Millie.
Não quebrei o pé, como eu já sabia, mas a expressão do médico ortopedista chama a minha atenção enquanto ele analisa os meus exames.
-Você vai ficar com uma bota por um tempo. Apenas durante o período em que os músculos estão inflamados e inchados, depois vamos começar sessões de fisioterapia...
-Fi-fisioterapia? -É tudo o que eu menos queria ouvir agora.
Simples. Fisioterapia geralmente só é indicado em casos em que há lesão no tendão. E se há uma lesão no tendão, eu não posso mais dançar.
Meu pai se aproxima da mesa do médico e olha ele mesmo os exames pois sabe que eu já entendi.
-Acha que lesionou o tendão? -Ele pergunta analisando as radiografias.
-É provável. Vamos ver como ela se recupera com os dias e com os medicamentos.
E nessas horas é horrível entender parcialmente o que a linguagem médica oculta quer dizer. Quando um médico diz que é provável, na grande maioria das vezes simplesmente acontece. Já é algo irreparável.
O médico vem para perto da maca onde estou e começa o processo de fechar a bota no meu pé. Minhas meias e sapatilhas de balé foram para o espaço. Estão rasgadas jogadas em um canto qualquer pois tiveram de fazer isso quando cheguei e agora eu sei que talvez nunca irão voltar.
Meu pai me abraça. Sinto o beijo em minha cabeça, mas estou realmente sem ação agora. Perdida. Vendo um dos meus sonhos mais bonitos sendo pouco a pouco apagados da minha mente.
Quando o médico termina, meu pai se afasta e me pede para tentar ficar de pé sobre a bota. Dói pra caramba, mas ela deixa o local da lesão estável e consigo dar alguns passos sozinha.
-Não poderá fazer esforço, Millie. Nada de dança, nada de correria, nada de andar muito rápido. A bota é uma boa opção para você que tem que estudar, mas ainda assim vai precisar ficar quietinha por um tempo. -O ortopedista explica.
Mesmo ciente do que está acontecendo aqui, uma parte inocente de mim que ainda tem esperança, quer saber.
-Vou poder voltar a dançar?
Os dois se olham. É um código para o ortopedista saber se pode ou não ser sincero comigo. Meu pai assente.
-É muito comum que dançarinos tenham esse tipo de lesão, Millie. Muitas pessoas voltam a dançar depois que se recuperam, mas não podemos afirmar nada ainda.
A medicina e suas incertezas.
Assinto pois realmente não tenho absolutamente mais nada a dizer. Meu pai me ajuda a subir de volta na maca.
-Tem um garoto lá fora querendo falar com você.
Olho para ele assutada como se tivesse me espetado.
Finn ainda está aqui? Como meu pai não sabe quem ele é?
Melhor não perguntar. Melhor não mexer mesmo com esse pequeno golpe de sorte.
Fiquei tão absorta com a descoberta da lesão que me esqueci completamente de como havia parado ali.
Vi Finn na plateia me assistindo e aquilo me pegou tão de surpresa que me senti fraca. Zona com todas aquelas luzes e com o olhar dele sobre mim. Depois escorreguei.
Ele me pegou no colo. Duas vezes. E ele está aqui agora.
-Princesa? Então, você vai vê-lo enquanto esperamos o medicamento acabar ou posso dispensa-lo? -Papai me chama atenção de novo quando me perco em pensamentos.
Olho para ele e para a embalagem de soro com os antiinflamatórios que estou tomando na veia. Está pela metade ainda. Meu pai expressa desconfiança. Algo me diz que ele adoraria mandar Finn embora, mas sei como Finn é explosivo. Sei como ele não aceita ordens muito bem e como não vai ser nenhum sacrifício para ele enfrentar o meu pai. Mesmo que seja aqui. No hospital.
Minha cabeça rápida até imagina a coisa toda.
Embora esteja assustada demais e ansiosa com essa decisão, eu assinto.
-Pode deixa-lo entrar.
Ele hesita esperando que eu mude de ideia, depois chega perto e beija a minha testa.
-Eu preciso entrar no bloco cirúrgico agora, princesa, mas sua mãe está terminando um procedimento e vai descer aqui para levar você para casa, tudo bem.
Não. Não está nada bem. Quero uma maneira de escapar, mas apenas respondo.
-Tudo. Pode ir pai, bom trabalho.
Ele sorri, enfia a mão no bolso e me dá um dos seus bombobs de caramelo.
-Te amo, princesa.
As vezes penso que vou ficar diabética, mas amo tanto esses bombons e esse gesto do meu pai, que por ele valeria a pena ficar doente.
Alguns segundos depois que ele sai, alguém bate na porta.
Aperto a colcha da maca onde estou sentada com as pernas para fora.
-Pode entrar.
Finn ainda demora um pouco. Talvez decidindo se vai ou não fazer isso e eu não consigo decidir se quero ou não quero que ele faça, mas ele faz.
