HIMARI
Desperto e antes mesmo de abrir os olhos sinto a dor em minha coluna me alcançar e fazer o seu papel de afastar de mim o meu sono. Solto alguns gemidos de dor enquanto tento me sentar em uma posição decente, já que meu quadril estava virado para frente, é meu tronco havia tombado para o lado, sobre os travesseiros.
Dormir sentada é a mais nova posição que eu odeio.
Quando minha retina se acostuma o suficiente com o sol e meus olhos não tentam mais fechar, vejo Kakashi de pé em frente a cama, com o ombro encostado no dossel e os braços cruzados na altura do peito. Ele me observa atentamente, como se me estudasse.
- Como isso aconteceu? - me pergunta.
Isso?
Me questiono se ele está indagando o fato de eu ser uma jovem na casa dos vinte, com a coluna de um septuagenário, ou se ele, assim como eu temia, esqueceu do que houve ontem.
Na maioria dos casos de estresse-pós-traumático, as pessoas não lembram quando têm crise. É uma especie de sonambulismo. Eu mesma não me lembro de todas as minhas, apenas sei que aconteceram porque Shiro e Hiro agiam diferentes no dia seguinte, como se estivessem mais preocupados.
- A minha coluna não é das melhores. - informo, optando por acreditar na primeira opção.
E fica ainda pior quando é batida contra a quina de um mobiliário.
- Por que dormimos juntos? - questiona.
Suspiro.
É claro que ele optaria pela segunda.
- Do que você lembra? - pergunto.
- Flashbacks. Nós dois no chão, você cantando, lembro de ter deitado em seu colo...
Então ele só não lembra que me atacou.
Como esperado, afinal ele estava em transe.
- Como fomos parar ali? - ele aponta o queixo para trás, para onde estávamos ontem. - Antes disso, só lembro de ter ido dormir. Sozinho.
- Você teve um pesadelo. - informo.
As sobrancelhas dele quase se unem, criando uma ruga em sua resta.
Ele balança a cabeça negativamente, mas parece incredulidade.
Pelo que Kakashi me disse, sei que ele sempre morou sozinho, então a menos que ele tenha tido uma crise em alguma missão, não deve saber sobre os ataques que tem, já que não lembra deles no dia seguinte.
- Como sabe? Eu disse algo? - pergunta.
Então ele lembra de algo, afinal.
- Murmurou algumas coisas. - digo. - Você acordou no meio da noite um pouco... agitado. Parecia não saber muito bem onde estava, então eu o ajudei.
Sua expressão de incredulidade permanece em seu rosto.
Ele também parece surpreso.
Pensativo.
Kakashi já deve ter presenciado casos de TEPT em algum momento da sua vida. Eu já presenciei alguns fora do hospital, e estou a menos tempo no mundo ninja do que ele. Infelizmente, em nosso meio é algo extremamente comum.
Coloco meu cabelo para frente, na esperança de que ele cubra qualquer marca em meu pescoço e levanto da cama com um pouco de dificuldade, porque meu corpo inteiro dói graças aos últimos ocorridos e ao fato de ter dormido em uma posição desconfortável.
- O que eu disse? - ele pergunta.
- Você chamou pela Rin. - digo.
Ele inspira fundo, dá as costas para mim, e passa ambas as mãos pelo rosto, como se isso tivesse lhe deixado em agonia.
- Isso é comum. - tento ajudar. - Muito. Tendo em vista tudo o que você já passou.
Kakashi, em silêncio, vai até a varanda e fica lá, olhando para algum lugar distante. Vejo quando seus dedos ficam esbranquiçados graças a força que usa para apertar o parapeito de ferro.
- Seus pesadelos são recorrentes? - pergunto.
- Não. - diz seco.
Na defensiva.
Outra vez.
- Ok. - murmuro.
Vou até o banheiro e faço minha higiene matinal. No reflexo do espelho, vejo meu pescoço marcado com manchas vermelhas e roxas. Ele não estava assim ontem a noite, quando cheguei. Havia ficado aliviada porque Riki me sufocou com o joelho e não ficaria nenhuma marca visível depois de alguns minutos, mas Kakashi pegou meu pescoço em cheio.
Geralmente eu não costumo gastar chakra com pequenos hematomas porque não vale a pena, mas não quero precisar explicar o que aconteceu comigo, por isso início um ninjutsu para sumir com eles.
Kakashi bate na porta.
- A pousada está movimentada, por causa dos preparativos para a festa. Precisamos ser vistos juntos, antes que isso comece a dar errado nesta missão também, então seja rápida. Tomaremos café lá embaixo. - diz seco.
