Capítulo 102 - Dizem que o amor sempre vence – Parte I
Há muito, muito tempo existiu um velho rei muito solitário, quando jovem, ele e seu irmão foram convencidos por sua mãe a matar o filho bastardo de seu pai com sua amante, contudo, como recompensa a esse ato hediondo, ambos foram exilados por seu pai.
Mesmo se tornando rei de uma pequena região em Tessália, habitada por seres ilustres e raros, os centauros, por toda a sua vida, o jovem tentou remediar seu erro e reverter o rancor de seu pai de todas as formas, mas até o momento que este foi levado ao reino de Hades, não pôde conseguir seu perdão.
Tomado pela dor e pela tristeza, o rei prometeu a si mesmo que um dia amaria e cuidaria de um filho acima de todas as coisas, e jamais deixaria que nada acontecesse com sua prole, talvez assim pudesse se redimir, e os deuses e seu pai um dia o perdoariam.
Contudo, os anos passaram, o desolado homem envelheceu e o tempo o enfraqueceu, e nenhum filho homem foi gerado de suas sementes.
Uma profecia, porém, mudaria seu destino para sempre.
Astéria, a titã das estrelas, profetizou que caso uma determinada nereida, ninfa proveniente dos oceanos, se deitasse com o deus dos deuses, daria à luz a um ser superior, que usurparia seu trono como em gerações passadas.
A grande Gaia ouviu essa profecia, e intensificou suas ações para que o reinado de seu neto, Zeus, tivesse fim.
Prometeu, ouviu por entre as rachaduras da terra a deusa maior sussurrando este destino, e manteve o segredo consigo, por mais que o torturassem para consegui-lo.
Os três sofreram severas consequências por tal visão, enquanto o solitário e velho rei foi visto pelo deus das divindades como o escape para que essa profecia não se cumprisse.
Assim sendo, acudiu a Aphrodite, querendo que esse frágil e decadente mortal se apaixonasse pela nereida e lutasse por seu amor, assim sendo, os filhos gerados dessa união herdariam a fraqueza do rei e jamais ascenderiam como algozes divinos.
Foi desse modo que Peleu, filho de Aiacos, já com idade avançada, encontrou Tétis banhando-se na praia, e sob influência da deusa do amor, se apaixonou perdidamente por ela. Dessa forma, tentou alcançá-la em vão, pois a mesma lançou-se nas águas e fugiu para o mar.
A divindade do amor carnal então orientou o velho rei que demostrasse seu amor abraçando o ser marinho com força e não deixando-a ir não importa o que acontecesse. Sendo assim, cego de amor, Peleu esperou escondido até que a jovem estivesse dormindo em uma caverna beira mar e a abraçou. A metamorfa então se transformou em fogo, e ainda assim o rei não a soltou, logo em seguida, assumiu a forma de serpentes, e mesmo cravejado por suas presas, manteve-se firme. Por último, ela assumiu a forma de uma tigresa, e mesmo tendo a pele deformada por suas garras, o mortal não cedeu.
Frente a essa bravura, Tétis foi quem cedeu e o abraçou de volta, aceitando que aquele homem podia ser digno de sua divindade.
O casamento de ambos foi celebrado até pelos deuses, mesmo que marcado pela maçã da discórdia, por parte de Éris, o que anos depois levaria a fatal Guerra de Troia.
O já não tão solitário rei amava sua esposa, e esta também aprendeu a amá-lo, porém, apesar da força que demostrou ao se conhecerem, em seu interior ela temia que a fragilidade de seu mortal marido passasse para seus filhos, e isso a corroía por dentro.
Por isso, quando eles começaram a nascer, a titã estava obstinada a expurgar a humanidade dessas crianças, e por esta razão, a felicidade de Peleu em ser pai pouco durava, pois sua mulher banhava os seres mortais no fogo, que ela acreditava ser divino e purificador, desse modo ela desejava queimar sua mortalidade, no entanto, dessa forma trágica seis de seus descendentes morreram tendo poucos dias de vida ao não resistir tal provação.
Desesperado ao saber das ações de sua esposa, quando o sétimo filho nasceu, Peleu o arrancou dos braços da mãe, que tomada de fúria o abandonou, voltando ao mar.
Completamente arrasado ao ver-se abandonado assim, Peleu lutou contra o amor que Aphrodite fez despertar nele por Tétis, e se controlou em não segui-la ou ceder a sua vontade, em nome da vida de seu filho, o qual nomeou Aquiles.
Resistiu, criando em seu interior um amor ainda maior, o de um pai por um filho.
E mesmo assim, temendo não ser capaz de resistir, pediu ajuda do centauro Quirón, que também o havia cuidado quando criança, para educar e olhar pelo menino.
Durante os nove primeiros meses de Aquiles, Peleu orou todos os dias para seu falecido pai, Aiacos, que poupasse a vida de seu jovem neto das garras de Thanatos. Rezou para que Tétis não conseguisse colocar suas mãos nele e que assim não tivesse o mesmo fim que seus irmãos.
Comovido pelo desespero de um pai, se reconhecendo em seu próprio filho, em morte, aquele que havia se tornado um juiz no mundo dos que se foram, finalmente perdoou o velho rei pelo fratricídio que cometeu em sua juventude, e com a permissão de seu deus, contatou Tétis e ofertou-lhe um modo de expurgar a fragilidade de Aquiles sem consumir sua vida.
Mergulhá-lo no rio Estige.
A mãe prontamente aceitou a oferta, e assim, da mesma forma que seu marido a capturou, ela esperou o rei dormir para sequestrar seu próprio filho no berço, e assim o levou pela passagem aberta ao submundo pelo avô da criança.
No reino dos mortos, Tétis tinha o difícil dever de mergulhar a criança nas águas de fortes correntezas, sem que ele corresse qualquer risco de se afogar e sem que ela tocasse nessas mesmas águas, pois se ela o fizesse, sendo uma nereida dos mares dos vivos, sua morte estaria decretada, o que inevitavelmente também condenaria sua criança.
Porém, ela conseguiu, segurando o bebê pelos calcanhares.
Quando a manhã nasceu no reino de Ftia, Aquiles estava de volta ao berço, vivo e praticamente indestrutível, com exceção de seu calcanhar. Desse modo, mesmo a distância, Tétis seguiu a cuidar do jovem.
Quanto mais Aquiles crescia, mais ficava evidente que o jovem era excepcional, e mais seu pai transbordava de orgulho.
Como prometido, ele amou seu filho com todas as suas forças, sempre se empenhando para fazer todas as suas vontades, dando ao garoto também todo o amor que tinha guardado por sua desaparecida Tétis. Aquiles, em contrapartida, mesmo quando se tornou um homem, de grande ego e muitos amantes, nunca deixou de amar seu pai acima de todas as coisas, e mesmo sua mãe, que sentia que o vigiava e cuidava sempre que podia, mesmo que de formas que não aprovava.
Sempre que vencia, seja numa caça, numa batalha ou prática esportiva, o guerreiro indestrutível voltava para comemorar com seu querido pai e agradecia sua misteriosa mãe.
E apesar desse forte sentimento, quando a Guerra de Troia se mostrou em seu caminho, e uma segunda profecia surgiu, dessa vez dizendo que o filho de Peleu encontraria seu prematuro fim se matasse Heitor em Troia, esse amor não foi suficiente para fazer o mimado filho escutar os diversos apelos para não guerrear, e mesmo assim, foi seu amor para com seu pai que fez o grande Aquiles hesitar frente a Príamo, o pai de Heitor, e chorar abraçado a ele, frente ao apelo do troiano para poder enterrar seu próprio filho.
Nesse dia, Aquiles chorou abraçado de Príamo, pois sabia que seu pai o estaria esperando voltar, mas que isso nunca aconteceria.
Ou ao menos, era o que Aquiles pensava.
Nove meses após sua morte, Athena conseguiu a aprovação dos deuses para trazê-lo de volta do mundo dos mortos, sendo guiado por um cavaleiro que servia a deusa e possuía a alma pura o suficiente para tal labor.
Um enorme sacrifício foi realizado nessa missão, mas em contrapartida, o indestrutível guerreiro pôde voltar ao lado dos vivos. Assim que recuperado, o primeiro que fez, após prestar seus respeitos a deusa que o trouxe de volta, mesmo que fosse para uma nova guerra, foi procurar seu pai.
O pobre rei solitário, ainda mais velho e frágil, sendo cuidado por sua filha mais velha, Polidora, foi capaz de voltar a ficar de pé quando viu seu filho retornando, em um cavalo, pela janela de seu quarto, e depois disso foi visto festejando por nove dias e chorando por nove noites após o retorno de seu amado filho, feliz que havia retornado dos mortos, triste por saber que iria para uma nova guerra.
Por isso, escondido de seu filho, Peleu foi até o oráculo de Delfos, para ver se o destino possuía outra previsão para ele, pois seu destino parecia escrito completamente nas estrelas.
Para sua surpresa e pesar, nessa viagem soube de duas fatalidades.
A primeira era que a profecia sobre a queda de Zeus se mantinha imaculada.
A segunda, que por uma maldição de Hera, a pedido de Hefesto, em nome de seu filho Erictônio, todas as reencarnações de Aquiles estariam fadadas a serem órfãos, perdendo seus pais sempre em tenra idade das mais trágicas formas. E o destino trágico seguiria Aquiles até o fim dos tempos.
Novamente devastado por essas previsões, o rei acudiu a mesma caverna que havia arrebatado sua esposa, e rogando para os oceanos por nove horas até sua voz se tornar um mero sussurro, Tétis apareceu frente a ele, tão jovem e bela quanto a última vez que se haviam visto.
Sem censurá-la pelos anos de ausência, o mortal confessou o que havia escutado, seu brado morrendo a cada palavra, até cair de joelhos, o sangue de sua mortalidade escorrendo sobre as pedras nesse movimento, até ser acolhido pelos braços dela, que também se jogou em pranto nos braços dele, seu sangue imortal também percorreu as afiadas rochas.
Naquele apertado gesto de amor e dor, ambos prometeram que por menor que fosse o tempo que passariam juntos e com seu filho, ainda assim reencarnariam ao lado dele e dividiriam o peso de seu fardo até que o fim dos tempos chegasse.
Sendo assim, naquela mesma caverna, acenderam uma fogueira juntos e oraram para Héstia; que sempre forjasse o laço de sangue deles juntos, e que os permitisse dividir os fardos de Aquiles.
Héstia ouviu seus apelos, porém, não foi a única. Moros também as escutou e garantiu-se, junto a suas filhas, as Moiras, que tal pedido fosse atendido.
Nove meses depois, enquanto no Olimpo, deuses e titãs se questionavam sobre o desaparecimento de Zeus, Peleu ficou doente, manchas vermelhas cobriam todo o seu corpo, mesmo seus cabelos, unhas e íris. Porém fez sua filha e servos jurarem em nome de Héstia a não contar da doença ao seu filho, e na última vez que se viram, o rei garantiu que fosse a noite, no meio de uma floresta sem luzes, para que o guerreiro não pudesse ver sua situação, com a mentira de que iriam ver juntos as constelações pela qual os guerreiros de Athena lutavam.
Aquiles, abatido pela mesma enfermidade, não recusou esse encontro no escuro, que foi o último momento de pai e filho, pois assim que Peleu retornou ao seu quarto, faleceu dormindo, e Aquiles pereceu nos braços do filho da Terra e do Mar, como ele, Sólon.
Quando a tragédia acometeu ambos, Tétis soltou um enorme grito desgarrador, que aos poucos foi se transformando em um guincho, e seus braços se tornaram asas para que pudesse alcançar as estrelas que percorreram o céu anunciando as mortes, transformando-se numa sirena, e então para alcançar o firmamento, tornou-se em um pássaro capaz de enxergar todas as constelações, para que desse modo soubesse o dia que ambos voltariam a terra, e assim, desapareceu no céu noturno.
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Explosões e mais explosões ecoavam até os portões que levavam ao salão do trono, mas isso não parecia importar minimamente para o deus caído sentado sobre um dos braços do trono do imperador do submundo, que parecia perdido em pensamentos enquanto contemplava uma maçã.
- Senhor, as explosões só estão piorando – Uma esqueleto, uma humana normal que pagava sua penitência com trabalho no submundo, chamou exasperado pela atenção daquele que deveria ser o superior na ausência do general Daidalos.
- Eu sei, Sussana, não sou surdo – Respondeu grosseiramente, sem deixar de encarar o fruto avermelhado e tão brilhante que era possível ver seu rosto ‘distorcionadamente’ refletido nele, perdido em pensamentos antigos – Eu já enviei Íatros para resolver isso, não?
- M-mas... – A jovem de longos cabelos tentou rebater. – Eles parecem estar destruindo o reino.
- Sim, é muita ingenuidade achar que a chegada desses dois não causaria tumulto e destruição – Retou novamente importância.
E um estrondoso som fez mais de um esqueleto presente gritar, um deles até mesmo se escondendo embaixo da longa e farta mesa horizontal montada em pleno salão do trono, gesto este que fez Kairos revirar os olhos.
- Eu não posso perder tempo com essas ninharias. – Disse erguendo-se – Mas se é para evitar que vocês não morram, de novo, eu verei como Íatros está lidando com a situação.
Dito isso, caminhou a passos lentos até o espelho negro.
- Íatros – Anunciou desinteressado, e poucos segundos depois a imagem do curandeiro, com sangue escorrendo de sua testa apareceu na superfície escura – Por que eu ainda estou ouvindo explosões? Achei que eu tinha te enviado para resolver essa situação.
-...Eu sinto muito Senhor– Era difícil ouvir o alcade devido a gritos afetados e agudos no fundo, além de ecos de destruição. – Ela é muito difícil de segurar.
- E seu velho companheiro não está ajudando em nada? – Perguntou, cruzando os braços.
-...Bem, ele está muito confuso, mas está tentando, o senhor Chris também, porém... – Hesitou quando teve que se abaixar para evitar ter a cabeça esmagada por uma pedra gigante lançada na sua direção - ...Ela é muito forte!
Novamente, Kairos revirou os olhos.
- Não se atreva a deixar “Chris” se machucar por sua incompetência. – Colocou ríspido, fazendo o mortal tremer pelos dizeres contrários – Achei que vinha se preparando para esse momento há anos!
-...Perdão, eu não achei que ela seria tão difícil de lidar, quando ele era criança, era...Bem mais manejável.
- Resolva isso de uma vez antes que nossos verdadeiros convidados cheguem, se não- Contudo, sua ameaça não pôde ser proferida, pois a figura refletida no espelho mudou.
E quem apareceu na superfície negra fez os olhos de Kairos se ampliarem e sua boca abrir ligeiramente.
-...Kairos...Falhamos, nosso tempo agora está contado – A figura refletida dizia, num grunhido de dor.
- Você está se exaltando demais! – Uma voz atrás daquele que falava exclamou.
- ...Você tem que acordar Shun agora, de qualquer jeito... – Seguiu em um tom cada vez mais vacilante.
Quanto a isso, Kairos engoliu em seco.
-...Eu tive uma visão sobre quando e como o imperador irá acordar – Explicou em tom sério o deus caído, chamando a atenção dos esqueletos na parte baixa do salão, pela sua completa mudança de postura - Ainda preciso...De pelo menos dez minutos.
-...Ele irá para o santuário se n- Contudo, as palavras morreram na garganta daquele que falava, e este teria caído no chão se aquele que o recriminou antes não o tivesse segurado.
- Venham imediatamente para o submundo – O deus caído do tempo declarou, em um tom que não aceitava replicações – Sapo, vocês três e o Ikki precisarão estar aqui pontualmente em dez minutos. Eu irei falar com os outros dois inúteis.
Antes que o homem de grande porte pudesse reclamar quanto as ordens, Kairos interrompeu o contato, quando sentiu uma energia tão conhecida adentrando os portões do submundo.
- Finalmente! – Anunciou, com um grande sorriso cheio de dentes pontiagudos, seus olhos brilhando rubros de antecipação. – TODOS VOCÊS! – Gritou para os servos presentes – Vocês têm cinco minutos para arrumar tudo. Nossa grande festa em honra ao fim dos tempos!
Isso trouxe um pânico geral aos mortais, que começaram a correr para todos os lados para que as ordens fossem cumpridas.
- Íatros – Voltou ao espelho, onde a figura do curandeiro se mostrava ainda mais ferida que antes, escondida atrás de uma pilastra. – Você tem cinco minutos para resolver essa situação – Isso fez a pouca cor no rosto do morto desaparecer – Atraiam essa alma turbulenta até a margem do Cocítos onde estão Myu e Iwan, dê a sobrepeliz para o companheiro dela e deixe o destino cuidar do resto.
Novamente, o rodoriano não teve tempo de questionar a insana ordem, e o contato foi encerrado.
Kairos então deu uma enorme dentada em sua maçã, devorando-a pela metade, deixando uma marca de seus pontiagudos dentes e de sangue na fruta.
- Só mais dez minutos... – Disse para si mesmo, jogando o resto do fruto para trás, acertando Sussana, e indo novamente até os aposentos de seu senhor – Apenas dez minutos...
Ao descer a longa e íngreme escadaria, encontrou Shun exatamente onde estava antes, deitado em seu leito, com as mãos cruzadas sobre seu coração, seus cabelos castanhos acinzentados, agora curtos, espalhados por seu travesseiro, junto a alguns fios soltos.
-...Eu daria um pé para saber o que você está sonhando. Aaah, dormir, dormir...Talvez sonhar – Murmurou de forma quase cantarolante, vendo a face tranquila de seu senhor – Há quem diga que todas as noites são sonhos – Recitou, sentando-se na beirada da grande cama de casal, observando a rosa eterna na cômoda ao lado da cama - Mas há também quem diga que nem todas, só as de verão. No fundo isso não tem muita importância, o que interessa mesmo não são as noites em si, são os sonhos.
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- Escutem-me bem – Um homem de longos cabelos prateados, porte musculoso, porém rosto e figura jovial falava frente a uma enorme fogueira que fazia seu entorno brilhar, tornando sua figura ainda mais imponente e forte – Com as armas estas que os ciclopes, que eu libertei, criaram, vamos finalmente colocar um fim a essa longa guerra contra Kronos! – Alegou em tom forte e imponente fazendo surgir em sua mão um grande raio, tão brilhante que era impossível olhar para ele diretamente – Com a ajuda deles, e dos Hecatomquiros, que eu também libertei, a vitória sem dúvida será nossa. Para tanto, eu tenho um plano e como eu-
-...Deixa eu adivinhar? – Uma voz pouco interessada se assomou interrompendo o discurso – “Como fui eu que vós libertastes, tens que acatá-lo” – Recitou - Qual a necessidade de repetir o tempo todo que tu fizeste todas essas coisas, meu irmão? Estávamos lá, vimos acontecer.
O homem franziu a expressão, olhando de mal grado para quem o havia afrontado, ao redor da fogueira havia outras cinco figuras, um de tamanho médio, o primeiro riu nem um pouco descaradamente da provocação, possuía longos cabelos azuis escuros e uma toga branca curta de um único ombro, mal colocada, que deixava praticamente quase todo seu corpo a exposição. Além dele, haviam três mulheres, uma de pele alva, que parecia ser a mais velha do grupo, cabelos negros que deslizavam como moldura por sua face. Ela ouvia toda a conversa com um deixe de tristeza, ao seu lado havia uma jovem de volumosos cabelos vermelhos que parecia entediada com o discurso até então, e não pôde evitar um sorrisinho com a interferência, e por último, uma belíssima jovem, de madeixas castanhas curtas e espetadas, com aparência altiva, e ao contrário dos demais irmãos, como aquele que até então discursava, encarou de mal grado quem o interrompeu.
- Porque eu quero que vós recordais que nossa mãe me escolheu para ser vosso líder, e que devem ter isso em consideração, antes de dar vossas opiniões sobre meu plano – Colocou de forma imponente, cruzando os braços.
– Eu tampouco concordo plenamente com o egocentrismo de Zeus – A mulher morena questionou, com olhar afiado, o mencionado apenas se virou para si com desgostoso quanto ao comentário sobre seu ego – Mas que ele seja o líder foi a decisão de Reía, não recordas Hades?!
- Ei, vós estais exagerando, não? – Interrompeu o de cabelos azuis, deixando de rir e franzindo o rosto – Hades só disse que Zeus não tem que recordar-nos a cada instante que nos salvou, e ele tem razão, todos sabemos disso. E eu também poderia ser o líder! Afinal, eu fui o último a ser engolido! Não acho que nossa mãe ter dado uma pedra para nosso pai engolir ao invés de Zeus seja suficiente para deixá-lo no comando.
- Um infante como tu seria um líder ainda pior, Poseidon – Insistiu novamente a jovem.
- Eu sou mais velho que Zeus, esqueceu, Hera?! – Colocou em fúria, levantando-se, seus olhos brilhando em amarelo – Se eu sou um infante, Zeus nada mais seria que um nuelo!
Antes que as discussões piorassem, a fogueira entre todos cresceu de tamanho, até explodir em uma apoteose que os obrigou a se afastarem, o que, ironicamente, esfriou os ânimos. A única que não havia se distanciado era a jovem de cabelos negros que proporcionou o evento.
- Essa não é a hora, nem lugar para isso. Brigar entre nós não resultará em nada – Colocou com tranquilidade, voltando a se sentar. – Zeus, prossiga, por favor.
- Obrigado Hestia – Colocou, não completamente convencido de que a mais velha havia feito aquilo para ajudá-lo propriamente. – Como eu ia dizendo, meu plano é simples. Poseidon - O mencionado, que voltava a se aproximar da fogueira devido à noite fria que fazia, resmungando, encarou o mais novo – Tu te responsabilizará de chamar a atenção de Kronos.
- Essa é uma péssima ideia! – Hades voltou a interromper.
- Essa é uma ótima ideia! – O aludido levantou animado, mudando completamente de postura – Eu irei jogar uma enorme onda na cabeça dele, dessa forma! – E correu para a ponta da precipitação que estavam, lançando-se do abismo, Hades correu para tentar pegá-lo pela perna, mas não foi rápido o bastante.
Atrás, os outros quatro também se aproximaram do fim do penhasco, vendo que o irmão do meio havia caído no mar, para logo erguer-se sobre as águas, trêmulo, enquanto tentava formar algumas ondas de tamanho não tão expressivo.
- Essa é uma péssima ideia – Reforçou o mais velho, apontando para o outro, justo no momento que caía de uma onda e batia contra umas rochas – Nosso irmão ainda está aprendendo a manipular o mar com a energia de Caos, mandá-lo como isca é quase condená-lo a morte!
- Estás exagerando Hades – Ironizou a jovem ruiva, como os demais, inclinada sobre o penhasco, vendo Poseidon se reerguer e se jogar no oceano novamente – Nós somos imortais, veja só para ele, Poseidon seria uma ótima isca.
- Sim, Demeter, mas ainda sentimos dor, podemos ser esquartejados, ou pior, engolidos de novo! – Insistiu exasperado.
- Desde que conseguiu usar a energia do Caos no mar, Poseidon está imparável – Juntou-se Héstia com semblante preocupado – Nossa mãe nos disse que pretende dá-lo aos Telquines quando a guerra acabar, porque ele é muito difícil de controlar.
- Não vejo como lançá-lo a daemons seria bom para sua criação – Resmungou o mais velho novamente, sem desviar o olhar do menor.
- Tens muitas opiniões conflitivas, não crês, Hades? – Zeus então parou ao seu lado, abraçando-o pelo ombro, de forma intrusiva e dura.
- Apenas creio que como o mais velho, cabe a mim velar pela segurança dos meus irmãos, não crês, Zeus? – Rebateu, franzindo o olhar.
- É justamente por esse seu “instinto protetor” que a seguinte parte do plano te incube a ti – Seguiu o menor, com olhar aguçado – Usarás o elmo invisível que os ciclopes e os hecatomquiros fizeram para ti e roubarás as armas de Kronos, para que então eu o ataque.
- Em outras palavras, quer que eu e Poseidon façamos o trabalho difícil e tu finalizas? – Questionou, tentando afastar-se do agarre do outro, não obtendo sucesso, pois sua força física ainda era inferior a dele. – Não está tentando se livrar de nós dois no processo, está?
- Claro que não! – Colocou ultrajado – Como podes pensar isso de mim? Apenas estou empregando a habilidade de vós em aquilo que melhor sabem fazer, veja! – Apontou novamente para Poseidon, que dessa vez havia criado uma verdadeira tsunami, que quebrou contra o rochedo da montanha, fazendo todo o chão tremer – Vês? Quanta força e poder destrutivo nosso irmão tem? Ele não terá problemas sendo uma isca. Quanto a ti, és inteligente Hades, astuto, desconfiado, junto com seu elmo, é um ótimo perfil para conseguir surrupiar as armas de nosso pai. De outra forma, pouco útil nos és nessa longa guerra, pois até agora sequer conseguiste usar o poder do Caos para manipular algo usável para a batalha, como eu fiz com os raios, Poseidon com a água, e Héstia com o fogo. Tampouco sabes mudar de forma para enganar Kronos usando sua esperteza. Ainda bem que eu libertei os ciclopes e eles fizeram o elmo para ti, não crês? Que bom que eu me preocupo contigo, e com meus irmãos de forma muito mais útil do que apenas com palavras – E com o fim de seus dizeres, soltou Hades, dando um tapa ‘amigável’ em suas costas, quase fazendo-o cair ladeira abaixo. – Algum questionamento?
-...Não... – Foi tudo que obteve como resposta do mais velho, que desviou o olhar para o chão, massageando a área que foi atingida.
- Excelente! – Declarou o mais novo com um enorme sorriso, que o fazia parecer ainda mais radiante e belo – E vós meninas? Precisamos que orientem os ciclopes e hecatomquiros a atacar quando eu der o sinal.
- Faremos isso, Zeus – Colocou Hera, cruzando seus braços – Mas não espere que eu vá para a frente da batalha
- Obrigado Hera, eu jamais cobraria isso de ti – O deus então deu uma piscadela para sua irmã, que apenas franziu a expressão – E tu Démeter, Hestia?
-...Eu não entendo porque não posso ir na frente junto com todos – A ruiva reclamou cruzando os braços em similitude a sua irmã mais nova – Estou quase conseguindo usar a energia do Caos! Tenho certeza!
- É mais seguro se deixarmos eles atacarem primeiro irmã – Héstia falou em tom conciliador, para então lançar um olhar triste a Hades, que mantinha seu semblante baixo, então voltou-se ao mais jovem – Tudo bem Zeus, faremos isso então.
- Excelente! Começaremos tudo quando Helio recolher sua carruagem! Eu avisarei nossa mãe! - Declarou contente.
Seu irmão mais velho, porém, nem um pouco entusiasmado, se limitou a dar as costas para o ser, indo até uma parte menos íngreme do penhasco e descendo por ela até onde estava seu irmão do meio, mesmo assim, chegou a escutar suas demais palavras
– ...Só espero que Hades não acabe fugindo como um covarde, usando o elmo.
Não virou para trás ou aceitou a provocação, se limitando a deslizar pelo precipício, até se encontrar numa praia coberta de pedras, vendo-as com ligeira preocupação.
- Poseidon, tenha cuidado ou- Sua frase foi cortada pela metade quando uma enorme onda veio em sua direção e sem ter para onde correr na íngreme praia em que estava, a mesma quebrou em cheio em sua cabeça.
Quando o som ensurdecedor da água abandonou seus ouvidos, o seguinte que pôde escutar, além de sua tosse errática, era a voz aflita de seu irmão mais novo, se aproximando.
- Tu estás bem Hades?! – Questionou o jovem de cabelos azuis, sentado sobre o peito do mais velho.
-...Algumas perfurações nas costas e o orgulho destruído, nada demais – Disse deitado sobre os pedregulhos enquanto ouvia a risada de Zeus e provavelmente de Hera e Démeter – Poderia, encarecidamente, sair de cima de mim?
- Ah, certo – E assim o menor ergueu-se, oferecendo a mão para o outro levantar.
