Millie.
É a primeira vez que saio de casa no intuito de realmente fazer algo pelo meu casamento. Conseguimos marcar a data para daqui um mês.
Um mês.
Parece muito pouco tempo e também parece tempo demais, mas é uma questão simples de pura perspectiva. Se olhar pelo lado de que quero estar casada com Finn o mais rápido possível, trinta dias parecem que vão demorar muito a chegar, mas se olhar pelo lado de que ainda não me decidi sobre coisa alguma de nossa cerimônia, um mês parece não ser o bastante.
De qualquer forma, me abdiquei da tradição de que a noiva necessariamente precisa perder a cabeça nos dias finais antes do casamento e decidi, quase em cima da hora, que definirei tudo em apenas uma semana. Desde os detalhes mais simples até as questões mais complexas. Meu casamento não vai ser uma tortura psicológica pela qual serei escrava até o grande dia.
E é de se imaginar que seja praticamente impossível achar um bom lugar com uma data tão próxima. Nem mesmo minha mãe, com seus infinitos contatos, ou o fato de vivermos na cidade dos grandes eventos, facilitou a nossa vida. Geralmente quem está planejado um casamento reserva um clube com pelo menos um ano de antecedência, não apenas algumas semanas antes.
Estamos quase no final da lista de possíveis locais que minha mãe fez, sem sucesso em nenhum deles, quando jogo uma sugestão.
-Se contratarmos uma boa equipe de decoração tenho certeza de que podemos fazer a festa no jardim de casa.
Andando a alguns passos na minha frente, ela nem mesmo se vira para me responder. Provavelmente porque fazer uma festa em casa, seja algo que ela sequer cogita.
-Ainda não estamos sem opções, querida. -De repente, ela para no meio da calçada e ergue os óculos escuros para cima da cabeça, fitando o prédio de porte médio na sua frente. -Chegamos. Este foi o lugar que uma amiga do trabalho me indicou. Ela fez uma festa de aniversário, mas deve servir para um casamento.
Minha mãe deve mesmo estar desesperada para arranjar um lugar. Constato isso ao entrarmos na recepção pouco moderna e até mesmo rústica do hotel de baixo orçamento que aluga o seu salão de eventos e o restaurante para festas.
A mulher que nos atende, com toda gentileza possível, explica como funcionam as instalações e as reservas e tudo o mais que acompanha o combo de aluguel. Eu escuto tudo, mas neste aspecto sou realmente apenas uma mera ouvinte. É minha mãe quem faz as perguntas e também suas exigências.
Quando entramos no salão para conhecer o espaço, no entanto, é a primeira vez que sinto algum interesse em desbravar o ambiente. É bem simples, como já era possível perceber apenas na entrada, mas é nessa simplicidade que posso, pela primeira vez, visualizar meu casamento.
Ao invés de palcos com tablados de vidro iluminados, o piso é inteiro de madeira maciça, assim como as mesas e cadeiras. O jardim é bem cuidado, sem muitas flores, mas nada que um bom decorador não possa dar conta. Há espaço para a cerimônia, com púlpito de vidro e mesa para assinatura dos papéis e uma pequena, mas adequada, pista de dança.
Adoro a ornamentação em galhos secos no teto e nas vigas de sustentação. Adoro as árvores aleatórias no meio do jardim onde ficam as mesas e adoro a cascata de água culminando em um laguinho de carpas iluminado com leds azuladas. Parece uma grande casa na árvore. Parece perfeito.
-Vocês tem vaga para o dia 20 de junho? -Pergunto, pegando a recepcionista e minha mãe de surpresa ao ser a primeira coisa que digo desde que entramos.
A mulher verifica a prancheta em suas mãos e me lança um olhar nada animador.
-Estamos um pouco lotados no mês de junho, infelizmente.
Minha mãe, que agora entendo porque ainda não havia perguntado sobre a disponibilidade da data, apenas assente e empurra a bolsa embaixo do braço.
-Bom, nós tentamos. -Diz, sem esconder sua parcela de alívio em ouvir isso.