Bufo irritada e paro meu ninjutsu. Em seguida, caminho até a porta, a abro, e o encontro se afastando, mas Kakashi para e me observa por cima do ombro.
Sou um sorriso falso e não tento fazer com que ele pareça real.
- Não, Kakashi, não preciso estar na clínica tão cedo hoje, mas obrigada por se importar com os meus horários. Seria ótimo tomar café com você, pelo bem do nosso disfarce.
- É um dia de sorte para Konoha, então, já que você finalmente parece ter decidido se importar um pouco com a missão.
Eu pisco forte, tentando assimilar o que eu ouvi, e dou uma risada incrédula quando eu percebo que não entendi errado.
- Tudo o que eu fiz até agora foi me importar com essa missão, Kakashi! Eu não durmo, eu não como, eu passo noite e dia no hospital tentando resolver um problema que me faz contestar tudo o que eu aprendi até hoje sobre a medicina.
- Não estou falando sobre essa missão, estou falando sobre a nossa. Sobre o verdadeiro motivo de você ter sido enviada. Você não está aqui só por causa da clínica, está aqui para fazer com que meu disfarce funcione, Himari, mas é impossível de fazer as pessoas acreditarem nele, se você passa dia e noite fora da pousada.
- Ah, que ótimo, Hatake. Então eu direi à família dos meus pacientes que eu não poderei fazer a visita matinal porque precisarei tomar café-da-manhã com o meu marido, e a noite eu também não poderei mais tirar plantões, estudar exames e fazer análises porque eu preciso dormir com com ele. O que mais quer que eu informe, capitão? Quem sabe um chá-da-tarde? Deveríamos convidar o chapeleiro e o coelho, o que acha? Talvez no país das maravilhas, não hajam pessoas morrendo para que eu possa tentar salvar, e assim poderemos focar na sua missão enquanto caminhamos juntos até o arco-íris como um casal apaixonado. Talvez a rainha má arranque algumas cabeças, mas quem se importa, não é mesmo? Desde que a sua missão esteja sendo cumprida, pessoas podem morrer.
- Onde aprendeu a ser tão cínica?
Estreito meus olhos para ele.
- Realmente acha que eu não percebi que você está me evitando? Juntando plantões como se isso fosse resolver todos os problemas que você tem. Não irá resolver nenhum, e me evitar não é uma maneira muito inteligente de fazer com que tudo pareça bem, Himari. Ninguém vai morrer se você passar dez minutos na mesa, aguentando conversas chatas e sorrindo como se estivesse feliz. Não estou reclamando por você estar envolvida com o seu caso, porque ao contrário do que você pensa, não quero que ninguém morra, mas você precisa lembrar que sua missão surgiu para encobrir a minha.
Tento ignorar o fato dele saber que tenho o evitado e foco no restante de suas palavras, ainda que minhas bochechas estejam coradas.
- Eu mal consigo dar de conta tirando todos estes plantões, Kakashi, você não consegue entender? Eu preciso estar por perto para monitorar o caso deles e deixar que estabilize. Eu passei uma noite fora e uma pessoa foi entubada!
O maxilar dele trinca.
- O tempo não parece passar quando você sai para almoçar com seu chefe, não é? - sua pergunta é nitidamente uma acusação.
- Está me vigiando, ao invés de fazer sua missão? - questiono com a voz relutante.
Meu coração bate um pouco mais rápido.
O tique em seu maxilar revelou seu ciúme? Kakashi está com ciúme do Yahiko?
Não.
É coisa da minha cabeça.
Ele está apenas me acusando por não vir almoçar aqui.
É por causa da missão.
- Não deveria se preocupar com o fato de eu vigiar, ou não, porque eu sei que você é uma mulher solteira. Mas há pessoas com olhos bem atentos nessa aldeia que observam e comentam coisas sobre como a médica nova e recém casada está de rolo com o novo chefe da clínica.
Engulo seco e a voz se Yahiko reverbera em minha mente, "é uma aldeia pequena".
- Foram poucas vezes e o restaurante é muito mais perto do que a pousada. Perco menos tempo indo lá. - digo enquanto prendo meu cabelo em um coque, porque toda essa conversa me deu calor.
Amaldiçoo minha franja, porque ela não é grande o suficiente para que eu possa prendê-la com o resto do cabelo.
Kakashi se aproxima lentamente de mim, com sua visão focada na região abaixo do meu rosto.
- O que foi isso? - questiona.
