- Seokjin POV -
- Você tem certeza que seus pais não vão me expulsar assim que colocar os pés na casa, nem atirar algum vaso caro de uma dinastia chinesa na minha cabeça? – perguntou Namjoon, pela milésima vez, assim que estacionou a picape na frente da mansão Kim, grande e imponente como sempre.
- Tenho. Minha mãe nunca desperdiçaria seu preciosíssimo vaso da dinastia Ming com você. – assegurei-lhe, dando-lhe tapinhas reconfortantes no joelho, sem tirar os olhos da propriedade. Cinco anos. Faziam cinco anos que eu não retornava pra casa, mas ela permanecera exatamente a mesma que me lembrava.
Desde que Namjoon recebera a ligação de Jiho com as notícias de que muito em breve teríamos a polícia em nossas portas, nos ocupamos em bolar um plano e pensar numa maneira de sumir por um tempo, sem realmente desaparecer por completo. Ainda que, segundo o detetive responsável pelo caso, seu único objetivo fosse chegar até Bang Yongguk, não podíamos negar que o estacionamento era um ponto de atividades ilegais, um verdadeiro paraíso de evidências para a polícia. Não queríamos e nem iríamos arriscar tudo o que construímos à base de muito suor e sangue, então nossa primeira estratégia foi dispensar todo mundo, desmontar o laboratório e destruir qualquer prova de prática ilegal que pudesse ser usada contra nós, e nos esconder até que tudo estivesse bem de novo. A única questão restante era: nos esconder onde?
A gente precisava sair da cidade, isso era certo; mas precisávamos ficar perto o bastante para voltar correndo caso algo desse errado. Não tínhamos nenhum conhecido fora de Seoul pra nos abrigar por alguns dias, e a antiga casa de Namjoonie era simplesmente inviável. Nunca pensei que pudesse um dia dizer isso, mas quando recebi uma ligação de meu pai com um convite para voltar pra casa, onde ele daria um importante jantar em família para fazer algum anúncio que não foi muito claro em explicar nem eu curioso o bastante para questioná-lo, o que senti foi alívio.
Digo que o alívio foi inesperado pois, assim que me mudei para o apartamento em Gangnam que costumava ser usado por meu pai nas frequentes viagens de negócios na cidade grande, cinco anos atrás, jurei pra mim mesmo que nunca mais voltaria. Não que fizesse diferença, pois meus pais também nunca fizeram questão de me visitar nesse período. Eu sabia que a distância não era o problema, já que era apenas uma hora de viagem, mas mesmo assim passei cinco anos sem ver os rostos da minha família. E também não dava a mínima pra isso, se estivesse sendo sincero. Até era grato pelo descaso e falta de amor incondicional que eles apresentavam. Quanto menos soubessem do modo como realmente levava minha vida em Seoul, melhor.
Entretanto, nós precisávamos de um lugar pra ficar. Um lugar fora da cidade, mas perto o bastante para retornar com pressa, caso fosse necessário. Um lugar onde ninguém nos encontraria. Um lugar seguro. Foram esses motivos que me fizeram aceitar a oferta de passar alguns dias na mansão dos Kim; apenas esses e mais nenhum outro, era o que gostava de dizer à mim mesmo enquanto arrumava as malas. Eu não sentia falta da minha família, não precisava deles. Ok, talvez sentisse falta das minhas noonas e da vovó, mas a lista parava por aí. Despedir-me de Jjanggu e Rapmon era a tarefa mais difícil de todas, eu tinha certeza, mas sabia também que Wheein cuidaria bem dos meus filhotes enquanto estivesse fora. Agora não havia mais nada que me fizesse repensar minhas escolhas e desistir de ir. Agora era hora de criar coragem e enfrentar meus medos como um homem.
Enfrentar meus medos, além da deleitosa conveniência, era justamente o que me trazia até aqui. Precisava livrar-me desse medo que tinha de ir contra a palavra e os desejos do meu pai e avô, e mostrar para ambos que só por ser o único filho homem da casa eu não aceitaria ser apenas uma marionete em suas mãos. Mas agora que via a propriedade em toda sua grandiosidade e glória diante de mim, lembrando-me da cruel realidade, toda aquela coragem inicial se esvaíra. O que eu diria pra minha mãe depois de cinco anos sem vê-la? “Olá, quanto tempo”? Isso me soava tão errado, mas ao mesmo tempo não conseguia pensar em nenhuma alternativa melhor. Eu estava fodido, definitivamente.
Como se pressentisse meu nervosismo, Namjoon tocou minha nuca e começou a fazer um leve carinho ali, seus dedos longos perdidos entre meus fios negros. O contato imediatamente derretou toda a tensão em meus ombros, e se seu sorriso não fosse tão bonito e reconfortante, como se me disse “estou aqui pra você, não importa o que aconteça”, eu teria tido forças para achar esse fato ultrajante. Pegando sua mão na minha, dei-lhe um breve beijo nas juntas e apertei-a ligeiramente, tirando de si a força que precisaria para o que estava prestes a fazer; prestes a enfrentar. Ao meu sinal, Namjoon ligou novamente o motor do carro e manobrou para então colocar a picape na entrada de carros da mansão, parando para que abrissem o portão de ferro fundido e lhe garantissem passagem.
O guarda responsável pela guarita aproximou-se com cautela, inspecionando o veículo com olhos suspeitos. Não o culpava por isso, afinal o pobre homem estava acostumado a ver carros esportivos e conversíveis, todos com cores vibrantes, ao contrário da picape de Namjoon que, apesar de ser bem bonita e moderna, tivera uma jornada bastante difícil nas mãos do dono; além disso, era toda escura, até os vidros. Com os mesmos fechados, ele não fora capaz de reconhecer quem exatamente estava dentro do carro, sem dúvida elevando suas suspeitas ao cubo.
- Olá, ahjussi. Lembra de mim? – perguntei casualmente com um sorriso ao abaixar o vidro do lado do carona. Eu só esperava que meu sorriso fosse sincero o bastante e não demonstrasse o terror que sentia no momento.
- Jovem mestre! – exclamou uma vez que seus olhos cansados pousaram-se sobre mim, arregalando-se em reconhecimento. Tive que controlar minha expressão para não deixar a careta de dor transparecer em meu rosto diante do tratamento. Eu esperava nunca mais ser chamado assim novamente. – É mesmo você, não é? O senhor Jinki não me avisou nada sobre a visita do jovem Seokjin! Há quanto tempo, não é mesmo? Como está?
- Estou bem, ahjussi. Obrigado. – respondi de forma cortês, certificando-me de que o sorriso ainda estava devidamente plantado em meus lábios e minha expressa era mantida impassível. Fui até além disso, curvando-me gentilmente no banco do carro num sinal de extremo respeito. – Mas eu gostaria de entrar agora. Será que poderia abrir o portão para nós?
- Oh, mas é claro! Que cabeça a minha. – o pobre homem ria nervoso, afastando-se do carro e dando sinal para um segundo guarda dentro da guarita abrir os portões automáticos. Fiz uma nota mental para redimir minha grosseria e perguntar-lhe sobre sua filha e netinha depois, mas agora estava ocupado demais apenas em tentar manter uma cara neutra e não hiperventilar.
Uma vez que o portão estava liberado, Namjoon conduziu o carro por um extenso caminho pavimentado rodeado de árvores frondosas e jardins floridos até chegar à um pátio frontal com uma fonte de água corrente no centro, que por sinal eu simplesmente abominava. O caminho era planejado de forma tal que os carros precisavam contornar dita fonte para então dirigir-se à garagem, uma edificação própria e separada do resto do corpo da casa que suportava nada menos do que doze veículos lado a lado. Até agora eu podia ver cinco, o que significava que minhas noonas já haviam chegado antes de mim.
A casa em si era monstruosa – daí o apelido de “mansão Kim” –, com quartos suficientes pra abrigar um batalhão inteiro. Eu poderia até me perder lá dentro, se não a conhecesse como a palma da minha mão. Além da casa, onde ficavam os quartos principais e de hóspedes, cinco salas variadas com propósitos específicos, o escritório de meu pai, cozinha, adega e mais banheiros do que posso contar, havia também uma segunda edificação, menor, onde moravam os empregados. E não parava por aí: a mansão também contava com piscina, área de lazer, uma quadra de tênis construída por puro capricho do meu pai mas que só eu e minhas irmãs usávamos em dias claros de verão e ainda mais jardins espalhados pela propriedade. Todo o conjunto apresentava um estilo europeu, tanto na sua arquitetura quanto no paisagismo; colunatas esbeltas e janelas altas, cores claras e monótonas, plantas que nunca seriam capazes de sobreviver nesse ambiente se não fosse pelos cuidados dos jardineiros que minha mãe contratava. Era tudo muito estrangeiro pro meu gosto, uma casa que exalava ostentação e dinheiro. Eu simplesmente a odiava.
