Capítulo 10 – O Bom Menino que Vira Mau
Não estava sendo fácil esperar o Plisetsky enquanto sua mente e seu coração disputavam entre si para se sobressair ante as decisões futuras de Yuuri. A primeira o acusava sem cessar de ser estúpido por se preocupar com alguém que não merecia seu amor e que o havia enganado, e o segundo, em contrapartida, berrava por algum meio de salvar Viktor. Poderia não ser amado como amava, mas seu coração ansiava pelo bem do russo de olhos azuis de maneira quase que desesperada.
Como decidir entre razão e sentimento? Não que quisesse qualquer mal ao Nikiforov, muito pelo contrário, só não sabia ao certo o quanto deveria participar da tentativa de resgate deste. Poderia simplesmente informar todo o ocorrido e se afastar, ou implorar que fosse levado junto para ter certeza de que veria Viktor uma última vez. Sua cabeça clamava o afastamento e seu coração implorava para ver o namorado uma última vez. Ou seria ex?
Viktor era um mafioso, alguém do submundo que matava pessoas, roubava, subornava, e se metia em outros tipos de “sujeira” aos quais o Katsuki sequer conseguia imaginar. Como poderia confiar em alguém mediante tanta mentira? Como se impedir de questionar até mesmo o mais simples dos detalhes quando algo tão fundamental havia sido omitido?
Porém, com o choro cessando e sua mente clareando um pouco mais, entendeu que a situação também não havia sido fácil para Viktor. Se não questionasse os sentimentos e analisasse separadamente a mentira, também não encontraria um meio de contar a pessoa amada o que realmente era. O olhar de súplica que viu antes de Nikiforov sumir porta afora era o que mais lhe intrigava.
As palavras ditas de forma ríspida doíam, mas, agora, sabia que elas não tinham sido tão verdadeiras quanto pensou que fossem. A gravidade da situação lhe acertando em cheio. Ele havia estado à beira de morrer, com uma arma apontada para si, a sala repleta de assassinos mafiosos, e Viktor o salvara. Preferiu feri-lo e entregar-se em seu lugar sem questionar, apenas para sua proteção. Dera sua vida em troca da de outra pessoa e não havia prova de amor maior que aquela.
E, em meio a esse pensamento, Yuuri se ergueu do chão, caminhando cambaleante rumo ao colar com o anel que havia atirado contra a parede, pegando o presente e o aproximando do peito, o coração disparado. Não sabia como sua vida seria depois, ou que rumo seu relacionamento tomaria. No momento, tudo o que sabia é que iria atrás do namorado, nem que fosse preciso se aliar a máfia para tal.
Duas batidas rápidas na porta fizeram o japonês se assustar e levantar-se de imediato, sabendo exatamente quem eram os visitantes. Yuri estava com o semblante fechado, as sobrancelhas franzidas, quase unindo-se em sua testa, e Otabek, atrás dele, exalava preocupação. Não pôde conter o choro e atirou-se contra a dupla soluçando. Precisava de um conforto naquele momento antes de relatar a situação.
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Era horrível sentir-se tão impotente, com os braços presos atrás das costas, dois capangas, um de cada lado do seu corpo e armados, além do próprio Dmitri a sua frente, que brincava com a pistola, travando e destravando a trava de segurança. Estava com um pouco de frio também, afinal, seu casaco ficara no apartamento de Yuuri. Poderia bolar um plano para tentar escapar daquele carro, mas, de que adiantaria? Sentia-se como a única barreira entre o Katsuki e a máfia. Estava disposto a morrer se aquilo garantisse a segurança do japonês.
Uma forma ridícula de tentar amenizar a culpa e o peso que sentia por cuspir aquelas torpes palavras falsas contra o menor, fazendo-o chorar. Na hora, pensou ser o único jeito de banalizar seu laço com ele para que o Noviskaya o deixasse impune. Como fora tolo! Mais uma vez, descumprira a promessa que fizera ao primo, pois havia metido os pés pelas mãos. Estava tão envolvido com Yuuri que esqueceu-se de ser discreto, além de subestimar a capacidade de Dmitri. Havia sido um tolo arrogante, cego pelo próprio ego, esquecendo-se que não era mais aquele Viktor que não tinha nada a perder.
