Finn.
Nicolle corre em direção a nossa mãe e a abraça, antes mesmo que ela possa terminar de atravessar o portão de saída da penitenciária. Relutei em trazê-la para este lugar, mas ela insistiu tanto que acabou me convencendo. O fato estranho é que nesse momento em que olho para as duas caindo de joelhos no chão, chorando e abraçadas, eu não me arrependo de ter deixado Nicolle vir.
É uma cena realmente bonita de assistir. Como o final feliz que todos esperam ver depois de horas infinitas de drama rolando na tela. Nessa cena, não sou mais do que um mero espectador que assite de longe. E por mais que intimamente queira participar, me contento em apenas ver.
Bob não me abandona. Fica do meu lado perto da caminhonete também como se estivesse espiando por trás da cortina, até que Mary e Nicolle finalmente se levantam.
Queria poder encarar minha mãe de verdade, mas no segundo que seus olhos encontram os meus, eu desvio, sentindo apenas o peso de sua presença invadir meu espaço pessoal.
-Sra. Wolfhard, é um prazer muito grande conhecê-la. -Bob não mede esforços para ser simpático.
Pela visão periférica eu o vejo estender a mão para ela e se apresentar, enquanto minha mãe, contida como sempre, aperta sua mão.
-O prazer é meu. E por favor, me chame apenas de Mary. Já faz tempo que não sou mais a Sra. Wolfhard.
Não é com desprezo que ela se desfaz do nome de meu pai, mas com pesar. O mesmo tipo de pesar que sinto ao recordar do porque ela não carrega mais esse sobrenome.
-Certo, Mary. Aliás, preciso dizer uma coisa. Nunca imaginei que quando disseram que você parecia com Nicolle, você realmente parecia tanto assim. São a cara uma da outra. -Bob sorri, impressionado.
É muito bom que ele seja essa pessoa que consegue ser simpático e agradável não importa o quanto o momento pareça um pouco embaraçoso. Principalmente porque se ele não estivesse aqui, eu teria que começar a falar alguma coisa e não acho que conseguiria.
-É bondade sua. Nicolle é mil vezes mais bonita do que eu.
-Não sou não, mãe. Você é mais. -Minha irmã rebate, sem nunca largar o braço de sua cintura. -Diga a ela, Finn.
Encaro Nicolle quando diz meu nome e ela pisca para mim. Sei o que está fazendo. Está tentando me introduzir, não importa que seja com algo sem importância como isso. E por ser algo tão sem importância, eu não deveria me sentir nervoso como me sinto. Com as úmidas de suor e uma secura na garganta.
Não olho na direção de Mary, mas sinto seu olhar sobre mim. Em dúvida. Reticente. O mesmo tipo de olhar que você dá para algo que não compreende. Duvido que esteja esperando mesmo por uma resposta, mas ela com certeza está esperando por alguma coisa.
Quebro o silêncio embaraço limpando a garganta.
-Sim, claro. As duas são lindas. -Digo e automaticamente detesto meu tom de voz indiferente, mas é o melhor que posso oferecer agora. -Melhor irmos embora. Não quero ficar mais tempo nesse lugar.
Comprovo minha covardia quando sou o primeiro a entrar na caminhonete. Depois, em silêncio, todos me acompanham. Mary vai atrás com Nicolle enquanto Bob vai ao meu lado.
Não sei como consigo ligar o carro e colocá-lo para andar. Só sei que o silêncio se estende por todo caminho, desde o estacionamento até quando paro na casa de Bob.
Dessa vez sou o último a descer. Acho que até aqui a realidade não havia me amaldiçoado tanto como agora, quando vejo Mary e Nicolle caminhando atrás de Bob para entrar na casa como eu já sabia que iria acontecer.
