Millie.
Michelly me colocou no quadro de plantões de novo, me encaixando de última hora no turno para trabalhar na data de hoje com alguns exames e consultas que deveriam ser do meu parceiro, Dr. Jones, que nunca foi exatamente com minha cara, mas que concordou de bom grado em dividir seus pacientes comigo.
A recepção calorosa dos outros médicos e funcionários deveria ter me enchido de ansiedade e alegria. Era o que eu queria. Voltar ao meu trabalho e me focar na única coisa que por sorte ainda está de pé em minha vida. Porém tudo em que consegui pensar desde o momento em que pisei em minha antiga sala e vesti meu jaleco, foi na presença de Finn no jardim do hospital.
Era ele. Eu o reconheci de costas e olhei em seus olhos quando se virou, mas ainda assim, horas depois de tê-lo visto, ainda não sou capaz de acreditar ou entender o que está acontecendo.
A única razão pela qual não enlouqueci e disparei em sua direção em busca de uma explicação foi o entendimento de que não podia fazer isso. Não aqui. Não quando estou tentando recuperar minha vida profissional. O que não me impediu de sentir o efeito de saber que ele estava aqui. Tão perto de onde eu estava.
No entanto, tentei encarar isso como um teste para minha própria resistência mental. Não podia deixar que ele mais uma vez roubasse o pouco controle emocional que ainda me restava. Ainda mais no meu trabalho.
Consegui fazer isso nos três primeiros pacientes que atendi e que me tiraram algumas horas de intenso trabalho. Uma adolescente depressiva com histórico de automutilação, uma mulher com características borderline e um viciado em heroína com uma forte crise de abstinência.
Mas foi na primeira pausa do dia, no meu horário de almoço, que fraquejei e desci até o pavilhão debaixo, com a esperança de que aquilo que havia visto mais cedo não passasse de mera ilusão da minha cabeça. Um lapso, que me fizera enxergar algo que não era real.
Ainda na parte interna do prédio, na recepção, me aproximo de novo da parede de vidro que me dá visão para o jardim externo.
Cruzo os braços na frente do meu corpo. Um ato de contenção de mim mesma, ao me deparar com ele de novo lá fora, agora com um novo grupo de pacientes, como se não tivessem passado horas desde o momento em que cheguei aqui e o vi pela primeira vez.
É realm. Ele está aqui.
Talvez o fato de estar de costas agora, inclinado em direção a uma tela enquanto os pacientes o assistem pintar, enfileirados lateralmente no gramado, tão concentrado que nem percebe que eu estou aqui, minha raiva tenha um momento de controle.
Fico quieta, assistindo a cena mais estranha e inusitada da minha vida e no fundo, apreciando. Já o vi pintar muitas vezes, porém foi há muito tempo e com certeza nunca fazendo isso para uma plateia questionável assistir.
Porém ele não parece incomodado com isso. Parece até gostar do que está fazendo. Como se esse mesmo homem não fosse aquele que já fez tantas atrocidades, que já partiu meu coração e me fez cometer tantas loucuras. Com ele e por ele.
-Dra. Brown. Quer ir almoçar com o pessoal lá fora? Estamos todos indo para o italiano do outro lado da rua.
Distraída, levo um pequeno susto ao me deparar com Rory surgindo ao meu lado. O enfermeiro da minha equipe e meu admirador nada secreto, está sorrindo confiante desde que me viu por não ver mais uma aliança enfeitando meu dedo.
Não deve ter mais do que vinte e um anos, mas é um homem por completo. Com sua barba bem feita e um físico apreciável mesmo por baixo do uniforme hospitalar.
Seu convite não é uma surpresa. Desde que trabalho aqui era nossa tradição no horário de almoço nos juntarmos para o almoço no restaurante preferido do pessoal do hospital. Porém não é a falta de fome que me faz recusar o convite que eu deveria aceitar.
-Eu vou precisar ficar mais um tempo aqui. Estou avaliando o comportamento de alguns deles lá fora, mas obrigada por me chamar. Quem sabe da próxima vez? -Minto e descarada pergunto: -Michelly ainda está aqui ou já saiu para o almoço?
Claramente desapontado, ele assente.
-Ela já saiu. Nos vemos depois então. Se você precisar de mim é só me chamar pelo bipe.
Ele se inclina, dando-me um beijo rápido na testa antes de sair.
Volto minha atenção para fora e como se tudo fosse minuciosamente providencial, Finn está olhando para mim. Uma sobrancelha erguida, lhe dando uma óbvia expressão enciumada por ter visto minha interação com o enfermeiro.
E automaticamente me lembro de todas as razões pelas quais preciso estar com raiva dele. Todas as razões pelas quais isso aqui não deveria estar acontecendo.
Sumo de suas vistas pelo tempo que dou a volta praticamente no prédio inteiro para conseguir chegar no jardim externo. E a irritação crescente não me faz pensar direito nas consequências do que estou fazendo na frente de pessoas que não deveriam me ver dessa forma. Mas que se dane. Finn veio aqui para me provocar, me fazer perder a cabeça mais do que já está perdida. Que outra explicação poderia ter? Só tenho que tira-lo daqui.
Meus sapatos de saltos baixos afundam na grama macia quando finalmente consigo atravessar o jardim e ele me vê de imediato mesmo estando praticamente no final do jardim. Porque, aparentemente, sou tão previsível para ele que Finn simplesmente sabia que eu iria até ele de um jeito ou de outro.
E ao contrário do que deveria ser, meus passos pesados e raivosos aumentam consideravelmente quando o vejo cruzando o jardim, vindo em minha direção por conta própria, na mesma gana desorientada para chegar até mim que eu tenho de chegar até ele.