A porta abre devagar e ele entra só metade do corpo. Analisa a sala de observação vendo que estamos sozinhos e fecha a porta.
Fica parado encostado nela com as mãos enfiadas no bolso da calça. É o tempo que preciso para analisar a situação. Tentar prever o que vai me dizer e pensar em respostas prontas para não precisar ficar calada um tempão pensando ou acabar falando uma besteira.
Mas me distraio com ele. Com a saudade que sinto dele. Em como sua presença parece preencher cada espaço vazio da sala e do meu coração. De como seus cabelos estão sempre bagunçados pedindo que meus dedos se emaranhem neles e como as roupas largadas e despretensiosas combinam com ele.
Não tenho nenhuma dúvida nesse momento. Estou terrivelmente e irremediavelmente apaixonada por ele. E não acho que seja de agora. Acho que sempre estive.
-Então... -Ele limpa a garganta cortando minha linha de pensamento. -Você tá legal?
Passei tanto tempo o ignorando que faço isso pelos cinco segundos seguintes. Depois estico um pouco a perna dando ênfase a minha bota, mas quando me lembro dela, me sinto tão deprimida que minha voz oscila.
-Acho... Acho que não vou mais poder dançar.
Seu rosto fica totalmente branco. Ele só consegue mexer os olhos que vão da bota até eu de novo.
-O-que... Mas você disse que só tinha torcido. Eu não achei que era tão grave assim.
Não o julgo por não estar entendendo. Não posso fazer isso. Busco uma maneira mais simples de explicar.
-Não é tão grave. Eu não quebrei. Posso andar. Mas é grave para a dança, talvez eu não possa mais.
Finn fica quieto por uns minutos. Depois arrasta os dedos com força pelos cabelos para trás.
-Porra, é culpa minha.
-Não...
Ele não me deixa continuar.
-É sim. Eu estava lá... Você me viu e se distraiu, você mesma disse isso lá fora. Agora.... Agora não pode mais dançar. É culpa minha.
Ele vai surtar se eu não disser alguma coisa. Por mais que seja parcialmente verdade, não quero que se culpe.
-Sou dançarina. A minha obrigação é não me distrair com nada durante o espetáculo, se eu olhei para você e caí, só é culpa minha.
Finn ainda parece incrédulo demais. Chocado. Sei que sua mente está um caos agora, ele está tentando arranjar uma forma de arranjar um argumento melhor do que o meu, mas não encontra.
-Eu não queria que isso tivesse acontecido. Eu... Não deveria ter aparecido lá de surpresa, achei que conseguiria chegar no início, acabei pegando só o final e isso aconteceu.
Quanto mais ele fala, mais me lembro. Mais quero chorar também.
-Eu estou bem, Finn. Tem tratamento, quem sabe eu possa voltar a dançar. É cedo para saber. -Digo isso tentando fugir do assunto. Querendo que ele pare de falar sobre isso. Mesmo quando sei que a probabilidade é pequena.
Mas Finn confia no que estou dizendo. Sua expressão relaxa um pouco e pelo menos por enquanto não irei presenciar um surto.
Olho para baixo, para meus dedos escapando para fora da bota.
-Obrigada por me trazer aqui e obrigada por nao falar nada com meu pai. -Digo baixinho, pois sei que deve ter sido algo difícil para ele.
Não só pelo que aconteceu no passado entre eles, mas por Finn achar que meus pais não são as melhores pessoas do mundo.
Eu também já não acho mais.
O ouço suspirar bem pesado, mas não se aproxima.
-Estou com saudade de você, pirralha. Será que as coisas não podem voltar a ser como eram antes?
Paro. Fecho os olhos. Tento contar de 0 a 10. Mas não consigo melhorar. Não consigo erguer a cabeça e olhar para ele sem deixar que as emoções que estão tão frágeis agora me tomem por completo.
-Não dá para ser como era antes. -Digo é a mais pura verdade.
Talvez ele ache que estou me referindo ao fato de que não posso perdoa-lo. Mas não é isso. Simplesmente nunca mais serei capaz de olhar para ele da mesma forma. Antes havia uma barreira me cegando. A amizade. O carinho de criança. Mas agora não existe isso. Eu enxergo as coisas com muita clareza e só sei que o amo. E não da forma com a que ele vai me amar de volta.
Ele está começando a se agitar. Não ergo a cabeça mas sinto as vibrações do seu corpo. Vejo a forma como passa o peso do corpo de uma perna para outra várias vezes.
Finn vai surtar.
-Olha só, antes de você simplesmente tomar essa decisão, eu preciso que me escute. Olhe pra mim! -É uma ordem.
Eu olho e espero seus gritos. Talvez uns dedos apontados na minha cara porque Finn não sabe lidar com coisas difíceis sem entrar totalmente na defensiva. Mas não é isso que acontece.
Ele só respira fundo.
