Finn.
Tenho a sensação de não ter dormido muito quando acordo com o despertador tocando embaixo do travesseiro, mas mesmo ainda tão cansado e sonolento, algo me impulsiona rapidamente para fora da cama.
A dor em minhas mãos é lancinante quando retiro as ataduras e mergulho as palmas embaixo da água fria do chuveiro. Lembro-me de que alguém no hospital me disse que eu não poderia manter o curativo por muito tempo por causa das bolhas que deveriam se formar para ajudar no processo de cicatrização, mas assim como ontem, hoje é ainda mais impossível ficar sem ele.
Assim que termino o banho, pego o kit de primeiros-socorros no gabinete embaixo da pia e refaço o curativo com cuidado, chiando com a dor causada pelo contato do tecido com a carne vermelha e sensível que restou no lugar onde antes estava minha pele.
Se fechar os olhos, ainda sou capaz de me lembrar da sensação de tocar naquela barra de ferro escaldante para tirá-la do caminho quando salvei Iris do fogo.
Mesmo a dor, que tenho certeza de que vai perdurar por bastante tempo, não é capaz de me fazer me arrepender do que fiz. A ironia em tudo isso, é so que, ainda que eu salvado sua vida, nao é essa a sensação que tenho. É como se eu a tivesse livrado de algo ruim, para fazer algo ainda pior com ela. Como ter tirado sua chance de se entender com Nicolle.
Estou realmente tentando não perder a cabeça com isso. Não é algo que posso me arrepender ou voltar atrás. Já está feito. O que não diminui em nada a terrível forma como tudo aconteceu e como me sinto. Um monstro. O pior deles. Aquele que é capaz de não só machucar Nicolle e Iris, mas Millie. A única pessoa que eu jurei que manteria longe das minhas merdas.
É somente pensando nela que consigo terminar de ajeitar a mochila para a viagem. Não pego muita coisa, apenas o essencial para passar um dia em Los Angeles, mesmo que no fundo tenha a vontade assustadora de pegar tudo o que vejo pela frente para nunca mais voltar aqui.
Há algum tempo atrás, seria fácil demais fugir pelo caminho menos difícil. Sempre fiz isso. Mas antes tinha a justificativa de que sempre precisava proteger alguém de alguma coisa, só que agora não me resta mais ninguém para tentar proteger e nem justificativas boas que me impeçam de tentar pelo menos reparar a situação que deixei para trás.
Ainda não são nem cinco da manhã quando saio do quarto. A casa ficou ainda mais terrivel sem Nicolle aqui. Vazia. Sem cor. Sem vida.
Minha irmã acordaria daqui alguns minutos só para ver o sol aparecendo no céu da varanda. E então, antes de qualquer outra pessoa acordar, ela desceria para tomar os medicamentos, colocaria alguma música baixinha no rádio da cozinha, encheria o comedouro de ração para Star e faria café da manhã para todo mundo, mesmo que comer junto, tenha sido a última coisa que estávamos fazendo ultimamente. Ainda assim ela tentaria. Ela nunca desistia de tentar fazer com que todos ficassem bem.
Um ruído na madeira do chão atrás de mim desperta-me do estranho momento melancólico com um pequeno susto que me faz olhar para trás. Bob vem da direção da cozinha trazendo consigo duas xícaras de café e só então me dou conta do porque parei no meio da sala para me lembrar de Nicolle. Foi o cheiro do café. Foi a ridícula esperança que fosse ela o preparando.
-Bom dia. -Ele saúda, caminhando até mim e me estendendo uma das xícaras. -Eu sabia que você iria sair cedo, então fiz um café para despertar melhor.
Limpo a garganta, e mesmo não querendo perder tempo, aceito sua oferta.
-Obrigado. Estava precisando.
-Eu sei. -Bob se encosta no sofá, sentando devagar por causa da perna onde sente dor. -Essa casa fica estranha sem ela aqui, não é?
Pelo visto não fui apenas eu quem reparou nisso, mas não quero estender a conversa. Já foi demais a enxurrada de saudade e culpa que me atingiu agora a pouco.
-Sim. -Provo do café, sentindo falta do açúcar que Nicolle sempre pesava um pouco a mão. -Iris já foi?
A pergunta é retórica. Já sei que ela foi porque passei a noite quase toda em claro e ouvi quando Caleb a levou. Depois de seu surto, ela não saiu de dentro do quarto de Nicolle pelo resto do dia. Eu fiquei no meu, tentando não interferir e dar o tempo que ela precisava. Me dando um tempo também. Quando eles foram embora, eu não lembro de nada além de ter apagado na cama e acordado agora de manhã.