Quando saímos do carro fomos saudados pelo mordomo que, ao fazer uma perfeita reverência de noventa graus, nos pediu encarecidamente que o acompanhasse enquanto deixávamos que os outros empregados se encarregariam de levar nossa bagagem para dentro. Namjoon não parecia muito confortável com a ideia, certamente estranhando todo esse comportamento pomposo que eu infelizmente já estava mais do que acostumado. Nós já havíamos conversado muito sobre minha vida antes de conhecê-lo, e o mais novo estava cansado de saber o quanto eu detestava aquela vida, mas acho que presenciar tudo em primeira mão era bem diferente do que apenas imaginar como seria a partir dos meus relatos nada imparciais.
O mordomo então nos conduziu para a área de jantar externa, uma extensão dos fundos da casa que era coberta mas não tinha paredes, ao invés sendo rodeada pelo mais belo jardim. Meus passos falharam e meu coração quase parou dentro do peito quando vi a figura austera de meu pai sentado à cabeceira da mesa, com o restante dos meus familiares dispostos ao seu redor e a comida posta diante de si. A única coisa que me motivou a continuar andando foi o sorriso terno que minha vó abriu ao me ver.
- O jovem mestre chegou. – anunciou o mordomo ao, mais uma vez, fazer uma reverência perfeita antes de se retirar. Com um sentimento estranho roendo meu peito, notei que gostaria de poder me retirar com ele.
- Seokjinie, nós não esperávamos companhia. Quem é seu amigo? – minha mãe foi a primeira a quebrar o silêncio, naquela sua voz muito bem treinada que demonstrava uma educação impecável, mas seus olhos estavam cheios de julgamento ao passearem pela silhueta alta e esbelta de Namjoon e inspecionarem seu senso de moda: tudo preto, como sempre.
- Este é Kim Namjoon. Ele é meu namorado. – anunciei com a voz firme e casual, como se estivesse a informar-lhe as horas, criando uma coragem que não sabia existir dentro de mim.
Imediatamente um silêncio tenso e desconfortável instalou-se sobre a mesa, todos os olhares incrédulos e embasbacados virados para mim – inclusive o de Namjoon. Não foi isso que combinamos, era o que seus olhos desesperados gritavam para mim. Minha única resposta foi um encolher de ombros e um pequeno sorriso apologético. Não havia mais volta; o que estava feito, estava feito.
- Ele é fofo. Gostei dele. – Yujin, a mais nova das três irmãs e segunda mais nova se contasse comigo, pronunciou-se. Não pude deixar de retribuir seu sorriso; sempre fui mais próximo dela, não apenas pela proximidade de nossas idades, mas também porque nós dois nos entendíamos. Veja bem, nossa família era quase toda composta por médicos, mas Yujin, como o espírito livre que era, resolveu trilhar seu próprio caminho na medicina. Agora era voluntária em diversas campanhas humanitárias, sempre viajando ao redor do mundo, para lugares onde mais precisavam dos cuidados dela. Se não me engano, sua última viagem fora pra África – ela devia ter acabado de voltar. Talvez a única parte boa de ter aceitado esse maldito convite foi ter a oportunidade de rever minha irmã favorita – eu sentia tremendamente sua falta.
- Sente-se, Seokjin. Vamos comer. – ordenou meu pai com a voz controlada, pigarreando para chamar nossa atenção, porém não servindo de nada para dissipar o clima estranho. A tensão era tanta que sentia que podia cortá-la com um faca. Sem mais uma palavra, acomodei-me no lugar vago ao lado de Yujin e deixei que Namjoon ocupasse o lugar à minha esquerda, mais próximo de onde deveria estar sentado meu avô. Entretanto, a cabeceira oposta à de meu pai estava vazia.
- Onde está o vovô? – dirigi a pergunta à minha vó, genuinamente confuso. Se aconteceu alguma coisa, ninguém se deu ao trabalho de me avisar nada.
- Oh querido, ele não está muito bem. Está no hospital agora, se recuperando de uma cirurgia no coração. Não te falei nada antes porque não queria te preocupar, sei que sua faculdade deve lhe tomar muito tempo. – respondeu a mais velha de seu lugar que ocupava diretamente à frente de Namjoon, lançando-me um leve sorriso que não alcançava seus olhos.
Não sabia muito bem como reagir diante daquelas notícias; eu nunca gostei muito de meu avô, pois ele era uma pessoa ainda mais disciplinada e intolerável do que meu pai, mas não podia deixar de sentir por um ente querido. Minha vó certamente perdera um pouco do brilho que tinha nos olhos há cinco anos atrás, e por um momento eu quis questioná-la, enchê-la de perguntas sobre o estado do meu avô, gritar com todos ali presentes e exigir o porquê de ninguém ter me contado nada. Mas fui interrompido antes que pudesse abrir a boca e fazer um escândalo vergonhoso, graças ao doce anjo que era a irmã do meio.
- Falando nisso, como vai a faculdade? Falta pouco tempo pra se formar, não? – indagou Soojin, com sua voz melodiosa e sorriso encantador. Ela era a única das três irmãs que já era casada e tinha um filho de apenas quatro anos, o pequeno Junseo, mesmo sendo a segunda mais velha de nós quatro e apenas seis anos mais velha do que eu. Tanto seu marido quanto seu filho acompanhavam-na, o trio formando o retrato da família ideal espremidos entre minha mãe e vó: pais bonitos e bebê adorável. Soojin trabalhava na ala de pediatria no hospital onde tanto meu pai quanto meu avô antes dele costumavam trabalhar, mas ouvi falar que após o parto ela havia tirado licença para se dedicar ao papel de mãe em tempo integral.
- Sim, falta só um ano. – faltaria só um ano se não tivesse trancado a faculdade, era o que tinha em mente, mas decidi manter isso apenas pra mim. – Estou adorando o curso, minhas notas não poderiam ser melhores. Estamos no meio do recesso de verão agora, por isso essa reunião de família veio numa hora bastante conveniente. – comentei, dirigindo o sorriso ao meu pai. Às vezes me perguntava como conseguia mentir tão descaradamente na frente das pessoas. Talvez fosse um dom. Se tivesse que adivinhar, diria que puxei esse traço da minha mãe. – Já que tocamos no assunto, sobre o que se trata esse jantar tão urgente, papai?
- Sinto que a resposta pra essa pergunta vai ter que esperar até amanhã à noite, Seokjin. Preciso de todos presentes para fazer o anúncio. – respondeu sem me dirigir o olhar, numa voz monótona que indicava descontentamento. Fiquei me perguntando quem mais faltava aparecer; que eu saiba, todos os membros mais importantes da família já estavam presentes. A não ser que ele não estivesse contando apenas com familiares. Por alguma razão, eu sabia que no fundo essa “reunião de família” era apenas um pretexto para um encontro de negócios.
Como era de conhecimento geral na cidade, a família Kim era uma família de médicos. Meu avô era um cirurgião muito competente e famoso no melhor hospital de Seoul, capaz de realizar com sucesso cirurgias consideradas impossíveis. Sempre fora um homem trabalhador – até viciado em trabalho, eu diria –, por isso logo a vida estável de cirurgião não era mais suficiente para si; um belo dia, por obra do destino, acabou tendo uma ideia que mudaria por completo a vida da família Kim. Uma vez um de seus pacientes necessitava de um exame específico, obtido através de um equipamento mais específico ainda que na época não era encontrado na Coreia. Foi aí que surgiu a empresa: meu avô decidiu erguer do zero uma companhia que seria responsável por fabricar e revender aparelhos e equipamentos médicos. Muito em breve o nome Kim Dongwook era conhecido no país inteiro, pelo menos no ramo da medicina. Como acabara tomando gosto pelos negócios, mesmo depois de se aposentar da carreira de cirurgião ele continuou na presidência da empresa, e para mim isso se mantinha até os dias de hoje.
Porém, agora que descobrira que meu avô estava no hospital e obviamente impossibilitado de trabalhar, me perguntava quem ocupava o cargo da presidência. A resposta mais óbvia era seu filho mais velho – que também calhava de ser meu pai – Jinki, já que seu segundo filho recusara-se a seguir os passos do pai e mudara-se para outra cidade com a esposa, causando grande desgosto no chefe da família. Pra falar a verdade, me surpreendia o fato de meu pai não ter pego o cargo antes, pois a grande maioria diria que meu avô, com seus quase noventa anos, deveria aproveitar o tempo que lhe restava pra relaxar e deixar que os filhos cuidassem dos negócios; seria uma ótima ideia, se ao menos ele soubesse como relaxar. Foi necessário uma cirurgia no coração e internação no hospital para tirar o velho de sua cadeira presidencial no último andar do arranha-céu da corporação Kim.
- Oh, é mesmo? Esse anúncio está começando a me deixar inquieto. – brinquei, tentando manter o sorriso no rosto e a leveza no tom de voz. A última coisa que precisava era que meu pai percebesse que de fato eu tremia nas bases.
- Não precisa, irmãozinho. Tenho certeza que não é nada para se preocupar. – foi a vez da mais velha de minha irmãs, Hyojin, intervir. Hyojin era a única das três que não era toda sorrisos e palavras gentis, puxando mais ao lado paterno em suas expressões sérias e no foque profissional que sempre teve, desde nova. Apesar de aproximar-se de seus trinta e cinco anos, não era casada e muito menos tinha filhos, preferindo dedicar-se exclusivamente à carreira de neurocirurgiã que tinha em Tóquio. Ela também tinha um pequeno cargo na administração da empresa, o tipo de cargo não-essencial que só exigia que ela comparecesse nas reuniões mensais com o resto do conselho. Em todos os meus anos crescendo ao seu lado, sempre a tive como um exemplo a ser seguido, mas são poucas as lembranças que tenho da mais velha demonstrando qualquer tipo de afeto por mim ou por qualquer uma das irmãs. Isso não significava que ela não nutria o amor fraterno que nos unia, só não sabia muito bem como lidar com sentimentos em geral.
