Finn.
A Sra. Thompson me convidou para apresentar umas telas durante o festival de inverno, mas eu recusei. Não quero um bando de gente recordando sobre o que eu fazia para sobreviver. Não quero caras surpresas nem elogios. Não quero nada, mas eu vou assistir a apresentação de balé.
E eu juro que é a minha última tentativa. Depois de hoje, se Millie realmente não quiser mais nada comigo, eu a deixo para sempre, não importa o quanto vou sentir falta ou sofrer. Já estou cansado disso. Não posso ficar para sempre remoendo uma história e me culpando por algo que nem mesmo entendo porque está acontecendo.
A CleverFalls está lotada quando chego. É de noite e o prédio todo está fechado, exceto o andar debaixo onde ficam os auditórios e o principal onde está acontecendo o festival. Há barraquinhas onde alguns alunos do terceiro ano estão vendendo coisas para angariar fundos para a formatura e vejo Dayse assim que coloco os pés no pátio. Ela está especialmente arrumada. Cabelos presos em um rabo de cavalo, saia curta, botas e camiseta, como se lá fora não estivesse frio como uma geladeira.
Claro que ela tem que olhar para mim e fazer uma cena. Tem que vir até mim e me fazer parar batucando no meu capacete com as unhas compridas.
-Que surpresa você aqui. Achei que não se interessasse pelos eventos do colégio.
-Não me interesso. -Digo, evitando manter o contato visual com ela. -Só estou de passagem, vou embora logo.
Ela revira os olhos.
-Veio ver a apresentação de balé não é?
Não sei como me tornei uma pessoa que pode ser lida com tanta facilidade assim, mas sinceramente, já não me importo com o que ela vai achar.
-Sim.
Dayse suspira.
-Chegou atrasado, já deve estar no final e aliás... Finn você tem algum tipo de problema de visão?
-O que? -Não estou interessado no que ela diz por último, apenas na primeira parte.
-Você é meio cego. Não enxerga o que está embaixo do seu nariz.
Ela se afasta e não dou nem trela para a maluquice sem sentido que acabou de dizer. Só disparo na direção do auditório. Tem gente demais na entrada, em pé, pois os lagares estão todos preenchidos, mas ainda assim consigo já ouvir o som da música clássica. As luzes rodopiando em cima das cabeças.
Não quero nem saber de ser educado agora. Apenas ponho o capacete na minha frente e vou empurrando quem quer que esteja no meu caminho para tentar chegar perto do palco. Não consigo chegar muito mais do que na metade, mas já é o suficiente para conseguir visualizar o auditório todo e ver que nem Robert ou Kelly estão aqui.
Volto a olhar para o palco. Realmente olho agora. E lá está ela com Peter, o cara que sempre dança com ela nas apresentações.
Na última vez que vi, os dois estavam com roupas claras, a dança era bem suave. Muito diferente do que é agora.
O balé ainda é clássico, mas a música é intensa e dramática. As luzes são frias e os dois estão de preto. Estou longe e mesmo assim consigo ver em detalhes como Millie se entrega de verdade quando está no palco.
Como mantém sempre o queixo erguido, a expressão séria e fixa, nunca voltada a plateia, mas seus passos são suaves como plumas.
A ponta dos pés dela parecem deslizar nas taboas de madeira do palco, as pernas se esticam em uma linha perfeita quando salta no ar, seu corpo flexível se dobra formando um arco perfeito quando toca o chão.
Nunca parei para analisá-la tão profundamente como agora. Millie é exigente consigo mesma, nunca se priva de comer besteiras quando quer, mas se esforça tanto na dança que está sempre na medida certa.
Não é tão magra quanto as outras, apesar de ainda ser pequena, ainda tem curvas que agora estão mais acentuadas pelo collant apertado.
Me obrigo a desviar o olhar por um momento quando reparo nisso pois fico assustado com o ponto em que estou chegando. Uma coisa é me sentir confuso. Sentir ciúmes dela e saudade, mas outra bem diferente é reparar em seu corpo. Ficar consciente do quanto ela está diferente e do quanto eu gosto disso.