Mas ainda ciente disso, quero que Bob me diga como foi, na esperança de não ter sido tão ruim como imagino.
-Ela não falou comigo, mas estava mais calma. Acho que Caleb conversou com ela, os dois se entenderam e ele a convenceu de ir para minha casa. -Bob resume e mesmo sentindo que não foi exatamente assim que aconteceu, não posso fazer nada além de me contentar.
-Voltarei logo. Talvez chegue de madrugada e amanhã tentarei de novo falar com ela.
Ele assente em concordância, mas parece pensativo demais. Põe a mão no bolso da jaqueta, puxando de dentro um baseado grosso e um isqueiro.
-Ninguem pode dizer que você não fez o que pôde, sabia? -Diz ele, acendendo a ponta do cigarro, agora preso nos lábios.
A fumaça esbranquiçada nubla seu rosto por alguns segundos quando ele dá a primeira tragada.
Franzo o cenho, sem entender onde quer chegar. As vezes me irrita quando ele é tão enigmático assim.
-Estou fazendo, não é? -Dou de ombros, deixando a xícara vazia em cima da mesinha de centro.
-Sim. Está. -Ele concorda, afastando o baseado da boca. -Só estou pensando se isso vale a pena. Quer dizer, pelo que vi ontem, Iris não vai mudar de pensamento. Talvez insistir não vai levar a lugar algum. Eu mesmo não te julgaria se você fosse para Los Angeles e não voltasse mais.
Isso me pega tão de surpresa, que não consigo disfarçar o choque.
Ele acabou de dizer para eu ir embora de vez? Não pode ser.
-Acho que você anda queimando muita erva, cara. O que acabou de dizer não faz o menor sentido. -Rio, achando que só pode ser efeito da maconha.
Mas Bob continua sério, prendendo a fumaça no peito por alguns segundos antes de soltar de novo.
-Estou sendo honesto. -Sua voz fica mais grave devido a fumaça, mas ele está tão são quanto possível. -E honestamente, acho que deveria sair disso o quanto antes.
Tenho que me sentar agora. Na sua frente, o encarando bem.
-Você está me dizendo para ir embora e deixar Iris para trás como se não fosse nada? -Até perguntar isso me parece ridículo.
Ele se volta para frente, pondo os braços sobre os joelhos.
-Diga-me exatamente o que pretende fazer ficando aqui?
-Você já sabe. Só saio daqui quando Iris ficar com a casa e com o dinheiro. -Repito o que já falei uma porção de vezes, sem entender a sua insistência.
Bob balança a cabeça, como se não visse nenhum sentido no que acabei de falar.
-Essa casa é dela. Iris já sabe disso. Você sabe. Eu sei. Há uma pilha de papéis que provam que essa casa não pode ser de mais ninguém. E mesmo tendo recusado o dinheiro, Iris sabe exatamente onde ele está agora. Terá acesso ao dinheiro quando bem entender. Então me diga, é só isso que você quer? Porque se for, você já conseguiu.
Nenhuma parte disso é mentira, o que me deixa nervoso. Com a sensação de que tem algo que não estou percebendo e que Bob já percebeu.
-Pode dizer de uma vez onde você quer chegar com isso? -Indago, demonstrando toda minha impaciência para essas voltas no assunto.
Ele recosta no sofá de novo, trocando o baseado de mão.
-Acho que você não quer só que ela fique com essas coisas. Você quer perdão, Finn. Quer arranjar uma forma de conseguir fazer Iris continuar na sua vida quando for embora. Não te condeno por isso. Aquela garota fez mais por você do que qualquer outra pessoa, não posso imaginar como deve ser difícil para você precisar se afastar dela. Mas espero que você entenda que está almejando uma coisa impossível. Iris só vai te perdoar se você der o que ela quer e o que ela quer não é dinheiro nem essa casa.
-Ela quer a mim. -Completo, porque finalmente sei que é disso que ele está falando.
Ele anui pacificamente.
-E não só você. Ela quer a vida que vocês levavam antes. As coisas que você não prometeu, mas que ela encarou como uma promessa. E se você não está disposto a cumprir com os sonhos e vontades dela, não adianta ficar. Iris não vai aceitar nada pela metade, nem mesmo se for metade de você.
Tento dizer algo rápido para contraria-lo, mas a resposta simplesmente desaparece da minha cabeça, restando-me apenas sacudi-la com veemência.
-Não é só por causa de Iris que preciso ficar aqui. Nicolle me pediu para tentar ajudar nossa mãe e é isso que vou fazer. Além disso, todo mundo sabe que o melhor para Nicolle agora é ficar longe de mim.
Bob suspira, parecendo desistir de insistir. Sabe que nada irá me convencer.