- Vós estais bem...? – Hestia tentava descer de forma atrapalhada pela mesma ladeira que Hades instantes antes, porém muito mais lentamente, quando chegou perto e viu a roupa levemente rasgada e suja de sangue do deus, olhou de forma repreensiva para o jovem causador daquele incidente – Poseidon! Tens que ter cuidado! De nada vales teres um poder tão grande e não saber usá-lo.
- Foi Hades que apareceu aqui de repente! – Escusou-se apontando para o mencionado.
- Tens que ser mais responsável, sei que és jovem, mas se agir de forma impulsiva durante a guerra...
- Eu não tenho porque receber qualquer ordem de ti! – Exclamou irritado, estava a ponto de dar as costas para ambos, quando Hades o tomou pelo braço direito. – Já me basta nossa mãe e Zeus!
- Poseidon, acalme-se, Héstia só está preocupada. Eu desci pela mesma razão. – O garoto o observou com rosto franzido – Eu treino contigo mais tarde, se levar mais devagar isso de lidar com o mar de Oceano, está bem?
-...- O menino não respondeu a princípio, ainda de cenho franzido, mas logo acrescentou - ...Como eu vou chamar a atenção dele com uma onda calma?
- Começar com passos pequenos, te ajudará a ter mais controle, e eventualmente ser mais forte e mortal – Colocou Héstia, embora sua expressão acusasse que essa ideia não lhe agradava nem um pouco.
Frente a isso, o menor bufou.
– Tudo bem, eu vou tentar. – E retornou para o mar uma vez mais, realmente focando-se em ondas menores.
- Ele realmente te escuta, mais do que a mim e nossa mãe – Disse Héstia impressionada, observando as marolas criadas pelo deus.
- Às vezes. Ainda assim é melhor nos afastarmos – Os dois então foram para uma rocha mais acima da íngreme encosta e sentaram-se ali, observando os movimentos da outra divindade. – Crescemos juntos em um espaço tão pequeno como o estomago de nosso pai, além disso, eu era o único rapaz como ele, creio que deve ser por isso.
Sem mais, apenas seguiu olhando cabisbaixo para o horizonte.
- As palavras de Zeus tanto te afligem...? - Perguntou ela, usando sua energia para criar uma fogueira entre eles,
Quanto a isso, o mencionado suspirou longamente, observando o trepidar do fogo.
-...Eu odeio admitir que nosso irmão tem razão, essa nossa guerra é longa, e mesmo sendo o irmão mais velho, até mesmo Poseidon, apesar de seu jeito impulsivo, conseguiu manipular a energia do Caos de forma “útil”, como Zeus adora ressaltar, antes de mim. – Entre suas mãos então criou uma pequena esfera de energia arroxeada, que se assemelhava a uma bolha por dentro, que refletia as chamas que Héstia havia criado – Eu realmente não tenho o direito de questionar as decisões dele.
- Eu tenho que te lembrar que Zeus de igual modo, ainda não dominou essa energia muito bem? – Pontuou a deusa com um sorriso ladeado – Afinal, ele só controla os raios a partir do raio mestre que os ciclopes criaram.
- Mas ele muda de forma com excelência, isso nos dá muita vantagem estratégica durante a batalha. – Rebateu – Além de ter instinto de liderança, e claro, ter nos libertado. Se eu ao menos fosse forte o bastante para abrir a barriga de nosso pai por dentro, não teríamos que ter esperado tanto pela liberdade, ou lidar com o ego do nosso “irmãozinho”.
- Eu não consigo mudar de forma tampouco. – Seguiu ela. – E tu sabes bem que escapar por dentro era impossível, tentamos milhares de vezes. Nosso pai concentrou toda a sua energia no estomago para garantir isso. Zeus só conseguiu por ajuda de nossa mãe, e ainda não foi algo feito em um dia. Não se cobre tanto, por favor, nem deixe Zeus e as palavras dele esmagarem-te. Quanto a sua esfera, eu não a considero inútil, ela é muito bonita se quer saber minha opinião – Insistiu.
Quanto a isso, Hades sorriu minimamente.
- Eu nunca te mostrei o que ela faz – Dito isso, seus olhos brilharam em amarelo vivo, e em compasso, dentro do círculo começou a crescer uma estrutura triangular que Héstia notou, com espanto, que era uma versão pequena da montanha em que estavam – Eu consigo moldar tudo o que quiser e conheço aqui dentro, sempre e quando esteja rodeado pela minha energia. Posso fazer em escala maior, mas não serve de muito, pois devido a força que o rodeia essa manifestação que faço, é chamativa e claramente falsa. Como uma ilusão sólida, mas ainda uma ilusão – E então, toda a estrutura começou a rachar, até se desfazer em meio as suas mãos com um novo suspiro – Mas eu não consigo manter por longos períodos, sinto que falta alguma coisa...De qualquer forma, não vejo que utilidade isso teria...
- Tu precisas confiar mais em tua própria habilidade Hades – Comentou sua irmã em tom de consolo, levando a mão ao seu ombro. – Todos nós ainda temos dificuldade de manejar essa energia que surgiu quando o deus maior, Caos, criou o universo, tudo nesse mundo livre é muito novo para nós, mas acima de tudo isso, és tu nosso melhor estrategista. E tenho certeza que mesmo Zeus inveja tua habilidade com a espada.
Quanto a isso, o mais jovem sorriu um pouco mais convencido.
Porém, ambos foram interrompidos por um grito partindo de Poseidon que fez os dois se levantarem, quase ao mesmo tempo.
- O que aconteceu? – Hades foi o primeiro a voltar para a encosta, encontrando seu irmão ajoelhado entre as pedras, em suas mãos havia o que parecia ser um peixe, pelo menos com o dobro do tamanho do deus, possuía o corpo gordo, quatro barbatanas em suas laterais e uma em cima, além de um longo focinho cheio de dentes. O pobre ser não se mexia mais. – Isso é um...Delfim?
- Não, é um Peixe Lagarto – Rebateu o mais novo – Eu não o vi nadando e acabei jogando ele contra as pedras.
- Pobrezinho...- Héstia se aproximou.
- Deixa eu dar uma olhada – Dito isso, o mais velho agachou-se ao lado da criatura, percorrendo com sua mão fina o corpo alargado, parando no meio do mesmo, para tanto, seus olhos brilharam em amarelo vivo e todo o peixe foi recoberto com a sua energia.
Assim, frente aos olhos de todos, o ser tornou a se mexer e remexer, exigindo água.
- Devolva ele para o mar, ou vai morrer de novo. – Orientou, mas vendo que seu irmão não fazia nada, tomou o pesado espécime dele e o devolveu às águas. – Por coisas assim eu disse para que tu tiv-
- COMO TU FIZESTE ISSO?! – O grito foi tamanho que chamou a atenção dos demais irmãos mais acima da montanha, e quase fez Hades perder o equilíbrio e cair novamente.
- Tu não disseste que sabia retroceder a sentença de Thanatos. – Seguiu Héstia, igualmente impressionada.
- Eu fiz a mesma coisa na verdade – Explicou-se com simpleza, curvando-se para limpar as mãos nas águas – O envolvi com minha energia e modifiquei seu interior. Funciona melhor quando não tenho que lidar com o Éter envolta – Como ambos ainda o observavam estranhados, seguiu – Sabem, o ar divino, a luz da vida. Nosso primo....Oposto ao nosso avô?
- Quem é Éter não é a questão – Comentou Héstia, olhando para cima, vendo que seus três irmãos o observavam atentamente depois do grito, Zeus e Hera tinham a expressão franzida, a segunda ainda com a boca aberta, com a mão a tampando, enquanto Démeter mostrava-se tão impressionada como os demais na praia – E sim a natureza da energia do Caos em ti.
- O que quer dizer? – Perguntou, notando toda a atenção de seus irmãos em si.
- Lembra da história que nossa mãe nos contou, quando finalmente nos vimos livres? – Disse ela, tomando o menor pela mão e o conduzindo para longe dali, com a outra levou também Poseidon, que dessa vez não questionou deixando-se conduzir, caminharam por um estreito caminho de pedra que começava a se afastar do oceano e dava origem a um pequeno bosque. – Sobre como Caos criou o mundo e os primeiros deuses.
- Claro, Caos era o grande vazio, o estado primário do Cosmos. Para que o mundo e a vida existisse, ele se partiu em vários pedaços, e de seus pedaços, nasceram os quatro grandes primordiais. Nix, Érebo, Gaia e Tártaro. – Recitou, como se soubesse essa história de cor, sem deixar de observar as árvores ao seu redor com certa fascinação – O Olimpo é verdadeiramente cheio de vida! Não me impressiona Zeus ter escolhido este lugar como nossa guarida.
-...Eu prefiro o mar – Resmungou Poseidon, chutando algumas pedras no chão, finalmente se desvencilhando de Héstia. - Aqui é muito verde e parado.
- Nossa avó Gaia gerou sozinha Uranos, e seu filho mais novo foi nosso pai Kronos. Porém, há algo mais que nossa mãe me contou, quando eu comecei a manipular minha energia do caos. Que são sobre as naturezas. A princípio, tudo era vazio e escuro, pois com exceção de nossa avó, os três grandes eram deuses que representam o obscuro. Foi graças a Gaia, que gerou Urano, nosso Céu, Ponto, nosso mar, e os Óreas, que criaram nossas montanhas, que outras naturezas passaram a existir, como a minha e a de Poseidon, que se misturam e se confundem com a existência do mar e da vida. E por nós dois termos energias semelhantes, elas se anulam – Dito isso estralou os dedos e criou uma pequena fogueira aos pés do irmão mais novo de ambos, e antes que Hades pudesse avisá-lo para ter cuidado e não pisar nela, o deus distraído olhando as estrelas, simplesmente andou pelas chamas sem sequer notar o que tinha em seu caminho.
E nada aparentemente lhe aconteceu, fazendo Hades erguer as sobrancelhas.
- Por outro lado, nossa mãe me explicou que o mesmo não acontece com energias que são opostas, como é o caso de uma energia que provem da vida de nossa avó Terra, e uma que possuí a mesma natureza que os outros três grandes, Nix, Érebo e Tártaro. – Tão concentrado estava na explicação da irmã, que tampouco pôde escapar da mesma armadilha, soltando uma exclamação de dor aos pisar em chamas sem calor, a igual que Poseidon, mas para si elas sim causaram ferimentos.
- Precisava fazer isso? – Questionou com a expressão franzida, erguendo o pé e massageando-o – Como espera que eu roube sorrateiramente as armas de nosso pai sem um pé?
- Desculpe – Escusou-se ela com expressão inocente – Eu só queria te provar meu ponto. Tu deves ter herdado a mesma natureza dos irmãos de nossa avó. Me refiro a natureza soturna de Nix, Érebo e Tártaro.
O mais novo a observou com completa descrença.
- Não crês que estás exagerando? Ainda mais ao me comparar com a grande Nix, a domadora dos Deuses e dos homens! – Exclamou exasperado.
- Mas faz todo o sentido, a natureza soturna é incontrolável e muito expressiva em relação as demais, não por menos tens tanta dificuldade em manejá-la. Tu mesmo disseste que sentia que faltava alguma coisa. Não me admira, manipular uma energia assim em um lugar cercado de energias antagonistas deve ser no mínimo sufocante.
O mencionado não respondeu a princípio, perdido em seus próprios pensamentos quanto ao que isso significava, desviando seu olhar para o céu noturno.
- Isso significa que Hades é um deus da escuridão? – Perguntou Poseidon, surpreendendo seus irmãos pelo fato de que estava prestando atenção, pois havia sentado no chão e estava absorvendo água da terra e criando um pequeno lago ao seu redor para diversificar o cenário à sua volta.
- Eu acredito que sim, mas teríamos que consultar um deles para ter certeza – Seguiu Héstia com um sorriso – Eu nunca vi um antes, já que se ocultam sob o véu da Rainha dos Mortos Nix e não costumam se envolver com os demais. Talvez se chamássemos por Nix, ela poderia nos dizer com certeza.
- Héstia, não estás falando de qualquer deusa, estás a falar de Nix! – Recriminou o mais novo com cenho franzido e exasperado – A mais poderosa entre os deuses, sendo da mesma família ou não, não temos hierarquia o suficiente para estar a sua presença. Se a ofendermos, ela pode até mesmo nos tornar mortais, tu sabes que ela é a única capaz disso.
- Moros então? – Insistiu simpática. – Talvez um dos filhos dela seja mais acessível.
- Se tu saíres ressuscitando peixes, eventualmente, Thanatos pode aparecer. Ou será que ele não cuida de peixes? – Perguntou Poseidon mais para si mesmo que para os demais – Trazer de volta a vida é um poder bem impressionante – O comentário do mais jovem fez seu irmão sorrir levemente – Mas é realmente inútil quando a massiva maioria dos seres a sua volta são imortais.
- Poseidon! – Reclamou sua irmã, ao tempo que Hades voltava a suspirar longamente, encarando seu reflexo no lago de água salgada que era cada vez maior. Possuía cabelos negros volumosos, que chegavam pouco mais de um palmo de seus ombros, sua pele era branca, porém sem ser pálida, e seus olhos eram de um profundo safira que realçavam com a água. – Ele apenas precisa usá-lo da forma certa, apenas isso. Se tu não queres perguntar a Nix, podemos tentar com Astéria – Seguiu a jovem, enquanto Poseidon saía do lago que havia articulado, satisfeito com a sua criação.
- A titã das estrelas? – Perguntou interessado o de cabelos azuis – Dizem que ela é muito bonita!
- Ela permeia o manto de Nix, pode ver o futuro, e também é uma deusa ligada ao obscuro. – Listou a jovem – Talvez ela possa te ajudar.
O aludido não respondeu, ainda observando a estrutura do lago, para então voltar o olhar para o céu.
- As estrelas são, de fato, uma das coisas mais formidáveis que a liberdade nos ofereceu – Mencionou sem deixar de vê-las – Embora eu não sei qual delas é a mais bela. As que estão no véu de Nix ou as que brilham na Terra.
- Brilham na Terra? – Repetiu confusa Héstia, para então seguir o olhar dele e ver que ele se referia ao reflexo das estrelas no lago que seu irmão havia criado.
- Quando eu vi o céu pela primeira vez, as estrelas, e a água empossada sobre a terra, eu achei que haviam dois céus, e o dobro de estrelas. – Fechou os olhos, respirando fundo novamente – Acreditar que existiam estrelas celestes e estrelas terrestres, só escancara o nível de ignorância que eu tinha sobre o mundo fora da prisão em que nasci. E mesmo agora há muita ignorância em meu ser, sobre mim mesmo, sobre outros deuses ou o mundo que nos cerca.
- Eu acredito que nós nunca deixamos de aprender alguma coisa nova – Tanto Hades quanto Héstia se voltaram assombrados para Poseidon que também olhava para o reflexo das estrelas – Eu não nasci sabendo a natureza da minha energia do Caos, eu tive que descobrir. É fácil se apoiar em uma arma que dá a resposta para ti como Zeus faz – Bufou – Aquele raio mestre, duvido que ele fosse metade do que ele acha que é, se não tivesse eles. – Parou, vendo a expressão surpresa dos dois – Qual o problema? Por que estão me olhando assim?
- Nada, só que o que tu disseste é muito bonito – Comentou a deusa, tentando acariciar os cabelos do menor, que logo recuou desgostoso. – Com exceção da parte que ofende nosso irmão.
- Eu não sou idiota, sabiam? Eu só não me preocupo tanto com tudo como vós fazeis. Eu chamo de espírito aventureiro.
- Eu chamo de imprudência – Resmungou Hades em voz baixa, de forma que o outro não escutasse, e então seguiu mais alto – Sinceramente, mesmo sendo tolice, eu gostaria de saber as respostas sozinho. Seria ideal que eu estivesse com meus plenos poderes antes da nova batalha que se desenrolará com a carruagem de Helios, porém, mesmo com ajuda externa, eu não vejo como possa fazer isso rápido o suficiente.
Para reforçar suas palavras, criou novamente sua esfera de energia com uma réplica do monte Olimpo dentro, e em coisa de poucos segundos ela se desfez, fazendo seu emanador soltar um novo suspiro.
- Tu disseste que o Éter o atrapalhava, sim, eu ouvi quando disseste isso – Resmungou Poseidon pela sobrancelha franzida do irmão com suas palavras - Conseguiu reviver aquele peixe, porque agia por dentro, como os deuses soturnos agem na escuridão. Estamos de noite, mas se isso não é escuro o suficiente, talvez eu possa ajudar – Então esticou sua mão para o lago, seus olhos brilhando com a emanação, aumentando rapidamente seu comprimento e profundidade, obrigando os outros dois se afastarem para dar espaço a expansão – Por que não tenta embaixo d’água? Mesmo o fundo de um lago pode ser bem sombrio.
- O deus Tártaro se tornou uma caverna vulcânica no mais profundo da Terra, foi o que Zeus disse quando conseguiu libertar os Ciclopes e os Hecatomquiros de dentro dele. – Analisou a deusa – É uma boa ideia, pode funcionar.
Com um suspiro vencido, o deus cedeu, agachando-se na beira do agora grande lago, que poderia facilmente submergir os três em sua área, mergulhou assim suas mãos na gélida superfície e concentrou toda a sua energia no que estava fazendo.
Todo seu corpo começou a brilhar como uma energia vermelha arroxeada, que permeava toda a profundidade da lagoa, mesmo os cabelos da divindade começaram a tremular, como se levados pelo vento. Então, repentinamente, tudo cessou, e o deus se reergueu.
- Certo! Eu vou emergir quando o que tu fizeste sumir – Exclamou animado o de cabelos azuis, mergulhando dentro do lago para explorar suas mudanças.
Os instantes passaram, e seguiram passando, de tal modo que os irmãos chegaram a sentar-se na beira para esperarem.
Hades estava a ponto de se oferecer para mergulhar, inseguro com a demora, quando Poseidon retornou.
- Impressionante! É uma montanha enorme a que tu criaste, parece mesmo o monte Olimpo! E está intacta ainda! – Anunciou entusiasmado. – Parece bem estável para mim, eu tentei entrar, mas não consegui de forma alguma – Bufou frustrado.
Somente quando a carruagem de Helio cruzou os céus, anunciando o dia da última batalha, que a estrutura começou a rachar, incapaz de resistir a luz do Sol.
A essa altura, Poseidon havia caído dormido sobre o colo de sua irmã, cansado de esperar, e Hades e Héstia eram os únicos a conseguirem testemunhar a queda do pequeno monte submerso.
- Viste? – Comentou a deusa, cobrindo o rosto dos primeiros raios da manhã - Ainda tens alguma dúvida que és um deus soturno...? – Perguntou ela com um sorriso carinhoso, deitando sobre seu ombro, contudo, logo se afastou ao ver o rosto do mais novo franzido – O que foi...?
-...E se...- Começou a dizer Hades, vendo como tudo ruía – Eu fizer algo assim, ao redor do Tártaro? – Então voltou-se a sua irmã que o observava sem entender – Enquanto estivermos lutando entre imortais, essa guerra pode se estender ininterruptamente, pela eternidade, porém, se conseguirmos encurralar e prender nosso pai em algum lugar, como ele fez com os ciclopes e com o Hecatomquiros, sem a possibilidade de escape, um lugar impossível de ser acessado, toda essa história pode enfim acabar.
-...Hades – Disse ela em tom ameno, afastando-se para que este pudesse se erguer – Não és tu agora que está dando um passo grande demais?
- Eu preciso tentar – Se limitou a dizer, dando as costas para o lago – Sinceramente, o mais difícil será fazer Zeus me escutar. Porém, eu tenho claro para mim que prender Kronos e os titãs ao seu lado é a melhor forma de acabar com tudo isso, de uma vez por todas!
-.-.-.-.-.-.-.-
Abriu os olhos lentamente, sem saber com precisão aonde estava. Uma sensação de sonolência tomando todo o seu ser, tentando convencê-lo de não se erguer do leito macio em que estava.
Tal desejo era reforçado pelo suave cheiro que invadia suas narinas, adocicado como o das flores e refrescante como uma brisa de verão.
Olhou para os lados desorientado, estava em um quarto grande e luxuoso, numa preciosa cama de dossel, ao seu lado, sentado no final da cama, estava alguém que o observava com um grande sorriso no rosto.
- Olá romãzinho - Chamou em tom quase pegajoso, jogando-se sobre si, e o abraçando por cima dos lençóis - Tu parecias até mesmo Hypnos, de tão profundo que dormiste.
-...Eu...Dormi...? - Perguntou ainda sonolento, com um grande bocejo, ainda assim, abraçando o corpo sobre si – Por que estás aqui Perséfone? Deveria vir do Olimpo apenas no seguinte Nix, a menos que....- E então tornou a fechar seus olhos, com um grunhido desgostoso - Tu não fizeste isso de novo....Hypnos!
Ao lado do leito surgiu imediatamente um homem de longos cabelos dourados, rosto escultural e jovial, usava uma toga branca que acabava antes dos joelhos, e suas sandálias, a igual que dezenas de braceletes e um colar de estrela, eram feitos de ouro puro, trazia consigo uma expressão levemente culpada.
- Eu lamento senhor, mas sua esposa é muito convincente. - Desculpou-se com uma reverência muito ligeira. - Ademais de, como teu conselheiro, é meu dever e o de meu irmão velar pelo senhor dos mortos e do sono eterno.
- E nada como um sono revigorante para isso! - Completou a divindade com orgulho, ainda deitada sobre o maior - E não esse sono de Ladón vigilante que tens. Eu até pedi que Morpheu te permitisse sonhar. - Ela então virou o rosto, sua vasta cabeleira ruiva virando consigo, uma parte se enroscando na boca do deus, que se engasgou com uns quantos fios antes de poder afastá-los - Deve ser a melhor semana de sono que tiveste em séculos.
-...Um segundo... - Seus olhos então se abriam em choque, enquanto Hypnos sorrateiramente usava esse momento para desaparecer do quarto, deixando o casal à sós. - Eu dormi....Por....Uma semana?! - Disse em pausa e com descrença.
Antes de responder, ela sorriu com inocência quase infantil, tornando a se inclinar e dedicando-lhe um grande e prolongado beijo, que o fez ceder a princípio, fechando seus olhos e se deixando levar, mas assim que encontrou uma brecha a afastou, encarando-a em seus intensos olhos azuis.
- Perséfone, sabes que te amo, mas não me farás mudar ou esquecer esse assunto. - Colocou em tom firme - És a imperatriz do submundo, sabes bem a importância da manutenção desse reino, mesmo que seja para o meu bem, não vale o preço deixá-lo a esmo.
- Ele não ficou a esmo, eu cuidei de absolutamente tudo! - Colocou com igual firmeza, levantando-se e voltando a se sentar aos pés da cama, permitindo assim que seu marido pudesse se sentar também, os lençóis escorregaram quando o fez, deixando seu dorso descoberto.
- Sozinha? - Não pôde deixar de perguntar, com as sobrancelhas erguidas - Sabes que é verdadeiramente muito trabalho.
- Não me subestime - Colocou ela com um deixe de arrogância - Já levamos anos casados, e eu sempre tomei muita atenção em como tu executavas tudo. Além disso, não estava só, Lune, Aiacos, Hécate e os deuses gêmeos me ajudaram, maaas - Seguiu com fingido desinteresse - Se não crês em mim, Minos está do lado de fora esperando que acordes para passar-te os relatórios. - Então voltou-se para a porta, ao tempo que Hades soltava um longo bocejo involuntário. - Posso mandá-lo entrar?
- Não é que não creia em ti, é só...- E um novo longo e expressivo destelho de sono escapou de sua garganta - Aaargh, os filhos de Nix não deixam de me surpreender, mesmo eu tendo conseguido construir o submundo por volta e dentro de seu irmão Tártaro, e tenha tomado para mim a energia e o posto de seu outro irmão Érebo*, um de seus filhos ainda consegue me adormecer com tanta "facilidade". - Colocou, lançando um olhar desconfiado a sua esposa, que novamente se limitou a sorrir com inocência - Por que eu acho que Hypnos não é o único envolvido nesse seu plano?
- Tu és desconfiado demais - Colocou com sutileza, seguindo com doçura - Ele pode entrar? Quero muito que tu escutes o que ele tem a dizer.
- E sim, ele pode entrar - Disse virando suas pernas para fora do leito, se esticando para levantar - Havia pensado em tomar um banho quente para me livrar dessa sonolência, mas é melhor falar com ele antes, isso só vai irritá-lo ainda mais, só posso imaginar seu humor frente a minha ausência. - Suspirou.
- Pode entrar, Minos - Colocou em tom forte a deusa, e sem mais esperar, a grande porta negra do recinto se abriu, revelando o homem de expressão severa, de tez jovem e longos cabelos prateados.
- Seja bem vindo de volta ao mundo dos despertos, meu senhor - Colocou com uma suave reverência entrando no recinto, Lune logo aos seus encalces, como era costume ambos vestiam togas negras até o chão. O espectro também cumprimentou seus senhores com respeito.
- Lamento minha ausência repentina - Anunciou colocando-se de pé, não se importando com sua nudez. - Como foi...- Parou buscando as palavras certas, vendo a expressão satisfeita de sua esposa - A gerencia de nossa imperatriz, em minha ausência?
- Razoável. - O juiz decretou sem preâmbulos, vendo entre seus pergaminhos - A imperatriz acompanhou a sentença de cada herói e negou satisfatoriamente os frequentes pedidos das divindades de ressuscitar algum amante mortal. Foi categórica mesmo com Apolo, que vem nos incomodando desde que seu filho bastardo com dons de cura, ex servo de Athena, nomeado como Asclépio, foi pulverizado por Zeus.
- Meu pai pode chegar a ser um imbecil - A deusa colocou, cruzando os braços - Meu romã foi muito claro quando disse ao meu pai que apenas alertasse o pobre curandeiro de não mais usar seus dons para ressuscitar mortais, e ao invés de orientá-lo, Zeus o matou. Apolo agora está fazendo o impossível para trazer seu filho de volta, mas eu não vou facilitar, afinal, o erro não foi nosso! - Impôs com firmeza, fazendo Hades erguer as sobrancelhas impressionado.
- As almas que já pagaram por suas penas foram corretamente enviadas para as Moiras para suas reencarnações, então até que algo de relevância se apresente, não há pendencias que mereçam seu conhecimento. - Findou, dando seus pergaminhos a Lune, que os tomou, lançando um sorriso orgulhoso a sua senhora que retribuiu. - Contudo, como mortos chegam todos os nixes, tornarei ao meu posto. Necessitas de mim para algo?
Hades não respondeu a princípio, encarando a expressão indiferente do seu juiz principal, como se tentasse processar o que ele havia dito.
- ...Não... - Disse depois de um tempo - Podes ir...Se não precisam de mim por hora, então...- Hesitou - Creio que passarei esse nix com Perséfone.
- Faça como desejar - Se limitou a dizer, fazendo uma nova reverência e saindo do salão, fechando a porta ao passar, pois Lune havia se mantido dentro do quarto.
Só quando o juiz, provavelmente, já havia retornado ao salão do trono, que Perséfone soltou um gritinho de comemoração, com direito a um pulo de vitória.
- Ouviste isso?! Ele disse "Razoável"! - Declarou ela em orgulhoso tom vitorioso.
- Vindo de Minos, isso é verdadeiramente muito - Seguiu Hades, voltando a se sentar na cama, tentando processar a ideia de que aparentemente teria um dia de descanso. - Mesmo com os trabalhos excepcionais de seus irmãos, ele só os considera medíocres. Posso contar com as cabeças de Cérbero quantas vezes algo foi considerado bom por ele.
- Eu disse - Concordou ela com orgulho, jogando seu cabelo para trás.
- Meus parabéns, minha senhora - Desejou Lune de modo genuíno. - Fizeste um trabalho excepcional.
- Agora só me resta convencer Radamanthys - Seguiu decidida. - Ele ainda me olha com inferioridade, toda a vez que me vê.
- É o Radamanthys, não se preocupe com isso, este é o jeito dele ser. - Colocou o imperador como se isso fosse óbvio, soltando outro novo bocejo - Nem todos os filhos de Zeus tem carisma. Lune, poderia preparar meu banho?