Do jeito como andamos furiosos até o outro pelo espaço aberto, lotado demais, parece que iremos colidir. Se para matar um ao outro ou para abraçar, eu não sei. Só sei que no último segundo antes de cometer a loucura de fazer a última coisa, eu paro, arfando sem fôlego e ele nada. Como se a caminhada longa até mim não tivesse lhe tirado uma grama que fosse de fôlego.
-O que você está fazendo aqui? -Disparo, precisando engolir o ar a cada sílaba proferida.
Ele hesita, tão distraído olhando para mim que é como se não tivesse sequer ouvido minha pergunta. E eu quase caio na mesma onda. Olhar para ele, ao mesmo tempo que me enche de raiva, também é a única coisa que me conforta depois de tanto tempo.
Seus pés descalços e pálidos perdidos na grama verde, suas mãos e roupas completamente sujas de pequenas manchas de tinta. A mesma tinta azulada respingada na lateral do seu rosto.
Não entre nessa. Foco!
-Aparentemente sou o novo voluntário nas aulas de pintura. Achei que isso aqui seria como um manicômio, mas sabe, é bem mais interessante do que isso. Todo mundo aqui é bastante simpático. -Ele responde com um sorriso tranquilo demais, dando sutis passos na minha direção até parar quando vê que não estou brincando. -Eu queria ver você.
Apesar de ser óbvio, uma parte de mim não deixa de derreter parcialmente ao ouvir isso. Lá no fundo. Mas essa parte eu decido ignorar.
-Você só pode ter ficado louco. -Assim que profiro essas palavras, parece que a coisa toda começa a tomar uma proporção muito maior como um estalo dentro de mim. Porque não é que ele não deveria estar aqui. Ele não poderia. Ele não pode. -Você está em liberdade condicional, Finn. Será que você sabe o que isso significa?
Ao contrário do que ele deveria expressar, Finn sorri, como se o que falei não fosse nada, ou pior, o agradasse.
-Sabia que você se preocuparia com isso, mas não é necessário. Eu consegui sair sem ser visto e a menos que alguma coisa mude, ninguém vai saber que estou aqui.
Algumas pessoas passam por nós dois, estudantes do grupo de enfermagem e mais alguns pacientes, o que me força a chegar mais perto dele e testa minha habilidade de falar baixo. Porque além de tudo, não quero que ninguém escute que estamos diante de alguém que está em liberdade condicional. E que esse alguém tem tanta intimidade comigo ao ponto de me olhar como se eu fosse sua.
-Não importa. Você tem que ir embora. -Murmuro, deixando de lado minha curiosidade em saber como me encontrou tão rápido.
No fundo, isso não importa. Finn sempre deixou claro que não teria dificuldade em me achar. Eu só nunca achei que ele chegaria as vias de fato, porque acreditei sinceramente, que Finn ainda tivesse algum apreço pela própria liberdade. Algo que vejo agora que não existe.
Ele também chega mais perto. Tão perto que consigo sentir o cheiro de tinta e do perfume entranhado em suas roupas.
-Não antes de conversar com você.
Contra minha vontade, sua voz baixa e grave, assim como a firmeza com que ele diz, reverbera no meu estômago. Fraco demais para aguentar as emoções conflitantes dentro de mim. Com saudade demais para não me fazer me odiar inteira por sentir isso.
-Estou no meu trabalho. Você não pode achar que eu simplesmente vou largar tudo para conversar com você. Pode esquecer...
-Eu não estou atrapalhando nada, ou estou? Até onde sei, estava aqui no meu canto e em nenhum momento cheguei perto de entrar lá dentro. Você veio aqui porque quis.
Preciso de ainda mais controle para não gritar com ele agora na frente de todo mundo. Não por estar mentindo, ele não atrapalhou diretamente em nada de fato, mas estar aqui já muda tudo. E eu não deveria ter que falar isso.
-Eu vou entrar e quando eu sair do meu plantão mais tarde, seja lá o que você pense que está fazendo, vai acabar. Não quero ver você aqui de novo, entendeu?
Viro-me, sem querer nem mesmo ouvir uma resposta. Ou ficar perto dele. Porém não vou muito longe com sua mão se fechando em torno do meu pulso.
Um olhar alarmado para ele e Finn me solta.
-Millie, calma. Eu não quero que fique zangada comigo. Olha, vamos começar de novo, eu não vim aqui para discutir com você.
Ele movimenta ligeiramente o braço para enfiar os dedos nos cabelos. Um gesto padrão que ele tem e que eu ignoraria caso o movimento não me permitisse ver uma mancha em sua costela sob a camisa cinza, que esteve escondida até agora por causa da jaqueta E a mancha não é de tinta. É sangue. Mais puro e vermelho sangue.
-O.. que houve com você?
Finn recua, levando a mão diretamente para o lugar ensanguentado quando tento chegar mais perto.
-Nada. Não foi nada. -Diz, puxando a jaqueta ainda mais para frente como se pudesse esconder de mim algo que eu já vi.
Louca, olho por cima dele, imaginando o inevitável.
-Algum deles te machucou? Se isso aconteceu...
-Não, Millie, ninguém me machucou. -Sem outra saída, ele se aproxima, murmurando baixo -Olha só, quando eu estava saindo de SunnyVale, tinha alguns carros de polícia na estrada. Não estavam me seguindo, nem sequer me viram, mas se vissem eu não teria como sair da cidade. Eu tinha que me esconder, mas não tinha como sair da estrada sem ser visto. Joguei a moto em uns arbustos e fiquei lá até eles saírem do caminho, mas então, o espelho da moto quebrou com a queda e eu me cortei. Não é nada demais
Enquanto explica esse absurdo, eu só consigo prestar atenção no seu corpo, na forma como Finn está cada vez mais curvado e mesmo embaixo da jaqueta o sangue começa a espalhar tanto ao ponto de começar a ser visível na parte da frente da camisa. Um simples corte não faria esse estrago.