Deveria ter dado um fim ao Noviskaya naquela reunião, ou ter sido mais discreto quando a Yuuri, ou até, talvez, ter mantido o namorado em segredo por mais tempo... Tantos erros para manter um único acerto, que era ter escolhido se relacionar com o japonês. A primeira vista, Katsuki era bonito, exótico, mas não tinha nenhum atrativo chamativo como cabelos de cor incomum ou olhos claros, assim como o corpo não tão definido, apesar de esguio. Era um rapaz belo, mas que não se destacava, totalmente oposto ao tipo de amasia ao qual o Nikiforov estava acostumado a desfilar pelo submundo.
Ele não tinha nada de “especial”, pelo menos aos os olhos desatentos, contudo, desde o primeiro encontro naquela fria noite quando Viktor o observou à porta da livraria, analisando meticulosamente suas expressões, ouvindo sua voz e o tom naturalmente aveludado que a mesma possuía, se encontrou necessitado daquele rapaz de uma maneira curiosa e atípica. Yuuri era o tipo de pessoa que não se nota a primeira vista, mas, após perceber sua presença, ela se torna totalmente insubstituível. Era isso que tanto o fascinava.
Por isso ele causava tanto espanto. Era preciso conhecer Yuuri para notar o quão especial ele era. Julgá-lo pela aparência era um erro tolo cometido por aqueles que não sabiam “ler” as pessoas. Nikiforov teve a sorte de interpretá-lo logo no primeiro instante, e, mesmo em meio aos tropeços e erros até finalmente se dar conta do que sentia pelo Katsuki, pôde fazê-lo seu, em todos os sentidos. Se bem que, agora, nada disso adiantava. Queria poder fugir dali, mas se, novamente, subestimasse o Noviskaya, Yuuri é quem poderia correr riscos.
- Não deveria fazer essa carinha tão azeda, Viktor – Dmitri comentou, atraindo sua atenção – Você é tão bonito para ficar com marcas de expressão logo cedo.
O russo de madeixas prateadas rolou os olhos azuis.
- Pelo menos eu tenho a cara bonita – retrucou com certo sarcasmo.
Dmitri desviou o cano da arma para entre seus olhos, o metal gelado contra sua pele.
- Se você não se comportar, vou te matar aqui mesmo.
- Vá em frente – disse Viktor, dando de ombros – Só será uma pena não ver o quanto vão te torturar por ter me matado.
O Noviskaya estalou a língua e novamente, com o polegar, puxou a trava de segurança, destravando-a, seu indicador posicionado sobre o gatilho. Ele e Nikiforov sustentaram o olhar um do outro em um silencioso desafiador, até Dmitri soltar um palavrão e recolher a arma.
- Não vou cair em suas provocações e estragar o plano – explanou – Morrer agora seria uma pena benevolente demais pra você.
Viktor sorriu de canto. Sabia que aquele cara não tinha culhões para, de fato, sujar as próprias mãos. É claro que também não era ingênuo a ponto de não desconfiar do que estava para acontecer, afinal, conhecia bem a paisagem que surgia do outro lado do vidro. Com o olhar perdendo o brilho, Nikiforov soube que sua sentença de morte talvez fosse assinada antes do pretendido.
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Yuri mobilizou a Casa Principal e todos os capangas que eram fiéis a família Nikiforov, assim como Otabek assomou seu próprio grupo e rede de contatos ao contingente já juntado pelo namorado. Precisavam encontrar Viktor a qualquer custo. O Katsuki, por sua vez, estava sentado em uma das cadeiras do escritório do Plisetsky mais velho, na mansão do mesmo, que, junto a Altin e ao neto, bolavam planos e teorias acerca de onde o russo de olhos azuis e madeixas prateadas poderia estar.
- Aquele filho de uma puta mal paga do Dmitri – praguejou Yuri pela milésima vez – Ele deve ter enfiado meu primo no cu arrombado dele, só pode.
- Vamos encontrá-lo, Yura – Otabek ponderou calmamente – Xingá-lo agora não vai resolver nada.
O japonês apenas se remexeu em seu assento, ainda desconfortável com a situação, seus olhos ardendo pelo choro recente. Por mais que estivesse decidido a unir-se a máfia momentaneamente, era extremamente desconcertante estar, de fato, junto a ela.
- Não tem mesmo ideia de para onde eles foram, porquinho? – o russo loiro de olhos verdes tornou a perguntar pela quinta vez.