Ela claramente detestou este lugar. Ela detesta quase tudo que não grite o quanto estamos gastando e eu não vejo problema nisso porque é seu jeito e já estou acostumada com isso. Pelo menos eu não via problema até agora.
Gostei muito daqui. Tenho certeza que Finn também vai adorar. E como certamente não encontrarei outro igual ou melhor que este no tempo que ainda me resta, preciso tentar.
-Por favor, não há nada que possa fazer? Eu realmente quero que meu casamento aconteça aqui. -Digo, quase implorando, mas decidida.
E percebo que parte de mim não está dizendo isso apenas para a mulher que nos atende, mas para minha mãe também. Ela ainda me olha de maneira contraditória, mas algo parece mudar em seu pensamento quando ela volta a olhar para a recepcionista.
-Veja o que pode fazer. Pagamos o que for preciso.
-Vou tentar falar com minha chefe. Só um minuto. -A mulher se afasta, pegando o telefone dentro do bolso e indo até a outra extremidade do salão.
Minha mãe dá uma olhada crítica ao redor e se aproxima de mim com passos comedidos.
-É bonitinho. -Diz ela, dando-me um sorriso amarelo sem graça. -Talvez seja pequeno demais...
-Finn e eu temos poucos convidados. -A lembro, mesmo que não seja necessário.
Lhe entreguei ontem a lista de nossos convidados. Não deu para encher nem uma folha inteira. Além de alguns colegas do trabalho de Finn e alguns colegas antigos da clínica, sobraram Noah e Bob como nossos padrinhos, Sadie e Mary como madrinhas e Nicolle e minha mãe como damas de honra. Todas as outras pessoas são amigos dos meus pais. Alguns conheço de vista, outros nunca nem vi pessoalmente.
-Antigamente você ficaria feliz em ter uma festa grande. Estávamos pensando juntas em alugar o Hilton Woodland Hills, lembra? Era o seu sonho. -Ela diz, arriscando mais um passo em minha direção. -Eu só não quero que depois você se arrependa de ter mudado de idéia.
Não quero que isso me magoe, mas não posso evitar a dorzinha incomoda que essa lembrança me traz ao peito. Há pouco mais de um ano, estávamos planejando meu casamento com Joseph e me dói saber que no fundo, é disso que minha mãe sente falta. Dele. Dos meus planos com ele.
Já me acostumei com a idéia de que talvez ela nunca aceite Finn como eu gostaria. Ela apenas suporta o fato de que amo alguém que não é como ela gostaria que fosse.
-Nunca foi meu sonho. Era o seu. E era o de Joseph, mas não o meu. -Respondo, sucinta e tentando ao máximo não soar tão terrivelmente magoada.
Ela assente com um ar de desolação, mas sabe bem que não estou mentindo.
-Eu fico feliz que você esteja certa de suas decisões e como eu disse, não vou interferir em mais nada na sua vida.
-Você diz que está feliz, mas não é isso que parece. -Lhe dou as costas, embora não possa evitar dizer isso, esse não é o melhor lugar nem o melhor momento para termos essa conversa.
No entanto, sinto quando ela se aproxima de mim, tentando novamente obter minha atenção.
-Me desculpe se não estou demonstrando o suficiente, querida, mas não exija tanto assim de mim. Estou fazendo o que posso e tentando me acostumar com isso. Finn não é exatamente a pessoa que eu sonhei que você se casasse. Ele não é como...
-Como quem? -Viro-me de volta para ela. Depois de se dar conta do que diria, ela recua, mas já é tarde demais. -Como Joseph? É isso que você iria dizer?
-Eu não quiz dizer isso. -Ela explica, nervosa demais para estar sendo honesta.
Tenho que manter a calma. Lhe dar um crédito porque, custe ou não acreditar, ela não está fazendo isso por mal. Minha mãe é a única que não sabe o que Joseph fez, portanto, é a única que ainda o vê como o homem maravilhoso que traí e deixei escapar, mas já está na hora de saber.
E não vejo como esperar para depois. Olho para a mulher que estava nos atendendo, ainda distante falando com alguém no telefone e prevendo que vai demorar, encaro minha mãe de volta, que me olha com culpa e confusão.
-Sabe porque eu voltei tão rápido da minha viagem a Portland alguns meses atrás?