Não penso em mais nada, apenas puxo seu braço.
-Vem comigo, eu preciso dar uma olhada nisso.
-Eu já disse que não foi nada. Estou bem. E eu não acho que tenha permissão para entrar lá dentro.
Paro, virando-me para ele prestes a dar um soco em sua maldita cabeça teimosa. Não importa que levá-lo para dentro do prédio seja a constatação de que fiquei louca. Ele está ferido.
-Ou você entra comigo agora, ou eu ligo agora mesmo para o departamento de polícia de SunnyVale avisando que desobedeceu a condicional.
Ele desdenha, com uma risada rouca de escárnio.
-Você vai me denunciar? Eu duvido.
Eu não faria isso. Nunca teria coragem. Porém já não estou em meu juízo normal, muito menos quando sou desafiada.
-Tudo bem. Sendo assim você não me deixa outra escolha.
Pego o celular dentro do bolso do meu jaleco e localizo rapidamente o telefone do Dr. Becker, sem parar para pensar um segundo antes ligar e levar o telefone no ouvido.
Finn me encara, braços cruzados, ainda achando que é um blefe, mas quando no auto falante a secretária do chefe de polícia atende, ele finalmente puxa o meu braço.
-Está bem, eu vou com você.
Faço de tudo para não dar um sorriso convencido, apenas desligo o aparelho e o guardo de novo no bolso.
-Venha comigo.
Ele me segue, porém eu ando na frente, nervosa, colocando alguma distância entre nós dois e tentando me convencer de que não estou cometendo mais um erro.
Até tenho um kit de sutura e primeiros socorros dentro do meu carro, mas não quero ter que fazer nada no meio do estacionamento. Preciso de uma sala.
Enquanto Finn se distrai com a movimentação interna do hospital, vou até a recepção, encontrando Elizabeth, que de imediato deixa tudo o que está fazendo atrás do balcão para falar comigo.
-Boa tarde, eu preciso da sala de procedimentos.
Ela olha por cima do meu ombro, vendo Finn atrás de mim e automaticamente franze o cenho.
-O que aconteceu?
-Um pequeno acidente. Nada demais, se você puder liberar a sala para mim, por favor. -Respondo, tentando me colocar ainda mais na frente de Finn para que ela não veja a quantidade de sangue que ele está derramando.
Ainda assim, ela se alarma.
-Acidente? Não é melhor avisar Michelly?
Nego com a cabeça. A última coisa que preciso é da minha chefe aqui agora.
-Eu cuido disso, pode deixar. Só preciso que libere a sala, por favor.
Desconfiada, ela assente, fazendo uma breve ligação no telefone do balcão.
-Pode ir para a sala três. A porta deve estar liberada.
-Obrigada.
Inclino a cabeça na direção do próximo corredor e Finn me segue. Em qualquer outro hospital normal, as salas de procedimentos não costumam ser tão restritas, porém não estamos em um hospital normal e todo cuidado é pouco com materiais perfurocortantes.
Passo meu crachá sobre o sensor que liberam as duas portas pesadas de aço para o centro cirúrgico e salas de procedimentos. O corredor largo e gigantesco, acessado somente em casos de emergências, por sorte está vazio e a sala três está devidamente aberta.
Entro primeiro, depois Finn me acompanha enquanto fecho a porta nos trancando no ambiente claro e fechado com ar-condicionado no máximo, deixando o cheiro de seu sangue cada vez mais forte em minhas narinas.
-Sente-se na cama e tire a jaqueta e a camisa. -Ordeno, dando-lhe as costas para abrir os armários de vidro com os materiais de sutura.
Ouço Finn bufar atrás de mim.
-Não era assim que imaginei você me pedindo para tirar a roupa. -Ele brinca, como se eu estivesse mesmo com tempo ou disposição para brincadeira.
Lanço-lhe um olhar mortal por cima do ombro e ele ergue as mãos, rendido. Logo em seguida puxa a jaqueta, me fazendo virar de novo.
A verdade é que estou nervosa. Nervosa demais. Não apenas por estarmos aqui dentro sozinhos de novo, algo que eu teria evitado ao máximo, mas porque faz muito tempo que não lido diretamente com uma sutura ou procedimentos no geral.
Minha área de pesquisa e trabalho é muito mais clínica, muito mais focada na mente e além de colar uns eletrodos na cabeça de pessoas ou prescrever exames e dar laudos, fazem pelo menos uns dois anos que não faço procedimentos invasivos.
Puxo a caixa metálica com todos os materiais prontos para uma sutura, e ainda que talvez não seja necessário, tremo ao abri-la.
-Talvez seja melhor chamar outro médico. -Digo em voz alta o que me passou pela cabeça desde que entramos na sala.
Não encaro Finn, mas consigo imaginar a forma como olha para mim.
-Você dá conta. Não é nada demais.
Certo. Pondero por alguns segundos antes me virar para ele de novo.
Está sentado na maca como mandei, sem a jaqueta e a camisa. Minha boca se abre alguns milímetros ao ver o tamanho do ferimento que ele tentou proteger com uma atadura mal colocada. Está desamarrada, embebida em tanto sangue que não me faz ter a menor dimensão de onde o sangue começa ou termina.