Yuuri negou novamente, cansado de repetir o que se passara em seu apartamento. Chorara copiosamente abraçado ao Plisetsky e ao cazaque, e assim que se acalmou novamente, foi bombardeado de perguntas acerca do ocorrido. Tentara responder a todas da melhor forma possível, infelizmente, contudo, sua voz falhava em certos momentos, mas, ao fim do relato, se viu pedindo para ir junto aos rapazes, sendo então acompanhado por Altin até um carro que os esperava no lado externo do prédio. E agora estava ali, na tal Casa Principal, junto a outros três mafiosos.
Era estranho pensar que aqueles homens de terno circulando de maneira semelhante a que vira inúmeras vezes na residência do namorado eram capangas mafiosos e estavam constantemente armados, assim como associar o casal Otabek e Yuri a máfia era bizarro, apesar de, de certa maneira, achar que combinava com o russo loiro e seu temperamento. Uma nova realidade que esteve tão perto e tão longe ao mesmo tempo, agora, por sua própria escolha, permeava sua vida.
- O que acha que o herdeiro Noviskaya quer com o Viktor, Yuratchka? – o avô perguntou numa tentativa de formular uma ligação lógica entre a motivação do sequestro e o paradeiro do Nikiforov, atraindo também a atenção do japonês com sua fala – Ele sabe que não só será torturado e morto, como também entregou-me de bandeja a execução da própria família.
- Sabe que ele nunca aceitou bem o fato do Viktor ter transado com ele só pra se mostrar ainda mais superior.
- Vingança? – Otabek aferiu.
- Talvez – Yuri deu de ombros.
Então Yuuri estava certo quando desconfiou que talvez Dmitri fosse um amante do russo de cabelos prateados. Uma insegurança irracional lhe atingiu o peito e imediatamente sentiu falta de Viktor, do calor de seus abraços e do sentimento de segurança que eles lhe traziam. Estava mesmo com ciúmes de um mafioso psicopata que sequestrara o Nikiforov? Mesmo que a resposta fosse afirmativa, como de fato era, era ridículo sentir isso, além de um grande absurdo.
Contudo, não era como se conseguisse evitar sentir o que sentia. Estava em meio a um furacão de emoções, infelizmente a maioria era negativa e sufocante, afinal, a ideia de Viktor ser morto causava em Yuuri uma ânsia angustiante. Deu dois tapinhas leves nas bochechas do próprio rosto e chacoalhou a cabeça de forma rápida para afastar tais pensamentos. Não era hora de focar nisso. Altin, por sua vez, notou a inquietação do namorado do Nikiforov, preocupando-se.
- Yuuri? – a voz de Otabek atraiu sua atenção.
O trio agora encarava o moreno asiático. O idoso direcionava certa curiosidade ante o japonês e sua estranha postura ao aparecer ali dizendo que queria ajudar a achar Viktor, pouco importando-se com a máfia em si. Pensou que fosse ocorrer o extremo oposto, com o asiático entrando em desespero, cheio de questionamentos inoportunos, mas, talvez, o choque o tivesse anestesiado momentaneamente, o fazendo colocar a cabeça no lugar e ordenar as prioridades. Pelo menos entendia o que seu neto adotivo havia visto naquele rapaz.
- Trouxemos você para cá porque insistiu em nos acompanhar – o cazaque continuou em meio a falta de resposta do japonês – Porém, se não estiver se sentindo bem, podemos te levar para...
- Não! – interrompeu bruscamente – Eu quero ficar aqui... Por mais que eu não possa ser útil como vocês, ainda sim, quero ficar.
Altin se calou e assentiu, sorrindo minimamente. Sabia que havia muita coisa a ser explicada, muitas decisões a serem tomadas, todavia, a prioridade ali era achar Viktor e tinha ciência de que o Katsuki concordava com isso. Os questionamentos poderiam ficar para depois, quando tudo estivesse mais calmo.
- Tem certeza que Dmitri não deu nenhuma dica de para onde poderia estar levando o Viktor, porquinho? – Yuri se intrometeu.
- Eu não prestei muita atenção – confessou com certo embaraço, pois desejava, mais do que tudo, contribuir com a busca pelo Nikiforov – Eu... Estava assustado com tudo, tentando entender o que acontecia, e não me atentei muito ao que falavam.
- Entendo – foi a vez do Plisetsky idoso se pronunciar – De qualquer forma, se lembrar-se de algo, por mínimo que seja, não hesite em dizer.
O Katsuki assentiu, pigarreando para limpar a garganta. Havia uma coisa.