-Bom, isso você pode tentar também. Não que eu ache que Mary vai querer você naquela cadeia, menos ainda se for para aceitar sua ajuda, mas se você acha que tentar cumprir promessas que não estão ao seu alcance é mais importante do que fazer o que é certo, não serei contra.
Ele levanta, apagando o baseado no cinzeiro em cima da mesa, mas não o deixo sair, interceptando sua passagem.
-Como assim fazer o que é certo? Você não pode dizer essas coisas sem sentido e esperar que eu entenda.
Sinto-me um idiota pela forma como Bob me encara. Detesto que as vezes as coisas parecem ser tão óbvias para ele e não para mim.
-O certo é ficar com Millie. Apoia-la, da mesma forma como ela parece sempre apoiar você. Não ficar aqui para tentar resolver situações que você não consegue. Estou tentando não me meter na sua vida, mas quando você me disse que precisava ir à Los Angeles ajudá-la, eu realmente pensei que estava se libertando, vendo que as coisas não precisam ser dessa forma. Seja realista Finn. Iris não vai te perdoar. Nem Mary. Nicolle talvez perdoe com o tempo, mas Millie ainda está ao seu lado. Você ainda a tem. E eu não vejo você fazendo nada por ela.
Do contrário do que realmente quero fazer, não grito, nem me altero. A frustração me abalando muito mais do que a raiva.
-Não estou fazendo nada, Bob? Você acha mesmo que não faço nada por Millie? -Pergunto, mas não espero a resposta. -Absolutamente tudo o que eu estou fazendo é por ela. Uma vez Millie me disse que eu precisava merece-la. E se tentar ser uma pessoa melhor, assumir meus erros e perder tudo o que eu já conquistei não for uma prova de que estou tentando merece-la, eu não sei o que é. Então me diga você. Porque nada do que eu faço parece servir de alguma prova... Nem mesmo pedi-la em casamento.
Ele fica livido por um momento. Algo semelhante a compaixão surgindo em sua expressão. Eu não queria nunca mais ter que tocar nesse assunto. Preferia esquecer que nada saiu da forma como eu pensei, mas agora o peso retorna de uma forma tão profunda que não me resta nada além de colocar para fora.
-Ela não aceitou? -Ele pergunta, tão temeroso como se esperasse que eu fosse cair em prantos a qualquer momento.
Mas não é isso que faço. Simplesmente esfrego o rosto, tomado pela sua mesma falta de entendimento.
-Ela não disse não, mas passou pelo menos meia hora me explicando porque não era o momento certo e porque não podia aceitar. Um simples "não" bastaria, você não acha?
Ele exala o ar, esfregando a mão no queixo.
-Sinto muito que tenha sido assim, mas não acho que ela tenha feito isso porque não deseja casar com você. Talvez...
-Bom, se ela quisesse, teria aceitado. -O interrompo, sem querer pensar demais sobre isso, muito menos falar. Dou de ombros, aparentando indiferença -Não posso obriga-la de qualquer forma. Está tudo bem assim.
-Sei. -Ele prolonga a palavra, obviamente sem creditar em mim.
Mas não me importo. Já chega de tanta conversa.
-É melhor eu ir. Tenho um caminho muito longo pela frente.
-Eu te acompanho até lá fora.
Assinto, então vou na frente. Minha moto ainda está na caçamba da caminhonete estacionada na porta de casa, então tenho o dobro do trabalho para trazê-la de volta ao chão. Minhas mãos latejando e ardendo em um lembrete de que a última coisa que deveria fazer era força-las na moto.
Quando subo, Bob se despede de mim com um ligeiro aperto no braço no meio rua inteiramente vazia, ainda sem sol aparente.
-Ninguem te julgaria se, de repente, você preferisse ficar lá. -Ele diz, repetindo essa idéia estapafúrdia.
Balanço a cabeça em negativa e ligo a moto. Antes de partir, respondo:
-Mas eu me julgaria.
---
Millie.
Nicolle já está acordada quando saio do quarto.
Hoje não foi nenhuma emergência feminina que a denunciou tão cedo, mas sim o cheiro delicioso de café tomando todo o apartamento.
Faz tanto tempo que não sei qual é a sensação de acordar e não precisar eu mesma fazer o café sozinha, que paro na porta da cozinha observando-a do outro lado da ilha terminando de despejar o líquido quente dentro da garrafa de inox.
Como no nosso primeiro dia, quando insistiu para fazer a faxina na casa, penso se ela não está se esforçando além da conta para não dar trabalho ou para me agradar de alguma forma, mas basta assisti-la por um tempo para perceber o quão natural isso parece. O quão bem ela se sente em simplesmente estar fazendo qualquer coisa.