-Eu fodi com tudo. Eu admito. Eu assumo! Eu não sou bom pra você. Nunca fui. Não sei ser um amigo decente, não sei dizer nada de útil quando você está triste. Não sei fazer nada disso. E o problema é que eu sou assim. Eu sempre ferro com tudo na minha vida. Como você mesma diz eu me auto saboto o tempo todo. Não posso ter nada bom na minha vida porque eu ferro com tudo! -Ele ri. Alucinado. -Eu chamo minha mãe de pirada, mas eu é que sou. Eu que tenho a cabeça fodida e acabo ferrando com tudo que está ao meu redor e eu tinha o direito de fazer isso com todo mundo, menos com você e com a Nicolle e adivinhe? Até isso eu consegui.
-Finn...
-Não! Me deixa terminar! -Ele me interrompe completamente transtornado. -Mas mesmo assim. Mesmo com todas essas merdas de defeitos, eu só fui capaz de gostar um pouquinho de mim quando tentei ser alguém de quem você fosse capaz de gostar. Você não me conserta Millie, porque eu não tenho conserto, mas você me melhora. Me faz ver coisas boas em mim ainda que sejam poucas. Eu estou enlouquecendo sem você. Estou virando um nada, estou completamente perdido. Não é culpa sua, porra, não é isso que eu quero dizer, só quero dizer que não posso passar mais um dia com isso dentro de mim, então se você quiser mesmo que eu vá embora agora e nunca mais chegue perto de você eu vou, mas que você saiba que eu não vou esquecer você nunca. Que mesmo você não querendo, eu vou continuar pensando em você, vou continuar com saudade e vou continuar me culpando pelo resto da vida por ter perdido a única coisa boa que aconteceu comigo. Você.
Fico muda. Completamente paralisada por fora, mas com um turbilhão de sensações esquisitas e conflitantes explodindo dentro de mim.
Não consigo ser nada metódica agora. Não consigo analisar nem escolher o que posso ou não dizer. Estou me sentindo sufocada e sou dominada pelos meus sentimentos.
Levanto da cama rápido, o que me causa uma terrível dor que me trás de volta para a realidade. Quase caio, mas Finn chega mais rápido e me ampara. Me segura.
-Pelo amor de Deus, pirralha. Diz alguma coisa ou você vai me matar. -Ele implora me subindo de volta na cama pela cintura.
Mordo a boca para tentar afastar a vontade enorme de dizer o que realmente estou sentindo, mas tudo se mistura. O medo. O nervosismo. As lágrimas.
Seguro sua camisa com as duas mãos e o aproximo de mim.
-Você não é nada disso que me falou. Nada. Você é bom com ou sem mim. Eu te conheci trabalhando na rua para não deixar a sua família morrer de fome. Eu vi você enfrentando uma escola nova e apanhando todos os dias só para continuar recebendo ajuda. Vi você sacrificar a sua vida para dar uma vida descente a sua irmã. Para não deixá-la nunca sozinha. Como você pode se achar um monstro? Você melhora comigo, mas não é por minha causa, é porque nós somos bons juntos.
Ele pisca. Posso ver suas pupilas dilatarem e contrairem. A respiração descontrolada. Já estivemos perto assim antes, mas não dessa forma. Não assim.
Finn enxuga minhas lágrimas com os dois polegares.
-Isso... Isso quer dizer que você ainda vai ficar junto comigo?
Não importa se ele está falando de um jeito diferente do que eu quero que seja. Simplesmente não posso mais ficar longe dele.
-Claro, seu bobo. -Digo ainda chorando. Mas estou sorrindo.
Ele sorri também. É o meu sorriso. O sorriso que ele só abre para mim.
Mas então acontece uma hesitação fora do do normal. Muito tempo que ele passa sem responder alguma coisa, só olhando para mim. Suas mãos no meu rosto, as minhas apertando a colcha da cama.
Os nossos sorrisos vão morrendo, dando espaço para ares trocados.
Finn olha para minha boca e engole em seco.
-Millie, eu acho que... Não sei, as vezes eu penso...
-E-eu também. -Simplesmente sai. Mesmo sem eu ter idéia do que ele diria.
Ele dá um leve passinho para frente. Meu estômago se aperta quando sinto a aproximação do seu hálito. Da sua boca. Do seu cheiro.
Fecho os meus olhos sentindo cada pelinho do meu corpo se arrepiar e o coração entrar em colapso.
Mas então a porta se abre.
-Millie... -A voz da minha mãe perde a intensidade em cada sílaba.
Abro os olhos como se despertasse de um sonho. Finn já se afastou, minha mãe está estarrecida parada na porta.
Ele, nervoso, não sabe se olha para ela ou para mim e ainda assim chega perto de mim e dá um beijo na minha testa.
-Eu já vou indo. Fica bem. Depois a gente se fala.
Não tenho como dizer nada.
-Dra. Brown. -Ele só a cumprimenta rápido e simplesmente desaparece porta a fora.
Minha mãe cruza os braços ainda em choque esperando uma explicação.
Não estou nem aí.
Só consigo me perguntar se estou maluca ou Finn realmente iria me beijar?
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