Minha irmã aceitou bem a notícia de que perdi nossa casa. Ela não sabia de nada até antes de Sadie a deixar aqui algumas horas atrás e esperei que minha decisão de omitir o fato, fosse deixá-la zangada comigo, mas não foi o que aconteceu. Nicolle aceitou bem até demais, mas em vez de me trazer algum conforto, isso só me trouxe ainda mais vergonha e medo. Não quero que ela pense que estou confortável com nossa situação nem quero que ela se conforme com isso.
Só entro na casa quando todos já estão dentro, o que me permite uma visão nada agradável daquilo que esperei que não acontecesse. Mary trouxe consigo apenas uma sacola branca que não deve conter mais do que alguns pares de roupa, que ela deixa sobre o sofá enquanto Nicolle mostra a casa de Bob como se fosse realmente um palácio.
Até que está ajeitada, mas está muito longe de ser um palácio.
-Vocês moram aqui desde que chegaram em SunnyVale? -Minha mãe pergunta de forma inocente e eu estanco no meio do corredor.
Nicolle morde a boca, sem saber o que dizer.
-Ah, não. Essa casa é minha. -Bob toma a responsabilidade de responder, com um sorriso patético de tão nervoso. -A casa que Finn comprou é uma outra. É uma longa história sobre como viemos parar aqui, mas espero que se sinta a vontade, Mary.
-Isso mesmo. A casa de Bob é linda. Você viu o jardim? Parece o que a gente cuidava em... Bem, em todos os lugares que moramos. -Nicolle brinca, mas ela ri completamente sozinha.
Isso é mais difícil do que pensei que seria. Sinto vontade de dar meia volta, sair, entrar de novo e fingir que não peguei essa conversa pavorosa acontecendo, mas não posso fugir porque essa é a realidade agora.
Minha mãe dá mais uma olhada ao redor. Não posso ver seu rosto, mas sei que algo a incomoda e não tem nada a ver com a casa simples de Bob.
Nicolle pega a mão dela e acaricia com o polegar.
-Você deve estar cansada e com fome. Eu deixei um bolo assando e Bob vai fazer chá. Porque não vai lá em cima e toma um banho?
Mary assente, completamente em silêncio e acompanha Nicolle rumo às escadas.
-Ei, cara. -Bob fala comigo, mas só olho em sua direção quando as duas somem no corredor de cima. E ele parece preocupado para variar. -Está tudo bem. Elas vão ficar bem.
Estou tão cansado de falar sobre o quanto nada está bem, que apenas concordo. Entro e me sento sobre o sofá, que também é minha cama, e verifico meu celular. Ainda não recebi uma resposta ao e-mail que enviei para o amigo de Noah sobre o trabalho, mas não estou realmente procurando por isso e sim com outra coisa.
Desde que Sadie disse que Millie vai viajar, não consigo parar de pensar sobre isso. Não consigo parar de pensar sobre tudo o que ela disse, na verdade. Pensei várias vezes em finalmente ligar, mas também pensei sobre o quão patético e egoísta isso seria.
Não podia simplesmente pedir para ela não ir. Não depois do que fiz.
E quando vi que não foi Millie quem trouxe Nicolle, tive certeza de que não adiantaria fazer isso. Ela provavelmente não quis me ver. Ela provavelmente já viajou.
Desligo o telefone e desisto da idéia de ligar. Minha irmã aparece minutos depois e me assusto quando ela se joga em meus braços e me dá um beijo demorado na bochecha. E é só isso, pois ela levanta rapidamente para ir até a cozinha, mas eu seguro seu braço.
-Millie já foi embora?
A pergunta me escapa tão rápido que não tenho tempo de cogitar se deveria faze-la. Nicolle abaixa a cabeça, confirmando o que eu já sabia.
-Ela não foi embora, mas sim, já viajou.
Para onde. Pergunte para onde.
As palavras ficam girando em minha cabeça, mas não tenho coragem de proferi-las. De que adianta saber para onde Millie foi, se não posso pegar o carro e ir atrás dela no mesmo instante?
Apenas assinto e Nicolle me dá mais um beijo no rosto antes de virar e ir para a cozinha.
