Millie.
-Eu não estou entendendo muito bem, Millie. E agora você me deixou preocupada. -Michelly realmente parece alterada do outro lado da linha.
-Não é nada demais. Só estou avisando que não vou ficar na conferência. Estou voltando para casa. -Eu respondo, contendo o nervosismo que só ouvir sua voz me traz.
Ela hesita, em óbvia confusão, mas não sinto que as coisas ficariam mais fáceis se eu tentasse explicar agora tudo o que aconteceu.
-Pode só me dizer se você está bem? Aconteceu alguma coisa que fez você mudar de idéia?
Odeio sua insistência por diversas razões. Uma delas é porque de alguma forma, Michelly também me enganou quando não falou sobre a ligação de Joseph com a conferência, mas quando penso nas razões pelas quais eu sou a pessoa mais errada entre nós duas, a necessidade dessa explicação quase fica inexistente.
Sento-me no sofá e afasto o cabelo para trás, pressionando o telefone mais forte no ouvido.
-Algumas coisas aconteceram sim, mas estou bem agora. Eu só preciso que você me dê um tempo até que eu volte para Los Angeles. Quero conversar pessoalmente e se possível fora da clínica.
-Claro que é possível. Você volta ainda hoje?
Não respondo de imediato porque de repente, não tenho certeza do que dizer. O sol apareceu hoje pela manhã, então não há mais chuva, mas quando olho para frente, vejo Finn deitado na cama exatamente como ele ficou a noite toda comigo. Por mais que as circunstâncias que o trouxeram sejam as piores, eu não quero que isso acabe. E é quase impossível não achar que vai acabar quando formos embora.
-Ainda não sei, mas aviso qualquer coisa. -É o que respondo, odiando mais uma vez essa insegurança.
Quando Michelly se despede, eu desligo o telefone e o afasto do rosto. Nesse mesmo instante, Finn se mexe na cama.
Eu sabia que ele estava acordado ouvindo tudo, mas qualquer chance de ficar chateada com isso acaba quando me dou conta da realidade desse momento.
Ontem as coisas aconteceram de uma maneira mecânica. Nós estávamos apenas cumprindo obrigações um com o outro naquelas horas terríveis depois do ataque de Joseph. A única coisa que fugiu disso foi nossa noite neste quarto depois que eu pedi que me beijasse. Aqueles eram ele e eu de verdade, sem armas nem defesas, o problema é que agora, depois de todas as horas que passamos dormindo, já não sei mais quem somos. Nem se precisamos nos armar de novo.
-Era alguém do trabalho? -Ele pergunta, confirmando que me ouviu falar no telefone.
Devo ter dormido melhor que ele, pois Finn ainda parece cansado. E agora preocupado.
-Sim. -Encosto-me contra o sofá e jogo o celular para o lado. -Era minha chefe.
Ele coloca as pernas para fora da cama e senta de lado, inclinado para baixo com os braços em cima dos joelhos. Parece não gostar de minha resposta.
-Então você vai contar tudo para ela?
Sei que ele sabe que farei isso, por isso estranho sua pergunta e demoro a responder. Além disso, ainda é tão inacreditável que está aqui, que gosto de apenas olha-lo para ter certeza disso.
-Tenho que contar, não é? -Dou de ombros, embora ele não esteja olhando-me agora.
Finn balança a cabeça em negação.
-Talvez não tenha. Joseph deve estar com medo. Pode estar com raiva também, mas sei que o quanto a cadeia pode assustar alguém e talvez ele queira só deixar isso pra lá. Talvez ele não conte nada para ninguém, então porque você deveria arriscar tudo e contar você mesma?
Tem um pouco de verdade nisso tudo e eu não parei para pensar por esse lado quando acordei e liguei imediatamente para Michelly, mas ainda lembro bem de tudo o que passei ontem e o pensamento de em algum momento de minha vida, viver isso de novo, simplesmente é inconcebível.
-Vou contar, Finn. -Digo, mesmo que essa afirmação faça cada parte do meu corpo tremer. -Eu já deveria ter contado. Se eu mesma tivesse feito isso, nada disso teria acontecido. Joseph não teria nada com o que me ameaçar. Não posso dar chance alguma de que ele ou qualquer outra pessoa faça isso de novo.