Com a ajuda de minha mãe, louca para desviar o foco do assunto, o almoço prosseguiu com tranquilidade, acompanhado de diversas conversas paralelas, leves e descontraídas; a maioria ali não se via há algum tempo, sempre ocupados com suas respectivas carreiras e famílias. Agora era hora de colocar o papo e as fofocas mais recentes em dia, narrar suas viagens e aventuras, descrevendo os lugares pelos quais passaram e, no caso de Namjoon, tentar não morrer de vergonha enquanto tinha três mulheres curiosas lhe enchendo de perguntas: Yujin, Soojin e minha vó. Não pude deixar de sentir um estranho sentimento de orgulho ao vê-lo esquivar-se com habilidade e graça das perguntas mais capciosas, como por exemplo, o que ele fazia da vida.
Para qualquer um que perguntasse, Namjoon estava agora tirando um tempo para descobrir seus limites e potencialidades enquanto não encontrava um lugar para si no meio dessa selva sem lei que a sociedade gostava de chamar mercado de trabalho.
- Seokjin, venha para o meu escritório. Eu gostaria de ter uma conversa com você. – o tom ríspido de meu pai chamou-me a atenção uma vez que o almoço tinha acabado e a mesa estava sendo tirada pelos empregados, retirando-se da mesma sem esperar uma resposta e causando-me tremenda confusão. O que diabos o mais velho poderia querer falar comigo? O punho de ferro que senti em meu coração denunciava que ele sabia o que viria a seguir, mesmo que meu cérebro ainda não tivesse o acompanhado, e o modo como Namjoon apertou meu joelho protetoramente por baixo da mesa dizia que ele também tinha um forte palpite.
Apertei a mão de Namjoon na minha de uma forma que esperava trazer-lhe segurança, lançando um breve sorriso apologético em sua direção por ter que deixá-lo sozinho com as três inxeridas. Enquanto ia atrás de meu pai com o menor indício de pressa, pude ouvir Yujin dirigir-lhe a palavra atrás de mim, sempre aquela que se esforçava ao máximo para fazer com que os convidados se sentissem em casa. – Venha, vamos conversar mais nos jardins. Está um belíssimo dia hoje, não acha? Seria uma pena não aproveitá-lo.
Meu pai já estava dentro do escritório quando finalmente alcancei meu destino, as pesadas portas de mogno entreabertas num claro convite. Quando entrei, encontrei-o de costas pra mim, olhando a paisagem através da enorme janela que ocupava a parede oposta à entrada, copo de uísque na mão. Agora que eu parara pra lhe observar propriamente, o homem parecia muito mais velho e cansado do que me recordava. Havia uma certa fragilidade em seus ombros caídos e cabelos grisalhos, algo que nunca antes associaria com alguém poderoso como meu pai. Era como encarar o monstro que protagonizava seus piores pesadelos quando criança e perceber que ele não era tão assustador assim, afinal. – Feche a porta, por favor. – pediu quando decidira que o silêncio havia se esticado por tempo demais, demonstrando notar minha presença assim que pusera os pés no carpete caro do escritório.
Fiz como pedido e, sem saber como iniciar o assunto, aguardei pacientemente até que ele finalmente falasse o que tinha pra me falar. Essa era uma das coisas que mais me irritavam e, ao mesmo tempo, amedontravam nele: eu nunca poderia saber o que estava passando em sua mente, pois suas palavras sempre foram friamente calculadas, muito bem pensadas e escolhidas, e seu silêncio indecifrável. Esperei pelo que pareceu ser metade de uma eternidade até que o outro finalmente virou-se em minha direção, sustentando meu olhar com uma certa familiaridade na forma com que o fazia. Seu rosto não tinha expressão alguma, mas seus olhos tinham uma chama por trás que era impossível de esconder; um claro sinal de que ele estava puto, e alguém iria pagar por isso.
Observei meu pai dirigir-se até o bar que tinha no escritório como se tivesse todo o tempo do mundo, passos comedidos e elegantes como sempre, pousar o copo de bebida no balcão e só então virar-se para mim mais uma vez, ombros tensos como se quisesse parecer maior e me intimidar de certa forma. Todo aquele suspense me fazia querer gritar e arrancar os fios de cabelo da cabeça um por um, mas me contentei em apenas fitá-lo sem proferir uma palavra, mãos escondidas atrás das costas numa postura respeitosa que aprendera a usar em sua presença desde criança. O punho de ferro que antes apertava meu peito decidiu arrumar um irmão gêmeo, este que agora fizera sua casa no fundo do meu estômago. Algo estava prestes a dar muito errado, e logo.
- O que diabos estava pensando, Seokjin? Ficou louco de vez? – aí está, pensei, o tom de voz que estou acostumado a ouvir. Finalmente o outro decidira acabar com meu sofrimento e atacar-me de vez, ainda que me decepcionasse ao não ir direto ao ponto, num golpe certeiro.
- Louco? Por que estaria? – retruquei, fingindo não saber exatamente sobre o que se tratava a conversa. Toda essa privacidade, esse suspense, esse olhar que era capaz de matar um homem; tudo isso só poderia ter um motivo, o qual estava agora apreciando a beleza dos jardins com minhas irmãs.
- Não se faça de tolo, não combina com você. – cuspiu, a raiva cada vez mais evidente em sua fala. – “Namorado”? E ainda tem coragem de trazê-lo até minha casa? Você quer desgraçar todos nós?
- Sinto muito, mas não consigo ver a lógica na sua linha de raciocínio, papai. – desculpei-me, quase batendo os cílios em falsa inocência. Se havia uma coisa em que era bom de verdade, era rebater argumentos numa discussão da forma mais sarcástica que podia. – De que modo apresentar meu namorado à vocês traria desgraça pra vida de qualquer um nessa família?
- Não me teste, garoto. Estou lhe avisando. – anunciou, sua voz quase um rosnado enquanto me encarava com olhos frios. – Não sei onde aprendeu a desrespeitar os mais velhos desse jeito. É isso o que andam ensinando na universidade? A educação desse país está indo para o lixo, se for o caso. Na minha época certamente não era assim.
Não consegui conter um risinho debochado ao ouvir suas palavras, tendo que esconder o sorriso atrás da palma. Era tão bom ouvi-lo se contradizer; antes de me enxotar pra fora de casa, a Universidade Nacional de Seoul era a melhor universidade do mundo aos seus olhos, a única capaz de fornecer a educação necessária para formar os melhores médicos desse país. Agora, o discurso parecia ser outro. – Ah, não. Na universidade eles continuam ensinando medicina, não se preocupe. Entretanto, compreensão e respeito às escolhas pessoais do próximo não são coisas que se aprendem em sala de aula, infelizmente.
Agora foi a vez de meu pai rir, curto e seco, incrédulo. – Você é inacreditável, Seokjin. Respeito às escolhas pessoais do próximo, você diz. É isso o que chama de escolha pessoal? Viver na libertinagem, praticar sodomia, tornar-se uma verdadeira abominação da natureza. É isso o que quer pra sua vida? – sua fala pingava veneno, cada palavra servindo como um punhal no meu coração. Mas ele não parecia satisfeito, pois nem esperou uma resposta minha antes de continuar. – Se ao menos eu soubesse o tamanho da decepção e desgosto que traria pra essa família, não teria te enviado pra faculdade, muito menos passado o apartamento em Gangnam para seu nome. Devia era ter te mandado para o exército, aí sim você aprenderia o que é ser um homem de verdade.
- E o senhor é realmente tão ingênuo a ponto de achar que isso teria mudado alguma coisa? – indaguei, o tom de voz rouco e elevado, sentindo meus olhos arderem com o esforço necessário para segurar as lágrimas e não demonstrar fraqueza. Não na frente dele, Kim Seokjin. Homens não choram. – Eu continuaria sendo a mesma pessoa que sou, não importa para onde você me expulse. Seja pra universidade, pro exército, pro internato na Europa ou qualquer outro lugar. Esse que está na sua frente agora é quem eu sempre fui e sempre serei. Me dói o senhor não ser capaz de enxergar isso, appa. Mas sinto que terá que aprender a viver tendo uma aberração como filho.
Apenas o fato de ter conseguido engolir o choro e impedir as lágrimas de caírem quentes pelas bochechas antes de sair rudemente do escritório já era por si só um motivo de orgulho. Retirei-me do ambiente sem ao menos esperar uma resposta, tanto por não conseguir esconder o quanto o mais velho ainda me afetava, quanto minha falta de estômago pra ouvir aquelas palavras cheias de veneno e ódio sem cabimento. Meu pai nunca me compreenderia, muito menos faria um esforço para tal, eu já havia feito as pazes com essa ideia muito antes de sair de casa. Sempre que lhe dava problemas, que levantava suspeitas, eu era mandado para algum lugar distante, longe de sua vista e de fofocas fúteis. Cheguei a passar alguns anos do fundamental estudando num internato católico na França, os piores anos da minha vida, mas mal sabia ele que de nada serviram para mudar quem realmente sou: alguém capaz de amar o próximo independente de gênero e forma física. Eu me apaixonava por sua alma. E Namjoon tinha a alma mais bela que já vira.