-Finn foi buscar você. -Ela responde sem precisar pensar. Parece desgostosa de acreditar que foi somente por isso que deixei meu trabalho para trás.
-Mas você sabe o porquê de ele ter ido me buscar?
Ela oscila o peso do corpo de uma perna para a outra, pensativa, mas só porque não sabe se o que vai dizer, vai me deixar irritada.
-Porque ele queria consertar as coisas com você?!
Entendo porque pensaria isso e por um momento, penso em inventar qualquer história romântica que seja capaz de amolecer seu coração em relação a Finn, ao invés de contar a tragédia pela qual passamos naquela viagem. Tudo isso para não precisar lembrar nem repetir em voz alta, mas respiro fundo, e conto a verdade.
-Foi Joseph quem arranjou aquela conferência para mim. Ele falou com Michelly e fez parecer que não estava envolvido. Eu descobri isso quando ele me abordou na rua. Ele praticamente me sequestrou e então me fez voltar para o hotel que ele mesmo estava pagando, junto com ele. Sabe o que aconteceu depois? -Me aproximo dela, enquanto o medo a faz recuar. - Joseph me manteve presa sob ameaças. Disse que voltaríamos para casa e nos casariamos, eu querendo ou não. Não vou explicar o que ele usou para conseguir isso porque não interessa, mas eu fiquei presa, mãe. E foram naquelas horas, que Joseph me agrediu. Primeiro psicologicamente, depois quando eu reagi, ele me agrediu fisicamente. Ele quase... Ele quase me estup...
-Meu Deus, Millie, pare! -Ela quase grita, olhando-me em pânico. Atordoada e estarrecida. Primeiro acho que é porque não acredita em mim, depois, pela forma como engole com esforço e treme ao arrumar o cabelo, compreendo que sua ficha, depois de tantos anos, finalmente caiu. -Você não me disse nada disso. Por quê?
Seguro as lágrimas, prendo o fôlego e sorrio da forma mais triste possível.
-Porque passo a maior parte do tempo tentando não lembrar disso. Sinto medo. Sinto vergonha. Deus sabe o quanto eu queria esquecer que um dia fui capaz de amar e quase me casar com aquele homem. Então não, mãe. Finn não é como Joseph, mas da próxima vez que você falar essas palavras, use o tom correto. Um tom orgulhoso e feliz. Estou me casando com um homem que jamais seria capaz de me machucar. Um homem que me ama mais a cada vez que eu respiro. Que fica louco se algo me aborrece e perde a cabeça para tentar ser o bastante para mim. Finn tem seus problemas, coisas que ele se arrepende e se martiriza todos os dias porque ele não é perfeito, mas foi ele quem salvou minha vida. E ele continua salvando todos os dias.
Ela leva a mão trêmula ao rosto e se afasta, tentando me esconder que está chorando. E não sei exatamente porque está chorando, mas não lembro a última vez que a vi desse jeito. Incapaz de dizer qualquer coisa.
-Mãe... -Eu tento chegar perto dela, mas sobre seus ombros, vejo a atendente retornando, então paro onde estou.
A mulher, alheia ao que está acontecendo, sorri ao nos encontrar.
-Minha chefe aceitou falar com vocês. Podem me acompanhar até o escritório?
Tento disfarçar minhas lágrimas limpando o rosto rapidamente.
-Podemos sim. -Olho para minha mãe, que continua virada. -Mãe? Vamos?
Num esforço para se recompor, ela vira, mas nega com a cabeça, privando-me de ver seu rosto olhando apenas para baixo.
-Será que vocês podem ir na frente? Eu preciso tomar um pouco de ar.
Penso em dizer que não. Que a quero junto comigo, mas antes que eu possa fazer alguma coisa, ela sai, seguindo rumo à saída do hotel.
A recepcionista finalmente entende que algo está acontecendo. Me lança um olhar constrangido e culpado, mas eu sorrio.
Não posso ir atrás de minha mãe agora, quando obviamente ela precisa de um pouco de espaço para pensar.
-Bom, podemos ir? -Pergunto, tentando agir com naturalidade.
-Sim, claro. Me acompanhe.