-O que acha que você fez aqui? -Pergunto, irritada, colocando os materiais sobre a mesinha de metal e a arrastando para mais perto.
-Eu tenho um kit de primeiros socorros no alforge da moto. Achei que a atadura iria aguentar, e aguentou até agora. -Explica, orgulhoso de si mesmo.
-Eu preciso ver isso. Deite-se.
Revirando os olhos, ele me obedece, mas expressa um silvo de dor quando empurra as costas contra a maca lisa sem colchão.
Com cuidado, desato o nó ridículo que ele fez na atadura e Finn move o tronco, me ajudando a puxar a parte do tecido que ficou por baixo do seu corpo.
Uma má idéia. Assim que está livre da pequena tentativa de contenção, seu sangue começa a fluir mais, escorrendo do corte que agora vejo ter pelo menos oito centímetros. Ainda que as tatuagens escuras camuflem, o corte foi fundo o suficiente para com certeza precisar de uma sutura.
Eu não sei como ele aguentou até agora. Ou como iria aguentar mais tempo caso eu não visse isso antes.
-Você está me olhando esquisito. Não me diga que isso é tão grave assim. -Ele diz, mas não parece realmente preocupado.
Sem respondê-lo, calço as luvas e o empurro um pouco mais para o lado. Dando-me espaço e visão completa do ferimento.
-Fique quieto. Preciso ver se ainda tem resquícios de vidro dentro do corte.
Engulo em seco quando ponho as mãos enluvadas diretamente em contato com a ferida, abrindo as laterais com cuidado para ver exatamente o que falei. Há pequenas partículas de vidro grudadas em sua carne.
-Você deveria me avisar se isso vai doer. -Novamente Finn diz, sem parecer incomodado ou preocupado com a dor.
Ele só quer um motivo para falar comigo e isso também me irrita.
Puxo com o pé o foco de luz aceso perto da maca e pego uma pinça no kit estéril.
-Eu espero que doa. -Minto, apenas para faze-lo se calar.
Um a um, retiro os pequenos pedaços de vidro espatifados. Atenta a qualquer gemido de dor que ele possa emitir, porém ele não o faz. Apenas puxa o ar pelos dentes quando retiro o último pedaço que vem acompanhado de mais e mais sangue.
O porquê da sua resistência não é uma surpresa exatamente. Finn está acostumado, depois de anos se submetendo a procedimentos invasivos por causa de Nicolle, é como se isso não fosse absolutamente nada.
-Você já pensou nisso? Há uns anos atrás a única coisa que você fazia era me dar uns comprimidos e passava aquele negócio ardido nas minhas feridasz e aqui estamos nós. Você prestes a me costurar. Você realmente conseguiu, não é? Se tornou a médica que sempre falava que seria.
Seu comentário me faz engolir de novo. A garganta seca, com vontade de respondê-lo, de relembrar, mas não consigo. As lembranças não me parecem boas. Por isso o ignoro.
Faço uma solução com sabão líquido neutro e povidine e começo a limpar sua pele, tirando todo rastro de sangue seco acumulado até sua barriga. Apesar de concentrada, não deixo de me perder alguns segundos enquanto aliso a pele firme, os músculos contraídos, o dorso do cavalo negro alado que ele tem tatuado e que esconde a cicatriz da cirurgia para a doação de rim que fez para Nicolle.
Sinto orgulho dele por isso. Quando penso que Finn se sacrificou tanto por Nicolle, quase esqueço que ele jamais fez algo por mim.
-Eu vou aplicar uma anestesia para fazer a sutura. Vai doer um pouco, só uma picadinha.
Encho a seringa pequena com a solução anestésica agora que a ferida está limpa e o sangue contido, mas quando me aproximo para aplica-la, Finn se afasta.
-Não precisa de anestesia.
Em choque, pisco por alguns segundos. Me rendendo a encara-lo.
-Eu vou costurar você. Se eu não aplicar anestesia...
-Não precisa. Eu não ligo para a dor, isso não é nada.
Não precisa de mais do que isso para que eu entenda. Não é que Finn não liga para a dor, é que ele simplesmente gosta de senti-la. Ele quer.
Não escondo o horror em minha expressão. A mormidez que sinto nele quase me faz desistir e sair da sala para chamar outro médico, mas eu não deixaria outra pessoa fazer isso no meu lugar, embora tenha plena certeza de que sairei muito mais perturbada depois.
Ele se aproxima de novo, deixando-me colocar as mãos em seu corpo, e ao enfiar a agulha em sua pele pela primeira vez, o assisto fechar os olhos e respirar, como se isso lhe trouxesse um tipo de satisfação que não consigo compreender.
Fecho o primeiro ponto e faço isso rapidamente com os outros cinco até fechar a ferida por completo. Eu sentiria orgulho pela sutura firme que fiz, quase tão boa quanto na época em que praticava todo dia, caso não estivesse imersa em uma onda súbita de torpor.
Recolho todos os materiais contaminados e os descarto nos recipientes corretos. Enquanto faço isso, ainda o vejo deitado, olhando curioso para mim e relaxado na maca como se não tivéssemos feito absolutamente nada.
-Você precisa procurar um posto médico ou um auxiliar de enfermagem em dez dias para retirar os pontos. Precisa tomar cuidado, lavar a área com sabão neutro e usar camisas confortáveis que não puxem os pontos antes da hora. Vou te receitar uma pomada e um antiinflamatório para tomar nos próximos dias e se tiver febre ou dor, você precisa...
-Eu já sei. Não é a primeira vez que levo uns pontos. -Ele se ergue da maca, se esticando como se tivesse acabado de tirar uma soneca. Levanta o braço, vendo a minha sutura em sua costela. -Isso ficou bom. Muito bom.