Apesar de já terem se passado cinco longos anos, meus pés pareciam saber exatamente onde me levar. Após intermináveis corredores rodeados por quartos e mais quartos, finalmente cheguei à familiar sacada conectada a uma das salas íntimas que ficavam no pavimento superior por uma grandiosa porta de vidro e que dava vista para a parte de trás da propriedade, para a quadra de tênis e jardins bem cuidados. Porém, não era apenas pela vista que estava ali; da sacada eu podia passar por cima da balaustrada que a cercava e, com o devido cuidado para não cair, alcançar o telhado ao lado que cobria a área de jantar externa, onde tivemos nosso delicioso e ilusório almoço em família. Aquele sempre fora o meu lugar preferido na casa inteira, um lugar onde poderia simplesmente desaparecer e deixar que meus pensamentos se organizassem sozinhos. Um lugar parcialmente ocultado pela copa de uma árvore que parecia estrategicamente plantada para que pudesse ver sem ser visto, a não ser que soubessem exatamente o que procurar.
- Sabia que te encontraria aqui. – ouvi a voz suave de Yujin dizer atrás de mim. Enxuguei as lágrimas com as costas das mãos apressadamente, virando-me a tempo de vê-la repetir o mesmo processo perigoso que fiz minutos atrás com facilidade a fim de juntar-se à mim no telhado. – Não chore, Seokie. Você sabe que fica horrível quando chora, e nós não queremos isso, queremos? – brincou, envolvendo meus ombros num meio abraço cheio de conforto, tirando de mim um som que estava perdido entre o riso e o soluço. Como sentia falta dessa conexão psíquica que tínhamos um com o outro; Yujin sempre sabia o que dizer, não importava a situação.
- Tem razão, Yu-noona. Eu sou muito bonito pra chorar vergonhosamente desse jeito. – concordei, apenas parcialmente brincando enquanto fungava o nariz.
- O mais bonito. Sabe, – começou, puxando-me delicadamente para descansar a cabeça em seu colo enquanto brincava com meus cabelos. – eu costumava dizer que era a flor mais bonita dessa família até você nascer. A partir do momento que te vi, o bebê mais adorável que já tinha posto os olhos, sabia que tinha perdido meu posto. – sua voz era recheada de ternura enquanto relembrava suas memórias de quando tinha apenas três anos de idade, uma mera criança. – Você é precioso demais pra esse mundo, Seokie. Sua alma é a mais bonita, mas também a mais frágil. Não deixe que palavras incitadas pelo ódio e ignorância a machuquem.
Suas palavras acarretaram uma nova onda de lágrimas silenciosas, que rolavam desimpedidas e aterrissavam no tecido leve de sua calça, manchando-o. Como era possível que pudesse receber mais amor e conforto da mais nova de minhas noonas do que de meus próprios pais? Como era possível que ela servisse mais como uma figura materna do que minha própria mãe? Eu não sabia o que dizer, não sabia como agradecê-la o suficiente. Mas sabia que ela entenderia, que leria as palavras escondidas por trás do leve aperto que dei em seu joelho enquanto afundava o rosto em sua coxa e me permitia aproveitar o carinho do cafuné em meus cabelos e dos padrões aleatórios que desenhava em minhas costas com a mão livre. Obrigado. Eu te amo.
- Namjoonie também é uma ótima pessoa, não é? Estive conversando com ele. Sua forma de pensar é fascinante. – comentou casualmente depois do que pareceu uma eternidade de silêncio contemplativo, despertando-me da corrente de tristeza e auto piedade que havia mergulhado. Com a menção de seu nome, procurei pelo mais novo como se quisesse me agarrar à uma âncora, qualquer coisa para me manter são e sorrindo. Encontrei-o nos jardins, ostentanto o sorriso mais brilhante que vira adornar seus lábios durante meses enquanto brincava com o pequeno Junseo, assistidos de perto por Soojin e seu marido, ambos com nada além de afeto no olhar.
- Sim, ele é. – concordei, sorrindo apesar das lágrimas, deixando que o eco das risadas infantis e gostosas do meu sobrinho inundassem meu coração de amor. Namjoon daria um ótimo pai, pensei comigo mesmo. Juntamente com tal realização, veio o sentimento de culpa e raiva que serviam de combustível para minhas lágrimas. Para que se tornasse pai, o mais novo precisaria de uma esposa, uma mulher capaz lhe dar algo que eu jamais poderia. Ele precisaria de um relacionamento puro, saudável, natural, um que seguisse as regras da sociedade. Uma sociedade injusta que era tão avançada em determinados assuntos mas tão arcaica e antiquada em outros, incapaz de acompanhar o progresso que era feito ao redor do mundo.
Às vezes me pegava sonhando acordado, com o dia que fugiríamos para algum lugar remoto e construiríamos uma vida juntos – uma família. Um lugar onde não precisaríamos nos esconder atrás de máscaras, onde não haveriam regras e restrições a seguir e obedecer, onde não nos julgariam por ser quem realmente somos. Um lugar onde poderia colocar um anel em seu dedo e chamá-lo publicamente de meu. Meu companheiro, meu amante, meu esposo. Minha vida.
Eu só gostaria de saber distinguir onde os sonhos terminavam e começavam as ilusões.
O resto do dia passou num piscar de olhos, rápido demais para que pudesse processar. Yujin fez-me companhia no telhado até que eu finalmente parasse de chorar, enrolando mais um pouco para que meu rosto desinchasse e perdesse a vermelhidão que me denunciava – Você gostaria que Namjoonie visse essa sua cara horrenda de choro? Eu acho que não –, acompanhando-me até onde todos estavam reunidos para o jantar. Namjoon parecia preocupado ao me ver, lançando-me olhares furtivos a cada segundo, perguntando-me de forma silenciosa o que diabos tinha acontecido. Quando balancei a cabeça negativamente, de maneira quase imperceptível, tudo que o outro fez foi pegar minha mão sob a mesa como fizera mais cedo e entrelaçar nossos dedos, mantendo-os assim por toda a duração do jantar.
Após a refeição migramos todos para uma das salas próximas à sala de jantar, com a excessão de minha vó que declarara que sua idade avançada não a deixava aproveitar a noite como antigamente, retirando-se mais cedo para dormir acompanhada do pequeno Junseo, já adormecido no colo de uma das empregadas. Quase fui com eles, pois estava sem a menor paciência para conversas triviais e indagações feitas com falso interesse, mas a presença sólida de Namjoon ao meu lado no sofá de couro me convenceu a ficar e suportar a tortura. Se o tivesse comigo, poderia facilmente ignorar todos os olhares piedosos, curiosos, enojados e odiosos que eram lançados em nossa direção.
Infelizmente a noite não passara tão rápido quanto o dia, mas quando finalmente pudemos nos retirar para o quarto eu me sentia tanto fisicamente quanto emocionalmente esgotado. Tão exausto que nem tive forças para dispensar o mordomo que nos guiava pelos corredores, mesmo que conhecesse de cor o caminho para meu antigo quarto. Quando chegamos à familiar porta de madeira maciça pintada na cor creme, retribui seu desejo de boa noite sem nem olhá-lo nos olhos devidamente. Por isso me assustei ao entrar no quarto e, um pouco tarde demais, dar-me conta de que Namjoon não estava logo atrás de mim. Voltei ao corredor bem a tempo de ver o mesmo ser conduzido pelo restante do caminho com uma expressão confusa no rosto, desaparecendo após virar uma esquina, na direção dos quartos de hóspede. Ao mesmo tempo que me sentia ofendido, também pensava que não poderia esperar outra coisa vinda de meus pais; nos colocar em quartos separados era o tipo de medida fútil e desesperado que de nada adiantaria, mas que por alguma razão colocaria suas mentes em paz.
Apenas quando voltei para o quarto e fechei a porta atrás de mim, ainda que um pouco relutante, notei que de fato, apenas metade das malas estavam ordenamente arrumadas no centro do mesmo – todas minhas. Me perguntei como poderiam ter adivinhado até dar-me conta de que Namjoon poderia ter ajudado algum empregado a discerni-las sem conhecer suas reais intenções enquanto me encontrava muito ocupado chorando. Porém, logo em seguida percebi que não era apenas a segunda metade das malas que estava faltando no ambiente; toda a decoração que havia cuidadosamente planejado enquanto adolescente havia simplesmente desaparecido, dando lugar à objetos impessoais e vasos de flores artificiais, além de roupas de cama claras e monótonas. Um quarto de hóspede. Meus pais haviam transformado meu antigo quarto numa porra de quarto de hóspede.