Nós voltamos para a parte interna do hotel pouco movimento e eu sigo a atendente até a sala da gerência que fica logo depois do balcão da recepção e ela entra primeiro, deixando a porta livre para mim.
-Eu sabia que era você!
Antes mesmo de entrar totalmente, reconheço a voz que soa tão surpresa e alegre em me ver. Só que, como na última vez que um encontro inusitado como esse aconteceu, eu paro em choque, sem acreditar no que estou vendo.
-Louise...-Digo atônita, encarando a mulher na minha frente como se fosse um fantasma de meu passado.
Ela sorri abertamente e dá a volta na mesa para chegar mais perto de mim. Apesar da idade, está ainda mais bonita do que da última vez que nos vimos e lembrar daquela ocasião agora, me faz ficar tensa enquanto ela me abraça.
-Que mundo pequeno, meu Deus, mas eu sabia que iríamos nos ver de novo. -Diz ela, se afastando mas mantendo-me presa pelos ombros com seu jeito mega empolgado.
Sempre foi assim. Louise, quando era apenas minha professora de dança, já tinha um carinho por mim que eu nunca fui capaz de entender muito bem e o tempo não apagou isso. Só nos encontramos duas vezes, contando com esta vez, e a mulher parece praticamente me idolatrar.
Confusa com tantas sensações, eu sorrio, tentando me situar apenas no presente, o que é difícil perto de alguém que só conhece o seu passado.
-Você é a dona desse hotel?
Ela finalmente me solta e balança a cabeça como se a idéia fosse terrível.
-Ah não. Minha irmã é a dona. Estou aqui temporariamente enquanto ela está de licença maternidade. Acabei e ganhar mais um sobrinho. -Tagarela de forma muito contente e então indica a poltrona do lado oposto a mesa. -Sente-se, Millie. Por favor.
Eu a obedeço, por alguma razão ainda muito acanhada. Louise anda pela sala pequena enchendo uma xícara de café expresso e me servindo de bolachas, mesmo eu negando tudo com a cabeça.
-Quando Anna me falou seu nome, eu disse imediatamente para traze-la até minha sala. Fiquei surpresa. No nosso último encontro, você me apresentou seu noivo, então achei que já tivesse se casado. -Ela volta a sentar no outro lado da mesa, me olhando com tanta animação que me sinto constrangida.
Sinto meu rosto ficar gelado e minha pulsação começa a diminuir. Adoro Louise e também tenho muito respeito por ela, mas preferia muito que esse encontro não estivesse acontecendo agora.
É a segunda vez no dia que preciso falar sobre Joseph semanas antes de meu casamento. Isso não pode ser um bom sinal.
Rio de nervoso e agarro a xícara de expresso quente, para aliviar o gelo de minhas mãos.
-Então... É que, não é com Joseph que irei me casar.
O sorriso, tão evidente em sua expressão capaz de lhe acentuar as rugas ao redor dos olhos, morre em seus lábios, dando espaço para uma expressão mortificada.
-Oh meu Deus... Que indelicadeza da minha parte! Me desculpe, Millie. Eu não tinha como saber.
Balanço a cabeça, indicando que ela não precisa se preocupar. Provo do café e murmuro baixo sobre a borda da xícara.
-Vou me casar com Finn.
Os olhos amendoados de Louise ganham um brilho ainda mais dourado quando me escuta, porém seu rosto parece petrificado. Em total e absoluto choque.
-Finn? Finn Wolfhard? -Pergunta e a cada sílaba, o sorriso cresce mais em seu rosto.
Isso faz minhas bochechas voltarem a pegar fogo e também não contenho o sorriso involuntário que cruza meus lábios.
-Ele mesmo.
Espero seu grito animado, ou uma de suas reações um tanto exageradas, mas minha confirmação parece deixá-la confusa, até mesmo um pouco perdida.
Deixo a xícara sobre a mesa e explico melhor.
-Eu menti para você no dia que nos vimos na festa da Oxford. Você me perguntou se ele havia me procurado, ou se eu sabia de alguma coisa sobre ele. Finn não me procurou, mas nos encontramos. Eu o encontrei, na verdade. -Me enrolo, não querendo expôr toda a história. -Eu não contei para você porque ainda estava tudo muito confuso para mim. Você sabe... eu estava comprometida com outra pessoa.