É coisa da minha cabeça. Só uma curiosidade, afinal não sou de ferro e Millie realmente é linda.
Mas ela só tem dezesseis anos e eu tenho dezoito. A nossa diferença de idade nunca me pareceu tão absurda como agora. Já sou maior de idade para muitas coisas. Além disso ela é minha amiga. Minha irmãzinha. Eu a quero de volta, mas apenas para isso.
Quando volto a olhar para o palco. Ela está indo na ponta dos pés para trás de Peter que está com os joelhos um pouco dobrados e as pernas fixas no chão.
Como ela gosta de dizer esse é o grande final.
Millie põe os pés nos joelhos dele e sobe, surgindo atrás e em cima dele. Ela ergue os braços, a plateia já está se levantando para aplaudir, mas eu sei que o show não acaba até às luzes se apagarem.
Nesse momento, enquanto ela está elevada. Ela olha para mim. Sei que é para mim pois ela deixa a expressão séria de lado. Sua boca se abre alguns milímetros.
Tenho sorrir orgulho, mas não consigo fazer mais do que apenas um puxar de lábios.
Ela pisca os olhos e então acontece.
Millie perde o equilíbrio da sua postura. Segura nos ombros de Peter, mas ainda assim não consegue se segurar com força o bastante.
Eu vejo seu pé entortar quando ela pisa no chão rápido para não cair. As luzes se apagam nesse instante, mas eu escuto o baque de seu corpo caindo no chão.
Enquanto o auditório se preenche de vozes acaloradas eu me enfio de vez entre as filas, entre as pessoas de pé e corro para o palco que a essa altura já está lotado. Um bando de dançarinos e professores fazendo um círculo ao redor de onde Millie caiu.
Entro em desespero quando se amontoam mais e mais pessoas, agora a plateia também correu e está todo mundo em cima dela. Escuto a voz da Srta Taylor preocupada, escuto o gemido de Millie mas não consigo ver nada. Não consigo olhar para ela.
-Sai! Sai da minha frente! Me deixa passar, porra!
E mesmo quem fica na minha frente eu passo por cima como um trator até conseguir estar dentro do círculo formado.
Fico paralisado.
Millie está no chão, está chorando segurando o pé esquerdo. Peter está atrás dela com metade do corpo dela em cima dele.
A Sra Taylor tenta falar com Millie acima de todas as outras vozes.
-Vou chamar o seu pai, fica calma e não se mova!
-Ei, professora, melhor a gente levá-la logo. Eu estou de carro.
Olho para o lado, para o dono da voz irritante que vem saindo do meio da multidão. Os cabelos castanhos de Louis aparecem antes mesmo dele conseguir sair do amontoado.
O que esse merdinha pensa que está fazendo.
-Eu vou levar ela!
Acho que berro tão alto que todos param de falar nesse momento e olham para mim. Até Millie. Ela ergueu o rosto banhado em lágrimas e seus olhos tristes me encaram.
Não posso esperar sua permissão agora. Não posso esperar que o merda do Dr. Brown abra um espaço na sua agenda para socorrer sua filha e de jeito nenhum vou deixar Louis levá-la só para bancar uma de herói.
Me aproximo de Millie e me ajoelho perto dela.
-Esta pronta?
Ela não consegue responder. Apenas me olha incrédula e não consegue parar de chorar. A maquiagem escorrendo por todo o seu rosto.
-Você não pode estar falando sério. Vai fazer o que? Colocar ela em cima da garupa da sua moto para levá-la ao hospital?
-Como é? -Levanto e dou de cara com Louis atrás de mim.
O cara não bate nem no meu queixo ainda, mas admito que tem peito para erguer a cabeça e me encarar, mesmo eu estando por cima.
O pessoal vibra com a possibilidade eminente de uma boa briga.
-Eu disse que você não pode coloca-la na garupa de uma moto. Ela machucou o pé, cara...
Racionamente eu sei que ele tem razão. Mas enquanto não bolo um plano para dar um jeito, simplesmente sou incapaz de deixar que o merdinha fale assim comigo.