Finn vira o rosto para mim e a carranca preocupada ainda está lá torturando sua face. Ele levanta todo rígido enquanto mexe no cabelo daquele jeito que sempre faz quando está se sentindo perdido.
-Tudo bem, então deixe que eu conte.
-O que?
-Isso mesmo. -Ele chega mais perto, sentando na beirada da cama bem na minha frente. -Deixe que eu fale com sua chefe. Vou explicar nossa história. Explicar porque você fez o que fez e que sua intenção nunca foi fazer nada de ruim contra ela ou contra ninguém.
Em nenhum momento cogito deixar isso acontecer, mas não digo isso de imediato porque também não posso deixar de encontrar algum conforto em sua intenção. Me sinto menos apavorada quando penso que não estou totalmente sozinha nessa.
-Eu não posso deixar você fazer isso. De certa forma, você não tem nenhuma ligação com o que fiz. Foi escolha minha mentir para ela, então a responsabilidade agora também é só minha.
Ele obviamente detesta meu ponto de vista, mas deve saber que jamais irei aceitar sua oferta, então não insiste.
-Tudo bem. -Finn esfrega o rosto como se para clarear as idéias. -O que acha que ela vai fazer quando descobrir?
Algo revira meu estômago ao ouvir sua pergunta. Antes eu ainda costumava ter muita autoconfiança, especialmente em relação ao meu trabalho, mas de uns tempos para cá, está se tornando cada vez mais difícil.
-Eu não sei. Michelly é uma amiga. Tenho certeza de que vai me ouvir e vai entender, mas é difícil dizer o que ela vai decidir fazer. Isso pode ser um escândalo se sair do controle. Duvido que ela queira arriscar.
-Você também não deveria querer arriscar. -Finn argumenta e me olha tão sério que parece bem perto de me dar uma bronca. É estranho porque é a primeira vez que ele está deste lado da conversa. -Você pode perder o emprego.
Suas palavras agora não me assustam como deveria. Eu sinto medo, mas também tenho certeza da decisão que tomei.
-Você sabe porque fiquei tão assustada quando Noah pediu demissão? -Pergunto e Finn automaticamente nega com a cabeça. -Eu também não entendi direito. Só agora estou começando a entender. Eu me senti culpada por engana-lo, mas não foi apenas isso. Quando Noah se demitiu, eu me senti uma hipócrita e me senti péssima porque não tinha coragem de fazer o mesmo que ele. Isso era o certo. E para ser honesta, não estou feliz com minha profissão desde que comecei com essas mentiras. Ainda sou apaixonada pela medicina, assim como tenho certeza de que Noah é apaixonado pela polícia, mas talvez esse tempo longe seja necessário para nos conectarmos novamente com essas paixões. Para começar do zero.
Uau. Eu nem sei se havia realmente pensado em tudo isso antes de dizer, mas agora que finalmente disse, parece que uma tonelada deixou minhas costas, por mais maluco que seja.
Acho que minha frustração e tristeza tem muito mais a ver com o fato de decepcionar Michelly e trazer algum problema para ela, do que com perder o emprego.
Finn permanece me encarando por um tempo em silêncio. Parece orgulhoso, mas também ainda mais preocupado.
-Eu entendo. -Ele diz com aquele tom de quem está se esforçando muito para ser compreensivo. -Mas não sei... É complicado achar que essa decisão é inteligente. Isso não deveria ser motivo para você ser demitida. Caramba, olhe só tudo o que você já passou, ainda vai ficar sem emprego no final das contas?
O momento é inoportuno, mas sorrio, dando de ombros. É engraçado como Finn sempre trata tudo como se fosse o fim do mundo.
Talvez eu ainda não tenha me dado conta do impacto de tudo isso. Talvez ainda esteja anestesiada demais para sentir, mas no momento, sinceramente, não parece tão desesperador ser demitida.
-Acho que seremos dois desempregados então. -Tento fazê-lo rir, embora saiba que para ele, isso não tem a menor graça.
Mas ao invés de ficar chateado, por algum motivo, ele sorri, desviando o olhar como se estivesse envergonhado.
-Nossa, agora fiquei sem jeito de dizer que arranjei um emprego.
Acho que ele está brincando comigo. Só pode estar. E talvez, lá no fundo, eu também esteja com medo de não ser uma brincadeira e isso signifique que ele voltou a fazer algo em relação as armas de novo.