Balanço a cabeça, cada vez mais incrédula com esse homem. E embora não tivesse nenhuma intenção de prolongar isso, não consigo evitar.
-Você tem noção do que fez? Eu acho que não. Sua condicional deixa claro que não pode sair da cidade sem aviso prévio ou consentimento da polícia. Isso sem falar nesse corte. Se a pancada fosse mais forte, poderia ter quebrado sua costela e os ossos poderiam ter perfurado o seu pulmão. Você pode achar que é uma besteira, mas pessoas morrem por causa de coisas desse tipo ou passam o resto da vida em uma cama sofrendo as consequências...
Não termino meu sermão, mas me calo quando o vejo levantar da maca. O braço levemente afastado para evitar o contato com os pontos.
-Eu precisava vir aqui. Eu sei as consequências, mas você sabe que eu não ligo para elas. Se eu ligasse, muitas coisas na minha vida seriam diferentes. As vezes para melhor, eu sei, mas não consigo evitar. Se eu não viesse atrás de você eu teria enlouquecido.
Nego com a cabeça, fazendo aquilo que jurei não fazer. Recuando, conforme ele se aproxima.
-Você já enlouqueceu, Finn. Essa foi a maior prova de loucura que você já deu na vida. E tudo isso para que? Diga-me, para que?
Ele para, parecendo avaliar o que vai dizer. Quando decide, seu olhar decai para minhas mãos.
-Sei que você terminou o seu noivado.
Sei que não deveria ficar surpresa. Finn nunca deveria me surpreender em coisa alguma, porém, ainda assim, fica difícil demais engolir essa. E por ser tão óbvio, eu fico com nojo. Minha vida não é minha. Nem mesmo meus segredos são meus.
-Claro. -Solto uma risada bufante sem humor. -Que outra razão você teria para vir, não é? Quem te contou?
Apesar de não duvidar de suas habilidades em descobrir isso sozinho, não posso simplesmente acreditar nisso. E vejo que estou certa quando ele se move um pouco para trás, recusando minha pergunta.
-Não importa, Millie. Eu não vim aqui para...
-Quem contou? Eu mereço saber! -Eu preciso.
Ele pondera e o conheço bem o bastante para saber que passam mil desculpas diferentes para fugir da minha pergunta. No entanto, nada me prepara para o que vem depois.
-Sadie. Sadie me contou.
Meu cérebro parece dar um nó. Balanço a cabeça, zonza, totalmente perdida.
-Sadie? Impossível! Como? -Indago, querendo muito pegá-lo na mentira.
-Eu a procurei no dia em que você me ligou de madrugada. Você lembra? -Mesmo sem minha confirmação ele continua. -Eu fui até o local onde ela trabalha, a convenci a conversar comigo, mas não deu em nada. Ela não me ajudou, nem disse que o faria. Mas então, antes de ontem ela me procurou de novo. Sua mãe contou tudo para ela e Sadie...
-Meu Deus, chega! -O interrompo, agarrando minha própria cabeça com as mãos.
Não acredito que isso esteja acontecendo de novo. Me curvo um pouco para baixo, com a sensação cada vez mais forte de que irei vomitar a qualquer momento.
-Não fique chateada com ela, Millie. Sadie estava preocupada com você. Tão preocupada ao ponto de precisar me procurar, mesmo sem confiar plenamente em mim. Você não deu nenhuma notícia, não a procurou ou respondeu. Achamos que talvez você precisasse de alguém ao seu lado e...
-Vocês acharam... -Repito, incrédula, fazendo esforço para erguer a cabeça e encara-lo.
Finn parece não entender minha reação. Claro. Ninguém entende.
-Achamos. Sei como isso machuca você...
-Você não sabe de nada. -Cuspo, agressiva. E então não aguento mais segurar. -Porque todo mundo gosta de fazer isso? Agir pelas minhas costas como se o que eu quisesse não valesse de nada? Se eu não quis conversar com ela, se eu não respondi ou a procurei, era porque eu não queria! Porque não estava pronta!
E não estou pronta agora. Acho que depois de hoje, nunca estarei. A sensação de traição, que achei que viria apenas de minha mãe e que já era esperado, agora está me tomando por completo. Todas as pessoas da minha vida. Não sobra ninguém.
-É a sua reação de sempre. Você se recolhe, não aceita fraquejar diante das pessoas. Mas não precisa ser assim. Você não está sozinha. -Ele responde, tão seguro do que está dizendo que quase é possível acreditar.
-Era isso que você queria, não era? Passou metade do tempo todo querendo que eu admitisse que minha vida era uma farsa. Pois bem. Conseguiu. Eu admito. Era tudo uma farsa. Meu noivado, minha família perfeita. Eu mesma. Eu sou uma farsa. Satisfeito?
Ele franze o cenho, com a audácia de parecer espantado com o que estou dizendo, mas ainda calmo. Como se eu não estivesse gritando enlouquecidamente.
-Não, Millie. Eu não vim aqui para isso!
-Então o que? O que é que você quer mais de mim que eu já não tenha te dado?
-Nada. -Diz. Como se já soubesse que essa seria minha pergunta. -Não quero nada. Só vou estar aqui, para você, se precisar de mim.
Apesar de toda loucura em minha cabeça, tento encara-lo, tento ver qualquer sinal de blefe e de mentira, mas não encontro. Ele está dizendo a verdade, porém ao contrário do que deveria, isso só me machuca ainda mais.
Encolho-me mais contra a parede, quase por um fio.