De alguma forma, eu me perco no tempo. Não sei quanto tempo passa, se segundos ou minutos, em que eu fico olhando para o vazio da sala sozinho, mas em algum momento, desperto ao ouvir os passos baixinhos soando nas escadas.
É minha mãe. E agora estamos literalmente sozinhos num espaço que parece ser pequeno demais para nós dois. Acho que essa sempre foi a sensação porque me lembro muito bem dela. Lembro principalmente de como é conseguir amar tanto uma pessoa e não suportar estar no mesmo lugar que ela.
Antes, isso representava que íamos brigar. Agora não sei mais o que representa.
Não quero ser o babaca que vai levantar e fingir que não a viu, então espero que ela siga o rumo da cozinha e faça de conta que não me viu também, mas nenhum de nós dois faz qualquer coisa. Tampouco acho que podemos, de uma hora para outra, dar uma de mãe e filho felizes, nos abraçarmos como ela fez com Nicolle e esquecer tudo que ja vivemos até aqui.
Acho que nada vai acontecer no final das contas. Ela não vai me perdoar. Eu não vou me perdoar. E vamos ficar nisso para sempre.
-Você não quer me contar o que está acontecendo? -Ela pergunta.
Sua voz demora a encontar o caminho de meu subconsciente porque já faz muito tempo que não a ouço falar comigo.
Arrisco um olhar e isso detona com meu sentimento de culpa. Minha mãe definitivamente não parece com Nicolle agora. Não parece sequer a mãe de Nicolle. No passado, ainda que a depressão tenha acabado com ela, Mary ainda conseguia ser uma mulher atraente e muito bonita. Não foi atoa que Tony se apaixonou praticamente a primeira vista, mas agora eu duvido que ela possa chamar a atenção de alguém que não seja meramente por pena. Algo parece ter morrido nela. A deixado menor e encurvada. A mecha de cabelo branco se estendendo ao longo do rabo de cavalo é só um indício de que faz tempo que ela não liga mais para aparência. E eu tenho a leve impressão de que não foi a experiência da cadeia que a deixou assim, mas o fato de ter perdido Nicolle para mim.
Em poucos momentos realmente penso sobre meu pai. Às vezes infelizmente tenho a impressão de que esqueci quase tudo sobre ele, mas é ele que me vem na cabeça agora. Ele ainda me amaria se soubesse que não apenas não fui capaz de cuidar dela, mas que também destruí o amor de sua vida?
-Fale comigo, Finn. -Ela diz novamente, então esqueço que não a respondi, chocado demais com o quão longe os pensamentos me levaram.
-O que você quer saber? -Pergunto, porque realmente não faço idéia de por onde começar.
Ela desce o restante dos degraus e escolhe sentar no outro sofá. Uma boa idéia e uma péssima ideia ao mesmo tempo porque assim preciso olhar para ela. Me concentro em qualquer coisa que não sejam seus olhos, mas vejo quando ela junta as sobrancelhas.
-Eu ainda estou muito confusa com tudo. Depois que Millie me visitou oferecendo o advogado, eu achei que logo teria algum tipo de diminuição de pena depois do julgamento ou quem sabe uma liberdade provisória, mas então me falaram sobre Iris ser a nova suspeita e me pediram para falar a verdade.
É muito estranho ouvi-la falar sobre Millie dessa forma. Em vários momentos do passado já falamos sobre ela, mas agora é completamente diferente pois minha mãe conhece Millie de verdade. Algo que achei que jamais fosse acontecer.
-Depois que ela visitou você e você falou sobre as mentiras que Iris inventou, não demorou muito para que outras coisas fossem surgindo. -Faço uma pausa, me dando conta de que há algo que ela não sabe. Nem pode fazer a menor idéia. -Alem de ter inventado que você havia pedido que Nicolle não soubesse que você estava viva e presa, descobrimos que Iris estava grávida.
Como é de se esperar, Mary fica lívida ao ouvir isso. Ela olha para mim e já faço idéia do que está pensando, então complemento.