-O que? -Pergunto, torcendo muito para ser apenas brincadeira.
Ele dá de ombros, ainda parecendo deslocado e sem jeito.
-Achei que você já soubesse. Noah me procurou um dia desses. Ele me deu o contato de um amigo que estava procurando alguém que tivesse experiência com informática para dar cursos para uns agentes da polícia. Não é nada demais e também não sei exatamente se o emprego é meu, mas ontem recebi um e-mail do tal cara e ele quer marcar um encontro comigo na segunda-feira. Se eu for bem na entrevista e no teste técnico, o emprego é meu.
Isso saiu tão fora do que imaginei, que fico sem palavras, totalmente surpresa. E feliz. E furiosa por estar sabendo só agora. Mas muito mais feliz.
-Meu Deus, isso é ótimo, Finn!
-Eu sei. -Ele diz, mas sua expressão está longe de parecer animada. -Mas como eu disse, não é nada demais.
Estou prestes a dizer que isso é sim demais e o quanto estou orgulhosa, quando alguém bate na porta e me interrompe.
Olhamos para ela ao mesmo tempo e eu imediatamente sinto minha pele ficar gelada.
Finn levanta, fazendo um gesto para que eu fique calma, mas até ele atender a porta e eu ver que é apenas um funcionário do hotel, mal consigo respirar.
-Ainda não pedimos o café da manhã. -Finn diz para o rapaz que está com um carrinho no lado de fora.
-Eu sei. Na verdade não precisa pedir. Está incluso na diária do hotel. Só preciso saber se vão aceitar agora ou posso voltar outra hora.
Finn olha para mim, querendo confirmar se quero a comida e estou tão ansiosa para que a porta seja fechada, que apenas assinto rapidamente com a cabeça.
Ele agradece ao funcionário e pega o carrinho, o arrastando até onde estávamos sentados.
-Agora está explicado porque o valor da diária foi tão cara quando o quarto é tão minúsculo desse jeito. Tem comida para um batalhão aqui. Você vai aguentar comer tudo isso? -Finn pergunta tirando a tampa de todos os pratos que estão em cima do carrinho.
Realmente é muita coisa, e tudo cheira divinamente bem, mas permaneço sem fome alguma, mesmo que tenha a sensação de um buraco no estômago.
-Acho que não consigo comer.
-Ah, qual é? -Finn senta na cama, do outro lado do carrinho e empurra uma taça cheia de frutas cortadas e um garfo pra mim. -Você tem que pelo menos tentar.
Quando nego com a cabeça, ele faz uma carranca e enfia o garfo em um pedaço grande de pêssego e o ergue até perto da minha boca como se eu fosse uma criança.
-Você escolhe. Posso passar o dia todo com o braço esticado assim.
E ele prova isso, porque enquanto eu me recuso e pegar o pêssego, ele usa a outra mão livre para enfiar um pretzel quase inteiro na boca com uma única mordida.
É muito satisfatório ver isso. Esse momento inteiro entre nós, é. E ao mesmo tempo é estranho porque o dia de ontem foi um pesadelo e eu achei que tudo continuaria a ser péssimo hoje.
Me convenço a aceitar, mas só porque ainda quero conversar e sei que se abrir a boca para falar qualquer coisa, ele não hesitará em me fazer engolir o maldito pêssego.
Ele ri convencido quando eu abocanho a fruta e arranco o garfo de sua mão com raiva.
-Então... Algo mais aconteceu que eu ainda não sei? -Pergunto, sentindo o doce da fruta explodir em minha língua.
Finn maneia a cabeça, procurando outro garfo na mesa para roubar um pedaço de maçã da minha taça.
-Estou pesando se tem algo em minha vida que não seja terrível. Isso pode demorar um pouco. -Ele brinca, mastigando a maçã. -Ah, acho que tem uma coisa sim. Ainda é terrível, mas depende do ponto de vista.
-Meu Deus... Diga logo.
Ele termina de mastigar a maçã propositalmente devagar.
-Nicolle vai viajar para a Itália.
Espero para ver se isso também é algum tipo de brincadeira, não só porque é inacreditável, mas porque ele diz calmo demais para ser verdade.
-Jura? -Ergo uma sobrancelha, deixando claro minha desconfiança.