Uno minhas sobrancelhas, incerta do que está dizendo, até que recordo do motivo pelo qual meu cabelo estava solto, apesar da temperatura alta.
- Nada. - digo rapidamente e começo a me afastar enquanto sigo até onde minha mochila está, mas sua mão se prende ao meu punho e ele se aproxima.
- Que droga é essa? - pergunta mais sério e ergue meu queixo para analisar melhor os hematomas.
Eu tenho certeza de que o ninjutsu amenizou a aparência deles, mas ainda estavam bastante marcados quando deixei o banheiro.
- Não foi nada. - digo. - Foi um acidente no hospital.
- Pessoas não são estranguladas acidentalmente em um hospital.
- Os médicos são, aparentemente. - informo. - Saberia disso se analisasse algo além da bunda das enfermeiras quando está em um.
Pisco forte quando me dou conta do que falei.
Não deveria ter dito isso.
- Estou brincando. - tento.
- Quem fez isso com você? - me ignora completamente e noto um tique em seu maxilar, e depois outro.
- Foi um acidente, Kakashi. - reafirmo. - Um erro meu. Não percebi o estado do meu paciente e me aproximei demais. Essas coisas acontecem.
- Foi um paciente novo? - pergunta.
- Não. - digo. - Isso não tem nada a ver com sua missão, foi apenas uma crise.
- Tem certeza? - insiste.
- Tenho.
Kakashi observa o local pela última vez e se distancia.
- Me conte sobre os seus pacientes. - pede. - O caso.
- Pensei que estivesse mais interessado em sua missão e em fazer sala.
Ele me observa como se esperasse uma resposta, então eu lhe dou o que quer. Enquanto falo, Kakashi parece estar prestando atenção, mas vejo, algumas vezes, seus olhos focarem em meu pescoço e depois deslizarem até o chão, ao local onde estávamos ontem a noite.
Me pergunto se ele está ligando os pontos.
Provavelmente sim.
Após fazer um resumo sobre tudo o que houve na clínica, ele fica pensativo durante alguns instantes.
- Talvez não haja um diagnóstico médico para isso. - diz.
Franzo o cenho e o encaro sem compreender o que ele disse.
- Toda doença é diagnosticável, Kakashi.
- Talvez seja um genjutsu. - diz.
- Não é um. - afirmo. - Eu saberia se fosse.
- Eu vi um tipo de genjutsu muito sutil aqui. Acho que olhos normais não o notariam, mas meu sharingan percebeu, já que estas lentes não o anulam.
Balanço a cabeça negativamente, sem querer acreditar.
- Não é um genjutsu, Kakashi. - digo, outra vez.
- Como sabe?
- Não parece um. Sem contar que a esposa do paciente disse que ele vinha ruim há tempos. Não é possível que um genjutsu demore tanto sem que alguém perceba.
- Não sabemos.
Suspiro.
- Isso tem a ver com sua missão? Essa história de genjutsu?
- Talvez. - murmura. - Acho que estão usando um genjutsu para manter algumas pessoas trabalhando em uma casa de prostituição.
Meu queixo cai e eu mal acredito no que meus ouvidos captam.
- Como? - pergunto, incerta.
Penso não ser possível que eu tenha ouvido o que ouvi, mas então Kakashi me conta sobre a noite em que saiu para seguir um empresário famoso. Me conta sobre o lugar, sobre o genjutsu e sobre a garota que ele tentou ajudar. Meus olhos lacrimejam quando ele me revela sua morte e isso me faz compreender o porquê dele ter chegado tão recluso dentro de si. Sua confissão me entristece. Ele deve estar carregando a culpa pela vida dela, mas não me parece justo.
- Você tentou ajudá-la, Kakashi. Os únicos culpados pelo que houve com ela foram as pessoas que a colocaram em um genjutsu.
Ele me observa, mas não parece ligar muito para o que eu disse.
- Você poderia tê-la ajudado?
- Eu não sei. - informo. - Nunca ouvi falar de algo assim. Talvez eu pudesse, talvez não. Só saberíamos se eu estivesse lá.
Ele me observa como se sugerisse algo.
- Não acho que seja uma boa ideia arriscar outra vida por uma mera hipótese. Hemorragias são difíceis de serem contidas. - digo e recordo do relato da Tsunade sobre a morte do seu namorado, Dan, quando estava bêbada o suficiente para confessar.
- Tem razão. - diz. - Vamos focar no que precisa ser feito nessa missão. Konoha cuidará do resto.
Algo se remói dentro de mim.
Algo que não quer deixar essas garotas presas no inferno que devem estar passando.