- Sim, meu senhor - Declarou com uma reverência, saindo então do quarto.
- E as ninfas? - Questionou a deusa, vendo o servo se afastar.
Quanto a isso, Hades sorriu sugestivamente para sua esposa.
- Eu as dispensei, agora só trabalham para os espectros, e os deuses gêmeos - Se limitou a explicar - Não queria que seu ciúmes transformasse mais alguma em uma planta.
- Eu só fiz isso duas vezes, e elas tiveram a completa culpa! - Defendeu-se franzindo o olhar ameaçante, costume herdado de sua mãe. – E Minta não era só sua serva, era sua concubina!
- Sim, mas antes de eu me casar contigo – Ressaltou- Eu não tive mais nada com ela depois disso.
- Ela não achava isso, adooorava se vangloriar do contrário, aliás, aquela Equidna! – Colocou claramente irritada, fazendo o chão tremer ligeiramente. – Por isso eu a transformei em menta e pisei em cima!
- Flor, sem terremotos aqui, por favor, essa parte do submundo é física, lembra? – Sugestionou bagunçando seus cabelos – Sem mais ninfas trabalhando diretamente para mim, sem mais mulheres amaldiçoadas plantadas nos Elísios. Havíamos combinado de deixar essa história de lado quando Leuce pereceu e Adonis cresceu.
A jovem deusa franziu o rosto, inflando ligeiramente as bochechas.
- Certo, tens razão. – Colocou a contragosto – Não vamos deixar isso estragar nosso nix.
Com um sorriso Hades tornou a se erguer, foi até sua esposa e a beijou novamente.
- Obrigado, por tudo – Disse suavemente ainda sobre seus lábios – Minha imperatriz.
Assim se separou, espreguiçando-se, deixando-a com um enamorado sorrisinho bobo no rosto.
- Vás a me esperar no salão do trono? – Perguntou, começando a caminhar em direção a uma pequena porta do lado esquerdo do quarto.
Em resposta, ela se agarrou ao seu braço direito.
- Não, eu vou contigo. – Ela disse pegajosamente – Eu também mereço uma folga depois de todo esse trabalho, não acha? Além disso, banhar-se na lagoa Mnemósine é sempre revigorante.
O casal então desceu por uma estreita escada circular, a igual àquela que dava ao templo e aposentos pessoais do deus, contudo, essa era menor e feita de mármore negro, ao contrário da outra que era moldada apenas por pedras.
Ao fim dela, encontrava-se um grande lago de água pura e transparente. Suas águas borbulhavam, indicando sua alta temperatura. Ao seu redor, haviam dezenas de pilastras, também em mármore negro, e escadas que levavam à sua estrutura e serviam de apoio para lavar-se. Do lado oposto a por onde desciam, estava parado Lune, frente a uma outra entrada daquele lugar, segurando as vestes de seus senhores, enquanto ao seus pés haviam duas ânforas brancas com gravuras de honra à Hera.
- Pode ir agora Lune, tens muito trabalho a fazer, eu cuidarei de tudo – Disse dando uma piscadela – Minos enlouquecerá se quedar-se sem ti por muito tempo.
O mencionado sorriu cúmplice, fazendo uma nova reverência ao tempo que sua senhora soltava do braço de seu marido para tirar sua longa toga negra.
- Minha senhora, deseja que eu oriente Hécate para acompanhar-lhe e servir-lhe em minha ausência? – Questionou sem tornar a se erguer.
- Aaaah não é necessário, eu não quero interromper o momento dela com meu primo Hermes às margens do lago Boibes. Enquanto nós temos seis meses, eles só têm um dia – Quanto a isso, deu uma pequena risadinha – Muito embora ele já está aqui há uma semana.
- Como desejar - Se limitou a dizer, pendurando as roupas em uma arandela apagada e se retirando sem mais.
- ...Que momento...? – Questionou Hades com o cenho franzido, sentando-se nos degraus imersos no lago, ficando com a cintura submersa, enquanto sua esposa buscava uma das ânforas.
- Meu romãzinho, podes chegar a ser deverás cego para assuntos que não dizem respeito ao teu reino – Não pôde deixar de comentar com graça aproximando-se, mergulhando a ânfora nas puras águas, e despejando-a então nas costas e cabelos de seu esposo – Desde a primeira vez que Hermes veio buscar-me e Hécate foi levar-me a entrada do mundo inferior, esses dois se enamoraram um do outro.
-...O Hermes...?! – Questionou descrente – Ele é muito filho de Zeus, para realmente se apaixonar por alguém. – Ironizou – Pobre Hécate.
- Eu tenho sangue de meu pai, a igual que tu, e não somos como ele. – Colocou com firmeza – Tu podes estar apenas julgando Hermes mal.
- Para a minha sorte e meu azar, tu puxaste a tua mãeAii – Exclamou quando levou uma leve ‘anforada’ na cabeça.
- Lava-te sozinho agora – Alegou deixando o objeto ao lado do deus, que se limitou a rir baixinho.
- Mas tens razão, se eu puxei alguém da família, gosto de pensar que foi a Grande Nix – Comentou passando a lavar-se– Pelo menos, entre meus irmãos, eu sou o único soturno, foi uma dor de cabeça saber o que isso significava.
- Tu sempre falas com admiração da deusa que te antecedeu no trono dos mortos – Observou, voltando para se sentar ao lado do mais velho. – Lune me disse que chegaste a conhecê-la e lutar ao seu lado.
- Sim, foi uma enorme honra para mim. – Disse fechando os olhos pensativos, com as mãos apoiadas sobre sua ânfora. – Eu posso te contar a história um dia, se claro, prometer-me que não tentará transformar a deusa da noite em uma Epiphyllum.
Mal terminou suas palavras, teve água quente jogada contra sua cara.
- Mais uma palavra e eu enfio sua cabeça nesse jarro. – Ameaçou, enquanto seu marido afastava os longos cabelos de seu rosto para voltar a enxergar – E a história sobre não tocar mais nesse assunto?!
- Desculpe, eu simplesmente amo te ver nervosa, eu realmente senti falta disso nesses seis meses – Confessou, encarando-a com um sorriso ladeado, que a fez suspirar vencida e deitar a cabeça sobre seus ombros – Apesar de muito agradecido pelo que fizeste, me dói pensar que terei uma semana a menos contigo.
- Foi por uma boa causa – Defendeu-se, sem mover-se de seu lugar. – Estavas demasiado exausto quando retornei, mal te reconheci.
- Era a Guerra de Troia, mesmo não tomando parte da mesma, esse conflito e suas mortes me desgastaram muito. – Respondeu o deus em tom exausto - Ainda não me conformo que Heitor não aceitou minha oferta para assumir uma sobrepeliz, sua nobreza seria um bom balanceamento por aqui. - Suspirou - Mas como ele não aceitou, penso em passar a oferta a Macaão. Tendo sido morto por um dos aliados troianos enquanto ajudava o exército oposto, ele não aceitaria servir ao lado do príncipe de Troia. Minos ficará encantado, gostou do garoto, suas habilidades médicas podem ser úteis quando o próprio Minos e Radamanthys entrem em suas rotineiras disputas. Penso em dar a ele o título da Estrela Celeste do Espírito. – Seguiu sua divagação, sem perceber a expressão cabisbaixa que sua esposa assumira - Mais tarde irei apresentá-lo a ti, isso caso já não o tenha conhecido durante os dias que “estive fora”. Gostaria de tua opinião quanto a estrela que melhor lhe caberia.
Perséfone não respondeu a princípio, fazendo o imperador virar-se para ela, preocupando-se ao ver a aflição refletida em seu semblante.
- O que foi, meu amor? – Perguntou, tomando o queixo dela delicadamente com sua mão esquerda.
- Quando eu te vi, tão desgastado e irritado, por um momento, temi que não fosses tu, e sim Zeus, outra vez, assumindo sua forma para enganar-me e reclamar-me...
- Não penses assim – Recriminou com voz suave, abraçando o rosto dela, ocultando assim a expressão de fúria que esse assunto lhe despertava, focando-se em não fazer o mundo inferior tremer em resposta aos seus sentimentos. – Pensa nos bons filhos que tivestes, filhos estes que desde que recebi o poder de Érebo eu não poderia dar-te. Macária é simplesmente adorável, Melinoe tens teu gênio forte, mas sinceramente Zegreu é o que mais me agrada, embora seu espírito de vingança me assuste um pouco.
- Pelo que eu soube, ele busca conquistar um país do leste agora – Ela disse pensativa - Realmente não te importa que não sejam teus filhos...?
- Eu gosto de pensar que eles são, ou pelo menos, meus sobrinhos mais queridos. - Afagou os cabelos dela – Seu pai não merece a filha que tem. Eu só não me vingo dele por respeito a ti e a Hera, porque quando soube que ele assumiu minha forma e acostou-se contigo, a minha vontade era lançar o Tártaro sobre o Olimpo – Suspirou longamente – Tenho para mim, porém, que um dia Zeus pagará como Kronos e Uranos pagaram no passado.
A energia dela controlava a sombria e assassina de seu marido, detendo assim que uma emanação destrutiva pudesse ocorrer.
- Não vamos falar mais disso tampouco – Ela declarou decidida, abraçando seu marido com mais força – Tem algo que eu estou curiosa para te perguntar.
- O que seria? – Questionou, deixando-se banhar no cosmo dela, conseguindo assim retornar à sua calma característica.
- Que sonho Morpheu te mostrou? – E para a surpresa da jovem, a expressão dele não se amenizou - ...Ele me disse que seria o sonho de uma boa memória.
- ...Aparentemente eu não tenho memórias muito boas então – Se limitou a suspirar. – Eu sonhei com o nix anterior ao que enfrentamos Kronos pela última vez.
E então passou a relatar o dia que descobriu mais sobre suas habilidades e sua natureza.
E para seu completo choque, sua esposa começou a rir, enquanto voltava a lavar o cabelo dele com a ânfora.
- Perdão, eu não entendi qual é a graça – Comentou ele, novamente com o cabelo escorrido sobre sua face.
- Desculpa amor, eu não consigo te imaginar assim, tão inseguro, desprotegido e desorientado, devia ser tão fofo. – Disse abraçando-o pelo pescoço. – Geralmente só se imagina um enfrentamento épico entres vós e Kronos, nunca parei para pensar nos pormenores.
-...Eu já fui chamado de muitas coisas nessa vida, mas “fofo” é a mais surreal delas, sem dúvida – Ponderou em tom baixo, apenas a fazendo rir mais.
- É só que, é estranho, eu não demorei para saber quem eu era e o que deveria fazer como divindade – Seguiu a deusa, sendo sua vez de sentar-se, enquanto seu esposo passava a função de lavar os cabelos dela com a água da fonte.
- Sim, imagino que sim, pois tens a mesma natureza que Deméter, e se tem algo bom que posso falar de minha irmã, é que ela é poderosa e tem domínio completo sobre o cosmo e o Dunamis manipulando a terra e as plantas, não deve ter sido difícil para ela ensinar-te. – Comentou alisando os belos cabelos da imperatriz, que caíam por suas costas como cascatas, tão vermelhos eram que parecia como se sangue escorresse por sua coluna – A terceira geração de deuses, da qual tu fazes parte, já contavam com mais divindades para se espelhar e compreender-se a si mesmos. Por outro lado, quando eu nasci, eramos apenas nós e os titãs. Não havia nenhum deus soturno como eu próximo para que eu entendesse quem eu era e o que me cabia. Hypnos e Thanatos foram os primeiros que conheci, e para esta ocasião, eu já estava acorrentado ao mundo que eu mesmo criei para acabar com a Titanomaquia, e dar um local de descanso para os mortais criados por Prometeu e Zeus.
Um longo, e muito familiar, silêncio melancólico os engoliu, o mesmo que se seguia sempre que o Imperador recordava como havia parado no mundo inferior, sempre transmitia essa tristeza por se sentir traído por seus próprios irmãos. Por mais que o reino dos mortos fosse seu lar, e velasse profundamente por ele.
-...Sabe – Seguiu a deusa, tentando amenizar as lembranças – Creio que é a primeira vez que te escuto falando bem de minha mãe.
- Pudera, ela não me dá razões para tanto, principalmente depois que transformou meu jardineiro* em uma coruja – Resmungou franzindo a expressão.- Por ele te dar um romã para comer.
-...Infelizmente não creio que consiga convencê-la a desfazer isso – Disse um tanto pesarosa.
Para tanto, ambos terminaram seus próprios banhos em um silêncio mais agradável, porém, quando estavam prestes a sair da lagoa divina, a deusa primaveril chamou seu esposo de volta, tomando-o pelo braço, e plantando-lhe um intenso beijo, que ele retribuiu na mesma intensidade, passando seus lábios pelo pescoço dela, ombros, e guiando-a para sentar-se novamente nas escadas submersas, percorreu lhe todo o corpo.
-.-
Algum tempo depois, já trajados formalmente, os dois retornaram ao salão do trono, onde duas figuras se encontravam tocando arpa na parte baixa do salão, sentados sobre pequenos bancos feitos de ouro e prata que melhor se adequavam aquela performasse.
Ao adentrar àquele recinto, por baixo de seu trono simples, Hades fechou os olhos, deixando-se levar pela melodia entoada pelos deuses gêmeos, enquanto uma adolescente cantava uma melancólica melodia.
Quando a peça enfim terminou, o imperador aplaudiu, sendo imediatamente seguido de Perséfone que via a jovem de cabelos róseos espetados e olhos violáceos com orgulho.
- Sua voz parece-me cada vez mais encantadora, Macária – Elogiou o imperador, começando a descer as escadas, enquanto a jovem sorria briosa.
- Muito obrigada... Hãaa...- Ela olhou confusa de sua mãe ao senhor dos mortos, sem saber como chamá-lo –...Meu tio. – Quanto a isso, Perséfone suspirou levemente decepcionada.
- Além de belo, é muito útil – Acrescentou um dos homens sentado ao lado da arpa. Possuía uma fisionomia idêntica ao de seu irmão, contudo, seus cabelos eram prateados, a igual que as joias que usava. – Quando os mortais escutam seu canto, soa-lhes como um torpor agudo e mortal. Uma morte rápida, feliz e revigorante, até mais suave da que eu sou capaz de dar.
- Ooooown~ Essa é minha florzinha mortal! – Exclamou a imperatriz saltando os últimos degraus e agarrando sua filha em um abraço apertado pelo pescoço. – Minha rainhazinha da morte, orgulho da mãe~
-...Em publico não mãe, por favor, está agindo como a vovó – Resmungou Macária tentando se esconder nos cabelos volumosos de sua progenitora.
- Realmente espero que tenha tido um sono revigorante, meu senhor – Comentou Hypnos enquanto a senhora dos mortos seguia a esmagar sua filha como se quisesse sufocá-la, Hades observando a interação com ligeira pena.
- Para um descanso compulsório não foi tão ruim – Confessou voltando-se ao deus – Contudo, quantas vezes tenho que dizer-lhe para não fazer isso?
- O senhor já me disse isso alguma vez...? – Perguntou fingindo desorientação – Me perdoe, devo ter cochilado e não retido a informação.
O senhor das trevas se limitou a revirar os olhos com desculpa tão precária.
- Ele ainda está reclamando disso? – Resmungou Perséfone, dando tempo para sua filha de tentar esganá-la, a qual suspirou aliviada. – Pensei que tu confiasse em teus conselheiros, Hypnos concordou plenamente comigo que um sono revigorante te faria muito bem.
- Ele é o deus do sono. – Respondeu erguendo as sobrancelhas sugestivamente – Muito me impressionaria se ele não pensasse assim.
- Dormir é a solução de todos os problemas, seja a curto ou longo prazo. – Recitou com expressão tranquila.
- Seja como for, meu senhor, eu estou interessado em saber o que nossa senhora planeja para este nix, uma vez que tanto se empenhou em dar-te um descanso para passarem mais tempo juntos – Interveio novamente Thanatos, levantando-se e aproximando-se da mencionada, dando pretexto para que Macária enfim conseguisse escapar de suas garras.
- Meu objetivo agora é impressionar Radamanthys! – Declarou ela com firmeza e convicção – E eu já tenho um plano perfeito para isso.
-...Estou com um péssimo pressentimento – Resmungou Hades baixinho, fazendo Hypnos rir discreta e suavemente.
- ...Eu vou aprender a lutar – Findou cruzando os braços – Então desafiá-lo para uma luta!
Um silêncio se formou após essa declaração quase gritada que ecoou pelo salão. Todos os olhares se voltaram para o imperador, que via sua esposa com descrença, enquanto sua expressão, se possível, ‘palidecia’ mais.
-...Suponho que seja melhor meu senhor se sentar – Disse o deus do sono saindo de seu assento e cedendo ao imperador que aceitou o gesto sem pensar no assunto.
- Por que está me olhando assim romãnzinho?! É uma ótima ideia! – Defendeu-se ela franzindo a expressão com irritabilidade.
-...Definitivamente não – Colocou em tom baixo, quase sussurrado.
- Nunca se sabe quando outros como Périto, Teseu e Héracles virão para cá! Se tu não tivesses aparecido, quem sabe o que aquele imundo do Teseu teria feito!
Hades levou a mão ao rosto, massageando as têmporas, claramente desgostoso em recordar disso.
- ...Perséfone – Colocou mais alto, em um tom que roçava perigo, Hypnos se afastou um pouco, e Thanatos fez o mesmo, dando espaço aos outros deuses, levando Macária com ele.
- E se alguém tentar nos invadir? – Insistiu, sua expressão contraída em afronta - Tu já permites que eu governe ao teu lado, eu quero também poder lutar e defender o reino ao teu lado.
- Eu já disse que não. – Seguiu, seu olhar franzido e perigoso – Já chega desse assunto.
- Ótimo, quem disse que eu preciso da tua aprovação em primeiro lugar? – Bateu o pé no chão com força, plantas começando a brotar das fendas do piso. – TU ME GARANTISTE QUE EU FARIA O QUE QUISESSE SE ACEITASSE SER TUA ESPOSA, DISSE QUE EU SERIA LIVRE!
Hades fechou os olhos antes de responder, uma cosmo energia negra e massiva o rodeando.
-...Meu senhor...- Tentou orientar Hypnos antes que seu senhor agisse, mas não foi escutado.
- Se não estás satisfeita...- Disse com uma voz que mal parecia ser sua – És livre para retornar ao Olimpo.
E deixando-a de boca aberta simplesmente saiu do salão, abrindo e fechando as portas com tamanha violência que ambas se soltaram, só não caindo no chão porque tanto Hypnos como Thanatos as seguraram.
Seus passos retumbavam por onde andava, deixando rastros de rachaduras profundas no solo, o submundo parecia ruir um pouco mais a cada novo passo, ao tempo que sentia seu coração revolteando em sua caixa torácica.
“Acalme-se” – Dizia para si mesmo, agradecendo que não encontrava nenhum de seus servos, provavelmente uma providência de seus conselheiros que já deviam ter orientado os demais - “Caso contrário o cosmo de Érebo em ti destruirá tudo.”
Porém, conseguir isso mostrava-se uma atividade hercúlea enquanto sentia como tudo ao seu redor ruía por sua culpa.
“Não.” -Pensou – “Culpa dela. Desde que Koré apareceu, meus sentimentos saem de controle facilmente, realmente é melhor que ela vá embora.”
Então parou, percebendo que estava próximo aos campos asfódelos, se seguisse, as árvores sofreriam frente a sua instabilidade.
Contudo, pensando por outro lado, desde que viu a liberdade pela primeira vez, quando o mundo se abriu para si e seus irmãos, na época que Zeus os resgatou de Kronos, não se sentia tão feliz.
Não podia deixar de questionar se não poderia desfrutar desse sentimento caloroso e ainda assim, manter seu reino íntegro.
- ...Como eu queria um conselho teu agora, Héstia... – Dizia com imensa melancolia, lembrando de sua irmã mais velha e como ela sempre tentava ajudá-lo e orientá-lo. – Eu pareço uma criança assustada pensando assim.
- Creio que todos temos momentos de fraqueza, meu senhor – Uma voz suave soou às suas costas, fazendo-o sobressaltar-se, estava tão ensimesmado que não notou a aproximação. – A questão, é não deixarmos esses momentos nos derrubar.
- Hécate – Disse virando-se e encarando a deusa com desgosto – Pensei que estavas com Hermes.
Isso fez a mulher de aparência jovem e longos cabelos negros, mesma cor de sua túnica, sorrir com carinho.
- Eu o despistei, quando Thanatos avisou que o senhor não deveria ser incomodado – Respondeu aproximando-se com suavidade – Não é fácil despistar o deus da velocidade, mas eu ainda tenho os meus truques. – Ela então encarou o rosto franzido do imperador, que realmente denotava incomodo por ela estar ali, algo estranho em sua expressão sempre calma e neutra. – Lamento incomodá-lo, mas tenho ordens da minha senhora para olhar pelo senhor e pelo reino quando ela não pode.
Isso o fez erguer as sobrancelhas.
- Eu sou o imperador dos mortos, eu não preciso que ninguém olhe por mim. – Decretou em tom que não deixava rastro para dúvidas.
Frente a isso, Hécate sorriu nem um pouco convencida, o que começava a irritar Hades, ela soava muito como uma mistura de Reia e Héstia fazendo isso.
- Eu sou a deusa dos partos, do místico e da bruxaria – Anunciou com calmaria. – Nasci já formada da espuma do mar, e nunca conheci minha mãe. Sou acompanhante de Perséfone e conselheira de Zeus, considerada uma das entidades mais poderosas do Olimpo. Mesmo assim, sempre que vejo o céu estrelado de noite, me sinto protegida pela Titã que lá já não habita, enquanto imagino como seria tê-la ao meu lado, sermos verdadeiramente mãe e filha. Crês que isso é infantil? Talvez sentimentos muito humanos?
- Prometeu fez os homens à nossa imagem, Zeus e Pandora que os tornaram voláteis e vis, ainda assim, são capazes de sentir, se arrepender, amar, perdoar, lamentar... – Recitou desviando o olhar para o bosque.
- Então acredito que concordamos em alguma coisa – Ela sorriu com doçura – Sempre acompanhei vossa história, e de tantos outros deuses, como minha mãe por muitos anos, apenas distante, por isso entendo teus receios. – Ela fez uma suave pausa - Me corrija se eu estiver enganada. O senhor teme acabar como Poseidon?
Quanto a esses dizeres, o deus franziu a expressão.
- A que te referes? – Disse quase ameaçante, fazendo-a apenas sorrir mais.
- Não é minha intenção ofender teu irmão – Explicou-se ela – Mas bem é sabido que ele é sumamente movido por suas emoções e impulsividade, e isso faz do mar um lugar tão instável e perigoso. Se fosses metade do que ele é, sendo o submundo basicamente uma grande construção moldada por teu Dunamis no miasma do Tártaro e de Érebo, o reino viria abaixo rapidamente. Contudo, é de conhecimento de poucos que o mar não se tornou violento e repleto de monstruosidades simplesmente pelos caprichos de Poseidon. Isso provém de uma história mais triste e profunda.
- Hália – Foi tudo que o imperador disse.
- Sim – A bruxa concordou com tristeza – A primeira esposa de Poseidon, tomada a força por seus próprios filhos, sob a influência de Aphrodite, o que a fez se suicidar no mar que ele governa. Eu sei que tentaste devolvê-la a teu irmão, contudo, a alma não estava em condições para tanto. Nesse momento, tu te viste entre o dever e o amor. Escolhendo preservar a alma desse estresse, como um bom senhor que vela a morte, mesmo que a custa da insanidade de teu irmão. Deve ter sido difícil vê-lo definhar, e não poder auxiliá-lo. Contudo, deves saber que isso não significa que o dever e o amor sempre devem caminhar separados.
- Como podes saber de tudo isso? – A questionou com desconfiança começando a caminhar, ela logo o seguiu, evocando um báculo de madeira retorcida e sentando sobre ele. – A minha decisão sobre a alma de Hália, sobre o que eu acho ou deixo de achar a este respeito.
Quanto a isso, a deusa sorriu marota, como quem esconde uma travessura.
- Eu trabalho com as Moiras, não há segredo que elas não conheçam – Explicou com simpleza, fazendo o deus bufar - Me confiaram essas informações porque disseram que seriam importantes para o futuro, e estão sendo. Sempre sábias, elas.
Hades suspirou, percebendo que era inútil esconder algo da bruxa, afastavam-se cada vez mais dos bosques, e ao invés do sussurro das almas, começava a ouvir o correr de águas do Estige.
- Eu sempre me achei muito diferente de Poseidon. Porém, agora mais do que nunca, eu o entendo. Ele sempre se entregou muito a tudo que fazia, sem medo, sem proteções, sinceramente invejava isso nele. – Acabou por confessar, parando seu caminho e fechando seus olhos, recordando como o mais novo se jogava nas ondas do mar que ainda não sabia controlar sem qualquer descaro – Quando Koré surgiu na minha vida, junto com essa explosão de sensações e sentimentos, senti um pouco como era estar na pele dele. Então, não somos tão diferentes quanto eu pensava. Se algo acontecer a Perséfone, tampouco creio que suportaria...- Apertou as mãos com força, seus olhos ainda fechados. -... E isso é impensável para alguém como eu, esta instabilidade. Eu a amo, mas não posso permitir que esse amor destrua tudo que eu construí com a ajuda de outros deuses soturnos. Todos confiaram em mim e em meu poder para fazer o mundo dos mortos existir, prender os Titãs para sempre, dar um descanso aos heróis e almas mortais, eu sou o único que pode fazer isso, é a única razão pela qual eu existo nesse mundo. Meu dever sempre será, Hécate, mais importante do que eu quero ou do que sinto. Pois se eu me deixar levar por isso – Virou então para ela pela primeira vez, que até então encarava suas costas, apontando seu coração - Tudo o que eu vivi será em vão, se eu cair, algo muito pior que a Titanomaquia pode acontecer, se todos que aqui estão presos puderem escapar, podes sequer entender isso?
- Mas é claro meu senhor – Concordou com tristeza – Carregas um fardo muito grande.
- O submundo é mais importante...- Hesitou – Ele tem que ser mais importante do que Perséfone.
- Infelizmente, o amor é um poder assustador que foge do controle mesmo daquele que o representa. – Recitou ela – Eros talvez seja o deus mais temível a pisar sobre a terra, por mais que não passe de um adolescente travesso à essas alturas.
- Concordo – Se limitou a dizer com um suspiro tornando a caminhar. – Hécate, me prometa uma coisa.
A divindade inclinou o rosto interessada.
- O que seria...?
Ele não respondeu a princípio, até que o som de água correndo se tornou mais e mais forte, no caminho de volta ao salão do trono, até que parou de frente a um grande e suntuoso rio.
- Tu és a deusa dos caminhos, aquela que observa a distancia e cuida para que o equilibro seja mantido – Ela confirmou a cabeça quanto a isso. – Disseste que segue ordens de Perséfone para cuidar de mim e do submundo. Tenho ordens para ti também, com o rio Estige como nossa testemunha. Cuide do submundo acima de tudo. Como fizeste hoje, conseguindo acalmar-me, impedindo-o de trazê-lo a baixo.
A bruxa engoliu em seco, sentindo o peso que aquele dever teria.
- Posso pedir uma condição em troca? – Ela questionou depois de um longo silêncio, ao receber uma confirmação de cabeça do deus, seguiu – Converse com Perséfone, ela que tanto se esforçou para deixar-te descansar, para que podeis estar juntos, ela que preza esse reino mais do que podes imaginar, pois és aqui, Hades, onde tu foste preso, que ela se sente mais livre. Pois aqui ela pode ser a mulher forte que sempre idealizou ser.
Quanto a isso, Hades suspirou muito longamente.
- Se fizer isso, ela dará um jeito de me matar, o que quer dizer muito – Resmungou apenas fazendo a bruxa rir em concordância – Sua fúria será mais implacável que a de meu pai na guerra dos titãs.