-Há dez anos você deveria ter estado aqui para mim. Não agora. Há dez anos. Agora... Não adianta mais. -Minha voz oscila, fraca.
Finn balança a cabeça lentamente.
-Você nunca vai me perdoar por isso, vai? Eu não posso voltar no passado, Millie. Não posso fazer diferente, se eu pudesse...
-Você não teria ficado. -Completo, com a mais pura verdade. O que me mata um pouco mais desde o dia em que ele foi embora. -Ou vai me dizer que teria largado tudo por mim?
Nunca quis parecer egoísta a esse nível. Conheço as razões pelas quais ele me deixou, porém pela primeira vez, eu não consigo deixar de falar o que está enjaulado dentro de mim há anos.
Seu silêncio é a resposta que preciso para continuar.
-Eu lutei a vida inteira por você desde o momento em que te vi pela primeira vez. Lutei para conseguir ficar perto de você, depois para ser sua amiga, para conseguir o seu amor e depois para te esquecer quando você foi embora. E depois que você voltou, eu ainda tive que lutar mais uma vez contra tudo na minha vida só para te ver de novo. Eu estou cansada de lutar sozinha, de perder tudo sozinha. Diga só uma coisa que você tenha feito por mim em todos esses anos. Só uma.
-Isso agora não conta? Vir aqui, desobedecer minha condicional e arriscar que você nem mesmo quisesse me ver? -Se defende, com a única arma que tem.
Deixo meu corpo escorregar contra a porta. Cansada ao ponto de não me importar que veja minha fraqueza. Do que adianta tentar mostrar força quando ela foi em tão pouco tempo sugada para fora de mim?
Não me dedico a responder. Não preciso. Finn percebe e se inclina, ficando de joelhos na minha frente. A parede atrás de mim me impede de recuar quando ele ergue meu queixo.
-Sabe do que mais? Por alguma razão aquelas pessoas lá fora gostaram de mim. Me ofereceram até para ficar, dar mais aulas de artes...
-Pare. -Afasto sua mão do meu queixo, sacudindo a cabeça. -Não fale como se isso fosse acontecer. Você não veio para cá, Finn. Você está aqui. É diferente. Você vai embora de novo, como todas as vezes.
Não me faça acreditar e querer o impossível.
Porque a simples fantasia de que isso pudesse ser real, ele ficar comigo e entrar no meu mundo e trabalho, é boa demais para ser verdade.
Ele abaixa a cabeça por um segundo, depois a ergue de novo, só que parece cada vez mais derrotado.
-Talvez eu não possa ficar agora. Ainda não. Mas não tem que ser assim para sempre. Um dia as coisas irão se resolver e então...
-Você quer que eu fique esperando. -Termino, incapaz de ouvi-lo por mais um segundo. -Você realmente vai me pedir isso? Depois de dez anos... Não acha que já foi tempo demais?
Finn levanta e eu assisto seu tormento ao passar as mãos pelos cabelos, os bagunçando ainda mais. Seus músculos tensos, cada grama de calma se esvaindo. Ele respira fundo antes de parar e me encarar de novo.
-Não acho que a gente deva terminar essa conversa aqui desse jeito, isso não está nós levando a lugar algum. Como eu disse, não vim aqui para brigar ou para cobrar alguma coisa de você. Acho melhor nós dois nos acalmarmos. Vou esperar você terminar seu trabalho, depois posso vir te pegar. -Diz, centralizado como se em tempo recorde, tivesse colocado a cabeça no lugar.
-Não quero que venha me pegar, Finn. O que eu quero é que... -Hesito, ao me dar conta de que pediria o impossível. Sem outra opção, mudo minha resposta. -Quero que vá embora.
Ele nega, muitas vezes seguidas.
-Vamos conversar fora daqui, sobre isso ou sobre qualquer outra coisa que você queira conversar, até mesmo podemos não falar absolutamente nada. Se depois disso você ainda quiser me mandar embora, eu vou. Eu prometo que vou.
Com custo, levanto-me do chão. Acho a idéia péssima. Porque duvido que eu termine esse dia o mandando ir embora, mesmo tendo todas as razões para faze-lo, sei bem como isso termina.
-Não estou pronta para isso. Eu preciso de um tempo, achei que tivesse deixado isso claro...
-Você está me pedindo a única coisa que não posso te dar. Eu não tenho tempo um tempo. Ainda não. E me desculpe se pareço um babaca de merda por dizer isso, mas me peça qualquer outra coisa agora, menos para ficar longe de você na única chance que eu tenho. Eu não sei se vou poder voltar aqui outra vez e não sei se quando você resolver aparecer onde moro, eu ainda vou estar lá.
-Como assim não vai estar lá? Você vai sair de SunnyVale? -Pergunto, subitamente assustada.
Finn balança a cabeça, porém o movimento é completamente incerto.
-Não vou sair de lá, mas você sabe do que estou falando. Posso ser preso. E preso... eu não vou poder fazer mais nada.
Antes que eu responda, o som do meu bipe me alerta para o pequeno dispositivo vibrando e piscando dentro do meu bolso. O capturo rápido, vendo a chamada aparecendo na tela minúscula indicando que precisam de mim.
-Eu preciso ir.
-Eu vou poder esperar por você? -Finn me para, se colocando contra a porta antes que eu saia.