-E o que você tem a ver com isso, porra?
Dou um passo a frente, mas de repente bem um braço nos separando.
É a Srta. Taylor.
-Pelo amor de Deus, rapazes! Não é hora! Nenhum dos dois vai levá-la. Eu levo, está decidido. Só preciso que alguém a leve para o meu carro lá fora!
E ela me segura para deixar Louis ir na frente. Não é atoa. A Sra. Thompson está de olho em mim agora.
Louis se abaixa perto de Millie, ela olha para ele com confiança e assente quando ele fala que véi pegá-la no colo.
Mas o babaca simplesmente não tem nem jeito de fazer isso. Está nervoso e tremendo. Passa o braço por baixo da cabeça dela, depois muda para as costas e Millie geme de dor com toda a movimentação.
-Porra, olha isso!
Consigo ultrapassar a Srta Taylor, ligando a mínima se vão ou não reprovar o meu comportamento.
Puxo a gola da camisa de Louis por trás e tiro o imprestável de cima dela, mas não quero uma briga, pelo menos não agora. Só quero ajuda-la.
Millie não tem tempo de reagir quando a pego no colo. Não pode fazer nada além de passar os braços ao redor do meu pescoço e se segurar.
Não tenho tempo também de considerar isso algum avanço. Só saio com ela mandando todo mundo sair da frente.
A Srta Taylor corre até trazer seu carro para a frente do jardim da escola e abre a porta para que eu deite Millie na parte de trás.
-Obrigada, Finn. Agora você pode ir.
-O que? Mas...
-Você não vai com a gente. É melhor se acalmar. Depois eu ligo para a escola para dizer o que aconteceu.
Eu não quero que ela ligue para porra de escola. Quero ir junto. Eu preciso ir junto.
Mas ela realmente não deixa e não acho que é o momento certo para surtar agora, mas tampouco isso vai ficar por isso mesmo. Assim que ela entra dentro do carro, vou até minha moto, tendo a infeliz descoberta que deixei meu capacete cair quando estava lá dentro do auditório.
-Ei, Finn.
Viro quando escuto a voz de Dayse. Ela está com meu capacete nas mãos e o joga para mim.
Não sei como reagir a isso. Também não tenho nenhum tempo de agradecer por essa repentina boa ação dela. Apenas enfio o capacete na cabeça e disparo atrás do carro da Srta Taylor.
Eis a vantagem de ter uma moto em vez de um carro: não importa o quanto o trânsito esteja caótico, é quase sempre possível se enfiar entre os carros e mesmo que Louis tente jamais vai conseguir chegar no tempo em que eu.
O carro da Srta Taylor para em frente ao hospital central de Los Angeles onde sei que os pais dela trabalham. Eu chego praticamente no mesmo instante e quando ela salta do carro para chamar um funcionário com uma cadeira de rodas, da de cara comigo tirando o capacete.
-Você é rápido, não é? -Não sei se ela está só impressionada ou se é uma bronca.
Não ligo.
-Depois você me agradece.
Digo, entrego meu capacete a ela e abro a porta traseira do carro.
Millie também exclama surpresa quando me vê, mas não lhe dou muito tempo para ficar ainda mais chateada comigo.
Dou um jeito de puxa-la levemente sem mexer muito com o seu pé e consigo pegá-la no colo de novo. Só que agora ela não me abraça, faz o mínimo de contato apenas para se manter segura.
Subo com ela enquanto a Srta Taylor vai na recepção. O hospital está meio amontoado. Cheio de pessoas para lá e para cá.
Como Millie quer trabalhar com isso?
Quase pergunto, mas um rapaz chega com uma cadeira de rodas.
-Pode senta-la aqui. Vamos levá-la.
Tenho de obedece-lo, ponho Millie na cadeira, mas não me distancio dela.
-Pode dizer o que aconteceu? -Ele pergunta erguendo uma prancheta para anotar tudo.
Millie limpa as lágrimas.
-Eu estava em uma apresentação de dança... Me distrai e caí..
Prazer, eu. A distração.