- Não tenho dúvidas disso – Acrescentou a deusa.
-...- Hades suspirou pela milésima vez, massageando a têmpora – Está feito, falarei com ela. Muito embora isso não significa que esteja de acordo com isso dela aprender a lutar, ainda mais enfrentando Radamanthys. Eu confio muito em sua capacidade jurídica, mas sua brutalidade no campo e batalha não me dá qualquer segurança.
Dessa vez, sentiu quando duas presenças se aproximaram, agora que sua energia já estava mais calma. Uma delas ria suavemente.
- Vê-lo assim, meu senhor, me lembra de quando o conhecemos – Dizia tranquilo Thanatos se aproximando com seu irmão – Só, no mundo que recém criaste por ti mesmo. Afastado das guerras seguintes e temendo que teus irmãos se machucassem nelas.
- Sim, recordo-me bem disso – Seguiu Hypnos – “Eles ainda podem sentir dor, ser esquartejados, ou pior, engolidos de novo” – Recitou – Chega a ser cômica tanta preocupação vinda de um deus que representa os mortos.
- Vieram aconselhar-me ou provocar-me? – Questionou com pouca impassibilidade.
- Os dois – Disseram em uníssono, fazendo Hades levar a mão a face, pedindo paciência.
– Ainda assim – Seguiu Thanatos - Estamos com Hécate, também juramos velar pelo reino acima de tudo, mesmo que à nossa maneira.
- Então tente não se preocupar tanto, imperador das trevas. – Completou Hypnos – Criaste os ossos desse reino só, mas não o governas só. É prudente que recordes disso.
- Sim – Disse simplesmente – Onde-
- No jardim em meio aos campos Asfódelos – Hypnos respondeu antes mesmo que pudesse terminar. – Não pensou mesmo que ela escutaria o senhor e voltaria ao Olimpo, pensou?
- Não – Sorriu com carinho – Claro que não. Agradeço pela devoção dos três, devo ir-me agora.
E ao receber a reverência do trio, retornou a floresta.
-.-
Não demorou muito para encontrá-la, em meio à várias flores, seus longos cabelos vermelhos e lisos chegavam ao seu quadril, ela parecia distraída, enquanto tocava com delicadeza o tronco retorcido de uma árvore dos campos.
- Sabes - Por isso surpreendeu-se quando a ouviu falar em tom suave - Quando estive aqui no submundo pela primeira vez, tive muito medo – Comentou em tom distante - ...E fiquei muito triste, pensando no belo céu azul que jamais voltaria a ver – Suspirou - E isso me deixou com raiva, era como estar presa num grande pesadelo, enquanto o mundo dos vivos era um grande sonho azul.
Sentia um nó em seu estômago quando a escutou falar assim, mas não a interrompeu. Ela então agachou-se, tocando a terra fria. Como se obedecendo um comando, uma pequena muda de flor começou a surgir da terra tocada.
- Mas em algum momento, eu acabei me apaixonando por ti - A jovem riu, e no mundo nunca tinha escutado som mais belo, mesmo as harpas de Hypnos e Thanatos eram sombra perto daquilo - Minha mãe acha que eu estou louca. Talvez eu esteja. - Ela virou-se, mostrando seus belos olhos azuis e rosto delicado, a primavera era apenas uma rosa frente a beleza de seu alegre sorriso, sentia-se um tolo pensando assim, mas que ser, seja homem ou deus, não se curvava a tolice frente a um grande amor? - Porém eu tenho certeza que nunca antes fui tão feliz.
- Este submundo pode nunca ser como este sonho azul – Finalmente tornou a falar - Mas flores nascerão mesmo no mundo dos mortos, se for para te fazer feliz.
Ela então andou em sua direção, tomando seu rosto com suas mãos quentes.
- Meu amor, eu queria que o tempo parasse apenas para nós dois – Ela comentou num sussurro tão baixo que teve que se esforçar para ouvir, por entre o murmúrio das almas.
- Somos imortais – Alegou, repetindo o que sempre lhe diziam quando expressava suas infundadas preocupações frente à imortais de grande poder. - O que poderia acontecer?
-Eu não sei...Hécate me disse que tomasse cuidado - Deitou sobre seu ombro, fechando suas safiras. O deus franziu a expressão, pois a bruxa não havia dito nada a ele sobre isso. - Talvez as Moiras tenham dito algo a ela.
Era essa a razão da motivação repentina em querer aprender a lutar? Provavelmente ter a aprovação de Radamanthys era apenas uma desculpa para esse fim.
- Eu jamais deixaria qualquer coisa acontecer contigo - Beijou com doçura e devoção aqueles cabelos rubros, sentindo o cheiro de flores emanar deles - Eu juro em nome de minha alma.
Tudo que havia era o agora, o cheiro floral, a respiração pausada de ambos.
E os lábios que se aproximavam e se tocavam numa suave valsa, e então...
TUM
Um soco na face fez o imperador cair no chão em um grande baque seco.
-...Perséfone... – Disse com dor, tampando o nariz do qual saía sangue – Por que fizeste isso?
- ...Apenas testando minha força - Pôs com satisfação, cruzando os braços - E de qualquer forma tu mereceste.
Antes que pudesse levantar, porém, sentiu como ramos de planta simplesmente se agarravam aos seus punhos e o prendiam com força contra a terra gélida.
- Tenho certeza que tu podes soltar-te com esse poder de materializar coisas no submundo, que tu nunca me ensinaste – Começou a dizer olhando-o de cima. – Porém, não facilitarei.
- ...Eu não posso te ensinar, mesmo se quisesse – Explicou-se com um suspiro, sentido seu nariz, provavelmente quebrado, arder – Faz parte da minha natureza, eu posso materializar coisas com meu cosmo a partir da escuridão, mesmo sendo minha esposa tu nã-
Ela ergueu o pé com expressão cruel, perto demais de uma determinada parte do corpo que fez o imperador se calar imediatamente, engolindo em seco.
- Eu vou deixar passar dessa vez, Imperador Hades, simplesmente porque é a primeira vez que tu me negas alguma coisa, desde que eu cheguei aqui. Porém, deves ser mais cauteloso ao negar algo para a imperatriz do mundo dos mortos!! – Exclamou com imponência, cruzando os braços, seu cosmo emanando com ferocidade para provar seu ponto, enquanto o deus preso a terra de seu próprio reino só podia lamentar internamente por criar um monstro.
No instante seguinte, porém, esses pensamentos abandonaram sua mente quando ouviram uma longa risada, deixando todos os seus sentidos em alerta.
Por mais embaraçosa que fosse a situação, sabia que nenhum dos seus riria de seu senhor de forma tão descarada.
...Talvez Mephisto, no entanto, essa risada não parecia em nada com a do daemon.
- ...Eu sabia que tu eras uma mulher surreal, mas imobilizar o senhor das trevas dessa forma, é realmente...Inimaginável. Aquele que a possuísse, sem dúvida, não haveria de temer nem a morte!
- PERSÉFONE! – Exclamou, sentindo uma alma perturbada se aproximando – ME SOLTE!
- NÃO! – Exclamou com teimosia, prendendo ainda mais o corpo do deus, em um perfeito casulo que só deixava sua cabeça de fora – Eu vou te provar que posso lidar com isso SOZINHA!
- Não é o momento para isso! – Teimou, e as seguintes palavras morreram em sua garganta ao ver uma figura se aproximar rapidamente de sua esposa, um guerreiro experiente, que não teve problemas em surgir às suas costas, enquanto ela buscava em outra direção do bosque. Com facilidade ele pôde prendê-la com uma chave de pescoço, imbuída em cosmo, enquanto apontava uma lâmina rubra para o mesmo.
- Périto! – Reconheceu Hades imediatamente, o homem que havia acorrentado a uma cadeira, ao convidá-lo para jantar no mundo inferior por tentar sequestrar sua esposa junto com Teseu. O sujeito devia ter aproveitado de sua instabilidade de momentos antes para escapar de sua prisão.
- Sério, acha mesma que eu me casaria com um sujeitinho como tu? – Respondeu ela em tom enojado. – E achas mesmo que consegue me parar só com isso?
- Não – A resposta dele foi simples – Mas quem disse que eu quero me casar? Só com os seus cabelos eu já tenho o suficiente para escapar daqui. - Disse indicando sua pequena lâmina, erguendo a mão para cortar alguns fios.
Entretanto, congelou no ar, quando dezenas de ramos de plantas surgiram dos mais diversos lugares, retorcidos e negros, como troncos de árvores, e grotescamente perfuraram o corpo do homem.
E com espanto, Hades percebeu o que os troncos exatamente eram, Perséfone estava manipulando as árvores dos campos Asfódelos.
- ...Impressionante... – Não pôde deixar de comentar, enquanto ela se afastava de seu “raptor” para admirar seu trabalho.
- Cérbero, meu bebê, venha aqui – A deusa chamou, em tom frígido, ainda assim, sorrindo, frente aos grunhidos de dor e sofrimento do homem.
E em pouco tempo, o cão de três cabeças apareceu, fazendo toda a floresta tremer frente aos seus passos.
A cabeça do guerreiro, a única parte que não havia sido presa, virou-se com temor frente ao cachorro gigantesco.
- Cérbero, só um instante, bebê – E numa cena que mesmo o senhor dos mortos preferiu não ver, ela usou os ramos para castrar seu atacante em um grito que o deus não esqueceria tão cedo – Não quero que tu comas porcarias.
E quando a cabeça do meio tragou inteiro o ensanguentado homem, e metade dos ramos juntos, o imperador sentiu como sua prisão afrouxava.
- Só o MEU marido e minha MÃE tocam no meu cabelo – Declarou ela por fim, com desprezo.
Ao que se levantava, o deus ouviu palmas, porém não se exaltou por isso, pois sentiu as presenças se aproximando.
Aiacos batia as palmas, genuinamente impressionado, vestindo sua sobrepeliz, uma das poucas que Hades havia criado justamente depois da invasão de Perito e Teseu, ao seu lado, os outros dois juízes, também trajados para a batalha. Minos tinha a expressão franzida em desgosto, e Radamanthys trazia sua única sobrancelha erguida.
- Perdoe-nos não intervir antes, imprudentemente Aiacos nos impediu. – Acusou Minos, vendo com desprezo seu irmão.
- Nossa senhora claramente disse que faria isso sozinha – Colocou em tom casual – Não estamos em posição de contrariar a vontade de nossa imperatriz.
- A senhora está bem? – A pergunta partiu do último dos juízes, enquanto se adiantava ao seu senhor e oferecia a mão para ajudá-lo a erguer-se.
Frente a isso, ela fez uma pose estranha e pouco natural, como a pose de uma estátua de um herói recém saído da batalha.
- Claro, eu estive treinando, sou mais forte do que posso parecer – Decretou em tom arrogante, e Hades teve que se segurar para não rir, porque claramente ela tentava convencer o juiz de sua capacidade de forma no mínimo caricata.
- ...Certo – Disse ele simplesmente – Muito embora nunca a tenha visto lutando antes. E não imagino que vossa mãe permita isso no Olimpo.
Percebendo que ia ser pega na mentira, a divindade apenas riu suavemente.
-...Ela não precisa saber – Disse em tom misterioso.
E dessa vez, o imperador sim se pôs a rir.
- Caso contrário, minha mãe não deixaria de perseguir meu marido até que Uranos não fosse o único castrado na família, e eu claramente não quero isso – Ela disse em tom sério, fazendo-o parar de rir imediatamente, porque sabia que ela tinha razão.
- Eu garanto que irei castigar severamente o espectro ou esqueleto que deixou esse homem escapar – Decretou Minos, disposto a mudar para outro assunto.
- Não será necessário – Orientou Hades, limpando suas roupas de terra. - Ele ter se libertado foi culpa minha.– Findou encarando Cérbero, que ainda mastigava, um som crocante saindo de sua boca, sangue escorrendo por seu focinho e juntando-se a baba, os gritos de sua vitima já tendo cessado. - Porém, eu irei me garantir de prender a alma dele de modo que ele nunca mais faça isso.
Minos parecia verdadeiramente desgostoso por não poder castigar ninguém, mas não questionou a ordem.
- Creio, porém, se me permite o atrevimento – Aiacos uniu-se aproximando da deusa – Que falta ainda para nossa senhora, um pouco de técnica. Técnica essa que creio que Radamanthys poderia ensinar-lhe, que crês, meu senhor?
Perséfone estava a ponto de falhar em esconder sua emoção, enquanto o juiz mencionado olhava desconfiado para seu meio irmão, não elogiaria suas habilidades se não tivesse segundas intenções com isso.
- Se ela luta tão bem quanto administra, pode ser no mínimo interessante. – E ergueu sua única sobrancelha frente as palavras de Minos, mesmo Hades parecia surpreso com elas. – Porém definitivamente falta-lhe classe lutando – Findou em clara referência a castração.
O imperador então respirou longamente.
- Radamanthys – Nomeou, mesmo que ainda preocupado – Crês que pode encaixar o treino da imperatriz em meio aos seus julgamentos?
- Sim, meu senhor - Declarou ajoelhando-se perante seus dois senhores – Será uma honra para mim.
E enquanto mantinha-se ajoelhado, e Minos pedia permissão a voltar à suas atividades, Aiacos deu uma pequena piscadinha para sua imperatriz, o que fez Hades ter certeza que o seu terceiro juiz conhecia os planos da deusa em convencer os outros dois de que ela era uma imperatriz digna, depois da péssima primeira impressão que teve com eles.
-Cérbero! – Recriminava ela saltitante de felicidade, embora tentasse disfarçar mantendo alguma compostura – Quantas vezes tenho que te dizer para não ficar se coçando assim? Vais a acabar completamente sem pelo! – E mesmo o cão latiu, obedecendo-a.
Resmungou frente a isso, derrotado, simplesmente não podia impedi-la.
-.-
Esse nix não tinha sido nada do que achou que seria, sentia-se tão desgastado pelo redemoinho de emoções que começava a cogitar pedir para Hypnos fazê-lo dormir de novo.
Pelo menos, sua esposa estava novamente radiante, sentada ao seu lado no salão do trono, em seu próprio assento decorado com ramos de romã que se retorciam até formar uma flor no topo, feita de rubi, enquanto o trono de seu marido agora era maior do que antes, em azul e vermelho, com entalhes dourados. No topo do encosto, saiam duas asas negras semelhantes a morcegos, enquanto no centro havia um rosto com uma eterna expressão congelada, ouro também a cercando como se fosse um brasão em destaque, ou um troféu de batalha.
Estavam sentados enquanto Perséfone contava o seu feito, de forma mais épica do que realmente havia acontecido, para Mácaria que escutava deslumbrada, enquanto Hypnos e Thanatos esperavam a interação acabar para voltar a tocar. Haviam também outras duas pessoas, que como Mácaria, estavam sentados em tronos menores, criados por Hades, para que pudessem escutar as melodias dos gêmeos. O primeiro era Hécate, o segundo Hermes, com seus cabelos cacheados curtos, sua toga branca de um ombro que mal cobria seu tórax, e tão curta que por menos de um palmo não taparia sua masculinidade.
O deus mensageiro estava inclinado de qualquer jeito em sua cadeira, sem prestar real atenção a história, vez ou outra lançando olhares e beijos a bruxa que apenas sorria ruborizada, não retribuindo para manter sua postura, muito ao contrário de seu amante.
- Eu quero aprender a lutar também! Minhas pernas são fortes e meu chute imparável! É quase um dom - Sugestionava animada a deusa da morte tranquila – Não podemos fraquejar, afinal, nunca se sabe quando um deus pode tentar te sequestrar, certo?
E as duas riram, mesmo Hades sorriu de canto de olho observando a cena, sem se incomodar de tentar convencer sua sobrinha do contrário.
- Mas se eu fizesse isso...Eu também teria uma daquelas armaduras? – Seguiu interessada, voltando agora para o senhor dos mortos.
- ...Com os “heróis” insolentes que andam por aí, talvez seja melhor eu providenciar mais sobrepelizes. – Ponderou – E claro, uma para Perséfone também.
- Mal posso esperar~ - Cantarolou ela.
E então a peça começou, suave e melancólica, junto a uma nova canção de Mácaria, agora de pé para entoá-la. Não levou meio minuto para Hermes cair profundamente dormido, inclinando-se de modo que pudesse se apoiar no ombro da deusa da bruxaria, até mesmo babava ligeiramente, mas ela não parecia se importar.
O pequeno espetáculo parou repentinamente, quando o mesmíssimo deus mensageiro deu um salto em seu assento, como se tivesse levado um susto.
- Perdão – Desculpou-se agitado erguendo-se já flutuante de seu lugar, as asas de suas sandálias batendo tão rápido quanto as asas de um colibri – Me chamam...Eu devo partir imediatamente – Antes mesmo de olhar para o imperador daquele reino, voltou-se a Hécate com uma expressão de tristeza e resignação. Só então voltou-se a Hades, que pessoalmente não levou aquilo como ofensa, uma vez que compreendia bem essa sensação de despedida. – Tens, meu senhor, alguma mensagem para o Olimpo?
- Sim, eu tenho, eu ainda irei tratar com Macaão – Começou a dizer com tranquilidade – Porém, até lá, adiante a Zeus que eu mantenho a posição da minha esposa, não devolveremos o filho de Apolo, Asclépio, ao mundo dos vivos sem um alto preço em troca. De preferência pago pelo próprio Zeus, que foi aquele que o matou desnecessariamente em primeiro lugar.
O mensageiro fez uma expressão nem um pouco satisfeita ao ter que entregar tal conteúdo ao senhor dos deuses, mas apenas acatou com um aceno de cabeça.
- Será feito meu senhor, agradeço a ti e a imperatriz pelo tempo que me aceitaram em suas terras. – Fez uma reverência em pleno ar, sua atitude com Perséfone tendo mudado bastante desde a vez que veio buscá-la, anos atrás, em nome de Zeus e Deméter.
- Como deus ctônico que és, sempre serás bem vindo em meu reino – Proferiu Hades de forma neutra.
E com uma nova reverência, o mensageiro partiu pelo portão, que se abriu à sua passagem, não sem antes lançar um último olhar a deusa da bruxaria, que discretamente se despediu com um beijo no ar, que fez o ser alado dar um pequeno rodopio antes de desaparecer.
- Crês que Macaão intervirá? – Ponderou Perséfone sobre o assunto.
- Sinceramente não – Concluiu – Mesmo sendo um curandeiro também, creio que ele pedirá clemência por seu irmão, uma vez que aceite ser um espectro.
- Quer que continuemos, meu senhor? – Questionou Hypnos.
- Por favor – Respondeu simplesmente, fechando os olhos para apreciar melhor, buscando a mão de sua esposa para segurá-la.
Sentia-se em completa paz, como em muito tempo não experimentava.
Paz esta que, no entanto, foi completamente quebrada três quartos de horas depois.
Para surpresa e desgosto do imperador, Hermes estava de volta, levando segundos da entrada do submundo ao salão do trono, cujas portas novamente se abriram para permitir sua passagem.
-...Creio que deve ser Apolo, novamente – Opinou Perséfone – Ele é realmente insistente em ressuscitar seu filho, chega a ser bonito.
- Odeio quando alguém ligado a Apolo morre – Resmungou em voz baixa, apoiando o rosto sobre a mão esquerda – A morte de Jacinto me rendeu um mês de importunação...- Então seguiu em tom mais alto, quando Hermes pedia licença para falar, fazendo novamente uma reverência ao imperador, mesmo os gêmeos, Macária, e principalmente Hécate, o observavam curiosos. – Se for um novo apelo de Apolo...
- Não meu senhor, Apolo ainda deve estar cobrando atitudes de meu pai, Zeus – Informou simplesmente – Não chegaram ainda a um parecer sobre isso.
Hades inclinou a sobrancelha.
- Então...?
- Venho com uma apelação de Athena, firmada também por Hefesto, Hera, Tétis e por mim. – Disse, tirando de uma bolsa lateral que carregava um pergaminho e o mostrando – Por conter um terço dos doze Olimpianos na ape-
- Ela tem que ser aceita – Findou Hades, claramente a contragosto – Eu conheço as leis do Olimpo, Hermes, mesmo não sendo um olimpiano, eu estava lá quando elas foram escritas, antes de ser exilado por Zeus, eu inclusive, ajudei a escrevê-las. E me arrependo amargamente de algumas delas.
- Perdoe-me a falta de tato senhor. – Foi tudo que respondeu o mensageiro levemente surpreso pelo imperador se impacientar tão rápido, enquanto Perséfone massageava as costas da mão de seu marido com a intenção de acalmá-lo.
- Quem é a pessoa que fez quatro Olimpianos concordarem em devolvê-la ao mundo dos vivos? – Então sua expressão afiou-se, desconfiada – Se não me falha a memória, com a ausência de meu irmão Poseidon, eram aqueles que defendiam as cidade-estado contra Troia.
- Sim, meu senhor, Athena deseja o retorno de seu guerreiro, Aquiles. – Disse por fim.
- O protegido da minha irmã, ele não foi para os Elísios? – Questionou a imperatriz, voltando-se ao seu marido.
- Sim, infelizmente, como todo herói. Mesmo sendo neto de Aiacos, é um sujeito bem desagradável – Explicou Hades – Foi bastante trabalhoso para mim moldar os Campos de modo que ele e Heitor jamais se encontrassem, e agora Athena o roga novamente para uma nova guerra? – O mensageiro apenas confirmou com a cabeça. – Não tenho certeza de como Aiacos reagirá a isso, interrompendo o descanso de seu neto tão prematuramente.
- Uma vez que o voto de quatro olimpianos só pode trazer um mortal de volta a vida, minha irmã poderia usar esse esforço por Asclépio, não? – Questionou Perséfone - Tenho entendido que ele foi um guerreiro de Athena, e nos livraria do lamento de Apolo.
- Ela não mencionou nada sobre o filho de Apolo – Respondeu simplesmente Hermes.
O senhor dos mortos negou com a cabeça.
- Eu jamais entenderei os deuses da guerra. – Pontuou por fim, massageando as têmporas. – Muito bem então-
Porém, não completou sua frase, quando no centro do salão uma figura começou a se materializar, um idoso, de traços severos e toga longa. Anfierau, o oráculo do submundo.
- Meu senhor – Disse prontamente ajoelhando-se, sua cabeça contra o chão. – Trago uma previsão a vossa senhoria, antes que tome tua decisão.
Um longo silêncio tenso se formou com esses dizeres, não era nem um pouco comum que um oráculo intervisse numa decisão dessa forma.
- Repousa nos ombros de Aquiles o fim da guerra entre os deuses, em um futuro próximo, sua vida será um precioso óbulo. Contudo, boa fé deve mostrar, para que as guerras possam findar. – Recitou, sem jamais erguer a face – Isso é tudo que eu tenho a dizer.
- Muito bem... – Declarou o imperador, apoiando a mão no queixo – Podes retirar-se.
- Com vossa permissão – E assim sua figura se desfez, mesmo fazendo poucos segundos de ter se manifestado.
-...Bem, eu espero que vós tenhais entendido – Não pôde deixar de brincar Hermes – Porque eu não entendi nadinha, e olha, que eu sou o deus das comunicações!
Apesar de sua graça, o silêncio incomodo se manteve, em que o senhor dos mortos seguia em sua posição pensativa, repassando mentalmente os dizeres de seu oráculo.
- Eu exijo uma prova de boa-fé – Declarou por fim, voltando a apoiar-se no encosto de seu trono – Que Athena envie alguém para buscar a alma de Aquiles, seu coração será pesado por um de meus espectros, sem que sua vida seja tomada, apenas se a balança pesar menos que uma pena, ele poderá levar Aquiles, e apenas Aquiles.
- ...Não estás facilitando muito, meu tio – Não pôde deixar de observar Hermes – Que alma humana seria pura o suficiente para passar tal provação? Sabes bem que todos as almas foram manchadas quando a caixa de Pandora foi aberta.
- Essa é minha decisão final Hermes, e não penso retroceder – Colocou irredutível. – Mesmo que as leis do Olimpo me obriguem a acatar a decisão de ressuscitar Aquiles, em momento algum elas mencionam como eu deva fazer isso, por tanto, esta é minha condição.
Ao mensageiro então só coube suspirar, sabendo que aquilo lhe renderia uma boa dor de cabeça.
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- O canto de Macária é encantador e a habilidade dos gêmeos na harpa impecável, poderia ouvi-los por toda a eternidade. – Dizia Perséfone, deitada sobre o torço de seu esposo, novamente sobre o leito que compartiam, enquanto ele massageava seus cabelos, ambos desprovidos de roupas. Ao notar que seu marido não a escutava, tendo o olhar perdido no teto de mármore, acrescentou - ...Ainda pensando sobre Aquiles?
- Sim, eu custo acreditar que naquele jovem de tanto ego, possa repousar alguma paz. – Suspirou – Recordo-me com precisão quando Aiacos pediu-me permissão para que Tétis o banhasse no Estige para findar o sofrimento de Peleu. E mesmo sendo “indestrutível”, pereceu pelo calcanhar que Tétis segurou para mergulhá-lo. Sua morte causou muita tristeza ao seu pai, Aiacos até mesmo chegou a perdoar seu filho por erros do passado, testemunhando seu sofrimento. Com a morte de Aquiles, pensei que tivéssemos colocado um fim nessa história.
Quanto a isso, Perséfone sorriu, começando a enrolar um tucho de cabelo negro de seu marido em seu dedo indicador.
- Em outras palavras, estás preocupado com Aiacos?
- Sim – Confessou simplesmente – Mesmo um juiz dos mortos pode sofrer por aqueles que estão vivos. Mais além disso, as palavras de Anfierau me incomodam...
Então, teve um lençol jogado contra sua face.
- Tu te preocupas demais, eu duvido muito que exista uma alma pura o bastante para passar no teste que tu impuseste. – Ela desconversou, abraçando o tronco dele através da coberta – Deixemos isso de lado e vamos dormir, assim, juntinhos.
- Dormir de novo? – Horrorizou-se tirando o lençol de seu rosto – Dois nixes seguidos?
- Serão três se não deixares de resmungar - Colocou ela abraçando-o com mais força. – Deixe-me aproveitar esse momento, contigo, eu trabalhei exaustivamente uma semana, esqueceste? Eu mereço poder descansar nos braços do meu deus grego.
Suspirou vencido, deixando-a se acomodar, e ainda a observando dormir, novamente massageando seus fios rubros.
- ...Quando te vejo assim, eu também não posso deixar de desejar que o tempo parasse apenas para nós – Confessou, para o nada, respirando o doce perfume florar que ela emanava. – Apenas nós dois...
Sentiu um estranho sono o tomando, dificultando que pudesse processar seus pensamentos com coerência.
- Eu realizarei esse último pedido, meu senhor... – Uma voz ecoava pelo quarto, com suma dificuldade virou-se para sua fonte, sentindo que seus olhos pesavam toneladas.
-....Hécate...? – A figura dela se aproximava, seu rosto coberto por lágrimas, até que parou ao seu lado do leito -...Por que...Choras...?
- Por que o amor pode ser muito triste, meu senhor, requerer muitos sacrifícios – Então levou a mão direita aos olhos dele, fechando suas pupilas lentamente, enquanto um soluço triste escapava de sua garganta – Ao menos espero que como Shun, o senhor possa finalmente ser livre, como sempre desejou, livre para amar, viver e até mesmo sonhar.
Afastou sua mão lentamente, gravando a ferro em sua mente a face pálida que sabia que jamais tornaria a ver, enquanto a figura de Perséfone, tão agarrada a si, aos poucos se metamorfoseava em ramos de árvore, como os dos Campos Asfódelos que ela havia manuseado, e envolviam o deus, consumindo-o, transformando-o em uma árvore como ela, ao tempo que o leito, o quarto e tudo ao redor deixava de existir.
Até que tudo o que restava era sua face, como se flutuasse sobre a madeira.
Para tanto, a bruxa inclinou-se, e dedicou um beijo em sua testa, como uma mãe ao despedir-se de seu filho em sua cama na hora de dormir.
- Adeus.