Bom, é o que você ganha por ficar cinco anos sem dar as caras, pensei amargamente enquanto atirava-me desleixado sobre o colchão; nem mesmo isso era o mesmo que me lembrava, este sendo duro como pedra contra minhas costas enquanto o antigo era macio e molenga, perfeito para os saltos e acrobacias que eu e Yujin performávamos sobre ele. Suspirando, levantei-me para tomar um banho quente no banheiro anexado ao quarto antes que ficasse preso num ciclo infinito de memórias nostálgicas e deixasse lágrimas de auto-piedade rolar por minha face novamente. Afinal de contas, eu conseguira o que tanto queria: tornar-me um completo estranho pra essa família, conseguindo assim a liberdade tão avidamente almejada. Sinceramente, essa dor agonizante que sentia como um punhal cravado em meu peito não fazia o menor sentido. Eu devia estar comemorando. Certo?
Se chorei mais um pouco no chuveiro enquanto deixava a água morna cair por minhas costas e lavar a dor embora ou não, não era da conta de ninguém. Se dormi mal durante a noite, rodando inquieto na cama até encontrar uma posição confortável e um espaço de lençol que não fosse tão frio, sentindo tremendamente a falta que o calor do corpo de Namjoon contra o meu me fazia, ninguém poderia comprovar. O retorno do sol nos reservava um novo dia, e pela manhã tudo seria esquecido. Amanhã estaria tudo bem novamente.
No final das contas estava certo em pensar que o tal jantar em família onde meu pai faria um importante anúncio na verdade era um jantar de negócios, pois assim que o sol se pôs, excluindo alguns parentes por parte de mãe, todos os convidados que chegaram eram sócios da empresa ou membros importantes do conselho. Eu como membro importante da família Kim por ser o único filho homem ainda que mais novo de todos, fui obrigado a permanecer na entrada cumprimentando todos que chegavam ao lado de meus pais até o último executivo aparecer. Desnecessário dizer que o tempo que passei curvando-me num ângulo reto perfeito para todos e cada um dos convidados foi um verdadeiro inferno, uma forma de pagar por todos os erros cometidos nessa vida e nas anteriores. Quando finalmente fui dispensado de meu posto rolei o pescoço e os ombros algumas vezes, ouvindo-os estalar em protesto. Entretanto, o desconforto não durara muito; assim que pousei os olhos sobre Namjoon à alguns metros de distância, conversando casualmente com o marido de Soojin, pude sentir meus músculos relaxando de imediato. Ainda bem que havia tido a esperteza de colocar algumas roupas formais entre sua bagagem – o mais novo ficava simplesmente divino nelas, calças e camisa igualmente negras como o restante de seu guarda-roupa, mas que abraçavam sua silhueta esbelta e realçavam suas pernas longas e costas largas.
- Cuidado, é feio encarar. – advertiu uma voz ao pé do meu ouvido. Sobressaltado, virei-me para dar de cara com o rosto bondoso e olhos sabidos de minha vó, com um brilho de travessura neles que eu não vira durante toda minha estadia até agora. Retribui seu sorriso contido com um mais descarado, envolvendo sua figura pequena com o braço ao redor de seus ombros num meio abraço afetuoso.
- Me desculpe, vovó. Tentarei não ser tão óbvio da próxima vez. – brinquei, arrancando da mais velha uma risadinha escondida atrás da mão enrugada. – O tio não vem? – indaguei, referindo-me ao irmão mais novo de meu pai enquanto procurava inutilmente por ele ao longo da propriedade, como se esperasse que o mesmo pudesse a qualquer momento esgueirar-se por trás de mim para me dar um susto como fazia quando era criança.
- Temo que não. Disse que estava muito ocupado com o trabalho e as crianças. – lamentou-se.
- É mesmo uma pena. Sinto saudade daquelas pestinhas. – se não me falhava a memória, eu não via meu tio e primos há pelo menos sete anos. As circunstâncias para tal não foram as melhores, então só podia torcer para que estivessem todos bem. Minha vó murmurou baixo em concordância, certamente partilhando dos mesmos pensamentos que eu.
- Aish, esse menino, me fazendo pensar em coisas tristes. Hoje não é o dia pra isso. Vamos tentar ao menos aproveitar o jantar, sim? – encorajou-me, dando-me tapinhas amistosos nas nádegas para que a deixasse em paz de uma vez por todas. Sorri, enviando-lhe uma piscadela por cima do ombro; mesmo que tivesse me dado uma missão impossível, ela não precisava saber disso.
- Você está muito bonito hoje, jovem mestre. – disse Namjoon assim que o marido de Soojin nos deixou à sós, voz aveludada baixa o bastante para alcançar um dos timbres mais graves e um sorriso matador que sabia que eu não resistiria.
- Você está muito bonito também. Mas nunca mais me chame assim. – me obstive de desferir-lhe um soco no ombro para pisar no seu pé, com força. Quem nos visse de nada suspeitaria, não com a minha expressão impassível como sempre, uma máscara aperfeiçoada com anos de prática em reuniões desse tipo, a não ser que o pequeno grunhido de dor que Namjoon deixara escapar atraísse atenção para nós.
- Perdão, sei que prefere ser chamado de princesa. – brincou, suas feições divididas entre um sorriso travesso e uma careta de dor, conferindo-lhe uma expressão engraçada. Não poderia ficar com raiva dele, nem se quisesse.
- Você ainda tem coragem de fazer piadas, Kim Namjoon? Está pedindo pra morrer? – olhei incrédulo para si, ainda que o tom de brincadeira fosse evidente em minha voz.
- Kim Namjoon, você disse? – interveio um dos colegas de meu pai, que por acaso passava por perto e ouvira o final nossa pequena conversa. – Este rapaz não seria mais um membro da família Kim, seria?
- Não, ele... ele é... – gaguejei, sem saber como responder. Me perguntava onde tinha ido toda aquela coragem que parecia demonstrar no almoço de ontem. Entretanto, o silêncio não teve a oportunidade de ficar constrangedor, pois no mesmo instante fui salvo por meu pai, que batia um talher contra a taça de champanhe a fim de chamar a atenção de todos.
- Sejam todos bem-vindos. – começou, sorrindo cortês e elegante como sempre. Tudo fingimento, é claro. Retiro o que disse; talvez o dom para mentir descaradamente tivesse vindo de meu pai. – É uma alegria estar aqui reunido com membros da família e amigos queridos nesse jantar tão especial. O motivo de chamá-los até aqui hoje é que tenho um importante anúncio pra fazer. Como todos já sabem, meu pai se encontra muito debilitado no hospital, incapaz de prosseguir seu trabalho na empresa, por isso seu cargo caiu sobre mim. Eu, como atual presidente da corporação Kim, precisarei de um novo vice. Alguém para aprender tudo o que tiver para ensinar e tomar meu lugar quando eu também não puder mais cumprir minha função dentro da empresa. Portanto, é com grande orgulho que anuncio que daqui um ano, assim que se formar em medicina na Universidade Nacional de Seoul meu filho, Kim Seokjin, se tornará o vice-presidente da corporação.
O silêncio que seguiu suas palavras foi absoluto, tão tenso e perplexo que chegava a ser palpável. Os punhos gêmeos que haviam se instalado em meu coração e estômago foram arrumar agora um trigêmeo, apertando minha garganta de tal forma que por um segundo pensei não ser capaz de respirar. O que diabos meu pai queria dizer com aquele discurso esfarrapado? Vice-presidente? Eu?! Será que ao menos ele ouvia as merdas que jorravam como vômito de sua boca? Por que ninguém estava protestando, questionando essa loucura? Por que minha mãe não fazia nada além de ficar quieta como uma estátua ao seu lado, sorriso pacato colado no rosto, como uma verdadeira marionete que não tinha nem mesmo voz própria? O que eu fiz pra merecer tamanho sofrimento?
- Você não pode fazer isso comigo. – falei sem pensar, alto demais para meu próprio bem, atraindo todos os olhares para mim em sincronia. – O senhor não pode decidir minha vida por mim sem me consultar antes, ninguém te deu esse direito. – acusei, recusando-me a acreditar no que estava acontecendo e tentando ao máximo ignorar o fato de que era o centro das atenções no momento. – Eu me recuso. Eu recuso a aceitar esse cargo, não importa o que diga. Eu recuso.
- Kim Seokjin. Meu escritório. Já. – foi tudo que precisou dizer antes de retirar-se casa adentro, deixando uma enxurrada de murmúrios urgentemente sussurrados para trás. Aparentemente não era o único a ser tomado de surpresa por tal anúncio, se é que isso podia me servir de um pequeno consolo. Encontrei medo nos olhos de Namjoon ao fitá-los uma última vez antes de seguir meu pai, sentindo como se caminhasse em direção à minha morte.
O mais velho não perdeu um segundo sequer antes de fechar a porta com força assim que coloquei meus pés no recinto, tendo aguardado pacientemente minha chegada próximo à entrada como fizemos com os convidados do jantar momentos atrás, mas a cautela de ontem à tarde estava completamente esquecida. Seu rosto estava vermelho de raiva, apresentando uma carranca feroz e chamas de ira nos olhos. Então era assim que encontraria meu fim, pensei um tanto morbidamente. Se tinha algo que meu pai odiava mais do que tudo, era ser contrariado. Principalmente em público.