Serão apenas mais dias de dor para lembrarem.
- Temos que fazer algo. - digo. - O mais rápido possível. Essa loira, de quem você falou, é ela quem comanda tudo? O genjutsu?
- Acredito que sim.
- E acha que o homem está por trás do problema com a Akatsuki? - questiono.
- Acho, ainda que eu não saiba bem o quê. No entanto, tenho uma nova informação que pode me ajudar a descobrir algo. Haverá uma reunião durante o horário do almoço, no escritório dele perto das docas. Irei buscar por respostas.
Assinto.
- Tome cuidado. - peço.
Ele acena positivamente.
Eu o encaro e Kakashi faz o mesmo, mas logo se afasta e pega umas coisas na mochila.
Aparentemente, a única coisa que nos une e faz com que tenhamos uma conversa civilizada, é a missão.
Suspiro.
•••
- Ah! - a senhora Suzuki exclama ao nos ver. - Que alegria ver os dois juntos durante o café-da-manhã, já que geralmente só vejo um de vocês.
Nós dois sorrimos ao entrarmos na cozinha, onde faríamos hoje nossa refeição matinal, já que o salão de refeições estava sendo ornamentado.
- Bom dia. - sorrio e observo o movimento no ambiente.
Homens carregando caixas entram e saem, apressados. Eu não consigo identificar o que todas ocultam, mas vejo bebidas em algumas e lâmpadas em outras.
- Parece os preparativos para a festa estão indo bem. - Kakashi comenta e, colocando a mão em minhas costas, guia nosso caminho até a mesa, onde puxa a cadeira para que eu sente antes que eu o faça.
Meio que não sei como reagir.
Meio que quero xingar por ele só ser assim por causa da missão.
Meio que poderia me acostumar com isso.
Meio que estou irritada.
- Obrigada. - digo, enquanto esqueço tudo isso e foco em repetir em minha mente que é pelo sucesso da missão.
Ele senta ao meu lado e se serve com um chá.
Eca.
Prefiro morrer do que tomar essa água saborizada quente.
Pego meu bom e velho café.
Após a senhora Suziki terminar de dar ordens, se junta a nós.
- Oras... aqui hoje está uma loucura, espero que o movimento não atrapalhe o café-da-manhã de vocês.
- Não irá. - tento tranquiliza-la. - Gostamos de locais animados.
- Não sei se eu chamaria isso de animação... - a mais velha dá um longo suspiro. - Ah, Himari, querida, é uma pena que você não vá poder se juntar a nós. Deveria repensar sua decisão. Além disso, depois de tantos dias e noites separados em plena lua-de-mel, o mínimo que merecem é uma noite especial.
Eu forço um sorriso, um tanto quanto desconfortável.
Kakashi realmente está certo sobre o que as pessoas pensam sobre nós.
Mas o que eu posso fazer?
Salva pelo gongo, o senhor Suzuki chega à mesa e nos cumprimenta, emendando sua fala logo em seguida em um comentário sobre o clima.
Após isso, não demora para que um dos trabalhadores venha até nós informar que precisará de uma escada. É então que a senhora Suzuki começa a falar sobre o dia em que pegaram a única escada que possuíam na pousada e nunca mais devolveram.
- Uma cadeira serve, senhora, não é tão alto. - ele diz.
- Aqui, rapaz, use essa. - o senhor Suzuki está quase levantando, mas eu não me sentiria bem permitindo que alguém de idade avançada e com problemas de locomoção coma de pé enquanto eu fico sentada.
- Aqui. - Eu levanto e ergo minha própria cadeira do chão, estendendo-a para o rapaz. - Fique com essa, eu já estou quase terminando o meu café, não vai fazer diferença estar sentada, ou não.
Ele sai com o meu assento em mãos.
- Providenciarei uma cadeira para você. - o mais velho diz.
- Não precisa. - informo rapidamente, pois não quero que ele tenha esse trabalho.
- Não temos mais cadeiras, querido. Estão todas sendo utilizadas de escadas. Esse rapaz não foi o primeiro a vir pedir uma escada.
- Sente aqui. - Kakashi diz e está prestes a levantar, mas a senhora Suzuki é mais rápida em suas palavras.
- Por que não senta no colo do seu marido, por enquanto, querida? Aposto que ele não vai se importar. - ela dá uma piscadela para Kakashi. - Você não deve pesar quase nada.
- Não precisa. - reforço. - Eu posso ficar de pé.
Meu peito acelera com a possibilidade, mas não sei se é por causa do constrangimento ou da expectativa.