Finn dá de ombros, vendo que outra fruta vai roubar de mim.
-Você me conhece. Sabe que eu não brincaria com isso.
Sim. Eu sei. Ele poderia brincar com qualquer outra coisa, mas nunca escolheria isso. Ainda mais neste momento.
-Você vai deixar? Quando Nicolle falou comigo ontem de manhã...
-Eu sei. Ela disse que fui um estúpido que mal a ouviu. -Ele me corta e também me rouba um pedaço de abacaxi. -Acontece que algumas coisas mudaram desde aquele momento e eu vi que a decisão não era minha. Pelo menos não só minha.
Estou tão surpresa que não consigo disfarçar. O que posso fazer é completar sua sentença, afim de testar minha sanidade mental.
-A decisão também era de Mary.
Finn concorda com um suspiro e agora com um morango enfiado no garfo, o leva até minha boca.
Eu não recuso, mas mastigo devegar, implorando com o olhar para que me conte tudo.
E ele faz quando se afasta.
-Você sabe... Para mim, nunca foi fácil confiar nela. Principalmente em relação a Nicolle, mas agora que Tony morreu e tudo sobre a morte dele ficou esclarecido, me deparei com um cenário que não via a muito tempo. Nós três juntos de novo. Sozinhos. Como era quando Nicolle ainda era criança e antes de tudo ficar pior. Isso tinha que significar alguma coisa, você não acha? E eu tinha que fazer algo para evitar que tudo acabasse se repetindo. Tinha que romper aquele maldito ciclo. -Ele faz uma pausa e ao mesmo tempo que parece triste, também parece satisfeito com o que acabou de dizer. -Minha mãe me surpreendeu muito. Achei que eu tivesse acabado com ela depois tudo o que já fiz, então esperei que ela dissesse que não era capaz de fazer isso, mas ela foi. E decidiu isso melhor do que eu. Concordamos que assinar a emancipação era um pouco demais por enquanto, mas não vamos impedir Nicolle de fazer a viagem. Ela e Mary vão juntas e passarão algum tempo lá até que possamos ter certeza de que é uma boa idéia deixar Nicolle andar sozinha com as próprias pernas.
Tenho tantas coisas para dizer e perguntar, mas agora, depois que ele termina de falar, percebo que não consigo fazer isso. Não consigo fazer nada além de encarar o homem na minha frente, que conheço desde que era só um menino, e não reconhece-lo mais.
E então percebo algo mais. Percebo que Finn não está me surpreendendo somente agora com tudo o que acabou de dizer. Ele vem me deixando assim, sem palavras, desde ontem.
Porque o homem que eu esperava vir aqui me salvar de Joseph, era o mesmo que eu temia que perdesse o controle no momento em que chegasse e visse aquilo acontecendo. Em vez disso, Finn manteve a calma e chamou a polícia. Depois ele só cuidou de mim e esqueceu a própria raiva, que a essa altura, muito provavelmente o teria arrastado para a cadeia junto com Joseph.
E eu preferi ignorar isso. Fiquei com medo de só estar inventando desculpas para perdoa-lo com mais facilidade.
-Acha que mandei mal em deixar que ela tomasse essa decisão? -Ele pergunta, encarando meu silêncio estarrecido como uma crítica.
Sacudo a cabeça tentando voltar ao presente. Quero muito dizer o que acabei de observar sobre essas mudanças, mas não quero parar de me surpreender, pelo contrário. Parte de mim quer ainda mais.
-Não. Não acho. -Eu respondo e ele automaticamente parece menos preocupado. -Mas não deve ter sido nada fácil. O que você está sentindo sobre isso tudo?
Droga. Agora estou falando como uma analista.
Tento voltar atrás na pergunta, mas deixo como está quando o vejo abaixar a cabeça pensando na resposta.
-Acho que a ficha não caiu direito. -Finn se afasta um pouco do carrinho e cruza os braços. Uma gesto apaziguador como se quisesse se defender dos seus próprios pensamentos. Ótimo. Agora estou até pensando como uma analista. -Sinceramente quando lembro que ela vai embora, tento não me aprofundar nesse pensamento. Tento deixar para depois. Mas não estou inclinado a voltar atrás. Estava na hora de parar de tentar ser o pai de Nicolle e ser apenas o irmão dela. Também estava na hora de deixar Mary assumir o papel de mãe e como não é possível devolver a guarda, que ela pelo menos possa cuidar de Nicolle enquanto ela ainda é menor de idade.