- Será que você realmente deseja trazer desgraça pra essa família? Hein?! Me responda! – exclamou, tomando um passo à frente pra entrar no meu espaço pessoal a fim de me deixar acuado. – Tem ideia do que acabou de fazer, Seokjin? Parece até que gosta de me trazer desgosto, faz de propósito, apenas pelo prazer. É isso o que quer, me ver arruinado?
- Claro que não. – respondi com sinceridade, tentando não me deixar intimidar. – Não quero trazer desgraça pra vida de ninguém. Mas também não quero ter minha vida controlada como uma maldita marionete, servindo propósitos que interessam apenas à você. Quero poder fazer minhas próprias decisões, ter o controle da minha própria vida. Algo que nunca consegui dentro dessa casa. Será que é pedir demais, pai?
- Não seja ridículo, garoto! Você consegue ouvir o que está dizendo agora? – riu incrédulo, de forma quase maníaca. Eu nunca tinha visto meu pai perder o controle dessa forma antes. Por algum motivo isso me enchia de sentimentos da infância, quando ainda tinha medo do monstro debaixo da cama. – Não percebe o que fiz por você lá fora? O que fiz foi te dar uma chance pra se redimir. Numa maldita bandeja de prata! O que fiz foi te salvar, seu moleque ingrato!
- Salvar? Me salvar do quê, exatamente? – desafiei, sentindo-me corajoso de novo de repente. Me sentia como aqueles animais que ao serem acuados contra uma parede sem a possibilidade de saída lutava com unhas e dentes, apenas para não cair pacificamente. – O senhor acha que a minha sexualidade é apenas uma fase rebelde do filho que finalmente obteve sua tão sonhada liberdade? Ou pior, uma doença que precisa ser curada? Que vai me arrumar um emprego e uma esposa e o problema terá sumido magicamente? Quando você vai compreender de uma vez por todas, nessa sua cabecinha fechada, que nada poderá mudar o jeito que sou? O senhor pode tentar me subordar com o que for, eu continuarei amando Namjoon até o final da minha vida.
- Retire essas palavras antes que eu faça engoli-las, moleque. – rosnou em tom de ameaça, agarrando-me pelo colarinho da camisa para dar ênfase às suas palavras. Entretanto, eu me sentia estranhamente calmo. Agora que havia dito umas boas verdades que estavam há muito entaladas na garganta, sentia como se pudesse apanhar o que fosse que não me arrependeria de nada.
- Pai, os convidados estão esperando. – anunciou Hyojin de seu lugar na porta, olhando-nos com incerteza e medo nos olhos. Eu sabia que aquela era apenas uma desculpa para que pudesse interferir, e mesmo que não sentisse a necessidade de ser resgatado não pude deixar de me sentir grato por suas intenções.
- Agora não, Hyojin. Não vê que estou ocupado? – cuspiu, dirigindo-lhe a palavra sem nunca tirar os olhos homicidas de mim.
- Na verdade, Hyo-noona apareceu em boa hora. – comentei, o tom de voz incrivelmente leve para quem estava gritando com o pai meros segundos atrás. – Por que não a escolhe como sua vice-presidente em meu lugar? Ela tem a experiência, o gosto não só pela profissão quanto pelos negócios, além de ser a mais velha de todos nós. Hyojin seria a escolha óbvia, pai. Por que me usar, se tem uma filha competente e disposta o bastante bem na sua frente?
- Não tente me ensinar a conduzir os negócios da família, garoto. Sei muito bem o que estou fazendo. Você só tem o direito de opinar quando estiver sentado na cadeira de vice, e apenas quando tomar meu lugar na presidência, aí sim vai poder fazer o que quiser. Até lá, você vai acatar o que digo calado, entendeu bem?
- Não. – respondi resoluto, com tanta firmeza e convicção que tomei-o de surpresa. – Não sou obrigado a aceitar a vida que o senhor planejou pra mim sem o meu consentimento. Já disse que não vou aceitar ser feito de marionete por essa família. Porra! É assim tão difícil de entender? Eu quero seguir com a minha própria vida, ser dono das minhas escolhas. Por que não me deixa em paz?! – não reparei que estava gritando até que fosse tarde demais, minha garganta rouca pelo esforço e olhos embaçados pelas lágrimas raivosas que teimavam em cair. – Eu deveria ter feito como meu tio, e fugido desse inferno enquanto ainda tinha tempo!
Minha adrenalina estava em níveis tão altos que nem senti o primeiro impacto, nem ao menos registrei o pedido de socorro desamparado de Hyojin ao gritar “Pai, pare! Já chega, você o está machucando!”. De repente me vi pressionado contra a parede do escritório, recebendo mais golpes do que podia contar. Se prestasse atenção o bastante, podia sentir o gosto férreo de sangue na boca através de um corte no lábio inferior. Eu devia saber que estava aproximando-me de território proibido, que estava cutucando a ferida com uma vara curta demais pra me defender da fúria que viria em seguida. Ninguém nessa casa jamais mencionava o nome Kim Kwangsik deliberadamente, muito menos depois do mesmo cessar suas visitas esporádicas por completo, anos atrás. Eu devia saber pelo que estava pedindo, ao invés de surpreender-me com sua explosão repentina. Mesmo assim, em todos os anos de repressão e medo, nunca pensei que pudesse de fato apanhar de meu pai.
Tentei defender-me da melhor maneira que podia, erguendo os braços em frente ao rosto pra pelo menos minimizar os danos. Entretanto, acabou não sendo necessário; de repente os ataques haviam cessado por completo e meu pai já não estava mais diante de mim, mas sim frente a frente com o punho erguido de Namjoon. – Namjoon, não! Não vale à pena. – pedi ao interceptar seu punho no ar, impedindo-o de fazer algo que certamente se arrependeria depois. Envolvi um braço ao redor da sua cintura por trás, tentando persuadí-lo a soltar meu pai e afastar-se comigo, no mesmo momento que mais uma pessoa chegava ao local.
- O que está acontecendo aqui? – minha mãe exclamara, escandalizada pela cena diante de si. Não demorou para tomar partido do marido, colocando-se ao seu lado protetoramente. – Tire esse bruto de cima do seu pai, Seokjin! Francamente, o que vocês dois tem na cabeça? Todos os convidados conseguem ouvir a discussão lá de baixo.
- Sumam da minha frente, os dois. Hyojin, tire-os daqui. – vociferou o mais velho com respiração ofegante e olhos mais mortais do que jamais vira. Não precisávamos ser mandados duas vezes antes que os três estivessem fora do escritório, Namjoon suportando meu peso ainda que não precisasse de ajuda pra caminhar enquanto Hyojin liderava o caminho até a cozinha.
A cozinha estava estranhamente vazia quando finalmente a alcançamos, livre até mesmo de empregados. Eu poderia até mesmo ficar intrigado com esse fato se não lembrasse das palavras de minha mãe: se os convidados podiam escutar tudo, então com os empregados não seria diferente. Tudo que faziam era dar privacidade aos seus patrões, exatamente como era esperado deles. Deixei que Namjoon me ajudasse a sentar num dos bancos altos enquanto observava Hyojin pegar uma bolsa de gelo no congelador e estendê-la para mim. O contato gelado contra meu rosto era tanto um alívio quanto uma tortura.
- Jinnie, o que foi aquilo lá dentro? – Namjoon exigiu, parecendo exasperado. – Você disse que seu pai podia ser intimidador, mas não esperava que fosse a esse ponto.
- E não é. Foi a primeira vez que levantou a mão contra mim. – assegurei-lhe, fechando os olhos. De repente me sentia exausto. Questionei-me se era assim que Jimin se sentira daquela vez. Provavelmente pior. Muito pior. – O que estava fazendo lá, afinal?
- Eu fiquei preocupado, porque da última vez que foi até seu escritório, você sumiu pela tarde inteira e estava claramente chorando, mesmo que tentasse ao máximo esconder isso de mim. Eu apenas sei quando algo está errado com você, Jinnie. Então te segui. Se a sua casa não fosse a porra de um labirinto, teria chegado lá antes e evitado essa catástrofe. – o tom de sua voz aumentava a cada frase dita, indicando o quão indignado e enraivecido estava. Então virou aqueles olhos irados para minha irmã. – E você, o que fazia lá? Por que ficou parada, sem fazer nada pra ajudar?
- Não faça isso, não desconte sua raiva nela. – pedi, os olhos suplicantes. Hyojin podia até não ter sequer piscado diante da raiva do mais novo, mas eu sabia o quão difícil era pra si também. – Hyo-noona é tão vítima quanto eu nesse assunto.
- Ei, o que aconteceu? – ouvi uma voz doce chamar da entrada da cozinha, e virei-me para ver Yujin parada com olhos grandes e preocupados acompanhada do pequeno Junseo, que agarrava-se à sua mão com olhos tão grandes quanto. – Está tudo bem? Ouvimos gritos.
- Joonie, por que não acompanha Yujin e vai tomar um pouco de ar lá fora? – sugeri, sorrindo apologético como se lhe implorasse pra não ser teimoso dessa vez e simplesmente concordasse. – Preciso conversar com Hyojin sobre alguns assuntos. Não vou demorar, prometo.
Por um momento ele parecia seriamente que iria protestar, mas por fim suspirou derrotado e plantou um leve beijo em minha testa antes de se retirar com a minha irmã e sobrinho. – Qual é o diagnóstico? – perguntei por fim à mais velha, tom leve apesar da gravidade da situação.