- Vamos, meu amor. - Kakashi diz e eu só percebo que é ele falando por causa da voz irreconhecível e da mão que ele leva até a parte interna de minha coxa, fazendo o local formigar, enquanto guia-me para mais perto. - Não fique em pé.
Eu ainda tenho dúvidas sobre a veracidade das informações que meu cérebro está processando e permaneço calada.
Talvez tenha morrido e nunca descubra se vivi o suficiente para ouvir Kakashi Hatake me chamar "amor".
O toque quase fantasma em minha perna mal parece estar ali. Ou talvez ele não esteja mais e eu esteja sentindo apenas a sensação prolongada que ele deixou, ou talvez ele nunca tenha me tocado e eu estou imaginando isso.
De qualquer maneira, sendo fantasia de minha cabeça, ou não, ouço o pronome e o substantivo reverberando juntos em minha mente, em loop, com o tom proferido pelo perfeito barítono acariciando meus sentidos.
Talvez a vida pós a morte seja muito boa mesmo.
É somente quando minha bunda encontra as coxas firmes, que eu percebo que isso está real demais para ser uma fantasia.
- Melhor do que uma cadeira, não é? - a senhora Suzuki questiona e pisca para mim.
Eu abro a boca para responder algo, mas estou um tanto quanto envergonhada e surpresa demais para manifestar algo além de espanto.
- Não fique envergonhada, querida. Nossos homens sempre serão os melhores assentos.
Estou para entrar em colapso, enquanto ela se refere ao homem abaixo de mim como se ele fosse meu.
- O casamento irá mostrar muitas as muitas utilidades de eles têm.
Eu forço um sorriso.
O senhor Suzuki começa a contar alguma história e sua esposa o acompanha com os detalhes, mas isso logo se torna uma conversa entre ambos. Enquanto isso, levo minha mão trêmula até a xícara em minha frente e beberico o líquido. Chá. De camomila. Nem mesmo minha xícara eu fui capaz de posicionar em minha frente.
Kakashi parece perceber e faz isso por mim, colocando meu café em minha frente.
Eu abro minha boca para agradecer a ele, mas não tenho certeza de que realmente fiz isso. As palavras que saíram de minha boca mais soaram como "você me chamou de amor?", do quê como um "obrigada".
Mas não tenho certeza do que eu falei.
- Somos casados. - sussurra. - Haja naturalmente, isso acontece sempre.
- Eu não sento em você todos os dias, não tem como fazer com que pareça normal. - sussurro e percebo o duplo sentido do que eu falei. - Não foi o que pareceu. - fecho os olhos, envergonhada. - Não uso você... como... como um assento. - tento esclarecer.
- Eu não duvido disso, afinal você fez mais do que sentar em mim há algumas horas.
Meu rosto arde em chamas e eu piso no pé dele, para que pare de falar esse tipo de coisa.
- Ai. - diz, mas aposto que sequer doeu. Seu tom de voz foi extremamente sexy e arrastado.
- Não diga essas coisas. - sussurro com uma falsa repreensão.
- Não me dê motivos para dizer essas coisas. - rebate.
- Shh! - sussurro.
Uma risada alta da senhora Suzuki chama de volta nossa atenção.
- Perdão, garotos, estávamos lembrando aqui dos dias em que viramos noites trabalhando na concepção dos nossos filhotes. Yuri, o mais novo, já tem vinte anos! Consegue acreditar nisso? - ela ri.
- Parece que foi ontem que fizemos ele. - o homem mais velho comenta.
- Ah, não... eu seria feliz se tivesse sido, assim você teria um pouco de coragem e vontade hoje. - ela comenta.
Eu rio um pouco sem graça, ainda não me acostumei com esses comentários.
- E vocês? - ela pergunta.
- Hum? - Kakashi murmura.
- Como? - pergunto.
- Como está indo a concepção das crianças? Já sabem se há algum vindo por aí? Pelo barulho que ouvimos ontem eu cheguei a cogitar que algo de ruim pudesse ter acontecido, mas logo lembrei que vocês são recém-casados.
- Fizemos barulho ontem? - Kakashi pergunta baixinho para mim.
- Não. - digo somente, não querendo estender esse assunto.
- Aproveitem o fogo enquanto ele ainda está alto... principalmente você, Himari, depois de uns anos de casados, eles não são mais tão animados.
Eu forço um sorriso.
Céus...
•••
Durante o meu dia no hospital, nada demais acontece. Nada melhora, nada piora. Nenhum caso novo, nem sequer uma dor de cabeça. Inclusive, estranhamente, até mesmo os atendentes parecem ter tirado o dia de folga, pois o hospital parece um ambiente abandonado.