Novamente fico estarrecida com suas conclusões. E cada vez é de um jeito melhor, mas também começo a me perguntar se toda essa felicidade que estou sentindo tem a ver com apenas com o fato de que Finn parece ter amadurecido tanto em tão pouco tempo ou se estou feliz que Nicolle vai viajar porque agora teremos nossa chance de ficar juntos como ela disse que aconteceria.
Pensar nisso me assusta mais do que qualquer outra coisa, então preciso perguntar.
-Nicolle disse para você porque quer tanto morar na Itália?
Finn revira os olhos e sorri de um jeito divertido. Não sei o que isso significa.
-Se ela me contou sobre a tal garota? Contou. Isso é meio doido, você não acha? Você sabia que ela conversava com pessoas pela internet?
-Não... -Mexo no cabelo, apenas para ocupar as mãos nervosas. -Ela só falou sobre Alessa?
Ele franze o cenho desconfiado enquanto assente ao mesmo tempo.
-Deve ter dito algo sobre como a Itália é incrível. Mas porquê? Ela disse algo diferente para você?
Por um momento imagino se contar o que Nicolle me disse seria correto. Finn deveria saber como a irmã se sente em relação a nós, mas ao mesmo tempo, estou tão aliviada em perceber que ele não precisou saber de nada disso, que não quero contar e lhe dar mais um motivo pelo qual se culpar.
E se sei de algo agora, é que Nicolle não estava tão certa como tanto temi. Finn não precisou que ela fosse embora para se libertar. Ele só precisou entender que não estava mais sozinho. Que Mary estava lá.
-Não. Ela não disse mais nada para mim. -Minto e sufoco a pequena onda de culpa que sobe minha garganta com uma mordida em um pretzel. Posso lidar com ela depois.
Não devo soar muito convincente, mas Finn não parece se incomodar. Ele volta a se aproximar do carrinho e coloca mais um pouco de açúcar em seu café.
-Parece que as coisas estão se acertando para todo mundo. -Ele comenta, dando um sorriso que não sei dizer se é de todo sincero.
Parece nervoso. E é, por algum motivo, como eu também me sinto.
-Acho que sim.
Ele quase leva a xícara do café até os lábios, mas para com ela no meio do caminho. Tem algo na forma como está me olhando que me deixa ainda mais apreensiva. Com a sensação de algo formigando em minha pele.
-Falta apenas nós dois acertamos as coisas. -Diz ele, desistindo de vez de tomar o café.
Parecia óbvio que diria isso, mas não me sinto preparada quando escuto. Acho que estava tudo bem enquanto o nosso círculo de conversa abrangia todos a nossa volta, mas uma hora esse círculo iria se fechar. Uma hora só restaria nós dois dentro dele.
Deixo o garfo cair com um estalido sobre a taça e tento me convencer de que só estou nervosa e surpresa, mas estou além disso. Estou dividida. Parte de mim quer apenas sorrir e dizer que está tudo bem, mas a outra parte ainda lembra de tudo o que vivi mas últimas semanas. E essa parte prevalece.
-Você me magoou muito. -Eu apanho o garfo, mas não consigo fingir que ainda quero comer enquanto temos esta conversa. -Você me magoou mais agora do que há dez anos quando foi embora. Naquela vez pelo menos eu não tive que ver você ir. Dessa vez tive que ver você ir e ainda ouvir você dizer que não deveria ficar comigo.
Finn também larga a xícara de volta no carrinho. E o mesmo tipo de nervosismo que sinto, posso vê-lo sentir, mas ele é bem melhor em disfarçar do que eu.
-Eu sei. -Ele engole em seco ao admitir. - É por isso que não vou encher seus ouvidos com milhares de pedidos de desculpas, ou sei la...pedir você em casamento por impulso como já fiz.
Não vou negar que fico a um passo de rir disso, apesar do momento não ser nada propício. Seria bem a cara dele me pedir em casamento bem agora.
-E... O que você vai fazer, então?
Sinceramente não sei se tenho medo de ouvir a resposta ou a se a desejo urgentemente.
Finn respira fundo e fecha os olhos por um momento antes de começar a falar.