Ele inspeciona o pé dela apenas por cima.
-Pode ter fraturado.
Millie nega.
-Não está quebrado. Só torcido.
-Bem, não temos como ter certeza, temos de fazer um raio-x.
Sorrio. Ele não faz a menor ideia de com quem está falando. Se Millie diz que não está quebrado, é porque não está. Ela sabe.
A Srta Taylor volta, mas agora não está sozinha. Reconheço a figura alta. O bigode grosso e a barba, mesmo que o cara esteja de jaleco e paramentado. É um péssimo momento para um reencontro com o pai dela.
-Dr. Brown, é sua filha? -O atendente pergunta.
Robert assente. Se abaixa ficando na altura de Millie na cadeira.
Imediatamente ela o abraça. Chora mais. Ela sempre faz isso quando está assustada. Abraços a aliviam na mesma intensidade que a fazem chorar ainda mais. Millie é durona, mas por dentro, é extremamente emotiva. Sensível.
Sinto falta desse abraço.
-Porque sempre que acontece algo com você é durante o balé? -Ele indaga limpando as lágrimas dela.
-Eu escorreguei papai... Não sei...
Ela ainda o chama de papai.
-Tudo bem, já vão trazer um ortopedista para ver você, princesa.
Princesa.
Se eu soubesse disso antes teria tirado muita onda com ela quando a gente era amigo. Mas parando para pensar agora, princesa é apropriado.
-Chamem a Dra. Brown também. -O pai dela ordena quando o atendente leva Millie para dentro.
A Srta Taylor vem para perto de mim e ele nos olha. De imeitado franze o cenho, mas sei que não me reconhece. Só está... Curioso.
-Como aconteceu? -Ele indaga a ela, mas não para de olhar para mim.
-Foi basicamente o que ela disse. No finalzinho da apresentação ela escorregou, mas não foi de muito alto. Acho que só pisou errado. Ela mesma disse que não quebrou.
-Bem, se ela disse, então é verdade. -Ele afirma e continua olhando para mim. -E você?
A Srta Taylor. Justamente ela que sabe e lembra de tudo, toma a minha frente.
-É um colega da escola. Ele me ajudou a trazê-la. Achamos que seria mais rápido do que ligar para o senjor, doutor.
-Tudo bem? -Ele ignora o que ela diz para estender a mão para mim.
-Tudo, doutor. E o senhor?
Millie acha que sempre que digo doutor estou sendo irônico. E é verdade.
-Estaria melhor se minha filha não estivesse machucada, mas obrigado por ter ajudado. Eu ia entrar em uma cirurgia agora e se demorasse mais eu não poderia sair.
-Eu sei. As vezes as aparência enganam. -Eu simplesmente não posso deixar escapar essa.
A Srta Taylor exclama. Robert não entende.
-O que disse, rapaz?
Eu adoraria um flashback agora, mas sinceramente não quero causar mais nenhum transtorno.
-Posso entrar quando ela for atendida? -É o que respondo.
Ele me analisa mais. Sei que está tentando puxar da sua mente de onde tem a impressão de que me conhece, mas desiste.
-Se ela quiser ver você, sim. Agora eu vou entrar, obrigado mais uma vez. É bom vê-la srta Taylor pena que seja nessa ocasião.
Seria em outra se você tivesse a decência de aparecer na apresentação da sua filha.
Como eu quero dizer isso, mas apenas faço um cumprimento de cabeça e o babaca vai embora.
-Você quer mesmo ficar, Finn? -A srta Taylor pergunta.
Acho uma cadeira na recepção vazia e me sento.
-Eu vou ficar.
Ela quer me convencer do contrário. Mas sabe que não pode. Apenas suspira em desistência e me devolve o meu capacete.
-Cuidado, Finn. Você não é mais uma criança, não podemos mais justicar os seus erros dizendo que não entende o que está acontecendo.
Não gosto de conselhos. Principalmente quando sei que são necessários, mas assinto. Prometendo a ela e a mim mesmo que pelo menos hoje, tentarei não estragar tudo.
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