- Ele... Parecia com raiva do Vitya, se divertindo com o fato de eu ter descoberto sobre, bem... Sobre ele ser um mafioso – o japonês parou por um momento para continuar a montar sua linha de raciocínio.
Nesse meio tempo, o Plisetsky e o avô trocaram um olhar, ambos percebendo o apelido do Viktor sendo usado por Yuuri de forma quase que habitual. O moreno de olhos castanhos percebeu tal ato, mas não o entendeu, totalmente alheio a ter evocado o jeito carinhoso ao qual se referia a Nikiforov. Preferiu ignorar a troca de olhares e seguir com seu raciocínio agora já montado.
- Suponho que, pelo que estão dizendo sobre o tal Dmitri, é provável que ele tenha levado o Vitya para algum lugar que tivesse significado para os dois.
Foi então que, ante essa fala, percebeu que chamara o russo de “Vitya” e não “Viktor”, praguejando mentalmente por tal deslize. Independente do resultado final de toda aquela situação, Yuuri sabia que jamais chamaria o Nikiforov assim novamente.
- Lugar com significado para os dois... – Yuri repetiu e, no instante seguinte, foi como se uma luz iluminasse sua mente.
Otabek notou a mudança de semblante do namorado e arqueou uma sobrancelha.
- Yura?
- Eu sei para onde o desgraçado levou meu primo – sentenciou o Plisetsky mais novo – Abra a planilha com o mapeamento das docas ao sul.
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Viktor estava ajoelhado, da sua boca aberta em busca de ar pingava sangue, sua cabeça doía devido aos inúmeros socos, chutes e coronhadas, ao tempo em que seus pulsos ardiam em carne viva, atados por uma corda. Sobre seus ombros, os capangas de Dmitri o mantinham naquela posição. Eram muitos e, infelizmente, sozinho, não dera conta de todos, sendo novamente capturado e punido após sua tentativa de fuga. Matou vários, desacordou outros, mas, para seu infortúnio, a quantidade se sobressaiu ante suas habilidades.
Seu rosto foi levantado apenas para ser socado novamente, sua mandíbula estalando. Seu nariz provavelmente também estava quebrado e sabia que ele sangrava. Seu corpo apenas envolto pela roupa íntima fora judiado e sabia que inúmeros hematomas e cortes espalhavam-se por sua pele. Sua visão estava nublada, porém, ainda sim, tentava juntar forças para fugir ou, pelo menos, retardar sua condenação.
- Se tivesse aceitado fazer sexo comigo, eu teria te matado de forma mais gentil, Viktor – Dmitri suspirou, agachando-se para poder encarar os olhos azuis quase sem vida.
Mesmo destruído daquela maneira, Nikiforov ainda conseguiu cuspir longe o suficiente para acertar o rosto do Noviskaya e sorrir com escárnio.
- Eu não... Te comeria de novo... Nem se minha vida... Dependesse disso... – retrucou de forma dificultosa devido à dor latente em seu crânio – Eu tenho... Nojo... De você... Seu putinho de quinta...
Um soco, um chute e Viktor foi de encontro ao chão mais uma vez, seu corpo produzindo um baque seco. Seu corpo involuntariamente se envergou ao sentir suas costelas serem atingidas e cuspiu mais sangue, sentindo-se beirar a inconsciência. Tendia a ter mais resistência, afinal, passara por coisa muito pior, entretanto, seu emocional estava destruído, seu pesadelo sendo repassado em sua mente. Havia feito Yuuri chorar novamente, a dor estampada nos olhos castanhos lhe dava a sensação de ter o coração arrancado.
- Levantem-no novamente – o Noviskaya ordenou, o trazendo para a realidade.
E assim os capangas o fizeram com certa dificuldade. Dmitri fechou os dedos com força na franja prateada do Nikiforov, torcendo os frios ao tempo em que levantava o rosto do russo de olhos azuis, o encarando de maneira superior.
- E pensar que você, o grande Rei de Gelo, está aqui, reduzido a nada – proferiu com escárnio – Como te achavam melhor do que eu, eu nunca vou saber. Você é patético. Um nada sem seus capangas.
Viktor quis rir perante aquela fala, afinal, o quão hipócrita ela poderia ser? Ele estava desarmado, sem roupas, sozinho, e ainda sim conseguira fugir mesmo que momentaneamente de todos os capangas de Dmitri, até mesmo matando alguns. Poderia não estar em sua melhor forma, todavia, continuava sendo melhor que o verme que torcia seus cabelos.