-Ela não está mais grávida. E o bebê não era meu. -Claro que isso é inacreditável, mas ainda mais inacreditável é o que está por vir. -Ela me confessou que esteve com Tony antes de fugirmos para cá. Você acha que isso é possível?
Por mais que seja uma pergunta difícil, não posso deixar de fazê-la. Minha mãe fica em silêncio por um tempo e parece abismada. Acho que ela, apesar de tudo o que Tony nos fez, nunca esperava uma traição de verdade.
Ela passa a mão pela testa e balança a cabeça.
-Meu Deus... Eu não sei. Tony nunca me traiu.
-Claro, ele só fez coisas muito piores. -Acabo pesando as palavras, mas só porque não posso acreditar que ela possa tentar defende-lo.
Ela engole em seco e assente, claramente arrependida do que acabou de dizer, assim como eu também me arrependo.
-É possível. Naquela época as coisas estavam complicadas, ele já estava viciado e as brigas eram constantes. Ele não aceitou que eu tivesse passado a guarda de Nicolle para você. Ele pode ter ficado com ela por vingança, talvez?
Não quero pensar nisso. Nem posso. Porque quanto mais eu penso, menos entendo e me odeio ainda mais por não ter percebido para que lado as coisas estavam indo mais cedo.
-Sinceramente, isso não importa mais. -Dou de ombros, mas estou longe de ficar indiferente. -O que importa é que foi depois de descobrir isso que as coisas foram se encaixando. Pedi que Nicolle me contasse sobre a noite em que Tony morreu e constatei que ela jamais poderia ter feito isso. Não sobrava ninguém além de Iris, então a colocamos contra a parede e ela confessou na frente de um amigo de Millie que é da polícia. O resto acho que você já sabe.
Ela recosta no sofá e cruza os braços, segurando o queixo com a mão como se tentasse absorver tudo isso.
-Eu sempre desconfiei que Iris não fosse lá muito equilibrada, mas jamais poderia imaginar que fosse capaz de fazer isso. E não estou falando apenas sobre matar Tony, mas deixar que Nicolle fosse encrimnada e deixar que você fosse preso... É inacreditável. -Ela fala bem baixo, para si mesma.
Algumas coisas nunca mudam e isso não mudou. Minha mãe continua ótima em se perder dentro de si mesma.
-Iris nunca gostou de Nicolle. No final das contas, Nicolle era só um meio para Iris me atingir e ela me odiava, então faz sentido que quisesse me ferrar e ainda sair como a heroína que protegia minha irmã. -Eu também falo baixo, mas porque não quero que Nicolle acabe ouvindo isso, embora ela já saiba.
-Iris odiava você? -Ela volta a me encarar e eu novamente fujo para longe de seus olhos tristes e confusos. -Achei que ela te amasse.
Quero rir, mas só me escapa um mísero sorriso rancoroso.
-Você acha que isso pode ser chamado de amor? Talvez em algum momento no começo pudesse ser, mas eu não percebi que ao longo do tempo Iris estava se ressentindo comigo. E ela acumulou isso por tantos anos que aprendeu a me odiar mais do que dizia me amar.
Detesto que eu pareça estar me culpando. Em partes estou, mas não porque não consegui ama-la, mas porque insisti em mantê-la perto mesmo depois de várias provas de que o que estávamos construindo era nocivo. Fui pelo lado que me era conveniente. Usei Iris e usei seus sentimentos por mim, mesmo sabendo que jamais iria retribuir.
-E quando Millie vai chegar aqui? -Minha mãe pergunta e com certeza é uma tentativa de mudar o assunto. -Eu gostaria muito de vê-la. Quero agradecer. Nada disso seria possível se não fosse por ela.
Ela fez uma escolha ruim em falar sobre Millie. E eu faço uma escolha ainda pior quando olho para ela de verdade agora e vejo que é um desejo sincero. Sincero e ingênuo.
O medo de acabar com sua esperança, me faz dizer a primeira coisa que me aparece na mente.