Eu não deveria responde-lo. Falei sério quando disse que não estou preparada para nada disso, ainda sequer entendendo como Sadie e ele se entenderam ao ponto de juntarem para fazer isso, porém, o que ele me disse pega uma parte de mim. Uma parte que sempre me inclina ao seu favor. Pode ser que essa seja a última chance que temos, não para ficar juntos, eu ainda não sou tão ingênua para acreditar que seja possível, mas para encerrar isso de uma vez. Como não aconteceu há dez anos. E eu não suporto a perspectiva de enfrentar mais anos e anos com a mesma sensação de ter tudo preso dentro de mim. Se depois disso ainda me restarem forças, sei que vou lutar até o final, se não, poderei finalmente dizer que cheguei ao meu limite. E ninguém poderá me julgar por isso.
-Eu saio em quatro horas. -Respondo, vendo o alívio percorrer toda sua expressão em um único segundo.
E como se não houvesse acontecido coisa alguma, ou ele simplesmente tivesse esquecido de tudo, Finn se inclina, me pegando desprevenida com um beijo.
--
Finn.
Merda.
Eu não deveria estar fazendo isso.
As mãos de Millie voando instintivamente para meu peito quando agarro sua nuca para beija-la, são só mais um lembrete de que estou cometendo um erro. Regredindo todo o caminho árduo pelo qual trilhei até fazer essa mulher teimosa aceitar conversar comigo.
Porém não consegui evitar. Principalmente quando não tenho certeza do que vai acontecer daqui para frente no pouco tempo que me resta.
E considerando que essa pode ser a última prova que terei dela pelo o resto da vida, eu tinha de aproveitar. Tinha que ter algo para me lembrar, caso isso aqui termine do jeito que minha intuição sempre faz questão de berrar na minha cabeça.
A pequena vantagem que tenho é que ela parece mais preocupada com o meu ferimento do que com o beijo. O que a impede de definitivamente me empurrar para longe e aceitar o que meu descontrole, que por milagre eu consegui manter até agora, tome conta de mim.
E logo ela deixa que eu me cole mais perto. Logo deixa que minha boca faça com a dela o o que desejo fazer desde o momento em que ela foi embora há dias atrás.
Ela não derramou nenhuma lágrima durante todo o tempo em que estivemos aqui, porém é esse o gosto que tem sua boca quando afasto seus lábios um pouco mais e a experimento. E é isso, junto ao fato de não retribuir meu beijo em quase em nenhum sentido, que me faz tomar a decisão de parar.
Me afasto alguns milímetros com esforço, abrindo os olhos e encarando os dela já abertos por trás dos óculos de grau me encarando de volta. Acho que vai dizer alguma coisa, porém Millie só engole em seco, lambendo os lábios úmidos
-Desculpe. -Digo e me afasto de vez, antes de fazer alguma nova maluquice.
Ela respira fundo, parecendo precisar fazer isso para voltar ao presente e empurra os óculos de novo contra o rosto.
-Eu tenho que ir.
Como na última vez ela não espera uma resposta, mas diferente da minha última decisão, eu a deixo ir.
Quando a porta se fecha, visto a camisa de volta, fechando bem a jaqueta para encobrir as manchas de sangue, e também saio vendo que ela deixou a porta de acesso restrito liberada para que eu fosse embora.
Meu telefone toca assim que deixo o prédio, voltando ao jardim para pegar minhas coisas deixadas para trás. E ao ver o nome aparecendo na tela eu atendo.
-Espero que tenha um bom motivo para ainda não ter entrado em contato comigo até agora. -A voz de Sadie é exigente, mas calma. Uma calma completamente forçada.
Como a minha.
Recordar os últimos minutos com Millie, apesar de sempre ser bom ficar perto dela, não me deixa exatamente animado. Há algo acontecendo que vai além do seu nítido problema comigo. Eu só não descobri ainda o que é. E minha "parceira" não vai gostar nada de saber disso.
Sadie eu trocamos telefones na mesma noite em que vim para Los Angeles. Ela voltou até minha casa e me escoltou de carro na madrugada até perto a saída de SunnyVale, como se realmente fosse impedir a polícia de me prender caso eu fosse pego.
-Eu estou aqui. Ainda não falei com ela direito, mas Millie concordou em conversar mais tarde. Pelo menos eu acho que concordou.
Ouço Sadie bufar do outro lado e paro no meio do jardim, esperando pelo que vem pela frente.
-Aposto que você não seguiu o nosso combinado. Diga-me exatamente o que você fez. -Pergunta, irritada e preocupada.
-Fui até o endereço que me você me deu, mas acho que ela não mora mais no apartamento. Então tive que vir até o hospital. Você tinha razão quando achou que ela voltaria ao trabalho.
-E você está esperando por ela no lado de fora, certo? Não entrou e procurou diretamente por ela, não é?
Maneio a cabeça, como se ela pudesse ver. Sei que não vai gostar da minha resposta, mesmo assim sou sincero.
-O plano era esse. Eu iria esperar, mas resolvi entrar só na recepção, me certificar de que não ia esperar em vão. Me disseram que ela não havia voltado ao trabalho, mas então ouvi umas conversas. O pessoal aqui queria alguém para ficar com um tempo com alguns malucos, ensinar artes e essas merdas. Eu me candidatei.
-Você o que?
-Calma. Não fiz nada demais. E olha só, isso foi algo bom. Millie apareceu aqui exatamente hoje para voltar ao trabalho e não precisei fazer nada, ela veio atrás de mim e...
-Porra, esse não era o combinado! -Sadie me interrompe, mas por alguma razão não está gritando. Está se esforçando para não faze-lo. -Sabe como é estranho você ficar agindo como um maldito stalker? Você já fez isso comigo e olha não é legal. Posso até imaginar o susto que Millie levou entrando e te vendo no lugar onde ela trabalha!
-Se eu esperasse lá fora não seria a mesma coisa?
