos uma passagem.
- Isso é demais!! - Exclamou espantado. Shiryu sorriu em concordância.
- Eu só posso imaginar como esse lugar parece, nunca o vi antes de perder a luz de meus olhos.
Assim que pisaram no local, treze chamas azuis em arandelas douradas de ferro iluminaram todo o ambiente, com o mesmo brilho espectral que possuía o fogo do grande relógio do santuário. Cada uma das tochas era decorada com um símbolo zodiacal, que parecia pulsar com o brilho azulado, como se a alma dos antigos cavaleiros recepcionasse os recém-chegados.
O salão de mármore frio, úmido e pouco iluminado fez um calafrio correr pela espinha do menor, esse lugar não lhe trazia boas sensações, por alguma razão o fazia se lembrar do ataque de Thanatos a Seika.
Eles se aproximaram a uma das arandelas, podendo assim ver que ela ocultava um altar negro de mármore que se fundia completamente na escuridão. Sobre ele, como se fossem oferendas, haviam muitos códex, vários volumem, e dezenas de ferramentas estranhas. Acima de tudo isso, estava adornado a constelação de Áries.
- Como há muitos pertences referente a primeira casa, peço que escolha apenas alguns, e os maneje com cuidado e zelo. Leve o tempo que precisar para escolher o que irá levar. Porém recorde-se que não poderá vir a esse lugar novamente até se tornar um dourado. Afinal, é um local sagrado. – Kiki confirmou com a cabeça – Eu retornarei mais tarde.
- Eu ficarei aqui sozinho?! – Exaltou-se.
- Não se preocupe, eu não moverei o trono – Brincou Shiryu – Este não deve ser um lugar confortável para armar acampamento, não é mesmo? Tenha cuidado, e não quebre nada Kiki.
E assim ficou completamente sozinho naquela sala fria e sombria, onde tinha a clara impressão que alguém o estava observando.
- Como eu vou saber o que levar? – Resmungou, cutucando um códex suntuosamente mais grosso que os demais.
Só haviam livros e pergaminhos velhos ali. Abrindo o que parecia mais novo, descobriu que tinha pelo menos mil anos. Seria uma imensa dor de cabeça entender, nem tinha certeza se aquilo era tibetano, lemuriano ou grego. Bufou, poderiam ao menos ter-lhe dado algumas dicas.
Depois de duas horas, já estava completamente entediado. Resolveu pegar os documentos de maior tamanho, afinal, quanto mais importante é o assunto, mais espaço é preciso para escrever, certo?
Quando já tinha uma pilha que chegava a metade de seu tamanho, se deu por satisfeito.
- Será que eu subo, ou espero Shiryu descer? – Meditou, sentando-se no chão.
Foi então que começou a olhar ao redor, para os demais altares, cada qual preenchido com pertences diferentes. Antes que percebesse, sua curiosidade levou a melhor, e já estava de pé, olhando um por um.
Além de textos antigos e peças de roupa, havia aljavas no altar de Sagitário, um rosário no de Virgem, uma pele de leão no signo do mesmo animal, o chifre perdido de Aldebaran que ele nunca fez questão de consertar em touro, uma espada enferrujada sobre Capricórnio, uma ânfora em Aquário, um espelho quebrado em Peixes, uma balança torta em libra, uma caixinha pequena e toda detalhada em Gêmeos, um crânio em Câncer, o que o fez questionar se pertencia ao primeiro canceriano, ou só a um infeliz qualquer vitima daquela casa. Então parou frente a um altar que só possuía dois objetos.
Uma máscara de couro e um códex, de tamanho inexpressivo em relação aos demais. Levantou o rosto, notando a chama fraca que simbolizava Escorpião. Estendeu a mão para pegar o livro, hesitou, mas acabou cedendo e o abrindo. O grego escrito ali era antigo como todos de Áries, mas haviam ilustrações que indicavam claramente os pontos onde as quinze agulhas deveriam perfurar.