O latido animado de Star para mim, denuncia minha presença, fazendo Nicolle se virar e me encontrar ainda na porta da cozinha.
Ela me dá um sorriso sem jeito quando coloca a garrafa agora cheia em cima do balcão da ilha.
-Millie... Não vi você aí. -Diz ela surpresa, novamente daquele jeito como se eu a pegasse fazendo algo errado.
-Acabei de sair do quarto. O cheiro do café me atraiu. -Me abaixo, fazendo um leve carinho na cabeça de Star que exige minha atenção se erguendo em minhas pernas. -Você acordou muito cedo. Está tudo bem?
Nicolle dá a volta na ilha assentindo com a cabeça. Pelo visto ela acordou ainda mais cedo do que pensei, pois não está mais usando a camisola e sim mais um de seus vestidos soltos e floridos.
-É costume. Nunca consigo dormir até tarde. -Ela explica, abraçando um braço com o outro. -Espero que não se incomode por eu ter mexido nas suas coisas. Eu queria fazer café.
Olho para a mesa da cozinha e vejo as sacolas de compras que devem ter chegado algum tempo antes de eu ter acordado. Ontem o dia foi tão corrido que só tive tempo de pedir algumas coisas por telefone e ainda está tudo intacto, o que mostra que Nicolle realmente só pegou o café.
-Claro que não me incomodo. Você pode fazer o que quiser, desde que não se sinta obrigada.
Vou em direção a mesa abrir os pacotes do mercado e ela me acompanha.
-Não me senti obrigada. Só gosto de fazer café da manhã. -Faz uma pausa, vendo-me retirar uma caixa de ovos da sacola. -Ontem acordei você às pressas, então achei que ficaria feliz em acordar hoje e já ter o café pronto.
Isso me faz abrir um pequeno sorriso, porque embora estivesse certa em pensar que ela estava querendo me agradar, não posso deixar de ficar contente vendo a pequena brecha que abrimos começando a realmente se expandir. Ela disse que não queria minha amizade, mas acho que estamos fazendo o completo oposto disso.
Não toco no assunto, preferindo deixar as coisas continuarem a fluir naturalmente.
-Fiquei feliz sim, é claro. Agora sente-se, vou terminar de fazer algo para comermos.
Ela assente e me obedece. Vou para o fogão atrás da ilha e quebro alguns ovos na frigideira. Enquanto faço isso, noto Nicolle brincando com Star. Sempre acho encantador quando ela faz isso, mas estou começando a também estranhar que Nicolle não tenha qualquer apego ao celular. Desde que chegamos, não a vi nenhuma vez mexendo no aparelho.
Volto para a mesa com os ovos mexidos e a sirvo em um prato. Ela abre o último pacote do mercado, pegando as torradas e o leite para terminar de compor a mesa.
Quando põe o primeiro pedaço de torrada na boca, solta um gemido, mas que nada tem a ver com o deleite com a comida. Ela põe uma mão sobre o ventre embaixo da mesa e respira fundo.
-Está com cólica? -Pergunto, chegando à conclusão mais óbvia.
-Acho que sim. -Diz ela com uma careta de dor, puxando um pouco do ar entre os dentes -As vezes sinto umas pontadas esquisitas.
-É normal. -Assinto para tranquiliza-la. -Mas me avise se estiver com muita dor.
-Não. Até que dá pra aguentar. -Ela retruca, voltando a mastigar. -Só me sinto meio inchada e... Vazando.
Tento esconder a risada, mas ela mesma começa a rir, então rio também.
-Os primeiros dias são assim. Você vai se acostumar com o tempo.
Ela toma um pouco do leite, revirando os olhos em impaciência.
-Não vejo a hora disso acabar. Nem acredito que vai ser assim todos os meses. Talvez daqui a algum tempo eu faça que nem você e escolha não passar por isso nunca mais.
Termino de mastigar ainda rindo, lembrando-me que me sentia da mesma forma que ela na sua idade. Também me lembro de que já faz muito tempo que estou com o diu, e que mesmo sem pretensão de ficar sem ele, precisarei trocá-lo em breve.
-Um dia quando eu tirar o anticoncepcional, vou voltar a ter ciclos. Não vai ser assim para sempre.
Ela anui, mas por alguma razão o sorriso some completamente de seu rosto.
-Um dia quando você quiser ter filhos. Não é isso? -Pergunta, levemente incomodada.
-É. Isso também.-A encaro por cima da borda da xícara. -Algum problema?
Nicolle nega, parando de olhar para mim para mexer na colher sobre o prato.