- Bochecha vermelha, olho levemente inchado e lábios cortados. Nada que uma bolsa de gelo e uma aspirina não resolvam. Pelo menos ele concentrou os golpes em apenas um lado do rosto, então você continua bonito. – brincou, arrancando risadas de nós dois. Mesmo que o mais novo já não estivesse mais ali, não conseguia parar de olhar para o lugar onde o vira desaparecer. Mais uma vez, me pegava pensando no quão surtudo era por ter Kim Namjoon ao meu lado. Nada poderia me quebrar contanto que estivesse comigo. – Obrigada. – Hyojin disse de repente, atraindo minha atenção e despertando-me de meus devaneios. – Pelo que você fez por mim, pelo que disse ao nosso pai... Muito obrigada, Seokie.
- Só disse a verdade. – respondi humildemente.
- Eu sei. Sei também que seria a escolha mais óbvia para ocupar o cargo de vice-presidente, talvez fosse até sua primeira escolha, se não fosse por um pequeno detalhe. – o sorriso que adornava seus lábios cheios era triste e não alcançavam seus olhos. Essa era uma expressão que vira poucas vezes no rosto da mais velha. Sem pensar, coloquei minha mão sobre a sua num pequeno gesto de conforto. Seu sorriso ficara um pouco mais sincero. – Você pode não saber, porque nunca conversei sobre isso com ninguém. Mas pode imaginar, pelo modo estrito e tradicional que nosso pai foi criado, que tudo o que ele mais queria era um herdeiro para seguir a linhagem adiante. Agora, imagine a sua decepção ao descobrir que o seu tão sonhado primogênito era mulher. Nosso pai tinha grandes expectativas pra mim, mas não pude cumprir nenhuma delas simplesmente por ter nascido no gênero errado.
Encontrei-me estupefato por suas palavas, incapaz de pensar em algo pra dizer. De repente toda a minha infância fez mais sentido, então apertei sua mão mais forte. Ela virou sua mão ao contrário e tomou a minha em ambas as suas antes de continuar. – No começo não conseguia compreender porque meu pai não me olhava com amor nos olhos, ao contrário dos pais de todos os meus amigos. Era muito nova pra isso. Mas, quando Soojin e Yujin chegaram, finalmente entendi. Nenhuma de nós três era o que nosso pai precisava. Tive que vê-lo se decepcionar de novo e de novo, em cada nascimento. Então prometi à mim mesma que faria de tudo para que recebesse todo o seu desgosto sozinha, não suportando a ideia de ver minhas irmãzinhas sofrendo como eu sofri quando era pequena. Até você nascer, o primeiro filho homem depois de três tentativas fracassadas. Eu nunca vira nosso pai tão feliz quanto no seu nascimento, Seokie. Finalmente os deuses tinham lhe dado o que queria. Só que... não exatamente. – sorriu apologeticamente, entrelaçando nossos dedos. – Não estou dizendo que você não tem o direito de viver sua própria vida, longe disso. Mas precisa compreender que sem você, nosso pai não tem mais ninguém pra seguir com o legado da família. Sim, eu poderia cumprir essa função e o faria de bom grado, mas na sociedade em que vivemos, mulheres não foram feitas pra tomar a liderança. Elas foram feitas pra dar suporte aos seus maridos e carregar seus filhos, nada mais do que isso.
- Noona... tem uma coisa que eu preciso te contar. Mas você precisa me prometer que vai guardar segredo, ok? – pedi, sem saber muito bem como começar. A mais velha demorara uma eternidade pra acenar positivamente com a cabeça, um gesto lento e cauteloso, mas o cenho franzido gritava o que você fez dessa vez, Seokie? – Não posso aceitar esse cargo, e não é só porque não quero. Eu menti pra vocês. Não vou me formar em medicina daqui um ano, talvez não me forme nunca. Tranquei a matrícula da faculdade há pelo menos três anos atrás, não passei sequer do segundo ano.
- O... O quê? – Hyojin soltara baixinho, confusão estampada na face, como se fosse incapaz de acreditar no que ouvia. – Se o que está dizendo é verdade... o que faz em Seoul esse tempo todo?
- Algo que nunca pude fazer aqui. Estou vivendo. – eu não sabia que tipo de reação esperar da mais velha, talvez uma risada ou o sermão da minha vida. Certamente não esperava um abraço apertado. Então, enquanto envolvia meus braços ao seu redor e afogava-me em carinho e afeto, dei-me conta de que não precisava mesmo do amor dos meus pais, afinal. Minhas irmãs cumpriam esse papel perfeitamente bem.
Mais tarde naquela noite – no meio da madrugada pra ser mais exato – quando todos os convidados já tinham ido embora com minha mãe pedindo desculpas pelo incômodo e com todos os que ficaram dormindo há muito, peguei-me rodando na cama mais uma vez, sem conseguir pregar os olhos. Meu rosto doía como o diabo dependendo da posição que me deitasse, e esse quarto era fodidamente frio sem ter ninguém pra me esquentar. Grunhindo de irritação, atirei as cobertas para o lado e fiz meu caminho até a cozinha para tomar mais um analgésico e quem sabe ficar grogue o bastante pra apagar na cama. Cheguei até lá sem precisar acender luz alguma, pois poderia percorrer o caminho até de olhos fechados. Empurrando o comprimido goela abaixo com um copo de água, sentei-me um pouco na ilha central da cozinha, apenas aproveitando o silêncio e o estranho conforto que a escuridão me trazia. Deixei que meus pensamentos corressem soltos enquanto encarava de forma vazia o copo em minhas mãos, quase entrando em transe sem perceber.
Entretanto, a chegada de mais uma pessoa na cozinha acabara chamando minha atenção. Mesmo na escuridão eu soube de imediato que era Namjoon, pois sua figura alta e esbelta era inconfundível. O mais novo parecia não ter percebido minha presença, pois não proferiu nenhum tipo de cumprimento enquanto avançava em passos incertos na direção da geladeira, como se estivesse desvendando o caminho pelo tato. Tive que reprimir uma risada para não me revelar cedo demais, aproveitando a vista de suas costas enquanto o via abrir a porta da geladeira e enfiar a cara dentro dela, procurando por algo que não sabia o que era.
- Não consegue dormir? – perguntei depois de mais alguns segundos de silêncio, vendo-o praticamente pular de susto. Não consegui conter a risada dessa vez.
- Oh shit—quem...? É você, Jinnie? – pude ver o modo como apertava os olhos na minha direção por cima do ombro, mesmo que a luz que vinha da geladeira aberta revelasse boa parte da cozinha.
- Claro que sou eu, está cego? Onde estão suas lentes, Joonie? – repreendi em tom de brincadeira, incapaz de conter o sorriso que teimava em puxar meus lábios.
- Você acha que eu durmo usando lentes de contato? – rebateu no mesmo tom, voltando-se para a geladeira mais uma vez. – Acordei com sede. Onde fica a água nessa casa?
Soltando mais alguns risinhos, indiquei-lhe uma jarra de cristal e lhe ofereci o copo vazio que tinha em mãos, vendo-o tomar dois copos cheios antes de se juntar à mim. Não perdi tempo antes de ficar novamente de pé e envolver meus braços ao seu redor, inalando seu perfume enquanto derretia em seu abraço. – Sinto sua falta na cama ao meu lado.
- Também sinto a sua. – concordou, apertando-me mais em seus braços. – Você não estava brincando quando disse que seus pais eram barra pesada, não é mesmo?
- O que eles fizeram dessa vez? – indaguei, tirando meu rosto da curva de seu pescoço para olhá-lo nos olhos. Sabia que aquela não era apenas uma pergunta retórica, tinha ouvido perfeitamente o tom triste em sua voz.
- Bom, depois daquele fiasco todo, seus pais me chamaram mais uma vez no escritório pra conversar. – começou. Antes que percebesse, já estava prendendo a respiração. – Sua mãe tentou me assustar o bastante para que tomasse a decisão de ir embora sozinho, mas seu pai foi direto ao assunto e me perguntou quanto queria para te deixar em paz. Acho que nem preciso dizer que o mandei enfiar o dinheiro no rabo. De uma maneira muito educada e cortês, claro. São meus sogros, afinal de contas.
- Não acredito que eles fizeram isso. – eu estava em choque. Até podia entender que não aceitassem minha sexualidade, mas isso já era demais. – Você só pode estar tirando uma com a minha cara.
- Bem que gostaria, princesa. Bem que eu gostaria. – lamentou-se, deslizando as mãos por minhas costas num carinho afetuoso e reconfortante. Afundei novamente meu rosto em seu pescoço, tentando processar esse novo pedaço de informação.
- É isso, já chega. Nós vamos embora assim que o sol raiar. – decidi.
- Eu pensei que ainda teríamos mais alguns dias pra aproveitar a ótima companhia e o caviar excelente? – brincou, sarcasmo evidente na voz.
- Mudança de planos. Não vou ficar nessa casa por nem mais um segundo além do necessário. – e estava realmente decidido. Não havia mais nada aqui pra mim. Eu preferia encarar Bang Yongguk e a polícia ao mesmo tempo em Seoul ao invés de ter que ver a cara de meu pai pela manhã. Foi com pensamentos raivosos e a vontade súbita de cometer um último ato de rebeldia que tive uma ideia brilhante, se não um pouco maliciosa.