-Sim, Millie, claro, não precisa se explicar. -Ela parece voltar ao presente e acho que fica muito claro, pelo tom de sua voz, que entendeu que houve uma traição de minha parte. -Só é... Meu deus.. difícil de acreditar. Foram muitos anos.
-Eu sei. As vezes nem eu mesma acredito. -Confesso, sentindo-me aliviada de não precisar contar como aconteceu. Finn certamente não gostaria que eu o fizesse. -As coisas foram muito complicadas no começo, mas estão bem agora. E iremos nos casar em algumas semanas.
O sorriso volta a rasgar seu rosto. E mais do que isso. Louise parece emocionada.
Não sei descrever o que sinto, mas gosto de ver alguém verdadeiramente feliz com Finn e eu juntos. Talvez porque poucas pessoas conhecem Finn em sua essência. Poucas pessoas não o julgam. Louise é uma delas. Sempre o apoiou. Sempre confiou nele. E lhe devo um grande agradecimento pelo dia em que o viu na rua e o levou até a escola. O levou para minha vida.
-Eu sempre soube que iria acontecer. Vi vocês dois crescendo, se tornando amigos e depois namorados. Esse tipo de coisa não morre tão rápido assim. -Ela se estica na poltrona, ainda exultante, um tanto aliviada também. -Mas me diga onde aquele garoto está que não está aqui te ajudando a escolher o local do casamento?
Eu rio, achando natural a forma como ela fala sobre Finn. Como se tempo nenhum tivesse passado.
-Na verdade, eu meio que tomei a iniciativa de cuidar de tudo sozinha. Finn tem se dedicado muito ao trabalho e não quero que perca o foco, mas ele está sempre se metendo quando possível.
É verdade. Por Finn, eu nunca passaria um segundo de minha vida sozinha e tem sido difícil para ele agora que estou desempregada e planejando nosso casamento, mas eu sei mais do que ninguém que ele jamais saberia lidar com essas coisas. Ou com minha mãe. Finn só quer se casar logo. Não importa quando, de que forma ou onde. Desde que termine comigo sendo sua esposa.
Louise me faz mais perguntas sobre ele, sendo o menos invasiva que pode, apenas dando voz a curiosidade. Eu falo sobre sua profissão, sobre o fato de que Finn não tem trabalhado com pinturas e também falo sobre sua família, porque aparentemente, ela lembra bem de Nicolle e Mary. Conto tudo o que posso sem entrar nos detalhes sensíveis da história e protegendo Finn a todo custo, embora com uma simples pesquisa na internet, ela possa saber sobre a época em que Finn esteve na cadeia.
-Então vocês dois seguiram praticamente o mesmo caminho. O oposto do que nasceram para fazer. -Ela comenta, girando um pouco na cadeira. -Finn largou a arte para trabalhar com informática e você largou a dança pela medicina. Não estou julgando, é claro. As duas profissões parecem bem mais seguras, só fico surpresa que vocês dois tenham se desviado igualmente.
Apesar de dizer que não está julgando, é dessa forma que sinto. Louise jamais largou a dança. Digo isso porque me lembro que falou na última vez que nos vimos que ainda trabalha dirigindo espetáculos, já que não se sente mais apta para ensinar, e pela discreta tatuagem de sapatilhas de balé que vejo desenhada em seu pulso.
-Eu estou tirando um ano sabático. Me afasteu do trabalho por um tempo e estou revendo minhas escolhas. -Por algum motivo, sinto necessário de dizer isso a ela.
Entendo o motivo, quando a vejo brilhar feito uma luz de natal e se aproximar da mesa.
-Voltar aos palcos está entre essa revisão de escolhas?
-Ah não. Não mesmo. -Digo enfática. -Estou velha demais para os palcos.
Ela semicerra os olhos na minha direção e balança a cabeça.
-Ainda consigo ver você fazendo isso, Millie. Você era a melhor aluna que eu tinha. Algumas das meninas tentaram carreira depois do colégio e progrediram, mas nenhuma delas tinha o talento natural que você tinha.