-Claro que não! -Ela faz uma pausa para se acalmar. -Deixe-me advinhar o que veio depois. Ela foi atrás de você e vocês brigaram. Obviamente você não soube explicar nada direito e ela com razão ela ficou com raiva. E agora além de odiar você ela também me odeia. Acertei?
Avalio mentalmente o quão ruim seria dizer que ela acertou tudo. No final, acho melhor amenizar as coisas. Ter Sadie me odiando não vai facilitar nada.
-Ela está com raiva e ponto. Não acho que seja de mim ou de você. Ela está com raiva de tudo. Está cansada de tudo.
E eu nunca pensei que chegaria a esse ponto. Millie é forte, mas hoje no breve momento que tivemos, deu para ver que ela não aguenta mais segurar essa fachada. Principalmente quando jogou coisas em minha cara como nunca fez antes.
-Quer saber? Foi uma má idéia. Volte para casa, talvez seja melhor deixar ela em paz.
Olho rapidamente para trás, garantindo que ninguém ao meu redor escute ou veja a expressão em meu rosto. Não sei como pareci alguém confiável até agora e não quero arruinar tudo isso.
-É tarde demais para você dizer isso. Você não sabe o que eu tive que passar para chegar até aqui. Não posso simplesmente ir embora agora. Não vou poder fazer isso de novo.
E realmente não posso. Se estivessemos em SunnyVale, eu poderia dar as costas e dar a Millie o tempo que ela acha que precisa, mas eu sabia que vir até Los Angeles era um caminho sem volta, por isso evitei ao máximo ter que faze-lo.
Sadie suspira de novo e em seguida desliga sem falar mais nada. Um sinal de sua desistência, pelo menos por enquanto.
Assim que ponho o telefone no bolso da calça, alguém sutilmente puxa a barra da minha jaqueta por trás. Viro-me, me deparando com a garotinha de olhos verdes esbugalhados e lacrimejantes olhando para mim.
As roupas de internação do hospital mal cabem em seu corpo robusto e a pulseira com suas informações em torno do seu pulso já está desgastada da quantidade de vezes que ela tentou arrancar a maldita coisa.
As bochechas rechonchudas estão vermelhas, os lábios ressecados e rachados de tantas mordidas estão praticamente em carne viva.
-Pra onde você foi? Você sumiu. -Ela reclama com a voz chorosa, apertando uma das minhas tela contra o corpo como se isso a protegesse.
A última coisa que eu precisava era que um desses malucos ficassem obcecados por mim. Alguém do hospital falou que isso era possível, me fizeram escutar pelo menos quinze minutos de uma preparação para poder chegar perto deles e assinar umas cinco páginas de termo de responsabilidade.
Não faço idéia do que nenhum deles aqui tem e também não posso perguntar nada. Embora não precise de muito para saber que a garota que está me observando agora deve ter algum tipo de transtorno depressivo ou coisa do tipo, o que me faz pensar bem antes de responde-la.
-Eu tive que sair. Uma médica me chamou lá dentro. Sabe o que eu te disse mais cedo? A gente precisa obedece-los.
-Foi a Dra. Brown. Eu vi vocês dois conversando quando você saiu. -Ela diz, sem fazer questão de não parecer assustadora.
-Bem, foi isso. Ela me chamou...
-Mas você não está doente. -Retruca, agora desconfiada. -Eu também não, mas hoje a Dra. Brown assinou minha internação e eu tenho que ficar aqui por mais uns dias.
Por alguma razão, fico um tempo sem dizer nada. Talvez porque de repente, a garota me lembra alguém que eu destestaria imaginar em um lugar como esse. Alguém que deve ter sua mesma idade.
-Se a Dra. Brown acha que você precisa ficar, talvez ela esteja certa. -Tento andar, quebrar o contato, porém no primeiro passo que dou, ela me segue como uma sombra.
-Vocês são namorados?
Mexo a cabeça, esperando que ninguém tenha ouvido a menina bocuda.
-Não. Não somos.
Ela solta um suspiro aliviado, ainda me seguindo.
-Você não vai embora, vai? Disse que ainda vai me ensinar a pintar o mar. Minha mãe nunca me deixa ir até a praia. Ela tem medo que eu me mate, como se eu não pudesse me matar com qualquer outra coisa.
Engulo em seco a morbidez amarga da menina e assinto, como se seu comentário fosse a coisa mais normal do mundo.
-Vou te ensinar. Sabe do que mais? Se você melhorar, ficar aqui e obedecer, eu tenho certeza que daqui algum tempo sua mãe vai querer te levar à praia.
Ela ri. Não o tipo de risada feliz.
-Eu duvido. Ela só quer se ver longe de mim, por isso me joga aqui dentro quando eu tento me machucar. Ela não quer que eu morra, mas também não me deixa viver da forma como eu quero. Sabe como isso é egoísta? Que tipo de pessoa faz isso?
Não respondo. Não apenas porque com certeza não tenho permissão para conversar sobre essas coisas com ela, mas porque de novo e sem querer, a imagem de Nicolle surge em minha cabeça.
Tenho certeza de que ela não está doente assim, porém é inevitável não pensar na quantidade de vezes que me empenhei em salvar a vida de Nicolle, mas apenas para deixá-la presa naquela casa. E essa com certeza não era a vida que minha irmã sempre sonhou.
Balanço a cabeça, tentando me livrar dos pensamentos e pegando de novo o jogo de pincéis, que o hospital forneceu, no chão para ensinar a garota o que ela tanto quer.
Pintar uma ilusão, embora seja deprimente, também é a única forma de liberdade que algumas pessoas podem ter na vida. E eu sei bem como é isso.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.