Devolveu o singelo livro e voltou seu olhar para a máscara de couro. Parecia uma dessas que os homens usavam no teatro na Grécia antiga.
Depois de meditar um pouco, lhe ocorreu que a razão de Escorpião carecer de conteúdo em relação aos outros signos, se devia ao fato de que nenhum de seus guardiões haviam vivido o suficiente para acumular muitos saberes e textos.
Com esse horrível pensamento, virou-se para voltar ao altar de sua própria casa, apenas para constatar que a chama azulada de sua arandela havia se apagado. Imediatamente entrou em pânico, olhando tudo ao redor, andando de um lado a outro. Será que tinha desobedecido alguma lei? Aiolos uma vez lhe disse que mexer em ruínas antigas poderia desatar armadilhas, ou pelo menos foi isso que ele viu em algum filme.
Não sabia o que seria pior, ser acertado por alguma coisa desse lugar, ou a cara de decepção de Muh, Shion e Shiryu por ele ter maculado território divino. Mas então, qual foi sua surpresa quando ao virar-se novamente, frente ao décimo terceiro altar destinado ao Grande Mestre, deparou-se com a chama pairando de forma espectral no meio da sala.
- AAAAAAAAAAAH!
Seu susto foi tão grande que caiu para trás com tudo, batendo a cabeça no mármore negro. Logo soltou uma ofensa em seu idioma materno, massageando o local ferido. Porém, ao fazer isso, sua mão bateu algumas vezes sobre a superfície negra, fazendo um barulho peculiar, como de algo sendo arrastado. Virou-se, ficando ainda mais temerário ao constatar que uma parte do altar, como uma placa, havia simplesmente soltado.
- Agora definitivamente vão me matar! -Exclamou batendo ambas as mãos no rosto – Kiki! Seu idiota! Por que você não ficou quieto?!
Tinha duas escolhas, ou dizer a verdade quando Shiryu aparecesse, ou fingir que nada tinha acontecido.
Mas tinha que ser justamente no altar do Grande Mestre! Se ao menos pudesse consertar... Com isso em mente, tentou recolocar a placa na posição de antes, apenas para notar que ela era muito leve, pois não havia nenhum documento ali no momento, provavelmente todos já estavam em posse de Shiryu.
Vencido novamente pela curiosidade, resolveu erguê-la. Dentro era como um baú de pedra.
Mesmo inclinando o rosto, não conseguia ver seu interior, devido a escuridão e sombra que a espécie de tampa fazia. Resolveu colocá-lo no chão para poder explorar melhor, porém, ainda assim o breu era superior. E, no entanto, como se suas preces tivessem sido ouvidas, a chama flutuante da arandela de Áries surgiu sobre a arca, revelando um velho códex ali dentro.
Hesitou, da mesma forma que antes em escorpião, mas novamente acabou cedendo. Era jovem, adolescente, ainda se deixava levar muito por seus impulsos. Logo na capa, a constelação impressa no couro o desconcertou completamente.
- Serpentário? O que faz uma constelação de prata aqui? – Questionou sem entender.
Abaixo, no entanto, havia uma espécie de dedicatória, num grego mais simplificado, como se o autor quisesse ter certeza que seria entendido mesmo depois de muito tempo.
“À Astéria, chama que sempre queimará entre as estrelas.
À Erisictão, e sua dor que perdurará até o fim de sua maldição.
E a todos os meus companheiros que jamais tornarei a ver.
Épios.”
Ainda mais depois de ver o nome da amazona de Escorpião, se sentiu completamente tentado a abrir o documento, constatando, para seu assombro, pelas inúmeras ilustrações, se tratar provavelmente de um livro de medicina.
- O que isso fazia no altar do Grande Mestre? – Voltou-se para cima, onde a chama de Áries ainda iluminava sua frente.
Porém, ela repentinamente começou a se agitar, como se tentando avisar algo. Nesse instante, pode sentir um cosmo e passos se aproximando.