- Pensei que seria mais interessante lidar com você, mas o divertimento foi passageiro – o Noviskaya sentenciou, puxando com a mão livre a arma presa a cintura, a apontando contra a testa do russo de olhos azuis – Eu cansei de você, então, adeus, Viktor.
Dizem que, quando se está para morrer, toda a sua vida é projetada diante de seus olhos e Viktor esperou que isso fosse verdade, pois sabia que, ao fim dela, veria Yuuri uma última vez. Fechou os olhos, aceitando seu destino, ouvindo pouco depois o barulho de um tiro.
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Otabek sabia que aquele palpite talvez estivesse errado, mas era a melhor opção que tinham no momento, então não questionou ou ofereceu oposição quando o namorado mandou que alguns capangas fossem averiguar a área enquanto o Plisetsky preparava-se para agir. Tinha um plano em mente, bolado às pressas, então tudo deveria correr de maneira milimetricamente calculada se quisessem obter sucesso.
- Eu vou entrar no galpão com você, Yura.
- Não, você só entra quando eu mandar – respondeu de imediato – Preciso que fique do lado de fora e siga minhas ordens. É o único em quem posso confiar de verdade.
Altin abriu a boca para retrucar, porém, ao observar a determinação nos olhos do menor, se calou. Yuuri, por sua vez, seguia o casal escadaria abaixo em completo silêncio, apesar de sua cabeça estar latejando imersa em pensamentos. Estavam indo por uma passagem que tinha como ponto de partida uma porta camuflada no escritório onde residiam anteriormente, descendo degrau após degrau. Os passos ecoando pelas paredes.
Havia concordado com o plano, apesar de este ser praticamente suicida ao seu ver, afinal, só ele e o Plisetsky entrariam de início no galpão e o russo loiro lhe daria cobertura até que conseguisse achar Viktor por conta e trazê-lo em segurança. Confiava nas habilidades de Yuri, mas não nas suas. Não sabia lutar e nunca atirara na vida, mas mesmo assim o faria se fosse necessário para proteger Nikiforov. Ao pensar nisso, inconscientemente apertou o anel que ganhara do mesmo, a corrente pendurada em seu pescoço.
- Yuuri? – Otabek o chamou, detendo o passo.
Encarou o cazaque de forma inexpressiva.
- Eu sei que deve ter sido um choque para você, assim como ainda não teve tempo de assimilar tudo, então, se quiser desistir do plano, ainda há tempo – disse Altin – Eu tenho certeza de que, mais do que qualquer outro, Viktor ficaria grato por não ter te feito sujar as mãos.
De imediato, o Katsuki negou.
- Não ligo para o que Viktor iria querer. Eu decidi que iria ajudar, e não volto atrás com minha palavra – respondeu, tentando soar de maneira mais firma possível, tomando cuidado para não chamar o outro novamente de “Vitya”.
- Tem certeza? – Altin retrucou, ainda incerto.
Yuuri assentiu, fechando os dedos das mãos em punho.
- É só que ainda me dói lembrar o que me foi dito... – confessou – Não é fácil ouvir seu namorado dizer que tudo não passou de sexo e que você era só um bom puto na cama.
Antes que o cazaque pudesse dizer algo, Yuri se intrometeu.
- Não seja idiota, ele só disse isso pra te proteger – a voz do russo loiro soou de forma um tanto quanto ríspida
- Eu sei disso, mas não é como se eu conseguisse evitar ficar magoado – respondeu em autodefesa – Eu jamais conseguiria dizer a pessoa que amo esse tipo de coisa com uma expressão tão cretina.
- Isso é porque você não foi criado como o Viktor – Yuri rolou os olhos verdes como se explicasse o óbvio, logo os desviando do Katsuki para olhar para o chão – Meu primo teve de aprender a controlar as emoções e atuar para sobreviver e, quando ele não conseguia, bom... Você viu as cicatrizes dele, não viu?
- Nosso mundo é mais cruel do que pensa, Yuuri – Otabek interveio novamente, a calma característica de sua voz reverberando ao tempo em que pousou a mão no ombro do japonês – Sei que Viktor mentiu sobre quem é e o que faz, mas tenho certeza de que ele sempre foi honesto com o que sentia por você.