-Não. É que... Se você quer ter filhos, será com meu irmão. Eu nunca parei para pensar nisso. Quando ele estava com Iris... -Ela se interrompe, olhando-me assustada e então sacode a cabeça. -Deixa pra lá.
Sim. Talvez fosse melhor deixar para lá, mas nós nos encaramos e não consigo calar a boca.
-Você pode falar sobre o que quiser comigo, Nicolle. Inclusive sobre os dois.
Não sei se quero realmente saber o que ela vai dizer, mas não posso me negar quando sou a única pessoa com quem ela pode conversar agora e vice-versa.
Nicolle suspira, soprando a xícara de café antes de provar a bebida.
-Você seria capaz de esconder um segredo do Finn?
Abaixo a xícara quando ela pergunta. O açúcar em excesso no café, faz um pigarro surgir em minha garganta.
-Como assim? Você quer saber se eu mentiria para seu irmão?
-Não seria mentir exatamente. Só não contar algo para ele. Algo que o faria ficar muito chateado se soubesse. -Diz ela, tão séria que seu cenho está franzido.
Tento realmente pensar nisso para dar uma resposta sincera, mas nunca achei que pudesse estar uma situação como essa. Nunca achei que Nicolle me contaria coisa alguma para começo de conversa. Nem que seria capaz de me pedir segredo.
-Não sei. Acho que dependeria do que fosse. -É a única resposta sincera que encontro.
Ela assente, mas não parece nada confortável mexendo os ovos de maneira agitada.
-Estou com raiva dos dois agora. Eu deveria contar isso para você e me livrar desse segredo de uma vez... mas se Finn ficar sabendo, talvez nunca perdoe Iris e por mais que eu não queira vê-la nunca mais, não queria que os dois brigassem.
Algo continua raspando em minha garganta e minhas mãos suam agarradas na xícara. Então há algo sobre Iris que Finn não sabe? E se souber pode ficar chateado?
Não quero mentir para Nicolle dizendo que sou capaz de esconder alguma coisa de seu irmão, nem mentir para Finn prometendo para Nicolle que guardarei seu segredo. Ao mesmo tempo não consigo tirar isso da cabeça. Se existe algo sobre Iris que é tão grave assim, eu preciso saber.
-Não é estranho que você esteja chateada com Finn por ele ter escondido algo de você e ao mesmo tempo você também estar escondendo algo dele? -Digo calmamente, em vez de apenas pedir que me conte.
Ela larga o garfo, erguendo o rosto novamente para mim em imediata constatação.
-Acho que sim. -Murmura baixinho. -Mas não estou interferindo tanto assim na vida dele como ele inteferiu na minha. Se Finn nunca souber o que aconteceu, nada vai mudar para ele.
Não sei mais quem ela está tentando proteger. Se Iris, Finn ou a si mesma. Todas as possibilidades só me fazem pensar na gravidade da situação.
Afasto a garrafa de café para o lado, deixando absolutamente nada entre nós duas.
-As vezes é necessário esconder algo de alguém quando se tenta proteger essa pessoa, mas mentiras não duram para sempre e raramente acabam bem. Uma hora ou outra as coisas vêm à tona, talvez de um jeito muito pior. Por isso não posso prometer não contar nada para seu irmão, mas posso prometer talvez esperar o momento certo. Se ele existir.
Ela dá um sorriso triste e cheio de cansaço, abaixando suavemente a cabeça.
-Você deve nos achar loucos. Duvido que já tenha conhecido uma familia mais cheia de segredos e problemas do que a nossa.
Sorrio também. Ela não faz idéia de que segredos e problemas deveria ser o bordão principal da minha família.
-Acredite, Nicolle, eu sei bem como é ser deixada de lado em decisões que os outros acabaram tomando por mim. Sei como é descobrir uma coisa importante tarde demais para fazer algo a respeito. Nisso nossas famílias são quase iguais.
Sem esconder a surpresa, ela engole em seco com compaixão. Não é a primeira vez que falo sobre isso, mas acho que é a primeira vez que digo para alguém que realmente entende.
Nicolle chega mais perto da mesa, olhando-me com aflição e então dispara:
-Iris estava grávida quando Finn foi preso.
Ela não fala muito alto. Para falar a verdade, ela quase sussurra, o que me dá um segundo de esperança que eu tenha ouvido errado.
-O que?
-É isso. -Exala o ar, como se tirasse um peso de suas costas. Colocando diretamente sobre as minhas e confirma. -Ela estava esperando um filho dele.
Meu coração dispara e fico com dificuldade para respirar. A realidade do momento rompendo meu fôlego.
Deus... Não posso acreditar.