Então a respiração suave dele cessou, e mesmo sua face foi absorvida pela madeira escura, tornando-se uma frondosa romãzeira, em meio a um grande campo florido, repleta de flores pintadas de outono.
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- Então Athena enviou o príncipe de Atenas, para poder buscar a alma de Aquiles? – Bian perguntou, sentando nos destroços do antigo templo de Poseidon que existia no cabo Sunion, ao seu lado estava Verônica, com as pernas entrelaçadas, sem deixar de olhar para imensa torrente de água que vinha do oceano, e pintava o mar sobre suas cabeças até o santuário.
- Sim, Erisictão, ele era o primeiro cavaleiro de Aquário. Que é justamente a primeira vida de Camus, mestre de seu companheiro Isaak. A mim foi dada a ordem de recebê-lo e leva-lo até Aiacos e Aquiles em parte do caminho – Seguiu explicando Nasu em tom suave - Foi realmente uma surpresa quando o coração dele sequer fez mover a balança. Era a prova da existência da alma mais pura da terra, mas sinceramente, aí estava o problema.
Suspirou baixando a cabeça, uma parte do seu cabelo escorrendo para frente de seus olhos, o qual de forma cavalheiresca, Bian tomou e devolveu para trás da orelha do espectro, que sorriu com gratidão.
- Por quê? O que houve?
- Minha jurisdição eram os campos Asfódelos, por isso eu tinha que guia-lo a atravessar. O príncipe já havia passado pelo Aqueronte, tendo que pagar com sua coroa, e já havia superado até mesmo a balança, o campo das almas era a última parte para chegarmos a Aquiles. – Então uma expressão triste se formou em seu rosto – Porém, nessa floresta, é possível ouvir o sussurro dos mortos. Aqueles que não fizeram feitos grandes o bastante, e nem foram ruins o bastante, acabam condenados a vagar por lá. Geralmente os suicidas vão para o Tártaro, mas quando a causa foge do controle deles, Hades costumava dar-lhes essa pena mais branda, por isso, entre tantas almas, o cavaleiro que era só uma criança, pôde ouvir o lamento de suas irmãs e de seu pai.
- Se não estou enganado, Cécropes, o primeiro rei mítico de Atenas, não se suicidou, e sim ensinou as cerimônias de sepultamento ao seu povo, principalmente quando todos os seus filhos morreram jovens. – Ponderou o cavalo marinho.
Quanto a isso, Verônica revirou os olhos.
- Claro, acha mesmo que gostariam de registrar que o primeiro rei dos gregos morreu de “desgosto” ao perder suas filhas? Não, os homens não viam problema em Egeu se lançar do penhasco por pensar que seu filho e herdeiro Teseu estava morto, mas viam muita fraqueza em um rei fazer isso por suas filhas, sendo que seu herdeiro ainda continuava vivo e saudável. – Colocou com descaro – Meu caro peixinho, deveria saber que a história sempre foi escrita da forma que melhor convém a quem a escreve. Muitas versões se contradizem ao longo da humanidade, é difícil saber o que realmente aconteceu, ou quando realmente aconteceu.
- Sim, creio que tens razão – Racionalizou.- Deve ter sido muito doloroso para uma criança órfã tão jovem ouvir os lamentos de sua família perdida, só posso imaginar o anseio em seu peito por trazê-los de volta.
- Foi insuportável, e sua perdição – Nasu resumiu – Eu não podia impedi-lo, é claro, mas confesso que tocou-me o coração vê-lo correr e se perder no bosque para alcançá-los. Usando o cosmo ele os encontrou, um a um, confusos e sem reconhecê-lo, e ao tentar levá-los consigo para o Aqueronte, as árvores o agarraram e o prenderam. Eu apenas testemunhei, e questionei o juiz Aiacos sobre o que deveria ser feito, uma vez que a prova de boa-fé havia falhado.
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Suikyo nada dizia, de costas para o leito que Isaak e Soleil rodeavam, pessoas agora entravam e saiam pela segunda ala com muito mais frequência, conforme pôde ouvir a voz de Aldebaran chegando com mais feridos, já era impossível ouvir o que Camus falava com seus filhos pois a gritaria e correria apenas se intensificava na busca de leitos. Apenas quando um transtornado Aioria vinha com um desacordado Kanon nos braços, que o ex- juiz voltou a tomar atenção aos seus arredores.
- O que houve com ele?- Pôde perguntar, vendo como o geminiano que até pouco tempo estava operando Remo, e havia passado a ajudar na busca de leitos extras quando Kiki chegou, agora estava desacordado e completamente ensopado.
-...Sinceramente, é difícil explicar – Leão disse, começando a tirar a roupa encharcada do grego, depois que já tinha ensopado toda a cama – O mar simplesmente começou a cobrir os céus do santuário, parecia desviar de todos, mas pegou Kanon.
- Poseidon, sem dúvida – Se limitou a deduzir o canceriano, ao que o grego deu de ombros, desistindo de tirar as calças do geminiano e voltando para a primeira parte da Fonte.
Contudo, Leão tardou pouquíssimo tempo em retornar, quando Marin, Shina e Lucca foram alocados nos leitos ao lado de Suisho. Os últimos dois em estado bem grave. Por isso, qualquer um poderia dizer que o leonino estava fora de si, sendo segurado por Ikki, enquanto tentava invadir a segunda ala, vendo que sua esposa estava agora desmaiada e seu filho correndo um grave risco de morte.
- VOCÊ EM PÂNICO DESSA FORMA NÃO AJUDARÁ EM NADA! – Gritava Benu, fazendo uso de sua força sobre-humana para parar o mais velho.
Com dificuldade então uma nova figura se assomou, de cabelos negros absolutamente longos presos em um coque mal feito, suas mãos sujas de sangue, e era talvez o único, em meio a todo aquele caos, que trajava um avental médico.
- Nenhum dos dois são cavaleiros? – Dizia Esculápio, partindo diretamente para examinar Lucca.
- QUE DIFERENÇA FAZ A ESSA ALTURA?! – Berrou Aioria sem entender porque essa pergunta era relevante.
- Não, eles não são. – A resposta partiu de Camus, que sabia do impedimento do deus da medicina em salvar vidas de cavaleiros. O filho de Apolo não pôde deixar de congelar ao ver o estado que o aquariano estava, por isso tinha evitado mudar de ala, havia sentido que o mesmo estava ali, e como imaginava, era muito pior vê-lo pessoalmente passando pelo mesmo estado deplorável que Aquiles enfrentou um dia por, segundo ele, “irritar dois deuses” – O menino era um aprendiz, enquanto a jovem do meio era a amazona de Ófiuco, e a do seu lado, a de Águia.
-...Ófiuco? – Colocou interessado, forçando-se a desviar o olhar e focando apenas na criança, enquanto Rômulo e Rivera vinham correndo com um carrinho com os itens necessário para uma operação de emergência. - ...Muito obrigado, Camus.
- Vocês se conhecem...?- Aioria perguntou, mas o cavaleiro de gelo o ignorou completamente, tentando se levantar de seu leito com a ajuda de seus filhos.
- IZO, O QUE ACONTECEU CONTIGO? - Um grito repentino, porém, ecoou por toda a ala, sobrepujando os demais sons do lugar, e tal choque, partindo de uma pessoa normalmente calma, apenas fazia a exclamação pior.
Era Dohko que soltava tal grito, o que deixou todos os sentidos de Suikyo em alerta.
- Eu estou bem vovô, não se preocupe, foi mais...- Havia hesitação clara em sua voz. – Estético do que qualquer outra coisa, foi Shoryu que realmente se machucou, mas ele se recusa a entrar na Fonte e se medicar, Julian está tentando “convencê-lo”...- Uma detonação, muito similar a explosões, ecoaram antes mesmo que suas palavras fossem terminadas. -... Porém o método não é nem de longe o mais apropriado para o momento...
Novamente foi impossível escutar o resto do diálogo, devido ao claro enfrentamento dos amigos do lado de fora, e Ikki teve que usar toda a sua força para impedir Aioria, que começava a arrastá-lo usando todo o seu desespero paterno como um combustível ainda pior que a explosão de uma supernova.
Foi nesse cenário caótico e transtornado, que Suikyo acompanhou como Camus saía do quarto, não antes de anunciar.
-...Creio que o verei no submundo, Aiacos. – Virou-se para ele com claro desgosto – Pois não parece do tipo traidor.
E então o aquariano voltou-se a Esculápio, que possuía lágrimas escorrendo por seus olhos, mas ainda assim não deixava de operar a criança em nenhum momento.
- ... Adeus Épios, pedirei em nome da sua alma, caso o castigo de Apolo sobre ti sejas demasiadamente severo. – Anunciou, dando as costas e partindo para nunca mais voltar.
Por sua vez o médico soltou um soluço, resmungando apenas um “obrigado”.
Aiacos nada disse, e nada fez, sem poder deixar de lembrar de milênios atrás, quando Nasu o chamou para informar o destino do príncipe de Atenas. E apesar dessa falha significar que seu neto seguiria morto, foi justo, como sempre foi, e decretou a pena que cabia àquele que feriu a vontade dos deuses.
Apenas para pouco tempo depois, ficar de frente a uma amazona impetuosa e capaz de tudo, por aquele que acreditava.
- Cem anos por cada alma que Eri tentou levar? – Dizia a belíssima jovem de longos e volumosos cabelos azuis – Que sentença perversa para uma simples criança.
-... Mesmo que sejas uma criança, ela quebrou as regras estabelecidas pelo Olimpo, e foi contra à vontade dos deuses. Quatrocentos anos no submundo não é nada frente a tamanho sacrilégio.
- Nesse caso então, eu estou disposta a aceitar essa pena, em nome dele – Declarou Escorpião, batendo contra seu peito, fazendo o gesto ressoar por estar de armadura.
- Não é simples assim – Tratou de explicar vendo como a jovem deixava de prestar-lhe atenção, para caminhar a passos lentos até a beira do rio de fogo, Flegetonte - Por mais que no passado não foste, agora és tu uma mortal, não dispõe de tanto tempo de vida.
- Mesmo que eu pague com a vida de outras encarnações? – Perguntou ela sem encará-lo.
- A cada vida, passas pelo Lete, és outra pessoa, com outras prioridades. – Seguiu firme Aiacos. – Em suma, não há qualquer garantia que mantenha tal pacto.
Quanto a isso ela sorriu, sussurrou algumas quantas palavras, e para completo choque do juiz, e de Nasu que via tudo de longe, ela simplesmente se lançou de costas no rio de fogo.
Ambos correram até a margem, podendo testemunhar como o inigualavelmente belo rosto da amazona começava a se consumir pelas chamas, um sorriso de convicção impresso em sua face.
E quando todo o seu rosto deixou de ser visível depois de completamente engolido pelo fogo, sangue começou a borbulhar, a partir do local onde ela se sacrificou, e estendendo-se por toda a margem.
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Capítulo CII - Dizem que o amor sempre vence - Parte II
- E ela simplesmente se jogou para pagar a pena por ele? – Bian questionou erguendo as sobrancelhas impressionado – Como servo de um deus, reencarnando ao seu lado há milênios, talvez seja fora de lugar ser eu a dizer isso, mas é uma lealdade que chega a ser assustadora. – Confessou o moreno – Condenar sua alma por quatrocentos anos por alguém, talvez o pior seja nem se lembrar desse sacrifício, pois até onde eu sei, as reencarnações não costumam recordar suas vidas passadas, certo?
- Sim – Confirmou Nasu com um suspiro – Apenas quando suas almas são mais evoluídas, ou são atingidas por um estímulo muito forte isso pode acontecer. Não é muito comum. Mesmo entre as almas antigas.
- Almas antigas? – Tornou a perguntar – Perdoe a minha ignorância, não temos uma aproximação decente com o submundo há milênios, e como Sorento nos escondeu sua relação com seu senhor, me sinto em um campo obscuro.
- Sem problemas, bebê – Deu uma piscadela – Não são muitos que entendem sobre o nosso reino e nossas leis, de qualquer forma. As almas antigas são almas que um dia pertenceram a grandes heróis das eras mitológicas, criaturas místicas, deuses antigos ou mesmo de titãs. Essas últimas são as mais raras, com o passar dos milênios, muitos seres pediram a Nix para se tornarem mortais, outros foram mortos e reencarnaram com outros corpos em tempos diferentes, como os homens são hoje a raça dominante do planeta, o “lado vitorioso” para alguns desde que Zeus desapareceu, é fácil dizer que há mais almas antigas na Terra no que no Olimpo ou submundo. Eles realmente estão por toda a parte. Nós mesmo somos como almas antigas, se parar para pensar. Mesmo que nem todos sejam tãaao antigos assim, eu não devo ter mais que 4 milênios de existência.
- Vendo por esse ângulo, tem razão. – Ponderou.
- O amor de Astéria era tão inspirador quanto trágico -Deitou-se lentamente no chão, encarando o mar que corria fazendo vezes de céu – As palavras que ela disse antes de saltar ecoaram por muito tempo na minha mente, “Há sempre sacrifícios que valem a pena”. Na época, sendo o suicida que eu era, eu não entendia o peso que sacrificar a vida por alguém tinha...
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- ... Por que ela fez isso? – Um homem loiro de mediana idade, de longas vestes gregas encarava atônito as bolhas de sangue que desprendiam do rio, junto com um cheiro forte de carne em brasa.
Aiacos não respondeu, sua face distorcida com uma expressão de pesar, ainda sem dizer nada, levou ambas as mãos ao rio de fogo, onde o rosto da jovem havia desaparecido, conseguindo recuperar apenas a tiara de sua armadura.
- ...Eu aceito teu sacrifício, Astéria. – Disse vendo a superfície dourada, como se encarasse o rosto dela. – Tua prova de boa fé, substituirá a que teu protegido fracassou. Com isso – Então levantou-se seguindo a encarar a peça fria de metal – Nasu, retorne ao bosque, diga ao príncipe que outra pessoa aceitou ser julgada no lugar dele, e o leve até o Estige, onde Benu espera com Aquiles.
- Astéria, a amazona que levava as estrelas nos olhos – Disse erguendo-se também – Eu o farei, só posso imaginar o lamentar do príncipe quando souber.
- Dessa vez, tens a minha autorização para não permiti-lo fazer mais qualquer tolice ou infligir qualquer outra regra – Disse em tom firme juiz, olhando para o céu negro do mundo dos mortos, vendo como um vulto, sentado sobre um cetro, voava na direção da dupla – Leve-o em segurança até meu neto, e então escolte os dois a montanha que antecede o Aqueronte. Há um homem lá que os estará esperando.
Ambos então se sobressaltaram quando em um som de charco, o resto da armadura disparou de dentro do fogo, completamente limpa, formando um escorpião incompleto, sem sua tiara.
- O escorpião – Disse o juiz, agachando-se e montando a parte faltante, uma vez que uma Hécate lívida, parou poucos passos atrás de si. – Um animal soturno, amante da noite e da morte. As estrelas não poderiam ser melhor representadas do que pela grande Antares que brilha vermelha nos céus.
O espectro lançou um olhar interessado a bruxa do olimpo, que levava as mãos ao rosto com descrença, encarando o sangue que escorria vertiginoso pelo leito do rio.
- Com sua licença, senhor Aiacos – E então se retirou para cumprir seu dever.
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Passou pela entrada da primeira ala, seguido de perto por Lune e Isaak, pôde notar como várias atenções se voltavam para si, como Kiki gritava com Geki enquanto examinava seus braços quebrados, Logam, Airon e mesmo Jabu tentavam auxiliar como podiam com curativos básicos ou questionando os que chegavam de quais eram seus sintomas. Enquanto uma Hayata com lágrimas nos olhos, tendo descoberto o estado de seu irmão mais velho, cuidava dos cavaleiros prateados que haviam chego com Julian e Albafica.
Viu de relance o olhar espantado de Piada, sentado próximo de Shijima e seu mestre, o menor com apenas um olhar percebeu o que muitos não haviam notado. Também viu o corpo de Máscara da Morte funcionando a aparelhos, podia ver a aura da morte rondando-o, mas era possível que esta sempre houvesse circulado o canceriano assim.
Afrodite, sentado ao lado do leito do amigo, também o viu passar com incredulidade, como se visse um fantasma. Não estava muito errado.
Izo e Dohko, já próximos a porta, pararam sua conversa ao notá-lo se assomar, com uma formigante sensação de culpa viu o estado do capricorniano, com parte do seu corpo envelhecida de forma pouco natural, como se exposta ao sol por décadas sem qualquer resguardo.
Em contra partida, muitos olhares se voltaram a si, enquanto caminhava, os únicos sinais que deu de enxergar os demais ao seu redor, sendo um último cumprimento de cabeça dirigido a Kiki que observou sua aparência horrorizado, e o próprio Afrodite.
Então já estava do lado de fora da Fonte.
Os gritos do lemuriano para que voltasse pareciam tão distantes quanto os sussurros dos Campos Asfódelos, agora só Soleil o acompanhava, enquanto Isaak se afastava para impedir o novo marina de trazer Aquário de volta a força.
Do lado de fora, era possível ver como Muh se virava para atender Aldebaran, enquanto esse tentava organizar seus filhos e os de Aioria entre os leitos que Egas, que mantinha firme sua posição de liderança comandando os demais apesar da situação do irmão, haviam organizado do lado de fora junto a Santorini, Alexis e outrora Kanon.
Mais distante dos demais, de modo que não piorasse a situação dos feridos, encontrava-se Albafica que gritava com aparentemente o nada, porém, se tratavam de Shoryu e Julian, que lutavam entre si usando a força física acima do cosmo, mas em uma velocidade tão absurda que era preciso dobrar a atenção para vê-los.
Mesmo os olhares do lado de fora se focaram em sua pessoa, ao ponto de que mesmo os amigos deixaram sua peleja, para ver o estado do aquariano, porém logo se focando na figura chorosa de Soleil e indo até ele.
Sentia-se tão observado quanto como esteve no bosque das almas pela primeira vez, mas como não fez aquela vez, ignorava todas as palavras ou gritos ao seu redor, para não cair na tentação de falhar novamente.
Por essa razão, ignorou a dupla dourada e os questionários ao seu filho sobre se ele estava bem, mesmo que a preocupação deles com o amigo aquecesse seu peito.
E assim, afastando-se de todos, sentou-se no chão, como um condenado que se posiciona para ter a cabeça posta na guilhotina.
Sentou, e esperou. Esperou que Athena chegasse, para que tivesse o julgamento que esperou milênios para acontecer, negado por sua estrela guia que havia tomado seu lugar.
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- Eu não estou entendendo... – O pequeno príncipe dizia, seguindo o espectro de longos cabelos loiros por entre o bosque de almas sussurrantes – Eu pensei que minha alma seria condenada pelo julgamento do juiz Aiacos.
- Eu não posso te explicar. – Se limitou a dizer Nasu, guiando o caminho – Tenho ordens para não deixá-lo cometer mais nenhuma tolice, te explicarei então quando passares do Aqueronte com Aquiles, pois de lá sei que não poderás voltar aqui, em outra dessas suas tentativas de ressuscitar quem não deves.
Quanto a essas palavras, Erisictão se limitou a baixar a cabeça, desviando o olhar para o chão, sem poder evitar recordar-se do lamento confuso e triste de sua família.
- Deverias agradecer a benevolência do senhor Hades – O mais velho tomou novamente a palavra, fazendo o menor encarar suas costas enquanto caminhavam – Suas irmãs e pai desagradaram os deuses, poderiam ter um castigo ainda pior no Tártaro, do que simplesmente vagar pelos campos Asfódelos. Porém, duas divindades pediram clemência por suas irmãs, e o nobre coração do nosso deus acatou tais desejos, uma delas até mesmo estendeu esse pedido a terceira irmã e seu pai, que tanto as amava ao ponto de findar sua vida por perdê-las.
-Dois deuses pediram pelas minhas irmãs...? – Repetiu confuso – Um deles teria sido minha deusa Athena?
Quanto a esse comentário, Nasu se limitou a rir com amargura, balançando a cabeça.
- Me dói o quão inocente tu podes chegar a ser, criança – Se limitou a dizer, sem encará-lo diretamente – Não, foram dois sobrinhos do senhor Hades, e se prezas a lealdade que tens a tua deusa, é melhor que não saiba quem são. Mesmo que um seja indiferente a tua senhora, o outro pode ser um problema.
Temendo desonrar sua divindade mais uma vez, nada disse, enquanto o bosque ficava para trás e à sua frente se mostravam caminhos suntuosos de pedra, ao tempo que o som de um rio podia ser ouvido.
Então, nas margens do Estige depararam-se com três figuras, do lado esquerdo um homem de cabelos azuis curtos e espetados, que parecia muito mal humorado, Aisakos de Benu, ao seu lado, um homem de cabelos curtos e cacheados, olhar impaciente, um rosto impecável e um porte forte de guerreiro. Aquiles. Por último, do lado direito, encontrava-se o juiz Aiacos, que parecia sumamente preocupado, com seu semblante impaciente, denotando ainda mais sua idade que parecia beirar os sessenta anos.
- Finalmente! – Exclamou o morto, ao ver a dupla se aproximando – Por que demorou tanto?
- Perdão senhor Aquiles, eu tive alguns problemas no caminho – Escusou-se desviando o olhar para o chão sentindo-se culpado, contudo, logo voltou a erguê-lo para ver interessado o juiz, que o esquadrilhava de cima a baixo. – Obrigado senhor Aiacos, por me permitir cumprir minha missão.
Em resposta, o mencionado franziu a expressão com lastima.
- Eu apenas fiz meu trabalho como juiz do mundo dos mortos. – Se limitou a dizer, enquanto de mal grado Benu soltava as correntes que prendiam Aquiles ao seu lado – Espero apenas que faça valer o julgamento que tu não enfrentaste, pois não pareces do tipo traidor.
- Farei sim, senhor – Respondeu com uma ligeira inclinação em respeito, ao tempo que o guerreiro grego massageava os pulsos soltos, caminhando até o príncipe de Atenas. – Novamente agradeço.
E assim começaram a caminhar, sendo guiados por Nasu, de volta ao bosque, à saída do mundo dos mortos.
Estavam há apenas alguns passos, quando Aiacos ergueu sua voz.
- Meu neto. – Isso fez Aquiles parar, lançando um olhar desinteressado e impaciente para o antigo rei. – Diga a teu pai que eu o perdoo.
Isso fez Eri piscar confuso, mas o protegido de Athena prontamente pareceu compreender o recado, pois seu olhar havia se ampliado ao processá-lo.
- O farei assim que me apresentar a minha deusa – Respondeu em tom solene, inclinando-se, mostrando respeito pela primeira vez.
E com isso, o grupo seguiu seu inevitável caminho.
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Aldebaran teve que correr para dentro da Fonte, mesmo ainda envenenado, com um cansado Muh à sua cola para conter o descontrole de Aioria, quando Ikki simplesmente o soltou para seguir os movimentos de Camus, parando na porta da ala médica, vendo assim como o aquariano se colocava na frente de todos, para então sentar-se no chão e esperar.
Vê-lo assim, de costas, inevitavelmente o fez recordar-se do passado, milênios atrás, quando o viu se afastar na companhia de Aquiles e Verônica, era uma memória turva e antiga em sua mente, mas parecia revivida graças ao deja vúu que vivia nesse momento.
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- Ele tem alguma ideia do que aconteceu para que ele pudesse partir? – Questionou Aisakos encarando o trio que se perdia na escuridão do horizonte.
- Mesmo tu já sabes sobre isso? – Questionou o juiz, sem encarar o outro, mas vendo a mesma direção.
- É impossível não saber, fui imediatamente questionar o senhor Hades quando vi o sangue correr pelo Flegetonte, o som dos gritos dos que se banhavam em suas chamas ecoou tal qual os lamentos do Tártaro, afinal, para nós, e para os mortos, o rio de fogo tem o poder da cura, mas para os vivos...- Engoliu em seco – Não imaginei que consumisse o corpo, e se impregnasse na alma. Acima de tudo, eu não entendo por que o sangue não se consumiu também, ao invés de se impregnar por todo o leito.
- Quem sabe... – Analisou simplesmente o antigo rei fechando seus olhos – Talvez no fundo Astéria ainda tivesse sangue divino, e este o rio não pôde consumi-lo? Talvez seja apenas o desejo do próprio Flegetonte para que esse sacrifício não seja esquecido. Não podes esquecer que, por mais que tenha abandonado sua forma física em prol desse reino, ele ainda é uma entidade.
-Sim, eu já ouvi falar de algo assim, mas sinceramente não achei que fosse verdade – Disse virando-se e encarando o rio atrás de si. – O que levaria alguém a ser transformado em um rio?
- Muitas coisas, na verdade – Ponderou - Não é uma história muito conhecida mesmo por aqui. Aconteceu quando o senhor Hades recém havia criado o mundo inferior, como um imenso vazio, onde só havia os campos Asfódelos, baseados nas lembranças que nosso senhor tinha do Olimpo. O imortal Aqueronte, durante a titanomaquia, forneceu água aos titãs, e por isso foi transformado como castigo em um rio por Zeus, em meio a gritos de dor e tristeza. Nosso senhor então o trouxe para o reino, logo a sua entrada, para suas curvas suntuosas e correntezas lembrassem àqueles que ali entravam que não regressariam mais, e que, contudo, a maior dor e tristeza que a morte trás, não atinge realmente quem passa pelo Aqueronte, e sim quem se mantém do outro lado, entre os vivos. Estige, por outro lado, era uma belíssima e honrada mulher, foi a primeira a se apresentar a Zeus quando este convocou todos os imortais no último e derradeiro ataque a Kronos. Sua lealdade e voto foram recompensados pelos deuses com a habilidade de fazer cada voto, promessa ou palavras ditas a sua frente sejam cumpridas.
- O juramento inquebrável do rio Estige – Complementou Benu ao que o mais velho confirmou com a cabeça.
- Por outro lado, Flegetonte era um imortal, não saberia dizer se um deus ou um daemon, mas ele era a representação do próprio fogo, quando Estige o conheceu, provavelmente durante a guerra, e então ambos se apaixonaram perdidamente. Contudo, quando tentaram consumir sua união, Estige, mesmo sendo imortal, teve o corpo consumido pelas chamas de seu amor e assim desapareceu. Dizem os antigos cânticos que Flegetonte se pôs de joelhos, em pranto, numa esperança de consumir suas próprias labaredas e assim poder procurar seu amor. Suas lágrimas de lamento criaram então o Cócitos, como um filho seu e de Estige, um rio de arrependimento e lamúria. Quando este, porém, soube que um dos três grandes deuses criou um reino para prender os titãs e abrigar os mortos, correu ao seu encontro, levando Cócitos consigo. – O juiz se permitiu sorrir, mesmo que com tristeza- No reino dos mortos, a alma de Estige justamente buscava com o deus dos que se foram um meio de estar com seu amor.
Isso fez Aisakos ampliar o olhar, imaginando o desfecho de ambos os pedidos.
- Eles foram transformados em rios também – Ao que Aiacos novamente concordou.
- Estando em seus domínios, Hades pôde transformar Estige em um rio forte, indestrutível, capaz de aguentar se aproximar de seu amado, enquanto Flegetonte se tornou um rio de chamas, que, no entanto, é frio ao toque dos mortos que se aproximam dele, mesmo que doloroso aos vis com o intuito de prolongar seu sofrimento, por isso vai até o Tártaro, mas ainda assim é um rio que cura as almas que o utilizam. Desse modo os amantes enfim puderam estar lado a lado, correndo juntos mesmo que na terra dos mortos, enquanto Cócitos foi colocado aos pés do palácio de Hades, guardando em suas margens aqueles que morreram sem sepultura, sem um enterro digno, em honra ao lamento de Flegetonte por perder Estige e não poder velar seu corpo desfeito, contudo, também um recordatório de que todo o sofrimento terá um dia fim, uma vez que o seguinte rio é o Lete, a sobrinha de Hypnos e Thanatos, que tem como vocação dar descanso aqueles que sofrem, apagando suas memórias. – Abriu seus olhos, respirando fundo, também virando-se para o rio que outrora havia sido uma bela jovem – É muito irônico que Aquiles tenha se tornado indestrutível por ser mergulhado criança nessas águas, enquanto Astéria se lançou ao Flegetonte para que ele e o príncipe pudessem ir. Isso pode ter despertado a consciência daquele que sabe o quão doloroso o amor pode ser.