-Millie está em uma viagem de trabalho. Ela é ocupada demais.
Não sei se ela ainda me conhece ao ponto de saber que estou mentindo. E nem estou, mas também não era isso que eu deveria dizer. Ela deveria saber que se Millie e eu estivessemos juntos, não haveria nada no mundo que a impediria de estar comigo aqui agora.
-Bom, então se não for atrapalhar, eu gostaria de ir visita-los na casa de vocês em Los Angeles quando ela chegar de viagem.
-Nos visitar?
Isso soa o oposto do que eu queria. Não é que eu acharia ruim que isso acontecesse, só estou surpreso que ela faça alguma idéia sobre nossa casa, mas pensando bem, com toda certeza, Millie mensionou isso na visita. Era quando morarmos juntos ainda estava em seus planos.
Obviamente, Mary entende de outra forma.
-Ou ela pode vir aqui. Só quero realmente agradecê-la.
Ela levanta, talvez tão constrangida que não consegue mais olhar para mim. E porra, preciso contar a verdade de uma vez. Eu também levanto.
-Não tem problema. Só que Millie e eu...
-Quem aí vai querer bolo? -O grito de Nicolle ceifa qualquer possibilidade de seguir em frente com a conversa.
Ela e Bob voltam da cozinha com um bolo imenso de chocolate todo fatiado e o colocam sobre a mesinha de centro. Nem parecem notar que atrapalharam alguma coisa e por mais que eu não queira que Mary se sinta mal com o que eu disse, perco a coragem de voltar ao assunto agora que Nicolle e Bob estão aqui
-Senta, Finn. Pega um pedaço de bolo. -Nicolle pede e eu percebo que sou o único que ficou de pé depois que o bolo foi colocado na mesa.
Minha mãe finge estar distraída com Bob enchendo sua xícara com chá, mas duvido que não esteja pensando sobre o que eu acabei de fazer.
Não sei como é possível, mas até mesmo quando tento não ser um babaca, é sempre o que eu acabo me tornando.
-Eu preciso sair. -Penso isso e também acabo falando em voz alta.
Nicolle aparece em minha frente quando tento sair da sala.
-Pode ficar só mais um pouco? -Ela pede, parecendo nervosa com alguma coisa. Talvez novamente queira que eu participe do momento, mas não sei. Ela está nervosa demais para ser isso. -Eu preciso conversar algo com você e com a mamãe.
Geralmente consigo ler minha irmã muito bem, mas agora, por alguma razão quando olho para ela, não sei definir exatamente o que esse pedido significa e isso me preocupa.
Existem muitos assuntos pelos quais nós três deveríamos conversar, mas nada me vem em mente parece tão urgente como ela faz parecer.
Eu assinto para ela e arranjo um jeito de voltar a me sentar no sofá, porque, no final das contas, sei que nada pode ficar pior do que já está.
--
Millie.
Algo está errado. Eu sinto isso conforme me afasto do prédio em que fica a clínica e sigo pelas ruas movimentadas da boemia Old Town atrás de encontrar algum lugar menos lotado para comer. A movimentação em si nunca me assustou, moro em uma das cidades mais frequentadas do mundo, mas há algo ligeiramente aterrorizante em estar enfiada em uma multidão desconhecida.
Talvez eu devesse ter aceitado o convite de meus mais novos colegas de trabalho para almoçar no refeitório da clínica em vez de me aventurar sozinha pela cidade, mas depois de tantas horas de palestras e do treinamento interminável, eu precisava respirar fora dali.
O que era apenas uma dúvida, agora é uma plena certeza. Michelly quer que eu volte à psiquiatria forense e abandone minhas pesquisas com patologias associadas ao abandono familiar em que vim trabalhando nas últimas semanas.
Teria sido uma ótima oportunidade se não fosse pelo fato de que agora eu estou fugindo dos outros médicos que certamente ainda devem estar discutindo animadamente sobre casos criminais e criminosos no geral durante o horário de almoço.