-Nicolle... -Limpo a garganta. -Você tem certeza do que está dizendo? -Pergunto, sem conseguir controlar o tremor nas mãos quando as coloco sobre a mesa.
Ela assente, sem deixar qualquer sombra de dúvidas.
-Tenho. É verdade. Mas Finn não sabe de nada disso. -Assegura, como se prevesse que eu perguntaria.
Mas eu não iria perguntar. Óbvio que ele não sabe. Se soubesse, ele me contaria, não é?
Recaptulo o que me disse. Comparo com todas as informações que tenho sobre Iris e nenhuma das coisas parecem fazer algum sentido, porque, de repente, só consigo imaginar Iris grávida esperando um filho de Finn.
O reles pensamento faz com que eu me sinta doente, suando e com algo quebrando em meu interior.
Acho que Nicolle percebe meu abalo. Busca minha mão em cima da mesa e a toca, sentindo a frieza tomando conta da minha pele.
-Millie, não precisa ficar assim. Ela não está mais grávida. -Diz para me acalmar.
Óbvio que não. Se estivesse, a essa altura já teria uma barriga de tamanho considerável, mas nem mesmo a certeza de que não existe mais um bebê, faz com que eu sinta qualquer alívio, só me deixa mais apavorada.
-Ela te contou isso, Nicolle? Você tem certeza de que não acabou entendendo errado?
Nicolle nega, roubando minha única chance de acreditar que tudo isso é um mal-entendido.
-Ela não me disse nada, Millie. É como você falou. Sempre fui deixada de lado, então tudo o que sei sobre a minha própria vida e sobre a vida das pessoas ao meu redor, foi porque eu acabei descobrindo. Com isso não foi diferente. Quer que eu te conte como descobri?
Assinto nervosa. Sem condições de falar qualquer coisa.
Ela apoia os dois braços na mesa, sem largar minha mão. Não precisa pensar muito, parece lembrar de tudo muito bem.
-Quando Finn foi preso, Iris e eu ficamos sozinhas. Você já deve saber o que aconteceu para Finn ser preso. Deve saber que ele tomou meu lugar.
-Eu sei. -Aperto sua mão de volta, lhe dando incentivo para continuar.
Nicolle abaixa a cabeça com um olhar envergonhado e perdido.
-Eu fiquei muito mal. Finn tinha sido preso por uma coisa que eu fiz e que ele não tinha culpa nenhuma. Aquilo foi demais para que eu suportasse. Sempre que algo mexe com meu emocional, minha imunidade vai para o espaço e corro o risco de ter uma crise de novo, então quando ele foi levado pela polícia, eu não suportei. Fiquei muito fraca e Iris teve que me levar para o hospital. Meu médico disse que eu estava com risco de anemia. Ele me mandou passar três dias em observação até melhorar. Duvido que Finn saiba disso. Iris nunca deve ter contado. O problema é que nesses três dias que passei no hospital, ela não ficou comigo.
Mexo a cabeça, com dificuldade para acompanhar tudo.
-Espere...Iris te deixou ficar internada por três dias sozinha?
-Não. Ela pagou uma enfermeira de fora do hospital para ficar comigo. -Pontua, como se isso diminuísse alguma coisa. -Eu achei que ela estivesse ocupada resolvendo alguma coisa por Finn que tinha acabado de ser preso, então não me importei com isso. Só estranhei por que ela nem mesmo foi me visitar.
-Por que não, Nicolle? Por que ela não foi ver você? -Insisto, sem mais conseguir fingir que não estou quase enlouquecendo com essa história.
-Eu não sabia. Pelo menos não até o dia da minha alta. -Diz ela, cruzando os braços e desviando o olhar para Star do outro lado da cozinha. -Eu estava dormindo quando acordei ouvindo algumas pessoas conversando no meu quarto. Era a enfermeira que Iris tinha pagado para ficar comigo e outra mulher do hospital. Elas estavam falando sobre alguém que estava internado. Eu achei que fosse sobre mim, então fingi que ainda estava dormindo e escutei tudo. Não entendi nada, é claro, elas estavam falando em termos técnicos e complicados, mas eu conhecia tudo sobre minha doença e sobre as coisas que eu sentia, foi por isso que eu soube que não era sobre mim que elas estavam falando. Era sobre Iris. Mesmo sem entender nada, uma coisa que elas falavam o tempo todo ficou na minha cabeça. Elas disseram que Iris passou por um procedimento de curetagem.
Ela me encara, talvez só para saber se sei o que isso significa. E pior do que eu saber exatamente o que é, é perceber que Nicolle também já sabe.