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Ikki não fazia a menor ideia do porquê estava invocando essas memórias agora, ou de onde elas tinham surgido em meio a névoa que eram suas lembranças como espectro, como se tivesse se embriagado de vinho feito do Lete, e pouco se lembrava antes da ressaca que era sua nova vida, servindo novamente o senhor dos mortos, este sendo agora, seu próprio irmão.
Só voltou a realidade quando os gritos de Kiki exigindo que pudesse arrastar Camus de volta para dentro começaram a doer em seus tímpanos.
- Isso não vai adiantar de nada – Disse voltando-se ao lemuriano que era detido por Isaak, enquanto Krishna, Io e Kasa se limitavam a observar a interação dos novos companheiros, deixando assim de ajudar com os leitos. – Ele não pode ser mais ajudado por ti, nem mesmo o deus da medicina conseguiria algo. Ele é agora apenas a sombra de um homem querendo realizar seu último desejo.
Isaak estava a ponto de gritar com o desconhecido por ter se referido assim ao seu mestre, mas mudou de ideia ao ver que isso havia feito Kiki deixar de forcejar.
-...O que quer dizer com isso, Ikki...? – Disse em tom sério, que o leonino jamais pensou que ouviria sendo usado pelo menino ruivo e hiperativo que há muitos anos conheceu.
- Apenas deixe-o – Se limitou a responder, não dando realmente qualquer explicação. Indo até uma das paredes externas da Fonte e se apoiando nela – Eu vou ficar de olho nele, por garantia, pode se preocupar com “os seus” então.
Isso fez o médico franzir a expressão em completo desgosto.
- Se você cuidar dele tão bem quanto cuidou de Aioria... – Resmungou, ainda assim deixou o espectro quieto, não antes de gritar com todos os marinas por estarem de braços cruzados, voltando para dentro, mesmo que contrariado e irritadíssimo.
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Suikyo podia ouvir os gritos do lemuriano mesmo na outra ala, e não foi nem um pouco difícil de imaginar a razão da nova explosão. Dedicou um último carinho ao rosto de seu irmão, abaixando-se e beijando sua testa, sentindo um gosto salgado de seu suor, porém, não se atentou a isso no momento, se dispondo a levantar. Se a história de Erisictão iria acabar hoje, sentia que devia estar lá para ver, uma vez que testemunhou como tudo tragicamente começou.
-...Poderia, me fazer um favor? - Antes porém, seu olhar se voltou ao deus da medicina, que conhecia apenas de estátuas e lendas até aquela noite. – Meus ajudantes tiveram que conter meu “aprendiz”, e eu realmente preciso de outra máscara.
Vendo o rosto do homem de longos cabelos pretos, muito bem amarrados na ausência de uma touca, pôde notar que a máscara cirúrgica que usava estava completamente úmida, devido a lágrimas silenciosas que corriam dos olhos claros do deus. Vendo que as mãos enluvadas dele estavam completamente sujas de sangue ao operar um dos filhos de Aioria, apenas confirmou com a cabeça e foi até a mesa móvel trazida por Rômulo e Rivera, tomar o item desejado, enquanto a divindade descartava o que usava.
-...Eu sou um deus, é impossível me infectar com qualquer doença humana – Disse entre fungados, enquanto o ex juiz tomava uma máscara nova – Portanto, é igualmente impossível eu transmitir algo para quem opero.
- Então por que o senhor utiliza máscara? – Atreveu-se a perguntar, oferecendo a limpa, sujeitando-a pela alça para não contaminá-la.
- É um costume que adquiri com os mortais – Comentou colocando, e seguindo a operar, em movimentos tão rápidos e precisos que Aiacos só podia atribuir a um especialista. – Além disso, mesmo que não seja o recomendável, e muitos hospitais que atuei fiquem bravos com os gastos que eu gero tendo que trocá-las constantemente, devo dizer que elas também são bem uteis para absorver nossas lágrimas.
Não teve como realmente responder a isso, vendo como o líquido salgado ainda corria pelos olhos do médico, e mesmo apesar de seus fungados, suas mãos seguiam firmes e sem qualquer tremor que pudesse atrapalhá-lo.
Sua devoção era louvável, e sua dor palpável.
- Eu te darei outra, se precisar – Ailá se prontificou, terminando de examinar Remo, comprovando que Kanon, surpreendentemente, havia feito um bom trabalho.
- Obrigada Ailá - Foi tudo que pôde dizer a jovem, ainda mexido com as palavras da divindade, ela apenas afirmou com a cabeça, e então Aiacos saiu da segunda ala, deixando o antigo cavaleiro sozinho com seu paciente e seus próprios pensamentos.
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Estava diante de uma terra verdadeiramente arrasada.
Encontrava-se de joelhos, diante de um congelado rio Cócitos, lágrimas corriam por sua face, surcando suas bochechas, e gotejando sobre a superfície fria.
Ao seu lado, encontrava-se uma jovem de cabelos negros escorridos, vestindo uma longa toga da mesma cor, gasta em suas pontas, em sua mão direita firme havia um cajado de ponta retorcida. Esta era Hécate, a deusa da bruxaria.
De seus mesmos lábios havia escutado como o príncipe de Atenas tinha tentado alcançar o submundo em um mergulho suicida, para chegar a sua protetora, Astéria, que havia aceitado se lançar viva no rio de fogo, para que o pequeno pudesse retornar ao mundo dos vivos junto com Aquiles.
Enquanto todas essas tragédias aconteciam diante de si, estava morto, condenado a apenas assistir como o rio dos lamentos se congelava, podendo apenas sentir o cosmo da jovem criança que ali pereceu, desaparecer. Tudo que pôde fazer era lamentar quando o sangue começou a correr por toda a extensão do Flegetonte.
Estava no submundo, junto com eles, mas completamente incapaz de fazer qualquer coisa, sendo apenas uma alma vagante e sem forças a margem do Cócitos, por não ter tido um corpo para ser enterrado ao morrer.
- Eu entendo sua dor – A bruxa dizia com voz suave - A jovem que agora vive em teu coração, um dia foi aquela que me concedeu a vida - Disse com tristeza observando o pranto do semideus.
- Que entendes? Não entendes nada! - Gritou sem virar-se para ela, encarando a superfície gélida, que conservava os cadáveres de alguns espectros que haviam caído naquela guerra recente. - EU PODERIA TER EVITADO TUDO ISSO!! EU SEMPRE CUIDEI E CUREI CADA UM DE SEUS FERIMENTOS! E QUANDO ELES MAIS PRECISAVAM DE MIM EU LHES FALTEI!
Começou então a bater repetidamente a testa contra o gelo, contudo, apesar de seus esforços, este não parecia nem sequer perto de rachar, enquanto sangue começava a escorrer de sua testa.
- De que valem minhas habilidades de cura, se eu não pude salvá-los? NENHUM DELES! E TUDO ISSO PORQUE O FILHO DE ATHENA MATOU A FAMÍLIA DE ERI, ERICTÔNIO QUE EU CUIDEI COMO MEU FILHO, OS MATOU A MANDO DE ATHENA!! – Gritava a plenos pulmões, como se quisesse esgotar sua voz para sempre, enquanto ela ecoava pelo campo de batalha - E AGORA ELES ESTÃO CONDENADOS A SERVIR ESSA TRAIDORA ATRAVÉS DOS SÉCULOS ENQUANTO ESSA GUERRA DURAR!
Antes que a bruxa pudesse responder ou impedi-lo de continuar se machucando dessa forma, Asclépio ergueu-se, e saiu correndo por aquele imenso campo de batalha.
Os longos corredores do submundo que outrora levavam ao salão de julgamento, agora não passavam de ruínas, salpicado de corpos caídos naquele terrível conflito que foi a primeira guerra de Athena e Hades. Pôde até mesmo reconhecer entre escombros o corpo morto de Eniato de Virgem, e de um outro espectro de cabelos azuis espetados que o guiou quando chegou no mundo dos mortos. Contudo, nada disso importava minimamente, tudo que queria era simplesmente poder alcançar o Flegetonte.
Não se importava sequer de olhar para trás para ver se a bruxa o seguia, tampouco de encarar outros mortos e reconhecê-los.
Até que conseguiu encontrá-lo, o rio que agora fervia o sangue daquela que sempre viveria em seu coração.
Estava a ponto de se jogar dentro daquele calvário, quando a bruxa simplesmente surgiu à sua frente, sentada em seu cajado.
- Estás morto ainda Asclépio, não conseguirias nada tocando o Flegetonte.
- ME DEIXE EM PAZ - Berrou sem juízo, usando toda sua força para lançar a deusa de sua montaria ao chão- EU TENHO QUE ENCONTRÁ-LA, EU SEI QUE ELA ESTÁ AÍ, EU SINTO, EU SINTO ELA AQUI!!
Novamente tentou lançar-se, porém, mesmo que a deusa estivesse agora no chão, seu cetro sozinho impediu os seus passos.
- Eu não posso permitir, tenho como missão te levar até teu pai e Moros. – Declarou em tom triste, sentando-se na margem.
- E QUE VIDA ME ESPERA SE OS DOIS ESTÃO MORTOS POR MINHA CAUSA? - Berrou ao ponto de sua garganta rasgar - Eu os amava! E minha soberba de poder provar as minhas habilidades me impediu de usá-la em quem realmente me importava! Do que me vale viver se eu não posso mais ver o sorriso dela, do que vale viver em um mundo onde o príncipe que Atenas esperava ser rei, se afundou em loucura e lamúria. Não. Deixe-me aqui, deixe-me perecer ao lado deles! De nada vale a existência de alguém tão sujo e imundo como eu. Eu quero poder ser castigado tal qual eles, que sofrerão com uma pena pior do que a morte.
Então tocou a superfície do cajado e o fez queimar de dentro para fora, assim, com seu caminho livre, mergulhou enfim no rio de sangue.
Porém não sentia calor, sentia um enorme frio tocando sua pele, enquanto o ferimento em sua testa desaparecia. Não conseguia mergulhar ao tempo que sentia como flutuava como se estivesse no Mar Morto, embora seus pés não tocavam o chão. No entanto, o mais surreal de tudo, era que o sangue de Astéria parecia evitá-lo, afastando-se de si cada vez que tentava tocá-lo. Onde estava, e apenas onde estava, o Flegetonte voltava a ser apenas um rio de chamas.
- Saia daí meu menino- A bruxa dizia com pesar, sem parecer ofendida de ter sido lançada no chão, novamente sentada sobre o seu cajado que parecia intacto, a mão esticada em sua direção - Há formas mais dignas de tu honrar a memória daqueles que perdeste. Além disso, pense em teu pai e o quanto ele sofre e sofrerá com a tua ausência, ele te espera ansiosamente na entrada do submundo, não o faça novamente chorar a perda de um filho.
Quase que mecanicamente esticou sua mão e a bruxa o puxou com uma força que não parecia pertencer-lhe, acomodando-o assim na parte de trás de seu cajado. Desse modo ergueram-se mais alto e sobrevoaram a terra arrasada, pôde ver como os Campos Asfódelos agora ardiam em chamas, como Aqueronte estava completamente desgovernado, e mais e mais corpos apinhavam o caminho.
E antes mesmo que pudesse se dar conta, o Sol brilhou novamente sobre si, quando uma fenda em pleno ar os levou a um cenário vazio e desértico. Com a doçura de uma mãe, Hécate ajudou o mais jovem a descer a terra árida, sequer teve tempo de senti-la sob seus pés quanto a figura do seu pai correu em sua direção, seus cabelos tão vermelhos quanto o sangue dela.
- Meu filho tu...! - Não foi capaz de completar, ao ver a figura vazia que estava à sua frente, oca, como um corpo sem alma que não parecia vê-lo realmente - O que fizeram contigo?
Então se aproximou lentamente um deus de longos cabelos cacheados, olhos cobertos com uma faixa, e uma postura tão imponente quanto misteriosa. Moros.
Sequer havia processado a figura a qual seu pai apelou para poder trazê-lo de volta ao mundo dos vivos, sob o preço de jamais ressuscitar qualquer outra pessoa, e já se jogou no chão à sua frente.
- Asclépio! O que estás…? - Tentou questionar Apolo exasperado, mas foi interrompido por seu filho.
- Eu lhe imploro senhor Moros, senhor da morte inevitável e do destino, apague a repugnante existência de Asclépio de Serpentário. Apague a existência desse semideus patético, de todos que o conheceram... Me permita viver uma nova vida, como um deus, o deus daqueles que vivem pelos outros, que vivem para curar os males dos homens.
Seu pai apenas o observou com a boca aberta, extasiado, em um misto de surpresa e alegria com as palavras de sua criança.
Por sua vez Moros se mante impassível, apenas encarando-o de cima.
- Será feito criança, contudo, saiba que teus filhos mortais, todos os amigos que conheceu, mesmo aqueles que já morreram, esquecerão de tua existência. Ainda assim, insiste em recomeçar tua vida? – Perguntou em seu tom grave.
-...Sim – Disse simplesmente, ainda de cabeça baixa – De nada me vale minha anterior vida agora.
- Sendo assim - Esticou sua mão e colocou sobre a cabeça dele, contornando-o com uma energia branca e profunda - Tu terás, porém, o poder de reverter isso, individualmente, quando achar que for necessário.
- Jamais será- Colocou taxativo - Eu serei um novo homem, sob um novo nome.
- Nunca diga jamais, jovem deus - Seguiu o primordial - Seja como for, como pagamento por realizar teu desejo, proibido estás de usar teus poderes divinos de cura em qualquer um dos cavaleiros de Athena, mesmo daqueles que perdeste hoje. Aceitas esse acordo?
Não respondeu a princípio, fazendo seu pai engolir em seco, para então soltar em uma voz tão morta que sequer pareceu ser sua.
- Assim será.
- Muito bem, se um dia descumprires a tua parte deste nosso acordo, deverá pagar frente ao Olimpo, por desrespeitar a palavra ao deus do destino.
- Que assim seja.
E sem conseguir mais se conter, o pranto o dominou novamente, desesperando seu pai, que se ajoelhou para abraçá-lo, enquanto tentava erguê-lo do chão, e levá-lo consigo ao Olimpo, sendo testemunhados por Moros e Hécate.
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Por sua vez, a conversa tão amistosa de Ikki e Kiki chamou a atenção de Shoryu e Julian, que haviam parado sua disputa desde a saída do aquariano, e mesmo Izo, ao lado e Dohko, e Albafica mais distante observavam curiosos o “desconhecido”. Enquanto os marinas, a contra gosto ou não, voltavam a ajudar para evitar um novo acesso de gritaria de seu novato companheiro lemuriano.
Entre todos, Dohko foi o primeiro a se aproximar dele.
- Ikki, finalmente temos a oportunidade de estarmos frente a frente – Disse o libriano, recordando que a última vez que o havia visto, estava ocultando sua presença, vendo como o leonino interagia com Muh, Piada e Aldebaran, quando a casa de Touro ainda não havia ido a baixo.
- Dohko – Nomeou de sua forma indiferente característica, com os braços cruzados, ainda apoiado contra a parede. – Você está péssimo.
Não se referia apenas a aparência do mais velho, sua expressão era pálida, sua postura decaída e preocupada, embora tentasse mostrar normalidade. A alma do centenário homem estava uma completa bagunça, onde uma única pena poderia desestabilizar a balança de sua persona.
- Acho que eu simplesmente não tenho mais idade para enfrentar guerras assim – Disse com um sorriso cansado que dessa vez soava muito sincero. – Por acaso você viu meu amigo Shion a caminho daqui?
- Não, mas ele está próximo daqui, está com Athena e Poseidon – Dito isso então olhou para o céu escuro coberto pelo mar – A escuridão do oceano, ocultando mesmo as estrelas e a Lua, em pouco tempo conseguirá atrair todo o miasma, e então todos poderão sentir o cosmo novamente.
- Entendo...- Confirmou vendo do mesmo mar, para os marinas que eram sutilmente obrigados a ouvir as ordens de Kiki – Sinceramente ainda me custa acreditar que o acordo de paz entre Athena e Poseidon foi um sucesso. Mesmo que seja no fim da guerra, essa ajuda ainda é muito bem vinda.
- Eu não findaria a guerra tão prematuramente – Contestou o espectro franzindo a expressão, encarando o corpo semi-envelhecido de Izo – Não me parece que vocês conseguiram parar Chronos.
- Não. – A resposta tácita veio de Shoryu, com uma expressão de completo desgosto e culpa – Ele está no corpo de Hyoga, como suspeitávamos, mas eu não pude detê-lo.
- NÓS, não pudemos detê-lo – O corrigiu – Eu fui o culpado por ele conseguir escapar, aliás. – Confessou de cabeça baixa.
- Isso não é verdade! Foi esse mar idiota que nos engoliu e perdemos ele de vista – Rebateu o mais velho.
- Com exceção de Kanon, o poder de Poseidon desviou de todos – Juntou-se novamente a discussão, Dohko – A barreira temporal que Izo disse que os envolvia, devia ocultá-los até mesmo do deus dos mares, por isso vocês devem ter sido atingidos assim.
- Se nem eu consegui sentir vocês lutando, duvido muito que o Marolinha sentiria alguma coisa. – Ironizou Ikki com arrogância.
- Marolinha? – Repetiu o ancião sem entender.
- Mas quem é você de qualquer forma, parece saber de muita coisa – Porém antes que Benu pudesse responder, Shoryu intrometeu.
- Você não lembra dele das aulas de história do santuário, Sho?! – Exaltou-se Izo com o pouco tato do irmão.
- ...Não, eu dormia na maior parte delas, lembra? – Comentou em seu tom óbvio, voltando aos poucos a sua postura mais calma, depois do ligeiro enfrentamento com Julian, mesmo apesar de sua perna quebrada, poupada ao se apoiar no cajado de Athena.
- Ele é o “lendário” Ikki de Fênix – A resposta partiu de Julian, enquanto Izo se pôs a reclamar com seu irmão. – Teria sido o sucessor de meu pai, se não tivesse desaparecido há vinte anos. Era um dos antigos cavaleiros de bronze.
- Ah....Tinha um cavaleiro de Fênix no grupo do papai...?
- SHORYU!
- O quê?! Eu só estou perguntando!
- Você deveria saber disso!! – Seguia Capricórnio, completamente envergonhado com a postura do outro.
- Eu já disse que era porque dormia nessas aulas...
- E tem alguma aula que você não dormia?!
- Claro, os treinamentos com o senhor Máscara. Não é inteligente dormir na aula de alguém que pode te mandar literalmente para o inferno – Explicou com obviedade, que apenas fez o mais novo levar uma de suas mãos envelhecidas ao rosto em completa descrença.
Por sua vez, a atenção de Ikki se centrava no cavaleiro de Leão, que de igual modo o esquadrilhava de cima a baixo.
- Então você é o filho mais velho de Aioria, o responsável por aquele raio que exterminou os ramos que invadiam o santuário – Deduziu o japonês, sem desfazer sua postura.
- Sim, eu a Albafica demos um jeito naquelas coisas – Disse indicando o pisciano que usava essa menção como desculpa para finalmente se aproximar, vendo o espectro com expressão desconfiada. – Por outro lado, jamais imaginei que conheceria o meu quase antecessor.
- Você fala como se eu fosse realmente passar a armadura de Leão facilmente – Desafiou em tom esnobe – Você teria que se esforçar muito se um dia quisesse ser meu sucessor.
- É, você é tão arrogante quanto meus pais contavam – Disse com um sorriso provocador – Mas sinceramente, eu te imaginava mais alto.
Antes que Benu pudesse responder, irritado, pela provocação, o leonino lhe deu as costas sem dar muita importância ao assunto, aproveitando o final da briga com seu melhor amigo para ver um pequeno grupo de crianças chorosas e abraçadas umas as outras, acomodados nos leitos do lado de fora da Fonte, e que pela aparência era fácil deduzir que eram seus irmãos.
- Parece que Aioria esteve muito ocupado durante esses anos – Resmungou, pensando que ainda havia um sendo operada pelo suposto deus da medicina dentro da Fonte. Ainda assim, não buscou seguir com a pequena disputa, que o grego fosse com seus irmãos era algo digno de seu respeito.
Aproveitando que a atenção de quase todos da nova geração estava agora em Ikki, Dohko, sem permissão, apoiou-se no ombro dele.
- Rapazes, um pouco atrasado, mas eu gostaria de fazer as apresentações, como Julian falou, esse era Ikki de Fênix! Ele é meio irmão de Shiryu, Seiya e Hyoga, portanto, é tio de vocês!
- Tio porra nenhuma! – Exclamou soltando-se agressivamente do braço contrário que apenas riu pelo gesto.
- Mas Shiryu é o pai deles! – Explicou o mais velho com um sorriso genuinamente divertido nos lábios – Então são seus sobrinhos, já que todos são filhos de Mitsumasa Kido.
- Não me vincule com esse monstro! – Colocou com repulsa, surpreendendo Dohko, pelo que sabia do japonês, este não tinha um horror tão grande assim pelo pai, ao menos não ao ponto de se referir a ele como monstro – Meu único irmão é Shun.
- Você que perde – Resmungou Libra com infantilidade – Junto com Suite, são os melhores sobrinhos que alguém poderia desejar!
- Não são meus sobrinhos – Firmou, em um tom que roçava a ameaça, ao que o mais velho se limitou a dar de ombros, vencido.
-....Aaah, acho que eu lembrei quem ele é agora – Comentou sonolento Shoryu vendo a interação sem real interesse.
- AGORA?! – Exclamou Izo em choque, enquanto Albafica simplesmente negava com a cabeça.
Presenciando a interação de quase todos seus amigos, Soleil sorria, parado pouco atrás de seu pai, sabia que sentiria muita falta de todos eles quando fosse definitivamente ao mundo dos mortos, porém, mesmo se passassem a detestá-lo depois do desfecho dessa noite, ainda estava feliz por tê-los conhecido.
- Seja como for – Seguiu Ikki, afastando-se alguns passos de Dohko, e voltando a se apoiar na parede, vendo os dois chineses mencionados – Vocês são idênticos ao seu pai, principalmente você – Disse vendo o mais novo, franzindo a expressão ao analisar melhor os danos que Chronos havia causado no jovem.
- São, não são? – Impôs Dohko com orgulho, indo até Shoryu e o abraçando de lado – Sho é adotado, mas até parece que foi feito sob encomenda! – Quanto a isso o mencionado não disse nada, se limitando a desviar o olhar, encontrando-se com o de Julian, mas nenhuma palavra foi dita entre ambos.
- Talvez um “companheiro” meu possa dar um jeito nisso – Seguiu Benu, indicando a situação de Izo.
Isso fez Dohko soltar seu neto, mesmo Shoryu voltou a encarar o leonino mais velho com expressão surpresa.
-...Está falando sério...? – Perguntou o capricorniano descrente.
- Provavelmente, ele também é capaz de manipular o tempo no corpo das pessoas, principalmente retrocedê-lo.– Comentou com desgosto.
- O senhor... – Começou Shoryu em um tom sério, aproximando-se do mais velho, um brilho de esperança em seus olhos – Falaria com ele por meu irmão?
- Sim – Deu de ombros – Tudo para estragar os planos de Chronos. O imbecil, claro, não faria isso de graça, mas tenho certeza que Shun consegue convencê-lo, principalmente pelo atingido ser um filho de Shiryu.
Ikki só teve tempo de piscar surpreso ao ver como os olhos do cavaleiro de Libra se enchiam de lágrimas, e no segundo seguinte, sem sequer ter tempo de processar quando, já estava sendo simplesmente esmagado pelos braços do chinês.
- Quando você...?! – Tentou perguntar, confuso.
- MUITO OBRIGADOOO! – Em resposta Shoryu apenas berrou, abraçando o mais velho com mais força, até mesmo o levantando do chão, por ser mais alto que o mais velho. – VOCÊ É MEU TIO MORTO FAVORITO!
- ME SOLTE AGORA OU EU TE MANDO DIRETO PARA O TÁRTARO! E eu não estou morto! – Gritou em contra partida, com seu orgulho ferido, soltando-se dele como havia feito antes com Dohko, no processo notando que o cavaleiro tinha em mãos o cetro de Athena, o mesmo que Shun supostamente tinha destruído quando se encontrou com a deusa. – Como você tem essa coisa?!
- Eu juro em nome da minha deusa que irei recompensá-los da melhor forma que puder se fizerem isso por meu irmão! – Seguiu o mais novo, deixando-se afastar, mas ainda choroso.
- Não me abraçar de novo já é um bom começo – Ameaçou, se afastando ainda mais, na esperança de não ser pego de novo nessas amostras exageradas de afeto libriano – Mas antes disso, como você tem o cetro de Athena?! Eu o vi sendo destruído!
- É isso que eu gostaria de saber também – Intrometeu-se Albafica com um deixe de impaciência, sem deixar de ver o leonino mais velho com suspeita em nenhum momento. – Shoryu, você desapareceu logo depois que o Grande Me...Digo, ex Grande Mestre – Colocou engolindo em seco, o que fez o mencionado franzir a expressão e Izo desviar seu olhar, já haviam sido informados da mudança por Julian e Dohko. - ...Decretou que todos deveriam permanecer no estado de sítio. Você foi até mesmo taxado como traidor por causa disso.
- Por um pedido de Hyoga, cabe destacar, o que anula completamente essa decisão – Rebateu com desgosto o libriano.
- Não para Athena. – Interveio Julian, mesmo que sentado junto aos seus irmãos, escutava atentamente a conversa – Não vai ser nem um pouco fácil convencê-la de que ele é Chronos.
- É só olhar para o que ele fez com Izo!- Defendeu-se, elevando novamente a voz, com uma fúria que parecia pouco sua, mas que tanto Julian quanto Albafica encaravam com naturalidade.
- Ela pode simplesmente supor que foi você que fez isso a ele – Seguiu o pisciano.
- EU JAMAIS FARIA ISSO COM MEU IRMÃO! – Berrou, a aura ameaçante voltando a tomá-lo, fazendo Ikki erguer a sobrancelha interessado, pelo dúbio da personalidade de seu ‘sobrinho’.
– Nós sabemos – Continuou o samurai com um suspirou – Mas todas as dúvidas dela estão dirigidas a você, e o fato de estar com o báculo da deusa não melhora nada a situação, nisso o senhor Ikki tem razão – Disse, vendo o dito de soslaio – Como você o conseguiu em primeiro lugar? Recordo-me de Athena ter partido para a Alemanha com ele.
- Eu estive no santuário o tempo todo – Disse girando o báculo com a mão e assim fazendo-o desaparecer em pleno ar. – Estive me hospedando na câmara dos antigos, por isso precisava do báculo para ingressar nesse lugar, como o oxigênio de lá eventualmente acabava, eu precisava sair, inclusive cheguei a passar ao seu lado e de seu pai, quando estavam na décima segunda casa.
Peixes franziu a expressão quanto a isso, lembrando imediatamente de quando seu pai o censurou dizendo que nem mesmo o vento poderia passar sem o consentimento do décimo segundo cavaleiro, então aquilo era realmente Shoryu.
- Inclusive, eu o encontrei rondando pela minha casa e lhe dei uma pequena recompensa. – Zombou Julian vendo o seu amigo, que apenas lhe lançou um olhar de desgosto, levando inconscientemente uma mão a nuca.
- Atrair os holofotes para Shoryu era um plano meu e de Shiryu, com uma ajudinha de Kiki, que criou o báculo falso que Saori Kido levou, cunhamos assim a brecha que serviu para o verdadeiro traidor se revelar. O que Hyoga fez com primor. – Justificou-se o antigo Libra, cruzando os braços com seriedade – Além disso, era um teste de como Athena agiria frente a uma nova traição dentro de seu exército, o que, podem imaginar, resultou da pior forma possível.