Sempre lidei muito bem com elogios. Não era a melhor atoa. Eu me esforçava muito. Era por isso que tinha fama de chata e as outras garotas me odiavam. Mesmo assim, os elogios de Louise mexem de uma forma estranha comigo. Como se meu subconsciente se recussse a aceitar suas doces palavras.
-Isso poderia ser verdade quando eu tinha quinze anos. Agora tenho vinte e seis e nunca mais coloquei uma sapatilha nos pés. Seria lucro se eu conseguisse performar um plié.
Tento faze-la rir, mas Louise continua bem séria me encarando. Ela se inclina sobre a mesa e alcança um maço de folhas de dentro da impressora e seus óculos de grau.
-Vamos fazer o seguinte. Te deixo casar no hotel sem me pagar nada pelo aluguel nem pelas estadias dos convidados nos quartos, se você aceitar dirigir meu último espetáculo ao meu lado.
Acho que não ouvi direito. Pelo menos não tudo. Forço uma tosse e pergunto.
-Como é?
-É exatamente isso. Te dou o espaço para sua festa totalmente de graça, desde que aceite ser minha parceira no espetáculo.
-Louise... O dinheiro não é a questão. Posso pagar pelo aluguel.
-Eu sei que pode. -Ela empurra os papéis, que vejo se tratarem de um contrato, até mim. -Mas estou facilitando as coisas para você e te devolvendo uma oportunidade. Não importa que você não seja mais a mesma de antes, ou que não se ache capaz de fazer isso. Eu acho que você é capaz e vai ser até divertido. Não vou te empurrar em cima do palco. Só quero uma visão jovem para o espetáculo e alguém que entende de dança tanto quanto você.
Diante de meu silêncio estarrecido, ela parece se arrepender da proposta e recolhe o contrato.
-Claro que não estou sendo tão literal assim. Quero que aceite casar aqui com ou sem minhas condições. Faço questão de ceder o espaço para você e Finn, mas gostaria muito que pensasse sobre minha proposta.
Não sei o que dizer. E não sei o que me preocupa mais. Se é achar isso uma loucura ou parte de mim achar que não. Um desejo, mesmo pequeno e assustador, ganha espaço em meu peito e me sinto ridícula de não conseguir controla-lo.
Coloco o cabelo para tras da orelha, me obrigando a dizer alguma coisa.
-Sua secretaria disse que a minha data estava ocupada.
-E está. Temos uma reserva, mas é apenas uma reserva. O casal deveria vir assinar o contrato semana passada, mas por coincidência ou não, estão bem atrasados. O que me dá o direito de passar para alguém mais interessado. E, novamente, faço questão que aceite. É meu presente de casamento.
-Eu não sei o que dizer, Louise... Quero muito me casar aqui, mas...
-Mas nada. Está decidido. -Ela pega uma caneta dentro da gaveta e novamente me empurra o contrato. -É apenas para registro. Você e Finn não pagam nada para mim.
Quero insistir em pagar. Realmente dinheiro não é problema, mas entendo o que Louise está fazendo e realmente não é sobre dinheiro.
Pego a caneta com a mão trêmula e rabisco minha assinatura em todas as páginas.
-Obrigada. Eu não posso dizer o quanto isso significa para mim. Finn não vai acreditar quando eu disser.
Louise levanta, com a intenção de me levar até a porta.
-O traga aqui antes da festa. Eu gostaria muito de vê-lo de novo.
-Você o verá, mas não aqui no escritório. Quero que esteja na nossa festa. Será nossa convidada de honra.
Eu a abraço e por um instante, sigo meu coração e murmuro em seu ouvido.
-E eu aceito sua proposta.
--
Minha mãe não está na calçada me esperando quando deixo o hotel, mas a vejo dentro de seu carro que deixamos estacionado na esquina.
Quando entro, me sentando no banco do carona e ansiosa para lhe contar tudo o que aconteceu, paro, ao me dar conta do quanto ela parece desolada.