-A verdade é que nunca achei que merecesse você. Para falar a verdade, ainda não acho que eu mereço.
Eu desvio o olhar e ele para de falar. Não é que eu não queira ouvi-lo. Eu quero. Só estou cansada dessa mesma versão. Dessa mesma desculpa.
-Sei que já deve estar cansada de ouvir isso. -Ele diz, lendo minha mente. -E acredite em mim, também estou cansado de repetir isso, mas preciso falar porque é a verdade. Não acho que mereço você. Quando olho para você e imagino nosso futuro, sempre acho que vou acabar estragando tudo. É isso que me faz recuar. Mas agora estou começando a entender que isso não tem nada a ver com você. Nunca teve a ver só com você.
Por essa eu não esperava. Volto a encara-lo, dando-lhe minha completa atenção. Finn não abandona meu olhar, ele me enfrenta, apesar de estar visivelmente atormentado.
-Isso tem a ver só comigo. Com o problema que tenho de nunca me achar bom o bastante para nada, nem para ninguém. E esse é um problema que tenho que resolver comigo mesmo, seja com terapia ou qualquer merda parecida. Meu erro foi deixar que isso refletisse nas suas escolhas. Você deveria poder escolher ficar comigo e me ajudar a enfrentar isso. Você deveria poder escolher me amar além de todos esses problemas, mas eu não deixei. Eu quis tanto só me sentir bom para você, que preferi dizer a você que só poderíamos ficar juntos no dia que eu resolvesse a minha vida, mas isso nunca vai acontecer enquanto eu não tratar de mim mesmo. E agora sei que para fazer isso, não preciso pedir que você espere um milagre acontecer um dia. O milagre já é você me amar mesmo sabendo dos meus inúmeros defeitos, então mesmo que isso não seja responsabilidade sua, preciso de você para me curar.
Finn levanta e arrasta o carrinho que está entre nós para longe. O móvel metálico se choca contra a parede, fazendo todos os pratos tintilarem e o café das xícaras derramarem. Ele não parece nem um pouco preocupado com a bagunça. Apenas se abaixa na minha frente e toca minha mão. Descubro que estamos suando quando nossos dedos se entrelaçam. Também descubro o quanto o coração de uma pessoa pode bater tão forte, quando sinto o meu pulsar quase na garganta.
-Então agora estou devolvendo a escolha que nunca deixei você fazer . -Finn diz, apertando meus dedos com firmeza. - Você pode escolher ficar com esse homem que acabou de perder tudo o que já teve um dia. Que não tem um bom emprego ou dinheiro sobrando e que tem uma porção de problemas familiares para resolver. Você pode escolher ficar com ele, ainda que ele não saiba quando vai se convencer que pode te fazer feliz, mas ele promete para você que vai tentar fazer isso até o final da vida, porque o que ele mais quer é passar o resto dela tentando. Ele escolhe você. Agora. Sem tempo. Sem condições. Mas a decisão é só sua.
Assim, de repente, parece ser tudo ou nada. Claro que quero ficar com ele. Sempre quis. Assim como sempre quis ouvir cada palavrinha que ele acabou de dizer. Sem disfarces ou promessas de uma vida perfeita que seria utópico demais para acreditar.
Acho que é exatamente isso que me faz encarar a realidade desse momento e tudo o que nos cerca. A forma imperfeita e até mesmo trágica, de como as coisas aconteceram e percebo que era dessa forma que tinha que ser.
Percebo que não o amaria mais se ele não fosse repleto de tantas questões. Não o amaria mais se ele fosse diferente do que é, e certamente, não o amaria mais se as coisas entre nós fossem menos complicadas, apesar de ele acreditar que sim.
O problema jamais foram as suas imperfeições. O problema foi que Finn sempre só deu importância para elas.
Mesmo tremendo, me afasto do sofá e caio de joelhos junto com ele no chão. Nossas mãos não se desgrudam nem por um segundo.
-Não escolho esse homem que acabou de descrever para mim. -Digo, enquanto as lágrimas lavam meu rosto. Finn me olha apavorado, mas eu completo antes que ele possa dizer alguma coisa. -Sei que existe um pouco dele em você, mas só um pouco. Ele não representa tudo o que você é. Por isso escolho você. Por inteiro. E quem você pode ser além dele.
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