No entanto, o staff está todo completo. Quando cheguei à nossa sala, encontrei com o Yahiko e a amiga loira dele conversando sobre algo importante demais para ser ouvido por mim, porque eles interromperam sua conversa e agiram como se nada tivesse acontecido ontem, o que me deixou ainda mais desconfortável, porque eu senti como se apenas eu tivesse notado a gravidade do que aconteceu.
No entanto, deixei de lado.
Os cumprimentei e após pegar tudo o que eu iria precisar, saí do ambiente.
Yahiko me procurou para conversar antes do nosso horário de almoço e pediu desculpas pelo que aconteceu. Isso melhorou um pouco o clima entre nós, que havia estado estranho durante toda a manhã, porque após ele reconhecer que havia passado do limite, voltamos a conversar como antes, mas eu ainda prefiro ficar longe quando sei que a amiga dele está por perto.
Agora estou na sala de atendimento, esperando que alguém entre, ainda que o problema seja uma unha encravada, porque eu preciso de algum problema que eu consiga resolver. Olhar os exames em minha frente apenas me faz andar cada vez mais em círculos, e isso me frustra a ponto de estar quase levantando da cadeira para ir chorar durante todo o meu horário de almoço.
Durante toda a manhã, o que Kakashi falou sobre os meus casos serem um genjutsu não saiu da minha cabeça. No entanto, eu passei parte do meu tempo no quarto do Riki e do senhor Koji, e não vi nada que indicasse que tudo isso não passava de uma ilusão. Tentei libera-los, inclusive, caso houvesse algo, mas nada aconteceu.
Como se os problemas que tenho não fossem frustrantes o suficiente, agora também me sinto culpada por estar tão ausente na missão de Kakashi. Eu odeio quando percebo que estou atrapalhando algo, e agora está mais do que claro que meu companheiro de equipe acha que ao invés de ajuda-lo com seu disfarce, estou dando motivos para que as pessoas duvidem dele. As vezes, nem tudo sai como planejado e eu não concordo com tudo o que ele falou, muito menos com a maneira com a qual disse, mas acho que eu realmente deveria ser mais presente. Agora eu percebo que os anos trabalhando apenas no hospital me deixaram enferrujada para conciliar as duas missões, mas a maior parte da culpa vem do meu comportamento infantil de evitar ele. Se eu tivesse agido com a maturidade que eu deveria ter para essa missão, tudo teria corrido bem.
Dou um longo suspiro.
Quando você vai parar de fugir, Himari?
- Merda… - murmuro enquanto massageio minha têmpora. - como eu vou consertar toda essa merda?
- Talvez eu possa ajudar você. - Yahiko senta na cadeira em frente à mesa.
Como eu não o vi entrar?
- Por favor, me diga que você possui alguma doença que precise de uma cirurgia. - imploro.
Ele arqueia a sobrancelha.
- Não, sou saudável.
Gemo descontente.
- Está irritada por eu estar bem?
Forço um sorriso.
- Claro que não. Apenas estou sonhando com o momento em que algum paciente vai entrar por aquela porta dizendo que tem um problema que eu saberei resolver.
- Hoje está bem tranquilo, não é? - comenta.
- Até demais.
- Aliás, pensei que você não iria vir hoje. - ele diz.
- Eu? Por que eu não viria?
- Por causa do evento na pousada. Soube que você foi chamada.
- Ah. - murmuro. - Não… eu já havia dito que pegaria esse plantão, então não deu.
Ele arqueia a sobrancelha outra vez.
- Acredito que não vá fazer muita diferença ter você aqui, ou não. - diz.
- Ah, que bom que você reconhece minha utilidade. - implico com ele.
- Não foi o que eu quis dizer. - informa. - Eu conheço essa clínica e sei que hoje o dia será todo assim, por isso não faria diferença. Você aqui seria apenas mais um atendente que não teria o que fazer.
- Hum… - murmuro.
Essa festa seria uma ótima maneira de mostrar para os outros que somos um casal verdadeiro. Poderíamos até dançar e andar por aí de mãos dadas, se Kakashi achar que convém.
As borboletas em minha barriga despertam quando imagino ambas as cenas.
Seria ótimo.
Imagino o quão lindo ele irá estar.
Lindo e perigosamente apaixonante.
Balanço a cabeça negativamente.
- Preciso ficar de olho nos meus pacientes.
E não posso arriscar sentir mais atração por Kakashi do que eu já sinto.