-Assim que fiquei sozinha no quarto de novo, peguei meu celular e pesquisei do que se tratava. Eu nunca ia esperar que fosse algo em relação a um aborto. Fiquei em choque, sem saber o que fazer ou como agir. Estava chateada por Iris me deixar sozinha, quando na verdade ela estava no hospital o tempo todo, internada como eu. E meu sobrinho que eu nem mesmo sabia da existência, estava morto.
Fico muda, totalmente perdida. Sem saber se esse é o tipo de momento em que eu deveria dizer que sinto muito, quando parte de mim repudia todas as suas palavras. Estou sendo ridícula de ter ciúmes de algo que aconteceu quando eu nem mesmo estava na vida de Finn, mas como evitar?
Nicolle percebe que não tenho nada a falar, então continua com um longo suspiro.
-Naquele dia, Iris apareceu para me buscar. Eu estava morrendo de pena dela. Imaginei o que ela não devia ter passado, porque com certeza, deveria ter perdido o bebê por causa de toda loucura que aconteceu naqueles dias depois da prisão de Finn. Ela não tocou no assunto comigo. Estava claramente abatida e frágil, mas sempre continuou parecendo uma rocha de tão forte. Eu não quis me meter. Achei que talvez ela não estivesse pronta para falar comigo. Mas os dias foram passando e não vi nenhum sinal de que um dia ela fosse me contar nada. Aí eu não aguentei e falei para ela que sabia de tudo. Esperei que ela desmoronasse, que cedesse e eu estava pronta para apoia-la, para dizer que ela não tinha culpa, mas Iris não reagiu assim.
Nicolle para, indecisa se deve continuar ou não. E por mais que eu deteste saber de tudo isso, não posso parar agora.
-Como... Ela reagiu? -Pergunto, forçando uma calma que não existe.
Ela dá de ombros de uma forma desconfortável, perdendo-se num olhar assustado e um pouco infantil.
-Ela brigou comigo. Brigou mesmo. Disse que eu não deveria ter me metido naquilo e me fez jurar nunca contar para ninguém, muito menos para Finn. -Se interrompe com um soluço que escapa de repente. -Você não acha que isso significa que... Em vez de ela ter perdido o bebê sem querer, ela possa ter escolhido perde-lo, acha?
-Nicolle...
-Eu não quero pensar nisso. Juro que não! -Justifica, cheia de horror. -Mas porque ela insiste tanto que Finn não pode saber? Se ele fosse culpar alguém de alguma coisa, só culparia a si mesmo... A menos que ele descobrisse que não foi um acidente. Que ela quis perder o bebê. Isso ele não aceitaria, Millie. Finn pode ter todos os defeitos do mundo, mas ele nunca aceitaria que ela fizesse isso.
Ela está realmente chorando agora. Mal podendo falar e respirar ao mesmo tempo.
Deus... Como essa menina suportou guardar todos esses pensamentos terríveis por tanto tempo sozinha?
Qualquer sombra de dúvida que eu poderia ter, se desfaz. Por que mesmo não querendo imaginar algo assim, se Nicolle, que conhece Iris melhor do que ninguém, já foi capaz de entender que ela escolheu o aborto, não me resta nenhuma dúvida de que foi exatamente o que aconteceu, embora eu tenha que admitir que não faz o menor sentido.
Não acho que isso deveria ser assunto para discutir com Nicolle. Ela sequer deveria saber de nada disso, mas se há alguém que pode entender Iris, é apenas ela.
Toco minha nuca suada, tentando me livrar da tensão e do horror que estou sentindo e pergunto:
-Você sabe que Iris quer ficar com seu irmão, não sabe? Sabe que ela é apaixonada por ele. -Ela assente, sem saber onde quero chegar. Sua confirmação não é uma surpresa, mas ainda assim é algo difícil para mim pois não sei se no fundo Nicolle queria que isso fosse real. -Estar grávida dele, seria uma garantia de que Finn ficaria com ela. Ele jamais a abandonaria se soubesse que Iris esperava um filho dele. Não faz sentido ela acabar de propósito com a única chance de ficar com ele.
Essa é a verdade. Por mais doloroso que seja, sei que Finn faria qualquer coisa para cuidar de um filho, mesmo que fosse com ela.
Seu rosto relaxa subitamente, como se tivesse uma epifania com minhas palavras. Ela chega mais perto, limpando as lágrimas do rosto.
-Talvez naquele tempo ela não achasse que precisava de um bebê para ficar com meu irmão. Mesmo que Finn nunca fosse ser tudo o que ela qjeria, Iris sabia que o destino os faria ficar juntos de qualquer forma. Ela só passou a ter medo de perde-lo quando você apareceu, mas então quando isso aconteceu, o bebê não existia mais. Isso... Faz sentido, não faz?