Atravesso a rua quando encontro um restaurante menos lotado. É um mexicano de dois andares que distoa dos tons amadeirados e acinzentados dos demais e que parece perfeito para alguém que não gosta de comida mexicana, mas precisa de um lugar para pelo menos sentar sozinha depois de quase se perder na cidade.
Entrego o casaco ao maître na entrada e meu celular toca assim que me acomodo em uma das mesas. O número é desconhecido, mas eu atendo rápido, fazendo um gesto para o garçom ,que já estava vindo em minha direção com o cardápio, esperar um pouco.
-Alô.
-Millie? Sou eu. Peguei meu celular de volta.
Duas emoções diferentes me abalam quando ouço a voz de Nicolle. A primeira delas é a saudade que tem me acompanhado desde quando nos separamos ontem de manhã. A segunda é um frio na barriga provocado quando penso sobre o porquê de não termos nos falado até agora.
Eu não ia ligar, mas esperei que ela o fizesse.
-Oi. Como você está? -Entre todas as perguntas que tenho, essa me escapa primeiro.
-Bem. -Sua resposta pronta e um pouco desanimada me faz ter a impressão de que também é mentira. -Mamãe está aqui agora. Ela também está bem. Desculpe não ter ligado ontem, achei que você fosse estar cansada da viagem.
Eu estava, mas não ao ponto de não querer receber alguma ligação, principalmente depois de como as coisas acabaram.
-Acabei de sentar em um restaurante para almoçar. A viagem foi boa. O hotel também é ótimo. O pessoal aqui estava ansioso pela minha chegada. -Eu adianto para ela, não para me gabar de alguma forma, mas para que essas formalidades acabem o mais depressa possível.
O garçom, mesmo com meu pedido para que esperasse, aparece trazendo o cardápio e deixando uma água sobre a mesa. Eu agradeço e tomo um gole, dando o tempo que Nicolle precisa para me responder.
-Que bom que deu certo. -Ela soa minimamente mais tranquila. -Preciso contar algumas coisas. Acho que você ainda não sabe porque eu também não sabia, mas estamos todos morando com Bob agora.
Metade da água desce errado por minha garganta, me obrigando a tossir quando tento falar.
-O que? Por que?
-Bem, pelo que ouvi de Bob falando com a mamãe, Iris é dona da nossa casa e parece que mesmo sendo acusada de um crime, ela ainda tinha o direito de nos expulsar de lá.
Não sei o que dizer agora. "Sinto muito" parece ser pouco demais e além disso estou surpresa comigo mesma por não ter cogitado que isso poderia acontecer em algum momento. Estou surpresa e indignada.
-E Finn aceitou isso?
Bebo mais água, para me impedir de fazer a pergunta com toda a revolta que estou sentindo.
-Acho que ele não pôde fazer nada, mas ele está bem chateado com isso. Ele está uma pilha de nervos na verdade.
Só assim me dou conta de que Finn realmente não podia fazer nada. Talvez só dizer que foi ele quem comprou a casa, mas isso acabaria levantando suspeitas sobre o dinheiro que a polícia não sabe que ele tinha. Essa constatação porém é capaz de aumentar o peso em meu peito. Porque se é difícil para mim aceitar, não posso imaginar como é para Finn aceitar que perdeu mais uma para Iris.
-A casa em Los Angeles está lá. É mais de Finn do que minha. -Digo mais rápido do que sou capaz de perceber que é inutil dizer isso.
-Eu pensei a mesma coisa. -Nicolle solta um longo suspiro. -Mas nem vou tocar no assunto porque sei que Finn nunca aceitaria nos levar para lá. É como se ele tivesse vergonha de nossa situação, mas nem é culpa dele. Ninguém poderia prever que nada disso aconteceria.
Talvez seja exatamente por isso que Finn se culpa. Ele queria ter previsto. Ele queria ter evitado.