Também não posso mais continuar atrapalhando a missão dele.
Gemo em desagrado aos pensamentos que circulam minha mente e tombo meu corpo para trás, na cadeira.
- Eu posso fazer isso por você. - diz.
Eu o observo durante alguns instantes.
- Depois do quadro do senhor Koji agravar tanto, eu não gostaria de me afastar. - informo.
- Eu posso ficar de olho nele, Himari. Eu posso não saber o que ele têm, mas sei como mantê-lo estável. Posso ficar aqui e ajudar. Além disso, você pode voltar antes de meia noite e fazer o resto do plantão.
Mordo meu lábio inferior enquanto o observo, tentada a aceitar sua proposta.
- Vamos… - me incentiva. - É o mínimo que eu posso fazer por você, depois da cena de ontem.
Dou uma risada nasal que soa mais triste do que eu esperava.
Yahiko sorri.
Um sorriso cafajeste.
Semicerrou o olho para ele.
- Não faça isso. - mando.
- Isso?
- Esse sorriso.
- O que tem o meu sorriso?
Reviro os olhos e ele faz outra vez, mas agora dá uma gargalhada em seguida.
- Se o sorriso não deu certo eu posso fazer olhos de cachorro pidão…
Eu rio.
- Não, acho que o sorriso já me assustou suficientemente para que eu vá embora. - digo e levanto da cadeira, juntando meus papéis.
- Então eu consegui libertar você desse seu vício em trabalho? - questiona.
Semicerro os olhos para ele.
- Meia-noite eu estarei aqui, e eu espero encontrar os meus pacientes no mesmo estado em que eu os deixei. E caso você ache que eu não vou saber se estão, saiba que decorei todos os níveis da última visita que fiz.
- Sim senhora, chefe. - diz.
- Engraçadinho. - murmuro. - Que hora é? - pergunto.
Ele olha no relógio.
- Doze e quarenta. - informa.
Arregalo meus olhos.
- Eu estou atrasada! - exclamo.
- Espero que tenha um vestido, pelo menos.
Dou um grunhido e após juntar todos os papéis contra meu peito, corro para fora da sala.
- De nada! - ouço ele dizer quando já estou no corredor.
Eu sorrio.
•••
KAKASHI
Um homem poderoso sempre terá um escritório digno da grandiosidade do seu nome, ou do tanto que dígitos que são lembrados quando é mencionado. Quanto maior o nome, mais imponente é o escritório, como se a arquitetura da edificação fosse a personificação de si. No entanto, quando o homem se torna poderoso a partir de maneiras ilícitas, e os negócios para lavagem de dinheiro não realmente acompanham a a grandiosidade do nome, eles são obrigados a ter dois escritórios. Um medíocre, que vai chamar a atenção de alguns, mas que ninguém irá parar realmente para ver sua imponência, e um outro que poucas pessoas conhecerão, mas que deixaria qualquer um de olhos bem abertos. Este último tem o mesmo objetivo de todos os outros escritórios, fazer com que qualquer pessoa diante dele se sinta intimidado, mas ele não confronta você com sua beleza, e sim com o medo.
E o galpão onde estou é esse lugar.
Não que ele me dê medo.
Mas alguém com menos experiência poderia temê-lo.
As histórias sobre esse lugar, se contadas, poderiam virar livros de terror. Escritórios assim possuem ambientes para as mais diversas atividades. Provavelmente deve haver salas de tortura aqui. Uma sala de jogos, talvez. Outra de reuniões…
Sigo o grupo de cinco pessoas e os vejo entrar em um espaço privado que deve servir para uma dessas coisas. Quando subo no telhado e capto a visão do local, percebo que é uma sala de reunião. Dentro do local há mais dois homens que eu não conheço. A mulher loira da boate está sentada à direita do empresário.
- E então? - o homem questiona.
- Está tudo pronto. - ela informa.
- Ele virá?
- Sim, senhor. Sozinho. Recebemos a confirmação hoje.
- E você já tem posse dos órgãos negociados? - questiona.
Órgãos?
Tráfico.
Será que matam e vendem os órgãos das vítimas sequestradas?
Ela reluta antes de lhe dar uma resposta.
- Estão sendo providenciados. Até a hora da troca, estarão prontos.
- A que horas ela ocorrerá?
- Onze e quarenta da noite.
- Não demore. - manda. - Não haverá espaço para falhas nessa encomenda.
- É um cliente perigoso. - comenta ela. - Difícil de ser controlado.