Não consigo mais ficar sentada, então me levanto, inquieta e perturbada. Não posso continuar essa conversa com Nicolle, principalmente agora que nitidamente ela já percebeu mais do que deveria.
-Acho que não adianta ficarmos discutindo sobre isso. Nunca vamos saber o que aconteceu de verdade, não dá para tirar conclusões tão graves assim. -Digo exasperada, me agarrando nas costas da cadeira de frente a ela.
Nicolle franze o cenho para mim, surpresa com minha reação. Já parou de chorar, mas continua pensativa.
-Você não quer imaginar isso, ou quer parar de falar porque acha que eu tenho razão? Se for verdade, é monstruoso, você não acha?
Engulo em seco, não sendo capaz de manter a compostura enquanto ainda a encaro.
-Acho que você está com raiva de Iris e isso a faz pensar de forma ruim sobre ela agora. -Dou qualquer desculpa, recolhendo os pratos da mesa e os levando para a pia, só para não ter que encara-la.
Ouço Nicolle se levantar, chegando perto da ilha atrás de mim.
-Não penso isso só agora. Já faz tempo que cheguei a essa conclusão, mas não tinha ninguém com quem eu pudesse conversar sobre isso antes. Também não estou dizendo que Iris é uma psssoa ruim. É monstruoso fazer o que ela fez, mas ela deve ter tido uma boa razão.
Fecho os olhos ainda virada de costas, e por um momento parece que não estou aqui falando sobre Iris, mas sobre minha mãe. Porque há muito tempo atrás, quando ela fez o que fez, foi exatamente isso que eu pensei, tentando me convencer de que havia uma justificativa para o aborto do meu irmão. Só que é ainda pior do que isso. É sobre Finn e um filho que ele não teve sequer o direito de saber sobre a existência e mesmo sendo com outra pessoa, não posso deixar de sentir o pesar, a tristeza, a raiva. Todas as coisas que sei que ele sentiria se soubesse.
Fico tão absorta em pensamentos, que só percebo Nicolle chegando perto de mim quando põe uma mão em minhas costas. Abro os olhos e ela está ao meu lado na pia, com um olhar tão parecido com o de seu irmão que meu interior se aperta.
-Você vai contar para o Finn? -Ela sussurra, temerosa e baixinho.
Agora entendo que foi um erro terrível ter ouvido essa história até o final. Antes eu tivesse deixado para lá, porque sinceramente agora eu realmente preferia não saber de nada disso.
Respiro fundo com minha mente caótica me torturando.
-Realmente não sei, Nicolle. Você não acha que ele tem o direito de saber?
Ela mexe os ombros, tão perdida quanto eu.
-Acho. Só que isso vai mudar tudo. Finn vai querer saber a verdade e se ele descobrir que ela quis tirar o bebê? O que ele seria capaz de fazer com ela? -Sua voz cresce em cada palavra, assim como parece ser seu medo.
Entendo o que está sentindo. Todos os pensamentos ruins que já tive sobre Iris até agora, confesso que foram baseados na maioria das vezes por ciúmes, do qual não me orgulho nem um pouco, mas é a primeira vez que tenho algo concreto sobre ela. Algo que sei que faria Finn deixá-la para sempre, mas mesmo assim, o que sobraria no final? E se o peso dessa notícia não acabasse apenas com a relação entre dois, mas acabasse com ele principalmente? Isso eu não posso fazer.
-Não vou contar. Não ainda. -Decido, surpreendendo não apenas Nicolle, mas a mim mesma. -Já temos muitos problemas e coisas com as quais lidar. Trazer isso agora, só vai fazer tudo piorar.
Ela relaxa os ombros, não fazendo a menor questão de esconder seu alívio, mas forço seu rosto para cima, tocando-a no queixo.
-Mas para isso funcionar, precisamos fazer um acordo. Não quero mais que pense nisso. Não quero que tente imaginar o que realmente aconteceu naquele dia. Esse segredo não é mais seu. Você precisa me deixar resolver isso sozinha.
-T-tudo bem. -Seus olhos pestanejam, atentos aos meus. -Eu confio em você.
A falta de preparo para ouvir isso, me deixa sem saber exatamente como reagir, além de assentir e me afastar um pouco. Nicolle também se afasta, provavelmente envergonhada demais para me encarar agora.
O bipe do meu celular vibrando em cima da ilha, me traz de volta para a realidade, fazendo-me perceber que perdi completamente a noção da hora. Abro a mensagem e a leio, confirmando que Finn chegou e está a minha espera. Mas pela primeira vez na vida, não me sinto preparada para vê-lo.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.