- Droga! – Rapidamente, levou o livro médico a pilha de Áries, misturando-o entre os outros, para voltar ao décimo terceiro. Tomou a cobertura fechando-a, mas não havia nada que a mantivesse firme. Seria simplesmente evidente que havia aberto uma espécie de baú secreto, mesmo Shiryu sendo cego descobriria pelo tato!
- Interessado em ser Grande Mestre, Kiki?
Seu coração pulou uma batida.
Virou-se rapidamente.
- N-não! Eu...Desculpe, é que eu acabei e...Não sabia se devia subir ou então...- Virou-se, pensando em como explicaria seu deslize. No entanto, para seu espanto, não havia qualquer sinal de que em algum momento houve uma tampa ali, a pedra de mármore parecia completamente sólida. -...Esperar.
Olhou para cima, a chama de Áries havia voltado a seu devido lugar.
Seria possível que não tinha sido ele que abriu o compartimento em primeiro lugar?
- Eu sinto te dizer que os pertences dos Grande Mestres estão comigo, não me posso dar o luxo de deixar algo passar, então estou revisando todos. Porém, se tiver interesse, quem sabe no futuro eu não possa te fazer meu aprendiz.
-...Aaah, eu não sei se seria uma boa ideia...
- Quem sabe, apenas o tempo dirá. Venha, vamos voltar. Precisa de ajuda para levar os livros?
- Não...! Obrigado! - Correu para sua pilha, arrumando-a como podia. – Hã...Shiryu... -Disse voltando-se novamente a arandela da primeira casa.
- Sim?
- Essas...Digo...Nesse lugar existem treze chamas – Hesitou- ...São chamas normais? Ou...
- Dizem que elas são fragmentos da alma dos primeiros cavaleiros de ouro, você pode sentir um pequeno fio de cosmo emanando delas caso se concentre - Explicou – Além do mais, elas possuem a mesma aparência das chamas do Grande Relógio. É como se eles estivessem olhando por todos nós durante os momentos mais críticos.
- E por que treze chamas?
- Só existem doze arandelas de ouro nessa sala Kiki. A última não emite qualquer energia. Seria a única chama verdadeira entre as treze.
Ergueu novamente o rosto, e de fato, essa chama parecia diferente das demais, com um brilho mais vívido e quente, apesar de também ser azulada.
-...Que estranho.
- Ela simboliza que independente do tempo que passe, o santuário sempre deve ter um líder que o guie, o vínculo entre os cavaleiros e Athena. Agora vamos, já está tarde e você deve comer alguma coisa.
Simplesmente confirmou, saindo do lugar, atrás do atual líder do santuário, lançando um último olhar, ao que talvez fosse o mais perto que poderia chegar de Sólon de Áries.
Desde aquele dia, a princípios de julho, dedicou tudo que podia para compreender o livro de Épios, e acreditava estar fazendo um bom trabalho.
Porém, nessa tarde em particular, estava acompanhando Marin e Ersa em Rodorio. Apesar de grávida de sete meses, a amazona era incapaz de ficar quieta, e por isso, Ersa sempre a acompanhava quando Aioria não conseguia impedir sua companheira teimosa de fazer alguma coisa.
Sempre que paravam em alguma loja ou tenda em particular, Kiki abria novamente seu livro, tentando aproveitar cada segundo para descobrir mais sobre este, que era o melhor livro de medicina que havia lido em toda a sua vida. Não havia dividido ele com ninguém, nem mesmo com a própria Ersa.
-...Ki...Ki.
Porém a voz fraca da amazona era o indicativo de que sua leitura teria que esperar, por um bom tempo.
Baixou o livro, para ver que Marin se inclinava como podia contra uma parede, enquanto Ersa não estava à vista.
Ela segurava a barriga com força, e uma quantidade preocupante de sangue escorria por suas pernas.
O momento da prática havia chegado muito antes do que gostaria.
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