- Hunf, quem te viu e quem te vê, Dohko – Ironizou Ikki observando o mais velho com o cenho franzido – Chegou ao ponto de testar Athena? Nem parece o lendário cavaleiro de Libra que lutou por sua deusa há séculos.
- Eu sei – Soltou um longo e cansado suspiro, denunciando sua idade. – Em pensar que séculos atrás, você poupou minha vida em nome das minhas crenças por Athena e pela Terra, e agora aqui estamos, como aliados, mas ambos em posições contrárias a Athena. Sinceramente, eu terei sorte se sair vivo dessa guerra.
Um silêncio se formou após as palavras do chinês, enquanto os mais jovens tentavam entender o estranho conteúdo dessa conversa.
- É tão óbvio que eu e Kagaho somos a mesma pessoa? – Por sua vez, Benu não parecia incomodado com a observação – Ou será que alguém te disse? Pelo menos quando te conheci, não parecia muito inteligente.
Isso fez Dohko rir.
- Eu era um jovem ousado, apenas isso, e sim Ikki, cheguei a essa conclusão sozinho, ainda mais quando te vi retornando com Muh do mundo inferior. Além de vocês dois serem muito parecidos, tanto de gênio quanto de aparência. – Então seu olhar recaiu em Camus, que se mantinha religiosamente sentado no chão, a espera de Athena – Agora, resta saber se as palavras de Camus trarão nossa deusa de volta a realidade ou não, por isso devemos permanecer com Nike do nosso lado, ela é nossa última esperança caso isso não aconteça.
- Isso só prova o quão fraco vocês são, preferindo depender de uma deusa presa em um báculo do que em si mesmos – Acusou Benu, com desgosto, o fato que esse mesmo báculo havia sido usado para executar Hades, gerava sentimentos contraditórios em seu interior. – Além de ser uma imensa traição.
- Vovô, perdão, mas como vocês podem se conhecer há séculos, se ele é irmão de nosso pai? – Perguntou Izo, vendo de um para o outro.
- Aaah sim, creio que não faz mais sentido esconder isso, é uma questão de tempo para que tudo aqui entre em ebulição. – Seguiu o mestre ancião, voltando-se para a nova geração – Eu conheci Ikki em sua vida passada, quando ele era Kagaho, foi graças a ele que eu sobrevivi àquela guerra! – Declarou com palpável agradecimento – Por causa do nosso enfrentamento no passado, ele reencarnou como cavaleiro, junto com seu irmão. Porém, como o mundo dá voltas, e por vezes parece parar no mesmo lugar, agora ele é novamente um espectro, dessa vez, a serviço do novo senhor do submundo, embora o acordo de seu senhor e Saori Kido não tenha culminado no acordo de paz que gostaríamos, ainda assim Ikki veio a nosso auxílio, já que apesar de tudo, ele ainda é um velho companheiro nosso – Forjou uma tosse, e seguiu em meio a ela, em voz baixa – E tio de vocês...
- Não se ache tão importante, Dohko – Impôs o leonino em tom ameaçante, enquanto Julian o observava com novo interesse, Albafica o encarava com mais desconfiança, Shoryu parecia apenas pensativo, enquanto Izo estava claramente chocado. – Eu apenas não quero que meu irmão se sinta culpado por não ter podido intervir de alguma forma, enquanto vocês se matavam como umas bestas, e ainda vão nos incomodar em nosso reino depois!
- E mais importante – Seguiu Libra, ignorando completamente as palavras do leonino, irritando-o ainda mais – O irmão dele, ou seja, o outro tio de vocês é o novo imperador dos mortos, que Ikki serve. – Soltou um ligeiro suspiro - É realmente uma pena que vocês não possam conhecer o resto da família em melhores circunstâncias, ele era um jovem excepcional pelo pouco que o conheci.
Um longo silêncio se fez presente com essas palavras, onde apenas Shoryu não parecia surpreso ou interessado, desviando seu olhar novamente para Camus e Soleil.
Foi um alongado assobio de admiração que quebrou o silêncio.
- E eu pensei que minha família era complicada – Ironizou Julian, levantando-se e vendo a mesma direção de seu melhor amigo, enquanto Izo e Albafica ainda tentavam sair da impressão da revelação.
-...Athena se aproxima –Suikyo então se juntou ao grupo, agora que os assuntos mais pessoais haviam enfim terminado – Chegou a hora.
-.-.-.-.-.-.-
Antes do final da luta entre Shoryu, Hayata e Chronos. Na região da antiga oliveira.
Quando Geki, Albafica, Julian e os demais partiram na frente com os mais feridos, ficaram para trás Shiryu, Shion, Suite e Athena, estando já a uma curta distância, o pequeno grupo pôde sentir três pessoas se aproximando em alta velocidade, o que fez com que Pégaso assumisse postura protetora frente à sua deusa.
Eis que diante deles pararam duas crianças, a maior vestindo uma armadura dourada, a menor uma azul perolada, acompanhadas de Sorento, que trajava uma vestimenta da mesma cor.
- Olhaaaa, acho que chegamos em um momento um pouuuco sensível, não me leve a mal, o tapa foi cinematográfico e tudo mais, poréeem....Meio exagero, não acha? – Questionou Neroda sorrindo com simpatia, enquanto Athena assimilava a escama e cosmo do adolescente.
- Poseidon?! – Questionou ela, descrente.
- Olá Athena! – Cumprimentou o menino com um aceno de mão, vendo-a de cima a baixo. - ...Você sempre foi tão alta...?
- O que está fazendo aqui, ou melhor, por que está em outro corpo? – Perguntou a deusa, vendo surpresa o trio. – E Sorento...Pensei que ficaria no castelo para buscar June e a resguardaria em nosso lugar, confiei em ti esse trabalho.
O músico não respondeu a princípio, não fazia a menor ideia ao que a divindade se referia, tendo estado em um hospital grego desde que a batalha na mansão teve fim. Porém, logo ocorreu-lhe o relato de que em sua ausência Prometeu e Orphée haviam assumido seu papel.
Sem duvida Saori Kido se referia a um deles.
- Não se preocupe senhora Athena, ela está em segurança, por isso mesmo achei mais prudente deixá-la no castelo – Mentiu descaradamente. Sabia perfeitamente quem era June Kido, a grande empresária que havia assumido o sobrenome da enorme empresa que ajudava a administrar com louvor. Por muitas vezes, quando tratava de negócios ao lado de Julian Solo ou mesmo quando participava de importantes eventos por trás da marionete de Astrapí Solo, a viu representando as empresas de Mitsumasa Kido.
Era uma jovem de beleza singular, que de modo algum aparentava seus quase quarenta anos, e sem dúvida, muito firme e decidida nos negócios.
Porém, claro, suas pesquisas sobre a vida da moça também apontaram que havia sido uma amazona, e uma antiga companheira de Shun Kido.
Estava apostando muito alto em supor que por essa relação ela estaria em segurança no castelo de seu antigo amigo, mas esse era sem dúvida um ponto negativo de atuar no mercado financeiro por tantos anos, blefar, mentir e fazer apostas arriscadas era algo que infelizmente havia se acostumado.
Por isso, sequer hesitou em sua mentira, os aliados de Shun podiam ser muitas coisas, mas ineficientes não era uma delas.
Realmente esperava que estivesse certo.
Por sua vez, Athena não parecia completamente convencida, contudo, nesse instante Shion interveio.
- Não se esqueça, minha deusa, que Saga ainda está no castelo – Disse o lemuriano, lançando um olhar sugestivo ao marina, muito sutilmente indicando que seguisse sua linha – Tenho certeza que ele não permitiria que nada aconteça, nem a Seiya, nem a June.
- Precisamente – Seguiu o músico, lembrando-se da suspeita que Kiki e Épios levantaram em Atlântida sobre Sólon estar, de algum modo, controlando o corpo de sua outra metade. Não que receber ajuda do grande traidor fosse muito alentador, mas era o que tinha para esse momento, se seu senhor o havia perdoado, quem era ele para alegar algo contra a alma errante – Muito embora, por muitas razões, eu tenho minhas ressalvas quanto a linhagem do cavaleiro de Gêmeos, ele me pareceu bastante focado em sua missão.
- Além do que Sorento é MEU marina, e meu conselheiro, é natural que esteja do meu lado quando eu o convocar! – Neroda então deu firmeza às suas palavras, porém, o músico não saberia dizer se era por ter entendido todo o complexo da situação, ou simplesmente porque estava com ciúmes.
...A segunda opção, sem dúvidas...
- E isso é algo que realmente me intriga, o que faz aqui o imperador dos mares. Quando e como seu selo foi rompido? – Seguiu então a deusa com desconfiança - Além disso...Por que está no corpo do filho mais novo dos Solo?
- Aaah, não, são muitas perguntas...- Resmungou bagunçando seus cabelos – Assim eu me perco! E eu não estou no corpo de ninguém, esse é o meu próprio corpo! – Exclamou com orgulho, levando ambas as mãos a cintura, tal qual Peter Pan.
-...Isso não faz o menor sentido. – Saori observou com exasperação, era mesmo possível que essa criança fosse seu tio Poseidon?
- Claro que faz, há vinte anos, eu fiz um acordo com Shun. Meus marinas e reino de volta, e em troca, eu experimentaria ser um mortal e tcharaaam! Aqui estou eu, Neroda Solo. – Concluiu como se isso explicasse tudo.
Porém tudo que conseguiu foi espantar Saori Kido ainda mais.
- Está me dizendo que Shun o convenceu a se tornar completamente humano como eu? – Colocou ela, descrente.
-...Sim, isso foi exatamente o que eu disse, não foi? – O menino perguntou ao seu Dragão Marinho, que apenas confirmou com a cabeça. – Para uma deusa da sabedoria você demora para pegar as coisas, heeeim.
Ao ver a expressão dela se franzir ofendida, Sorento se apressou a assumir o rumo da conversa.
- O imperador dos mortos permitiu que a alma de meu senhor nascesse em um corpo mortal, e assim, meus companheiros tornaram a vida, a igual que Atlântida.
- E nem tente afundar minha ilha de novo porque eu a coloquei em outro lugar! – Ameaçou o menino apontando acusatoriamente para a divindade – Só tente, e você verá o que eu farei com o Santuário!
- Está me ameaçando?! – Assim sendo Athena assumiu postura defensiva, Suite, à sua frente, jamais deixando sua postura de batalha.
- Nãaao, somos aliados agora! – Sirene estava a ponto de assumir o diálogo de novo, que seguia sendo um ponto muito fraco de seu senhor, quando seu filho tomou a palavra
– Ninguém vai lutar com ninguém aqui, o que Nero-, digo, meu senhor quis dizer, é justamente que não deve haver mais conflitos entre nós.
- Isso, isso – Confirmou o deus humano, cruzando os braços. – Foi exatamente o que eu disse, de novo!
-...Não, não foi – Resmungou baixinho Saori, ainda estupefata com toda essa situação. – Quando discutimos nossa aliança com Astrapí Solo, tínhamos claro que ele era Poseidon e agora...Isso – Disse sinalizando o adolescente. – Como posso saber que aquele nosso trato foi verdadeiro então.
- Mas meu irmão nunca disse que era Poseidon, disse? Ele apenas disse que estava me representando, então não teve nada de errado – Completou com convicção – Ooou seja, está valendo, ou melhor, estava. Eu resolvi mudar alguns pontos do nosso acordo.
- Sem nos consultar? – Inqueriu com desconfiança.
- Ah, é... – Pensou por alguns instante – Eu tinha esquecido desse detalhe...Bem, você vai ficar sabendo agora de qualquer forma – Retou importância – E não é como se fosse algo ruim, íamos manter nossa trégua até chutarmos o traseiro de Chronos juntos, mas eu decidi que ela se estenderá além disso. Se você não nos incomodar em Atlântida, eu deixo a Terra para você.
Athena possuía a boca genuinamente aberta com essa declaração que esperou simplesmente milênios para ouvir, sem saber realmente como reagir a essa tão tarda vitória, e ainda por cima, fora do campo de batalha.
Mesmo Shion, Shiryu que se mantinha em silêncio apenas escutando, e Suite, estavam em genuíno choque.
- E como, se permite perguntar, o senhor chegou a tal parecer? – Perguntou o único lemuriano do grupo, sem conseguir acreditar no que ouvia.
-...Parecer?
- Ele quer saber porque o senhor tomou essa decisão.
- Ah, sim. Foi o acordo que eu fiz com Kiki. – Disse simplesmente como se essa resposta concluísse tudo, novamente.
- Kiki está vivo?! – Shiryu interrompeu seu silêncio frente a esse dado, dando um passo adiante. – A última informação que tivemos dele, foi que pereceu na batalha contra os servos de Chronos.
- O cavaleiro de Escorpião de vocês conseguiu poupá-lo, então ele me libertou e em troca eu o salvei, simples assim – Concluiu com um sorriso.
- O Kiki que eu conheço jamais faria isso, mesmo que fosse para poupar sua própria vida – Acusou Saori.
- Não, não, você não entendeu. Ele não me libertou para que eu pudesse salvá-lo. Ele me libertou para que eu pudesse salvá-los, ou seja, salvar vocês – Disse apontando para a deusa e seus cavaleiros, para então sorrir com arrogância – Ele, mesmo sendo uma criança na época, com certeza devia lembrar como eu era poderoso e forte durante nossa última guerra, e com isso concluiu que, sem dúvidas, vocês precisariam da ajuda de alguém como eu para derrotar Chronos. Ele é um garoto esperto, e tem razão, eu já até mesmo tenho experiência com isso, já derrotei um Titã, meu ex pai, com praticamente o mesmo nome, um deus do tempo não deve ser mais difícil do que um titã gigantesco que devora seus filhos – Retou importância com um aceno de mão – Seja como for, como ele me libertou, e aceitou se tornar um dos meus marinas, e restaurar o sangue do povo atlante, eu não só vim aqui de bom grado ajudar vocês, como era previsto em nossa aliança, como também cedo a Terra para você. A Terra, o oceano inteirinho ainda é meu, que fique bem claro!
Não houve uma resposta direta às suas palavras, Suite apenas observava a criança com um sorriso, Saori claramente não conseguia acreditar que aquele menino à sua frente era seu adversário milenar, o mesmo que começou as guerras santas, ao tempo que Shion e Shiryu estavam igualmente chocados com a ideia de que Kiki agora era um marina.
- Eu deixei vocês sem fala, eu sei, eu sou bom com as palavras – Colocou com confiança, ao que Sorento, discretamente, suspirou – Não precisam me agradecer, só vamos acabar logo com isso – Então parou, ponderando o que havia acabado de dizer – Pensando bem, podem me agradecer sim, quando tudo isso terminar, eu quero uma grande festa, como aquelas que costumávamos fazer com Dionísio, as Musas e as Graças. Só que como eu não bebo ainda, tem que ter muita comida, e principalmente, muito doce. E dos bons! Porque eu sei que você é rica.- Com isso, cruzou os braços decidido.
- Você simplesmente não pode ser meu tio Poseidon – Decretou Athena, evocando seu cosmo, como se tentasse desfazer uma ilusão, contudo, não obteve qualquer resultado.- Quem é você, na verdade?! Algum servo de Chronos, talvez de Shun?!
Por um instante, Sorento realmente se preocupou que isso pudesse ofender seu senhor, porém, ao contrário de suas expectativas, este sorria, sentindo-se realmente desafiado.
- Se não acredita em mim, terei todo o prazer de te provar, usando as minhas habilidades – Decretou, enquanto seus olhos se tornavam amarelos, e um cosmo azulado o rodeava – Eu realmente queria testar a dimensão dos meus poderes, e que melhor forma do que um dilúvio, para isso.
Isso fez um sinal de alerta soar para todos os presentes, mesmo os Marinas.
- Senhor Poseidon! – Exclamou Sorento, ao tempo que o corpo do deus humano começava a se elevar do chão, e a terra passava a tremer.
- Nerooda, isso é perigoso! – Alertava Havok, vendo assombrado como seu amigo flutuava em pleno ar.
- Precisamos impedi-lo, agora, antes que ele destrua todo Santuário! - Exclamou Athena, porém, antes que qualquer um pudesse fazer qualquer coisa, Poseidon retomou a palavra.
- Eu não tenho intenção nenhuma de destruir o santuário, na verdade, meu objetivo é ajudar a protegê-lo, nos livrando desse miasma que infecta este lugar. E o jeito mais eficiente de reuni-lo é simplesmente criar um ambiente escuro e sombrio o suficiente, para atrair toda essa energia soturna, e então mantê-la presa. Basicamente é como o submundo funciona.
Ao fim de seus dizeres, o mar que batia na costa do Cabo Sunion, que um dia abrigou um templo de Poseidon e uma prisão, começou a subir como um enorme pilar de água, cada vez mais e mais alto, e como se fosse o próprio Leviatã em forma de serpente, essas águas começaram a percorrer todas as terras do Santuário, encobrindo a luz da Lua e mesmo das estrelas, transformando o céu em mar, e a noite em uma escuridão quase tão grande quanto o Érebo.
Todos observavam impressionados, por todos os lados das terras da deusa, façanha tão surreal, ao tempo que o os pés do senhor dos mares suavemente voltavam a tocar o chão.
- E então? - Perguntou orgulhoso de seu feito. - É uma questão de tempo agora para que todo o miasma seja atraído pelas minhas águas, e seus efeitos nocivos deixem de afetar os que aqui estão. Eu sei disso, porque praticamente fui eu que ensinei Hades a usar os seus poderes, quando éramos crianças - Gabou-se - Está vendo como é uma boa ideia ter-me como aliado, minha sobrinha?
Athena não respondeu a princípio, sentindo como aos poucos conseguia voltar a sentir energias, reunidas principalmente na região da Fonte, sendo esta a maior prova de que o deus estava falando a verdade.
- Sim, o “senhor” me convenceu - Confessou, encarando a criança, por mais que ainda soasse ilógico que esse menino hiperativo pudesse ser o psicótico senhor dos mares - Isso significa que Kiki realmente é um dos seus marinas agora – Analisou. O simples pensamento de perder mais um dos guerreiros com o qual viveu as últimas guerras santas, lado a lado, era desolador. Parecia ser que aos poucos, o santuário que conheceu estivesse desaparecendo, sendo substituído por um completamente diferente e desconhecido.
- Espero realmente que não o trate como traidor, e sim como aquele que finalmente conseguiu resolver o impasse entre nós - Colocou com firmeza o deus marinho - Os meus marinas, e o meu convidado especial, devem ser tratados com todo respeito e honra caso queira que essa nossa aliança prossiga.
- Claro - Athena disse simplesmente, mesmo não estando completamente convencida. - Pela ajuda que Sorento já nos concedeu no castelo de Heinsteim, garanto que farei o que está ao meu alcance para que os seus servos sintam-se como se fossem um de nós.
- Dito isso, há só uma coisa que eu gostaria de te perguntar, Athena – Começou Neroda com seriedade, aparentando assim mais idade do que realmente possuía - E eu quero que saiba que dependendo da sua resposta, mudará para sempre a forma como eu te vejo.
Um tenso silêncio se instaurou, no qual, apesar de ansiosa, a deusa fez o possível para manter sua postura.
- E qual seria essa pergunta? - Inqueriu.
Neroda a olhou, diretamente em seus olhos claros, e questionou:
- Por que os seus guerreiros são chamados de cavaleiros, se eles sequer usam cavalos? Ninguém nunca te disse que assim esse nome soa muito idiota?
Frente a isso, Sorento respirou novamente fundo, levando uma mão ao rosto, envergonhado, enquanto Suite soltava uma risadinha.
- Athena, creio que o mais prudente agora é nos reunirmos com os demais, meus companheiros já se dispersaram por essas terras com ordens de ajudar a reunir os feridos. – Orientou o músico. – Assim, podemos planejar melhor, e mais seguros, qual será o próximo movimento a seguir.
- Eu irei na frente, minha deusa, e avisarei os demais que eles não têm que se preocupar com isso – Disse Shion indicando o céu – Pois isso, com certeza, alterou muito os ânimos.
-...Sim, mas não se afaste muito Shion, não sabemos se ainda há inimigos à espreita, e eu não quero que enfrente ninguém sozinho.
- Sim, minha senhora – Inclinou-se em respeito, e correu na direção onde Julian e os demais haviam desaparecido, não sem antes lançar um olhar curioso a Havok e Poseidon, o primeiro estando ocupado, distraindo seu deus para que este não tivesse um surto por ter sido completamente ignorado.
- É por causa de Aquiles – Suite explicou simpática ao grego que parecia-lhe tão fofo – Eu posso explicar no caminho, se o senhor quiser.
-.-.-.-.-
Camus levantou-se com a ajuda de seu filho, ao ver a figura de sua deusa se aproximando.
O grupo vinha encabeçado por Shion, logo seguido por Shiryu, então vinha Sorento, e atrás de si Athena, Neroda e Suite andavam lado a lado trás sua guarda.
- Aquele é Poseidon, o chamam de Neroda agora – Orientou Soleil, indicando a criança que conversava animadamente com Pégaso.
-...Aquela criança...?! – Comentou espantado o aquariano, com dificuldade ficando de pé. -...É difícil de acreditar, quando eu me lembro de tudo que ele já fez.
-...Acredito que esse é o maior valor da reencarnação – Relatou o jovem espectro – Começar uma nova vida, acima dos erros do passado.
- Mas os erros não são apagados – Rebateu Camus. – Nossa carne ainda sofre pelo que fizemos em outras vidas.
- Sim, mas essas dores apenas tornam os mortais mais fortes, e melhores, a um ponto que o saldo de suas reencarnações eventualmente será positivo – Insistiu o norueguês.
Quanto a isso, Camus sorriu.
- Eu espero que você tenha razão, meu filho, o que eu mais queria agora é passar uma borracha no meu passado, ao mesmo tempo que gostaria que tudo que passamos tenha valido de alguma coisa além de torturar-nos. – Respirou fundo vendo de Soleil que o observava com preocupação e tristeza, para a pequena plateia que havia atrás de si, Shoryu, Izo, Albafica, Julian e seus irmãos, Dohko, Ikki e Suikyo. – Suponho que poder estar aqui, agora, é a resposta para essa pergunta.
-.-
- Sinceramente, eu gostaria que a história de Astéria e Erisictão não tivesse um fim tão amargo – Confessou Aiacos em um sussurro que apenas Ikki pôde escutar – Mesmo que seja utópico pensar assim, quase uma fantasia infantil, nós humanos temos esse desejo dentro de nós, de acreditar que tudo vai acabar bem, que um dia o amor vencerá, que a paz um dia chegará – Sorriu com ironia – Foi a principal razão que me fez seguir o senhor Hades, e o principal motivo por eu me deixar levar por minha relação com Aquiles.
- Você não é o único que já fez idiotices por amor Aiacos, não se sinta tão especial – Rebateu Ikki, fazendo o ex juiz encará-lo com as sobrancelhas erguidas – Foi por isso que Hades nos escolheu, esqueceu? Por que éramos humanos cheios de falhas, um verdadeiro e fiel retrato da humanidade.
- Apenas pecadores saberiam julgar com real justiça outros pecadores – Recitou o cavaleiro com um deixe de melancolia – Sim, eu me lembro.
- Esses dois passaram por muita coisa através dos séculos, como Poseidon, como nós, como Hades. Se estamos aqui agora, presenciando esse final, é justamente porque percorremos também um árduo caminho.
- Não sabia que você era do tipo reflexivo, Benu – Não pôde deixar de provocar, embora, no fundo, realmente estivesse surpreso.
Isso apenas fez o mais velho franzir a expressão com desgosto.
- Cale a boca! – Exclamou com um bufo irritado.
-.-
Alguns passos dos espectros, Dohko falava com os cavaleiros da nova geração.
- Julian, coloque seus irmãos, seus primos e os filhos de Aldebaran para dentro – Orientava – Não gostaria que eles presenciassem essa cena. Diga a Egas que te ajude.
- Eu posso tentar – Disse vendo de seus irmãos frente a Fonte, para seus primos e demais companheiros colocados em colchões na lateral externa da ala médica – Mas não sei se terá espaço para todo mundo.
- Peça para o Kiki a chave das alas fechadas, onde ficava a estátua de Athena, está um pouco cheia de pó e entulho, mas é mais seguro – Seguiu as instruções, ao que Leão apenas confirmou com a cabeça e começou a obedecê-lo – Albafica, ajude-o também, por favor. Além disso, quero que vocês todos fiquem lá dentro, não importa o que escutem.
- Não prometo nada – Soltou o leonino, erguendo as mãos em sinal de redenção.
- Shoryu, Izo isso vale para vocês também – Continuou, agora vendo diretamente seu neto mais velho – Se Saori Kido te ver agora será um escândalo ainda maior, façamos uma coisa de cada vez para evitar o pior. Além disso... – Sua expressão decaiu – É muito importante que você e Albafica estejam lá com Afrodite. Máscara da Morte não está em uma situação nada boa, eu sei o quanto ele é importante para vocês, então-
Sequer pôde terminar, porque no instante seguinte, os mencionados correram para dentro, cada qual com uma expressão pálida de descrença.
- E quanto ao Soleil? Não é perigoso ele ficar aqui? – Questionou Izo preocupado, vendo as costas do amigo.
- Ele está com a gente, quanto a isso não se preocupe – Respondeu Isaak, saindo da Fonte com seus companheiros – Preocupe-se mais com seus ouvidos, nunca imaginei que aquele pivete pudesse gritar tanto, ainda mais agora com tanta gente entrando na Fonte.
Mesmo que inseguro, Capricórnio confirmou com a cabeça e se recolheu com os demais.
-.-
-...Camus – Uma vez que Shion, Shiryu e Sorento deram passos para o lado, a deusa pôde ver o estado do seu antigo cavaleiro, como se estivesse completamente coberto de sangue, da cabeça aos pés. Seus cabelos já eram completamente rubros, sua pele era pálida e repleta de manchas, seus olhos possuíam claros riscos horizontais atrás das íris, seus lábios eram arroxeados, e sua expressão acusatória. – O que houve contigo?!
- ...A guerra – Foi a resposta taxativa que proferiu Aquário. – Contudo, minha aparência é o menos importante agora.
Shion mostrava uma profunda tristeza frente a cena, com ares até mesmo melancólicos. Suite levava a mão a boca. Por sua vez, solícito, mesmo que surpreso com a visão, Sorento deu um passo adiante e descreveu para Shiryu os detalhes da aparência do aquariano, ambos possuíam certo contato devido aos negócios das famílias que representavam, sua descrição fez o chinês ampliar as sobrancelhas, reconhecendo os sinais de um dos tantos livros que havia deixado Sólon de Áries. Agradeceu então o marina pela ajuda.
Frente a resposta tão peculiar, o olhar da divindade então recaiu em Soleil, franzindo-se imediatamente, o que apenas fez o menor engolir em seco.
- Soleil, pensei que havia deixado claro minha decisão no castelo de Heisteim. – Decretou em tom moderado, dada a situação de Aquário.
- Peço perdão, Athena – Disse com sinceridade, baixando sua cabeça – Mas eu simplesmente não poderia deixar meu pai sozinho nessa situação...! Muito menos meus amigos.
- Como conseguiu chegar até aqui, em primeiro lugar? – Quis saber a deusa, olhando ao redor, como se esperasse que Shun ou outros espectros aparecessem a qualquer instante. De fato, assim seu olhar pôde se encontrar com o de Benu. - ...Ikki!
- Olá Saori – Disse desinteressadamente com um aceno de mão.
- O que faz aqui também?! Por que trouxe Soleil contigo, isso é alguma espécie de ataque?!
- Eu não o trouxe comigo, eu vim sozinho – Declarou dando de ombros – O menino tem as próprias pernas, caso não saiba.
Athena franziu a expressão ultrajada, porém nada disse, não queria acusar diretamente os espectros por estarem em suas terras, dado que a situação de Camus parecia bem grave, mesmo que ele dissesse o contrário, e acusar seu filho de ser um servo da morte poderia ser o golpe final para matá-lo, o que não desejava que acontecesse.