Somos muito parecidas e há coisas que não conseguimos disfarçar quando choramos. A vermelhidão em nossa pele clara, a forma como parecemos sempre mais tristes do que realmente estamos e a teimosia em tentar disfarçar algo que é mais do que perceptível.
-Mãe... Você está bem? -Me forço a perguntar porque mesmo depois que entro, ela não parece me notar. Fica com o olhar perdido, encarando o para-brisa.
-Não estou. E ao mesmo tempo, eu estou ótima. -Diz ela em voz baixa e rouca. -Não é contraditório, querida?
Eu não queria tê-la deixado assim. Sabia que a verdade poderia perturba-la, mas jamais imaginei que fosse para tanto. Minha mãe parece de luto. De luto pelo sentimento que nutriu por Joseph como se fosse o filho que ela se recusou a ter.
-Não. Não é contraditório. -Eu respondo. A imitando ao olhar para frente. -Também fico mal quando lembro dessas coisas e então me sinto bem quando penso que me livrei antes do pior acontecer.
-Eu estava conversando com seu pai ao telefone até agora. De certa forma eu tinha certeza que ele já sabia disso que você me contou.
Não há mágoa em sua voz, mas sei que lá está se sentindo traída por dentro. Sempre odiou ser a última a saber das coisas.
-Mãe, eu não contei nada para ele. -Me viro para ela, mesmo não recebendo seu olhar de volta. -Ele ficou sabendo que Jason e Martha foram embora de Los Angeles porque Joseph tinha se metido em confusão. Ficou sabendo da medida protetiva que abri, então ligou os pontos. Ele sequer sabe os detalhes que falei para você.
Ela assente, mas é como se não me ouvisse completamente.
-Não estou chateada com você por isso, Millie. Não tenho nem o direito de estar. Imagino que teve suas razões para esconder isso de mim até agora, mas isso não é o mais importante. Diga-me, a única coisa que você fez foi pedir uma medida protetiva?
Eu estou tão feliz com o meu casamento, que definitivamente não quero parar de pensar nisso para me afundar nesse assunto que todos os dias quero enterrar dentro de mim, mas ela merece uma explicação. Uma que eu sei que não será o bastante.
-Eu não tive muitas opções, mãe.
-Como não, Millie? -Sua voz engrossa, cheia de raiva, embora não seja de mim, sinto um frio na barriga esquisito. -Você poderia ter processado. Ter tornado isso público. Se o seu pai e eu nãotrabalhamos para sermos influentes nessa sociedade de merda para termos voz em situações como estas, não sei porque foi que nos empenhamos tanto. Temos dinheiro o suficiente para processar até a última geração dos Robinson. E Martha, aquela víbora, pouco antes de eu saber que estava de mudança, ainda me procurou. Veio se despedir de mim provavelmente só para me sondar e ver se eu sabia de alguma coisa. Eu a abracei, Millie. Desejei boa viagem e ainda disse que a visitaria, enquanto ela me escondeu que aquele desgraçado machucou tanto você. Agora acho pouco a traição. Você deveria tê-lo humilhado mais. Sinceramente, espero que um dia Finn o encontre na rua e acabe com a raça daquele infeliz.
Não sei se fico mais surpresa ou com medo dela. Minha mãe é a última pessoa que gostaria de um escândalo em nossa família. Qualquer possibilidade de exposição negativa, foram os motivo de seus poucos cabelos brancos. A mulher aceitou a traição de meu pai apenas para não admitir que tinha falhado e perdido. Ficou presa em um casamento infeliz por anos para que ninguém soubesse que os Brown eram humanos e cheio de defeitos.
Essa não pode ser a mesma mulher que conheço a vida inteira.
-Não quero ter nenhum vínculo com Joseph. Mesmo que seja um processo. Nem sempre as pessoas pagam pelo que fazem em uma cadeia ou perdendo dinheiro. A vida se encarrega de dar o troco na hora certa.
Eu sei bem disso porque Finn é a prova viva. Ele não pagou por seus crimes indo preso, mas pagou de todas as outras formas possíveis. Ainda está pagando. E sendo recompensado na mesma medida.
Só que Joseph não merece nenhuma recompensa.