Estou tão longe agora que sinto vontade de pegar o primeiro vôo de volta para a Califórnia, mas o que eu poderia fazer além de insistir para que Finn fique em nossa casa? Não deveria ser algo pelo qual alguém deveria insistir. Ainda mais quando não fui procurada. Quando eu sequer sabia de nada.
-Tenho certeza de que seu irmão dará um jeito nisso logo. -Me obrigo a ficar indiferente.
Me obrigo também a abrir o cardápio, embora já tenha perdido a fome e as palavras que leio não façam o menor sentido em minha cabeça.
-Ele sempre dá. -Nicolle diz em um tom nada encorajador. -Também queria dizer para você que falei com ele e com a mamãe sobre minha viagem para a Itália ontem a noite.
Estendo o cardápio sobre a mesa e me preparo para ouvir a história, mas Nicolle não prossegue de imediato.
-O que aconteceu?
Ela chia do outro lado e acho que está chorando, mas percebo depois que está apenas sussurrando algo para alguém e se afastando.
-Finn nem me deixou terminar de falar e foi logo dizendo que isso nunca ia acontecer.
Não sei porquê me sinto frustrada em ouvir isso. Não podia imaginar algo diferente vindo de Finn, mas confesso que no fundo, gostaria que só dessa vez fosse diferente. Só não sei se por mim ou por Nicolle.
-Bem, você e eu sabíamos que essa seria a reação que ele teria.
Ela parece se jogar em uma cama.
-Sim e por isso não estou chateado com ele. Acho que me precipitei em ter essa conversa logo ontem, mas eu acho que não foi tão ruim como poderia ser.
-É? Por que?
-Porque ele não estava com raiva. -Ela diz e parece tão surpresa quanto eu. -Não gritou comigo nem nada do que eu esperava. Ele só parecia esgotado. E triste. Como se estivesse com medo de me ouvir direito e acabar concordando comigo. Depois que conversamos ele saiu e passou a noite fora de casa. Só voltou agora de manhã.
-Ele bebeu? -A idéia, por mais improvável que pareça, me apavora.
-Não. -Nicolle parece ter certeza disso. -Mas não sei onde ele esteve. Por um momento achei que tivesse ido atrás de você.
Ela parece se arrepender assim que termina de falar. Eu gostaria de não ter ouvido isso também, porque sei que não foi o que aconteceu. O que não me impede de olhar ao redor do restaurante, mas obviamente Finn não está aqui. Só vejo o garçom novamente se aproximar de minha mesa, agora com uma taça grande de Margarita. Acho que ele vai passar direto, mas põe a taça sobre minha mesa.
Afasto o celular do rosto quando ele se afasta.
-Desculpe. Eu não pedi bebida nenhuma.
O rapaz se vira para mim e também olha para trás, como se tivesse acabado de perder alguma coisa de vista. Ou alguém.
-Pediram para deixar para você, mas acho que o cara se mandou.
Eu acompanho seu olhar até a porta, mas além de mim e dois casais, não há ninguém no restaurante.
-Quem era esse cara?
-Não sei, mas ele estava aqui nesse minuto. Você não o viu? Entrou logo depois de você. Eu deixei seu cardápio e fui atende-lo, foi quando ele pediu a bebida. Ele até já pagou. Deu uma nota de cem dólares e aparentemente não tem interesse pelo troco.
O garçom termina de falar com um sorriso no rosto. Um sorriso que desaparece quando me encara de novo. Não quero perguntar as características físicas do tal cara. Talvez seja alguém tão sem importância que não vale a perda de tempo. Ou talvez eu não precise perguntar. Talvez eu saiba quem ele é.
-Pode levar de volta, por favor. -Eu movo a taça até a borda da mesa. -Estou saindo.
Pego a bolsa e na saída, o maître me devolve meu casaco, porém eu nem o coloco nos ombros. Saio em direção à rua querendo desesperadamente encontrar um táxi, mas encontro apenas dezenas de outros carros comuns.
E entre eles, um que eu não queria reconhecer.
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