- Tenha isso em mente, querida, porque se o coração não estiver aqui até as onze e vinte, o seu será entregue para ele.
- Sim, senhor. Onde será a troca?
- Aqui. Aqui é seguro. Quero que você arranje uma hospedagem para ele, pois meu cliente ficará aqui até amanhã de manhã.
Ela maneia a cabeça.
- Após isso a missão estará concluída?
- A sua, sim. - diz.
- Sim, senhor.
- Alguma instrução para a hora da troca? Qual a identificação da pessoa?
- A capa. Ele estará usando uma capa preta com nuvens vermelhas.
- Sim, senhor.
A Akatsuki.
Então eu realmente estava certo.
Por que a Akatsuki precisaria de um coração?
Por que escolher o país do fogo, país com o qual já entraram em conflito e saíram em desvantagem, para contrabandear um?
O homem conversa sobre outros assuntos com os outros dois homens na sala. Os desconhecidos. Aparentemente, eles comandam o tráfico de órgãos em outros dois países, sob o nome do empresário. Não há mais nenhuma informação sobre a missão.
Quando a reunião acaba, os sigo outra vez até a carruagem de onde o homem havia descido e após eles saírem eu faço o mesmo, dirigindo-me até a pousada.
Precisarei estar aqui às onze e quarenta, mas antes eu tenho uma festa para participar. Festas tão locais perfeitos para fotógrafos registrarem momentos, então é a oportunidade de fortalecer o disfarce, ainda que eu preferisse ter mais tempo para investigar a aldeia, afinal se algum integrante da Akatsuki vai estar aqui às onze e quarenta, ele deve estar por perto.
- Yare…
Enquanto caminho, tento me concentrar na missão, tento ligar os pontos, compreender a relação entre cada uma das informações, mas não consigo. Toda vez que tento conter os pensamentos sobre Himari, eles voltam ainda mais fortes.
As marcas em seu pescoço estão nítidas em minha mente.
Haviam dois tipos de aperto.
Na verdade, um mais parecia como um esmagamento.
O outro era um visível aperto.
Por que eu lembro de estar no chão?
Como fomos dormir juntos?
O que foi o barulho que a dona da pousada ouviu?
Cerro minhas mãos ao lado do meu corpo.
- Que maldição…
O que eu fiz ontem?
Lembro cada detalhe do maldito pesadelo.
Lembro de estar no chão.
Lembro de sua voz, da melodia.
Lembro que ela já havia cantado para mim aquela mesma música, quando éramos crianças.
Mas eu não lembro do que houve nessa lacuna de tempo entre o momento em que eu deitei para dormir e me vi no chão.
Ainda que eu não queira acreditar, a relutância dela e a insistência em repetir que havia sido um erro seu no hospital, só me faz crer, cada vez mais, que fui eu.
Himari não confessaria.
Ela é boa demais para isso.
E confesso que eu gosto do benefício da dúvida, porque ainda que seja uma possibilidade quase nula, essa incerteza me corrói menos do que a certeza de tê-la atacado.
Por cima do ombro, olho para o galpão que muitos considerariam assombrador. Penso na torturas, nos assassinatos e em todos os tipos de violência que podem ter acontecido ali.
Penso que eu poderia ter sido pego e que poderia estar sendo torturado agora mesmo.
Penso que isso pode acontecer mais tarde, quando eu retornar aqui.
Nada disso me assusta.
No entanto, sinto minha mão trêmula e meu peito desde e sobe irregular quando vem em minha mente a possibilidade de ter machucado aquela garota. Himari não merece ser ferida. Muitas pessoas merecem o sofrimento de suas vidas, mas ela não merece tudo o que passou. Não merece a agressão que sofreu, nem toda a tortura psicológica. Quando criança ela precisou aguentar muita coisa sorrindo e mentindo para mim, então aprendi a ler seus olhos e ainda posso ver a mentira por trás deles. No entanto, nem em um pesadelo eu cogitei que seria minha culpa o motivo dela ter que mentir, sorrir e fingir que nada aconteceu.
E Isso não me causa raiva.
Não faz minha mão tremer.
Meu maxilar não contrai.
No fim, acho que o melhor que poderia acontecer hoje, depois de toda aquela aproximação no café-da-manhã, era ela ter um plantão, afinal aquele momento quase me fez deixar de lado tudo o que houve, como se sua presença e atitudes, me fizessem desacreditar no problema em questão.
Com ela na clínica, não será assim.
Hoje a noite ela estará longe do meu campo de visão.
Não haverá desejo.
Apenas trabalho.
Assim como nos outros dias que virão.
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