-Alguma outra vez ele chegou a te machucar? -Ela olha para mim pela primeira vez. Exigindo a verdade. -Alguma outra vez eu fui incapaz de perceber que você estava ao lado de um monstro?
-Se ele tivesse me mostrado qualquer sinal de que era descontrolado ou agressivo, eu não teria chegado tão longe. Eu garanto. -Digo a ela e toco sua mão, que está muito presa ao volante. -E pare de se culpar, mãe. Você não sabia de nada. Não tinha como saber.
Ela anui, com um assentir doloroso e também magoado.
-Uma mãe sempre se culpa, Millie. Mesmo que as vezes seja irracional pensar que poderíamos ter feito algo para evitar que nossos filhos fossem machucados. Achamos que é nossa obrigação adivinhar. Antevir a tragédia antes dela acontecer. -Ela solta o volante e agarra minha mão. Não sei exatamente de onde vem isso, mas de repente, sinto que é a primeira vez que minha mãe me enxerga de verdade. -Me desculpe ter forçado minhas expectativas sobre você por tanto tempo. Eu deveria ter deixado você mais livre para ser você mesma em vez de ter prendido suas escolhas. Também deveria ter feito isso com seu pai. Vocês são iguais. Você herdou dele muito mais do que apenas predisposição para diabetes.
Eu rio, em meio as lágrimas queimando meus olhos, mas não quero chorar. Não quero nunca mais chorar por qualquer coisa que não seja de felicidade.
-Você é uma boa mãe. Eu não teria me tornado boa em quase tudo o que me propus a fazer se você não tivesse me passado seu instinto de nunca desistir de nada.
Ela sorri, um pouco orgulhosa, mas não tão feliz.
-Não são as coisas mais importantes que uma mãe poderia ensinar a um filho. Um dia, quando você for mãe, vai ser uma melhor do que eu fui.
Suas palavras ecoam de forma estranha dentro de mim. Eu as sinto pesar em meu estômago e gelarem meu sangue. Tenho tentado não ser a pessoa neurótica que insiste em um pensamento inconsistente e até mesmo sem sentido, mas ultimamente, desde a consulta com a ginecologista, o pensamento de que há algo errado dentro de mim, não sai de minha cabeça.
-O que foi, Millie? -Ela pergunta, assustada com minha repentina apatia.
Sinto a necessidade de afastar nossas mãos e me sentar melhor no banco, mas algo me incomoda e descubro não ser o banco do carro, nem nossa conversa inteira. Talvez só o final dela.
-Você e o papai tiveram dificuldade para engravidar?
Ela estranha a pergunta, ficando de cenho franzido por um momento, mas isso jamais seria o bastante para que entendesse o que passa por minha cabeça.
-Não. Para falar a verdade, nós sempre nos demos bem até demais. -Sorri, alheia a centelha de pânico que instala em minha alma. -Tivemos você muito rápido, apesar de ter sido tudo planejado. E você sabe... Só queríamos ter um filho, então eu fiz a cirurgia e ainda assim, naquela época, eu engravidei novamente.
Sim. E abortou.
Por um segundo, o pensamento ridículo de que eu possa de alguma forma estar pagando por seu erro me passa pela cabeça, mas não pode ser real.
Eu não engravidei por causa do efeito, ainda que deteriorado, do diu. É o que tenho de dizer constantemente para mim mesma.
- Por que fez essa pergunta, Millie? -Ela pergunta, ligando o carro.
Não cogito a possibilidade de lhe contar sobre minhas recentes desconfianças, apesar de achar que ela seria uma das pessoas que me convenceriam de que estou sendo boba e exagerada. Não consigo. É íntimo demais. E assustador.
Só contei para Finn porque não podia esconder dele que estou sem proteção e porque meu futuro marido me conhece melhor do que qualquer pessoa do mundo e saberia se eu o escondesse qualquer coisa. Mas duvido que Finn sequer tenha compreendido.
No final, sou a única capaz de entender.
-Por nada. Só achei que nunca tinha perguntado isso antes. -Digo, dando de ombros e colocando o cinto.
-Eu esqueci de perguntar. Deu certo alugar o hotel?
Volto a sorrir. E tudo magicamente parece bem outra vez.
-Sim.
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