Aproveitando a proximidade com a pele olivada de seu pescoço, comecei a distribuir beijos ali, que começaram suaves mas foram ficando cada vez mais quentes e mais parecidos com chupões a cada novo beijo plantado. O arrepio que percorreu o corpo do mais novo não me passou despercebido, causando-me certo orgulho e trazendo um sorriso aos meus lábios. – O q-que está fazendo?
- Beijando você. – respondi inocente, encontrando seus olhos com um sorriso travesso antes de mudar o foco dos meus beijos para sua mandíbula.
- Oh-oh. Jinnie, eu conheço essa expressão. – comentou, cauteloso. Namjoon estava evidentemente perdido, dividido entre ceder aos meus desejos e manter as coisas inocentes em respeito à casa de meus pais. A visão era adorável.
- É mesmo? E o que ela te diz? – provoquei, sussurrando com a voz aveludada ao pé do ouvido do moreno.
- Nada além de problemas. – admitiu, uma nova onda de arrepios correndo em sua espinha quando deslizei lentamente minha mão por seu abdômen e indo para baixo e para baixo, cada vez mais próxima de meu objetivo.
- Você me conhece tão bem, Joonie. – parabenizei ao apalpar sua ereção recém-formada sobre o tecido da calça de dormir ao mesmo tempo que tomava seus lábios num beijo ardente.
Aquilo fora o suficiente pra destruir o auto controle do outro, que grunhiu ao retribuir o beijo com tanto ardor quanto, erguendo-me pela cintura para me colocar sentado sobre o balcão da ilha e enfiar-se entre minhas pernas de forma afoita. Namjoon tinha mania de morder meu lábio inferior durante o beijo, mas pelo fato do mesmo estar machucado, o ato tirou um silvo de mim. O mais novo quis desvencilhar-se de mim, mil desculpas na ponta da língua, mas o silenciei com outro beijo ainda mais fervoroso do que o primeiro. Ainda bem que eu gostava de sentir dor durante o sexo.
- Fuck, Jinnie—você não tem vergonha de dormir desse jeito na casa dos seus pais? – indagou enquanto corria as mãos pela pele macia de minhas pernas, referindo-se à minha escolha de vestimentas de dormir: uma camiseta comprida que chegava no meio das coxas e uma cueca boxer, nada mais.
Sorrindo, balancei negativamente a cabeça. – Colocar roupas em si é um sacrifício, já que estou tão acostumado a dormir nu todos os dias. – brinquei, não conseguindo conter um gemido baixo quando o mais novo rolou sua cintura contra a minha. Agora estava feliz por não ter me vestido propriamente, pois a sensação de sua ereção contra a minha abafaba por tão poucas camadas de roupa era indescritível.
- Você é tão lindo, baby. – murmurou em meu ouvido, a voz grossa de desejo, enquanto tirava minha cueca com mãos trêmulas e dedos atrapalhados. – Não acredito que conseguiu me convencer a fazer isso.
- Pare de reclamar e me fode de uma vez, Namjoon. – grunhi contra seus lábios, louco para ser tocado; minha pele chegava a formigar. Felizmente Namjoon encarou o comando como um desafio, tirando-me de cima do balcão com brutalidade e virando-me de costas para si antes de empurrar minha cabeça contra o mármore previamente aquecido pelo meu corpo. Pelo canto dos olhos pude vê-lo abaixar as calças até o meio das coxas, liberando sua ereção. A minha própria pulsava com a visão que tinha de seu membro pingando pré-gozo, e nós mal tínhamos começado. – Porra. Não temos nenhum lubrificante. – lembrei de repente, desespero colorindo minha voz.
Eu sinceramente não sabia o que fazer, o desejo e a luxúria impedindo-me de pensar com clareza, mas certamente não esperava que o mais novo fosse ajoelhar-se atrás de mim; por um momento fiquei confuso, perguntando-me o que diabos ele pretendia fazer, até sentir algo quente e úmido contra minha entrada. – O q-qu—ah—o que—ngh—está fazendo?
- Improvisando. – foi a resposta rápida que me deu antes de retornar às suas ministrações. Namjoon tinha ambas as mãos no meu quadril, segurando-me firme para impedir que empinasse mais a bunda contra seu rosto. Tarde demais dei-me conta do sumiço de uma delas até que pude sentir um dedo sendo adicionado juntamente com sua língua, depois dois, quando estava relaxado o bastante. Tive que morder os lábios pra impedir que os gemidos jorrassem deles como água, e se não estivesse tão perdido nas sensações que o mais novo me causava poderia sentir o gosto de sangue na língua.
Quase choraminguei quando senti Namjoon retirar os dedos, ainda que mantesse a língua no mesmo lugar, mas sabia que usaria aquela mesma mão para masturbar-se algumas vezes com a finalidade de espalhar o pré-gozo acumulado na ponta por toda a extensão de seu membro. Mal podia esperar pra tê-lo por completo dentro de mim novamente, tanto que chegava a ter lágrimas no canto dos olhos com a mera ideia. Quando se deu por satisfeito, Namjoon deu uma mordidinha afetuosa em minha nádega direita antes de ficar de pé, pronto para introduzir o membro onde a língua ocupara momentos atrás. O tempo de puro suspense que deixara passar entre nós era sua forma de deixar claro que eu poderia parar tudo a hora que quisesse. Minha forma de responder foi lançar-lhe um olhar nublado de desejo por cima do ombro e morder os lábios; o sinal era claro: me fode. Com força.
Por mais que esperasse por isso toda vez, eu nunca me acostumaria com a primeira estocada do outro. Parece que ele colocava todos os seus esforços na primeira, pra tirar o ar de meus pulmões logo no começo. Namjoon nunca conseguira me negar nada, então quando o pedia – mandava – pra me foder com força, ele o fazia com prazer. Haviam dias em que nós dois gostávamos de gastar um longo tempo explorando o corpo um do outro, descobrindo novos pontos de prazer, mas hoje não era um deles. Hoje o sexo seria direto ao ponto, rápido, forte e satisfatório. Perdi-me em meio às sensações, falhando miseravelmente em manter o tom de voz baixo, até que Namjoon tirara uma das mãos de minha cintura e a envolvera em meu pescoço, apertando-o apenas o suficiente pra cortar o fluxo de ar e me calar com sucesso, mas não pra machucar. Nunca pra machucar.
Essa nova sensação adicionada às demais enviou um forte estímulo diretamente para o meu membro ereto, que pingava entre mim e a bancada mesmo negligenciado. Levei uma de minhas mãos para trás, alcançando sua coxa e arranhando-a com força, um claro sinal de que aguentava mais. Percebendo meu deleite, Namjoon usou a posse que tinha sobre minha garganta para erguer meu corpo contra o seu de modo que minhas costas ficassem coladas ao seu peito, sua mão nunca deixando minha pele ou diminuindo a pressão no local. Seus lábios encontraram minha orelha, mordiscando-a e murmurando obscenidades ao pé do ouvido, sobre como eu era alguém deliciosamente depravado por gostar de sentir dor, como meu corpo parecia moldado com o único propósito de receber suas estocadas, como ficava lindo com os lábios inchados e bochechas coradas, com a sua mão ao redor da minha garganta. Namjoon sabia exatamente o que dizer para me levar além de meus limites, me estimulando a tal ponto que acreditava ser capaz de gozar nem ao menos me tocar.
Percebendo o quão próximo estava do orgasmo, Namjoon tirou a mão que tinha ao redor do meu pescoço para envolvê-la em meu membro, seus dedos longos e finos masturbando-me com uma maestria que apenas anos de prática lhe garantiriam. Dentro de instantes eu tentava conter os gritos, revirando os olhos de prazer, enquanto estocava o anel apertado que seus dedos formavam num movimento espasmático. Não demorou muito para que Namjoon me seguisse, suas estocadas tornando-se errôneas até o momento que pararam por completo, com ele mordendo meu ombro e grunhindo contra minha pele.
Permanecemos algum tempo ainda conectados, apenas para recuperar o fôlego. Quando o mais novo finalmente se afastou, pude sentir seus fluidos escorrendo lentamente por minhas pernas, trazendo uma careta de desconforto ao meu rosto. Mesmo com pernas bambas, peguei um rolo de papel-toalha para limpar a bagunça feita não só no meu corpo quanto na ilha da cozinha também. Quando estava no meio da limpeza, agachado no chão já de cueca, encarei o outro que ainda estava sentado num dos bancos altos encarando o nada como se tivessem lhe tirado a vida. – Uma ajudinha aqui cairia bem, sabe.
- Já vou, amor. Deixe-me só relembrar como uso minhas pernas primeiro. – pediu, ainda soando sem fôlego e exausto. Se isso trouxe um sorriso aos meus lábios, na escuridão da cozinha ele nunca saberia.
Se por acaso deixei um filete de gozo sobre a bancada onde meu pai costumava sentar para tomar café e ler jornal pela manhã de propósito, nós dois já estaríamos longe demais pra sofrer as consequências.
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