Isso se, o aquariano não soubesse já da identidade de seu garoto, este era um fato que ainda teriam que apurar.
Porém, antes que pudesse se pronunciar de forma mais suave, Neroda assumiu a frente.
- Ele é o convidado especial que mencionei, Athena - Declarou o senhor dos mares assumindo a dianteira, Sorento e Havok logo em seus encalces. – Ele me pediu para poder estar com seu pai, e eu concedi que viesse conosco – Declarou, parando ao lado do aquariano e do capricorniano – Da mesma forma que você quis permanecer no Olimpo quando Tifão atacou, ele não quis afastar-se do olho do furacão. Devo reconhecer que ele tem fibra.
Com isso, Isaak, Krishna e Kasa aproximaram-se também, parando atrás do deus, enquanto pai e filho se mantinham ao lado de seu senhor.
-...Muito bem...- Aceitou a contra gosto – Em nome de seu pai, pode ficar, Soleil. Mas isso não explica a razão de Ikki.
- Eu vim porque eu quis – Disse simplesmente – Pelos meus próprios meios.
- Com qual intenção?
Dohko estava prestes a intervir e culpar-se da presença de Benu, como havia dito que faria, quando alguém foi mais rápido.
- Com a intenção de nos ajudar – Para a surpresa de Saori e mesmo de Shion, um cansado Muh aparecia a porta da Fonte, fazendo Libra xingar internamente a excessiva honra do filho adotivo de seu melhor amigo, em não aceitar que qualquer um recebesse a culpa em seu lugar – Lamento minha deusa – Com isso ajoelhou-se na soleira da porta, seu corpo tremendo ligeiramente pelo ato, reflexo do cansaço e esgotamento - Fui eu que pedi seu auxílio, mesmo sabendo que era um espectro, quando soube que ele conhecia um meio de livrar-nos do miasma, eu requisitei sua ajuda, embora soubesse que poderia trair os princípios do santuário.
-...Idiota – Resmungou Benu, como Libra, irritado com Áries por essa cena.
Todos os conflitos internos pararam subitamente quando Camus começou a desabar, antes que Lune pudesse segurá-lo, caindo de joelhos, sua respiração pesada e corpo trêmulo.
“-Camus” – Era a voz cansada de Verônica. – “-Eu não estou suportando mais”
- O que estava fazendo parado do lado de fora da Fonte, Camus?! – Athena também se exaltava, aproximando-se de seu cavaleiro e esticando a mão para ajudá-lo a erguer-se – No estado tão grave em que está.
“Não, eu ainda preciso me manter aqui. Eu ainda tenho que manter minha palavra. Eu ainda tenho arrependimentos, não posso desfazer-me de minha vida como Camus de Aquário, sem resolver essas pendências, essa é minha última chance.”
Para a surpresa da divindade, o francês simplesmente recusou sua mão, mesmo o apoio de Soleil, permanecendo ajoelhando, mas erguendo a cabeça.
- Saori Kido, deusa Athena, eu peço em seu nome, em nome do santuário, e em nome dos meus antecessores, ser julgado na presença de todos que aqui estão. – Declarou em tom solene e sem hesitar.
Isso fez a japonesa recuar a mão surpresa, ao que Sorento orientava seu deus que dessem espaço para os dois, o que o grupo fez, levando Soleil consigo, mesmo que a contra gosto, deixando apenas deusa e servo frente a frente.
- Camus, creio que esse não é o momento para isso.- Seguiu a jovem com preocupação – Veja seu estado.
- Eu...- Seguiu, sem se importar com os dizeres dela - ...Venho a vinte anos traindo o santuário.
Com isso, Kido simplesmente se calou, erguendo as sobrancelhas e abrindo a boca pela confissão tão súbita.
- Eu...Negociei com o próprio Mephisto, um meio de poupar a vida de meu melhor amigo, e com isso, eu obtive Soleil. Um espectro. – Seguiu, sem titubear, encarando a divindade em seus olhos - Eu me utilizei da vida de um espectro, completamente ignorante quanto às suas anteriores vidas, sem qualquer memória de algum dia ter sido nosso inimigo. Assim, aproveitei-me dele sem titubear, sugando seu cosmo, por quase duas décadas, para manter Milo vivo.
Sem poder evitar, Saori lançou um olhar ao mencionado, que possuía lágrimas em seus olhos, lágrimas que autenticavam as palavras duras de seu pai, enquanto era abraçado de lado por Isaak de Kraken.
- ...E mesmo assim, Milo continuou sofrendo – Seguiu retomando a atenção da deusa – Por isso, eu continuei procurando meios e mais meios de fazer o sofrimento dele parar, mesmo que isso significasse blasfemar ainda mais seu nome, Athena. Sem escrúpulos então, eu manipulei e arrastei Kiki e Afrodite comigo. Eu usei ambos para conseguir ir ao continente africano, e lá encontrar o deus da medicina. Contudo, sequer ele pôde fazer muito pelo cavaleiro de Escorpião. – Seu corpo tremia mais, como se fosse desabar a qualquer instante – Isso porque...A doença de Milo estava em sua alma.
A deusa da sabedoria nada dizia, mantendo sua postura surpresa, de todos seus cavaleiros, depois da farsa de Saga e Shion, jamais imaginou uma traição, muito mais desse tamanho, partindo do sempre centrado Camus.
Mas tudo se tornou ainda mais surreal, quando lágrimas aos poucos surcaram a face do sempre sério e compenetrado ex cavaleiro.
-...Em sua alma, condenando-o a morrer prematuramente, das mais diversas e dolorosas formas, a cada reencarnação...
Com esses dizeres, Saori pôde recordar-se, mesmo que em um vislumbre, a figura de quem devia ser o antecessor de Milo, Kárdia, prostrado em uma cama, e ainda assim, fingindo estar bem para fazê-la sorrir.
- ...Desde que Astéria se sacrificou, milênios atrás, lançando-se viva no rio Flegetonte, como mostra de todo seu amor e devoção por seu protegido, Erisictão de Aquário...
-...Então esse foi o destino de Astéria – Comentou baixinho Shiryu, notando, porém, que Shion, agora ao seu lado, não parecia surpreso, mesmo que há vinte anos tivesse dito, junto com Dohko, que o destino da amazona era um grande mistério. O lemuriano, na verdade, emanava uma sensação muito forte de tristeza e culpa, algo realmente estranho e fora de lugar no momento em que estavam.
-... E por que ela se sacrificou? Por que ela precisou extinguir sua existência dessa forma tão...Tão...Cruel - As palavras pareciam morrer em sua garganta, enquanto sangue começava a escorrer pela comissura de seus lábios, mas nada disso importava ao francês, que atreveu-se até mesmo a explodir sua voz, que ressoou por tudo ao seu redor. – PORQUE O PRINCÍPE DE ATHENAS FALHOU EM SUA MISSÃO DE ATRAVESSAR O SUBMUNDO, DE TRAZER AQUILES CONSIGO SEM FRAQUEJAR FRENTE AS TENTAÇÕES, ELE FALHOU PORQUE TENTOU RESGATAR SUA FAMÍLIA QUE HAVIA SIDO TIRADA DELE PREMATURAMENTE!!
A visão do aquariano gritando a plenos pulmões era tão surreal e assustadora, com sangue salpicando junto à suas palavras, que Saori não pôde evitar retroceder, assustada, ao tempo que Shion lealmente se aproximava de sua deusa, justamente a tempo de conseguir segurar Camus antes que este se levantasse em um impulso súbito e tomasse os ombros de sua deusa, ou mesmo seu pescoço.
Tão fora de si estava que era difícil prever suas intenções.
- Camus, já chega – Disse taxativo o lemuriano, segurando os braços dele para trás. Tanto Isaak quanto Soleil fizeram menção de aproximar-se, mas Neroda os impediu, erguendo sua mão frente a eles e negando com a cabeça. – De nada adianta você descontar isso em nossa deusa. Aconteceu há milênios.
- SIM, EU POSSO! – Esbravejou, suas lágrimas se convertendo em liquido rubro e espesso – FOI POR ORDENS DE ATHENA QUE A FAMÍLIA DO PRIMEIRO CAVALEIRO DE AQUÁRIO MORREU. ELA ORDENOU SEU PRÓPRIO FILHO EXECUTAR SUAS IRMÃS...Por que elas descobriram...Descobriram que ele existia – E novamente de forma súbita, a energia de aquário pareceu se esgotar, forçando o ariano a sustentá-lo para que não fosse ao chão. – Erictônio era seu nome...O pobre miserável, forjado por Hefesto, usando sua energia, Athena. Se tanto o desprezava por sua origem, devia tê-lo matado, devia tê-lo dado a qualquer camponês ou deus que teria mais prudência de olhar por ele, ao invés de simplesmente mantê-lo ao seu lado, vivendo desesperadamente para tentar te provar que ele valia de alguma coisa...EU O MATEI ESSA NOITE PARA ME VINGAR, MAS COM DOR EU PERCEBO QUE ELE ERA APENAS UM MISERÁVEL QUE DESEJAVA TER SUA FAMÍLIAS CONSIGO TANTO QUANTO ERISICTÃO DESEJAVA. POR ISSO, EU NÃO SOU O VERDADEIRO TRAIDOR AQUI, MUITO MENOS ELE, E SIM VOCÊ, ATHENA – Esticou sua mão, trêmula e acusatória a deusa que apenas mantinha sua expressão congelada em choque.
O silêncio era simplesmente sepulcral, enquanto ninguém sabia o que dizer realmente frente a todas essas acusações.
Dohko estava completamente lívido, a um ponto que parecia que sua alma havia saído e deixado seu corpo para trás, Ikki havia descruzado os braços e estava tão ou mais tenso que Aiacos.
Muh, parado agora de pé, apoiando em Kiki, que havia saído para ajudá-lo, lágrimas tomavam os olhos de ambos, por mais de uma razão.
Dentro da Fonte, onde tudo era completamente audível, o silêncio era igualmente tão denso que poderia ser cortado com uma faca.
Entre os marinas, a maior reação era sem dúvida de Isaak, que não conseguia assimilar que tamanho desespero e dor partia de seu querido mestre, mesmo já sabendo de sua história de antemão. Não pôde deixar de perceber, com ironia, como a história de Hyoga e sua mãe se assemelhava a do pequeno príncipe de Atenas.
Por sua vez, Soleil estava aos soluços, e era uma questão de tempo para que suas pernas não o sustentassem mais.
A gritaria e os cosmos agitados haviam chegado até mesmo a casa civil de Afrodite. Resultando que Shura se aproximasse, justamente no momento que Shion teve que segurar seu antigo companheiro para que esse não atacasse Athena de algum modo.
Por último, Camus tossia, enquanto tentava se recuperar.
-.-
- Não há...Algum modo de eu te ajudar...? – Bian questionava apreensivo, vendo como Verônica simplesmente se dobrava sobre si mesmo, como se invadido por uma grande cólica.
-...Obrigado querido, mas nossas energias são muito incompatíveis para você me ajudar – Disse com um sorriso lateral, destacando o sangue que escorria de seus lábios. - ...Mas já está acabando, o que falta para essa alma poder se libertar de uma vez das dores que a consomem.
-.-
- Eu...Não sei do que está falando – Athena por fim defendeu-se, engolindo em seco, fazendo um esforço sobre-humano de se mostrar firme em um momento em que todos os olhares estavam dirigidos a si. – Eu não sei quem é Erictônio, portanto, suas acusações fazem pouco sentido para mim. Não há como provar que não são apenas delírios decorrentes de ferimentos tão severos que carrega – A deusa então apertou os punhos com força – A princípio disse-me para te julgar, o que eu não queria fazer devido ao seu estado, mas no fim, você se achou no direito de julgar-me. – Seu olhar então recaiu em Ikki – Vocês do submundo têm algo a ver com tudo isso?! É algum plano nefasto que engoliu nosso honrado cavaleiro numa ilusão?! Esse não é nem de longe o Camus de Aquário que serviu fielmente ao nosso lado na guerra santa passada!
Antes mesmo que Benu tivesse sequer chance de se defender, uma serpente surgiu entre Shion e Camus, mais precisamente, por entre uma das mangas do lemuriano.
A mesma serpente que o havia levado até a tiara de escorpião, e que tinha dentro de si o único fragmento restante da alma de Erictônio.
- Por que isso estava contigo, Shion? – Exclamou Dohko, se preparando para matar o réptil que deslizava agilmente em direção a Fonte.
- Essa não é uma serpente normal. – Analisou Ikki, e ouvindo suas palavras, alguém se agilizou para deter o libriano.
- Espere! – Segurou o braço do mais velho – Deixe-a entrar.
- Está louco Kiki?! – Exclamou o ancião – Ela pode ser venenosa, há muitos feridos na Fonte para arriscarmos.
- Deixe-a mestre – Suikyo uniu-se, em um sussurro, vendo de soslaio como Camus caía novamente de joelhos ao chão, uma vez que Shion havia se distraído com a perda do réptil.
Completamente contrariado, Libra então deixou-a passar.
- Ninguém toque nela! – Ordenou o ariano, dirigindo-se a ala médica e os que ali se encontravam.
-...O que é tudo isso?- Perguntava a deusa confusa. – Shion, seja o que for, desacorde ele agora, antes que seu estado piore mais, resolveremos isso quando ele estiver novamente sã e curado. – Declarou voltando-se então para Suite que observava toda a cena muda - Suite, por favor, o ajude.
-...Hã...Sim – Disse sem muita certeza, começando a se aproximar.
-...Eu não queria que chegasse a esse ponto – Por sua vez, Shion sussurrou, agachando-se ao lado de Camus e erguendo a mão para nocauteá-lo na nuca. - ...Eu realmente acredito que, apesar de tudo, dependemos de Athena...
Isso chamou a atenção de Camus, que com suma dificuldade ergueu a cabeça, olhando para Shion, mas não o vendo realmente. Porque ao encarar seus olhos, encontrou algo que tinha certeza que não estava ali antes.
-...Sólon... – Sussurrou quase inadiavelmente -... Não é possível.
-...Por favor, Eri, retrate-se agora, se você continuar, criará um rompimento irreversível. – Implorou, em tom tão ou mais baixo que o aquariano, erguendo sua cabeça e vendo sutilmente Poseidon e seus marinas, especificamente Havok. O senhor dos mares impedia Isaak e Soleil de intervirem, enquanto olhava para a entrada da Fonte, como se esperasse alguma coisa - ...Chegamos tão longe, Poseidon até mesmo pôde se entender com nossa deusa. Não é o momento de colocar tudo a perder.
-...Não por causa dela – Disse em voz audível, retomando as atenções para si, agora que o réptil havia desaparecido dentro da Fonte, Suite parando alguns passos dos dois.
-...Eri – Seguia em tom de urgência, embora ainda baixo - ...Pense em todas as vezes que Athena salvou a Terra! Eu entendo sua dor, eu juro que entendo, mas botar tudo a perder por causa da tragédia de Astéria seria muito egoísmo.
Um frio perpassou a espinha de todos que conheciam o aquariano, quando este começou a gargalhar de uma forma até mesmo lunática.
-...Sólon, eu não sou mais aquele príncipe idiota e de alma pura, e muito em breve eu sequer serei mais Camus Sìntes. Eu tenho todos os motivos para ser egoísta agora.
- Shion!
- Sim, minha deusa – E então depositou um golpe na nuca do aquariano.
Que para sua surpresa, não obteve qualquer resultado.
- Isso é inútil – Ikki explicou, voltando a se apoiar na parede, mesmo com expressão franzida. – Ele não vai mais sentir esse tipo de coisa.
- Suas palavras apenas confirmam que você sabe de algo, Ikki! – Acusou Athena encarando diretamente o espectro, seu cosmo se expandido de forma perigosa, como para intimidá-lo, mas sendo rebatido pelo de Neroda, o que fez a deusa virar para o deus marinho confusa.
- Não atacará nenhum espectro de Shun, na minha presença, Athena – Decretou em uma voz sumamente séria, não parecendo nem de longe o adolescente de antes, esticando a mão e invocando seu tridente, como para reforçar suas palavras.
- Espera que eu apenas fique parada então, vendo como transformam um dos meus em uma marionete enquanto consomem a vida dele?! – Exaltou-se a deusa da sabedoria. – Claramente tudo que ele diz é uma mentira para voltar os meus cavaleiros contra mim! Se protegê-lo assim, eu serei forçada a supor que tem envolvimento nisso também.
- MEU DEUS JAMAIS FARIA ISSO COM MEU MESTRE! – Mesmo Neroda se sobressaltou quando o berro partiu de Isaak, incapaz de se controlar mais – NÃO É CAPAZ DE ENTENDER QUE ISSO SÃO POR AÇÕES SUAS!
- Isaak, por favor! – Sorento levou a mão ao ombro do companheiro – Não faça isso.
- Não há nenhuma prova de que essa história é verdade! – Seguiu defendendo-se Athena. – Não há nenhuma prova de que esse Erictônio sequer existiu. Tudo isso é uma manipulação do submundo e de Chronos!
- Minha deusa – Shura abriu passo por entre os marinas, de cabeça baixa, até chegar a sua deusa, trazendo em suas mãos dois braceletes dourados, sem sequer ajoelhar a sua presença, ofertou-lhes ditos objetos – Isso estava com o corpo de Medusa. Creio que seja prudente a senhora vê-los.
Mesmo estranhando a atitude de seu ex cavaleiro, a deusa tomou ditos itens, e enquanto os observava, abriu seus lábios horrorizada, o capricorniano lançava um último olhar a Aquário, cheio de significados para alguém que boa parte de sua vida foi conhecido por ser estoíco.
Então o espanhol passou por Suite, se agachou, e começou a ajudar Camus a se levantar, apoiando-o em seu ombro, sob a vista perplexa de Saori e Shion, pois ao contrário do lemuriano, não parecia que tinha a intenção de nocautear seu companheiro.
-...Obrigado, Shura...- Aquário se limitou a agradecer. E uma vez mais se voltou a Athena, mas outra pessoa falou em seu lugar
– A primeira guerra santa foi inevitável, não havia possibilidade de existir um acordo entre Athena e Poseidon, mesmo que ambos os lados tenham sofrido com isso – Esculápio saía da Fonte a passos lentos, a serpente de antes enrolada em seu braço direito. Lançou olhares de Shion, a Havok, e então de Athena a Neroda, que mantinha o rosto franzido, mas não dizia nada – Ao vencer Poseidon, Athena passou de padroeira de Atenas para salvadora da humanidade. Irritado e desafiado com a força militar que ela havia reunido, Ares atacou, e foram necessárias as armas de Libra para detê-lo.
-...Quem é você... ? – A deusa perguntou ainda sem soltar os braceletes, observando o desconhecido de cima a baixo, pois parecia-lhe familiar.
- Meu nome é Asclépio, eu fui o cavaleiro de ouro de Serpentário – Disse com firmeza, seus olhos brilhando em amarelo vivo, suas íris afinando como orbes de serpente, ao tempo que seus cabelos assumiam uma coloração branca, e desprendiam-se do elástico que os sustentava, caindo até quase atingir seus calcanhares – E eu juro em nome de meu pai Apolo, que tudo que esse homem está dizendo, é verdade.
- Décimo terceiro cavaleiro de ouro?!- Dohko exclamou, tão surpreso quanto Muh, e Shura.
- Seu maior erro, no entanto, Athena, foi ter desejado caçar Ares até o fim, optando até mesmo em invadir o submundo para tanto! – Exclamava o deus, sua energia, ao contrário de suas palavras, acalmando o ânimos, fazendo até mesmo Poseidon baixar seu tridente – Devastando a terra dos mortos, teve para si o ódio de Hades, e as Guerras Santas passaram a ser um maldito ciclo interminável. VOCÊ SE DIZ A GUARDIÃ DA TERRA, ATHENA, MAS AS GUERRAS TOMARAM TAL PROPORÇÃO POR SUA CAUSA! POIS ÉS TU A DEUSA DA GUERRA, A PAZ NUNCA SERÁ REALMENTE UMA OPÇÃO! - Então apontou para Neroda com uma mão e para Ikki com a outra – OLHE AO SEU REDOR! CAVALEIROS, MARINAS, ESPECTROS, REUNIDOS E JUNTOS COM UM OBJETIVO EM COMUM, E NADA DISSO FOI GRAÇAS A TI!! POIS NUNCA TENTASTE REALMENTE ALCANÇAR A PAZ ATRAVÉS DE PALAVRAS, afinal, isso vai contra a natureza dos deuses da guerra.
A deusa deu um passo para trás, enquanto Esculápio se adiantava até Camus, ignorando todos ao seu redor e focando-se apenas no aquariano.
- ...Espero que, agora você possa descansar, meu príncipe – Disse com um sorriso quebrado, levando a mão ao rosto dele e limpando suas lágrimas.
-...Eu... Esperei e acreditei. – Confessou, seu corpo aos poucos pendendo para frente - Que finalmente haveriam dias que eu poderia viver... Sem arrependimentos.
Então, Épios juntou sua testa com a do menor, lágrimas correndo por seu rosto agora sem lágrimas.
- ...Obrigado por tudo, eu nunca vou te esquecer.
E quando se afastou, o menor não se mexia mais, muito embora seus olhos se mantinham abertos.
- Rápido Shura! – Exclamou Shion, saindo de seu estupor gerado pela entrada do deus – Leve-o para dentro!
- Eu já disse que é inútil – Ikki cortou, afastando-se da parede, indo até a cena – Ele já está morto.
- Ele já estava morto provavelmente antes mesmo de ser trazido para cá. – Concordou Shura, tampando os olhos vidrados de seu companheiro – Essa marca em seus olhos, a rigidez de seu corpo. Sua alma continuava lutando para estar aqui, mas seu corpo já havia perecido.
Épios então esticou as mãos, pedindo silenciosamente que o cadáver lhe fosse entregue, mesmo sem conhecê-lo, Shura obedeceu, ao tempo que Soleil caía no chão aos prantos.
Com o jovem aquariano em braços, Épios se afastou, ninguém dizia nada enquanto ele andava e andava, por entre a planície varrida que um dia abrigou parte do povoado de Rodorio.
E apenas quando estava longe o bastante, suas mãos se incendiaram, criando uma enorme fogueira, envolvendo o outro e a si mesmo, com tal intensidade e força, que ninguém era capaz de observá-los diretamente, como se tivessem se tornado um pequeno Sol.
E quando as chamas se desfizeram, restava apenas o filho de Apolo, com os braços esticados e vazios, restos de fuligem sendo levados pelo vento.
-.-.-
- Isso é tudo meu querido - Disse Verônica com uma piscadela, depois soltando um grande suspiro de alívio - Missão cumprida.
Entre suas mãos, havia uma pequena chama, fraca e escurecida.
- Espero nos vermos de novo em breve - Respondeu Bian vendo como o espectro se afastava, indo até a ponta do penhasco que dava para o mar - Foi muito bom conhecê-lo, tive a oportunidade de aprender muitas coisas.
- Clarooo que vamos repetir a dose, babê, mas sabe como é, o dever vem primeiro! - E então se jogou de costas no penhasco, as asas de sua sobrepeliz se abriram, e então, logo atrás de si, uma fenda negro o engoliu, fazendo-o desaparecer.
-.-.-.-
- Pégaso, Por favor – Implorava – Por favor, eu sei que senti, sei que Astéria veio atrás de nós, não nos deixariam sair sem mais assim, ela deve ter feito alguma coisa!
- Fique quieto maldito Aquário – Resmungava Aquiles puxando-o com mais força – Athena te deu a missão de levar-me de volta ao mundo dos vivos, então cumpra com teu maldito dever.
Desesperado, o menino então congelou a mão de quem o arrastava, o qual por reflexo o soltou, permitindo assim que a criança habilmente corresse de volta para onde deslizava o Aqueronte.
- Criança estúpida! – Irritou-se – Eu não posso atravessar o portal sozinho!
Porém, por mais que tentou correr e se afastar do sagitariano, sentia-se extremamente fraco, por isso acabou por tropeçar e cair no chão, mal tinha forças para ficar de pé.
Era claro que não dominava o oitavo sentido muito bem, mais um pouco naquele lugar e acabaria pertencendo definitivamente aos mortos.
O menino que usava a armadura de Aquário, não parecia ter mais que doze anos, cabelos verde água lisos e retos, até a altura de seus ombros, pele pálida como o mármore. Sentiu como bruscamente alguém o puxava por seus braços, revelando assim seus intensos e vibrantes olhos vermelhos sangue, mesma cor do líquido que escorria de seu nariz devido à queda.
- Tu és patético para um guerreiro – Disse o homem que o acompanhava sem um pingo de piedade.
- Ela é minha única família agora, tudo que me resta, por favor, eu não posso abandoná-la – Tentava dizer num fio de voz nasal, perdendo a consciência -...Astéria...
E assim que fechou os olhos, sentiu como ninguém mais o segurava, ao mesmo tempo que sentia seu corpo mais leve.
Os reabriu assustado, notando que estava sozinho agora, e que sua armadura havia desaparecido de seu corpo.
- Astéeria! - Ia preocupar-se com isso depois, ergueu-se, e recomeçou a correr, muito mais ágil e muito mais leve agora, sentindo como seu coração estava a ponto de sair por sua boca.
Em pouco tempo, chegou a margem do Aqueronte, sem sequer perder o fôlego. Buscou visualmente por Caronte, mas não o encontrou. Ao invés dele, seu olhar se deparou com uma chama, fraca e tremula à margem do rio.
Hipnotizado por ela, começou a se aproximar, esticando a mão para tocá-la, e ao fazer isso, a ponta de seus dedos começou a desaparecer, logo toda a extensão de sua mão, ainda assim, não desistiu de se aproximar, mesmo que fosse com seu rosto.
Apenas quando parte de seu braço e perna direita haviam desaparecido, pôde alcançar a fonte de luz, que já não era uma chama, ao invés disso, o fogo começava a tomar a forma de uma mulher, que como a criança, possuía apenas metade de si.
-...A parte da alma que eu te dei, há vinte anos. Obrigada por me devolver - Disse suave a voz, erguendo seu único braço e apertando o menor em um forte abraço.
- Astéeeria... - Dizia em voz chorosa. - Desculpe por te fazer esperar....!
- Está tudo bem, Eri, agora...Acabou.
Assim, ambas as figuras foram sumindo, até se tornarem fogos fátuos, frágeis e incompletos. E ainda que fosse assim, partiram juntos submundo adentro, até um templo específico, onde dois corpos os esperavam.
-.-
Um desses corpos, de longos cabelos azuis escuros, com uma cicatriz em seu peito, levantou de seu leito devagar, seus longos cabelos escorrendo por seus ombros.
- Aaaah! Finalmente acordaram! - Iatros exclamou, animado, trazendo algumas maçãs consigo em seus braços - Senhor Kairos é realmente impressionante, sentiu a chegada de vocês a perfeição - O velho curandeiro, em um corpo jovem, aproximou-se despretenciosamente. - Suas roupas estão no seu colo, e eu também trouxe algumas...- Parou vendo os olhos perdidos e sem foco do homem que fora designado a cuidar - ...Senhor...? - Não houve resposta - Senhora...?
Ao invés de palavras, a resposta que recebeu do desperto foi uma mão que se agarrou sua garganta e o lançou violentamente contra a parede, levando-a abaixo sem dificuldade, e com isso, assustando e despertando a segunda pessoa daquele templo, com longos cabelos esverdeados e olhos violáceos, que observou confuso seus entornos.
-...E-espera! - Tentou chamar o alcade, vendo como a figura, levantava e fugia daquele espaçoso quarto, sem sequer vestir-se, abrindo um novo buraco na parede. - ...Por Nix! O que eu faço agora!? - E então percebeu que o segundo também havia despertado - Oooh, ainda bem, senhor Albert, por favor, preciso da sua ajuda aqui! - Disse erguendo-se e recolhendo as frutas ao seu redor.
O mencionado não imediatamente respondeu, inclinando a cabeça claramente confuso.
- Désolé, je ne comprends pas ce que vous dites - Se limitou a dizer.
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