Yuuri apenas assentiu novamente, deixando uma lágrima escorrer pela bochecha antes de limpá-la com as pontas dos dedos. Não era justo que, por causa de uma mentira, o japonês questionasse tudo, apesar de sua confiança ter sido seriamente abalada. Aquele não era o momento oportuno para se ter surtos emocionais.
- Bom, se você já se recompôs, podemos continuar andando? – o Plisetsky perguntou.
Altin encarou o namorado de Viktor, que meneou a cabeça de maneira positiva, e o trio se pôs a descer o resto da escadaria. Havia um salão com paredes de pedra, uma mesa enorme com cadeiras ricamente decoradas e um gigantesco lustre pendendo do teto. Yuri se aproximou de uma das paredes e moveu uma pedra, revelando um botão, apertando-o de imediato.
As pedras começaram a se mover, como se girassem em um eixo, e uma nova parede surgiu atrás delas, repleta dos mais variados tipos de armamentos. Katsuki encarou aquilo com curiosidade e apreensão. Era tudo tão real e surreal, afinal, sentia-se como um personagem de um filme ao mesmo tempo em que a realidade lhe atingia cada vez mais forte.
O Plisetsky se adiantou a parede, pegando uma pistola prateada perfeitamente polida, com entalhes no cabo de marfim e gravações no cano. Conferiu se estava carregada e, com ela ainda em mãos, aproximou-se de Yuuri, que manteve os olhos fixos no objeto.
- Essa arma é uma das favoritas do Viktor, mas a própria dele está na mansão Nikiforov – Yuri explicou com seriedade – Não hesite se precisar usá-la, entendeu? Ninguém lá será bonzinho com você.
- Tudo bem... – disse sem convicção – O problema é que, bem, eu não sei atirar.
- Mire, dedo no gatilho, uma mão de apoio embaixo da outra e cuidado com o solavanco, apesar de ele não ser tão forte – respondeu – É só em caso de necessidade, afinal, eu vou te dar cobertura.
Com um meneio positivo de cabeça, o Plisetsky entregou a arma ao japonês, voltando-se para Otabek, indicando a parede.
- Sirva-se – ditou, pegando duas outras pistolas e colocando-as no coldre por dentro do paletó.
O celular do russo loiro tocou e imediatamente este o pegou, atendendo.
- Espero que sejam boas notícias – sibilou.
- Sim, senhor Plisetsky – o capanga do outro lado da linha afirmou – Localizamos o senhor Nikiforov no endereço fornecido.
Yuri sorriu minimamente por saber que o primo ainda estava vivo e tinha tempo hábil para agir.
- Ótimo, matem e tomem o lugar dos capangas externos, mas não invadam o local. Sigam o plano – instruiu o Plisetsky em tom autoritário – Fique de olho em Viktor e só ajam se a vida dele estiver realmente em perigo.
O capanga do outro lado da linha acatou o comando e encerrou a ligação. Otabek e Yuuri encaravam o russo com certa ansiedade e, depois de um suspiro, o loirinho de olhos verdes começou a caminhar rumo à escadaria.
- Viktor está nas docas ao sul de Moscou como eu suspeitava – explanou – Demos aquela região aos Noviskaya para que não interferissem no nosso acordo com a família Altin, então foi meio óbvio Dmitri tê-lo levado até lá.
O cazaque assentiu e, também devidamente armado, seguiu o Plisetsky degraus acima. Katsuki foi logo atrás da dupla, sentindo um alívio lhe preencher por saber que Viktor ainda estava vivo. Estava nervoso por ter aquela arma junto a si, mas, ao mesmo tempo, sentia-se extremamente determinado a deixar de acovardar-se e ir atrás do Nikiforov, afinal, era por sua culpa que o russo de olhos azuis encontrava-se naquela situação, pois era para proteger sua vida que o namorado entregara-se de bandeja a Dmitri.
Queria poder provar seu amor ao outro assim como havia sido feito consigo e estava determinado a levar aquele plano até as últimas consequências, ciente de que isto poderia lhe custar a vida. Com isso em mente, seguiu o casal a sua frente, voltando ao escritório, encontrando o Plisetsky idoso sentado a mesa com um semblante pouco amigável. Ele estava ao telefone e, assim que viu o neto surgir sendo seguido pelo Altin e, ao fim, por Yuuri, encerrou a ligação, encarando os rapazes.
- Todos os bens da família Noviskaya foram congelados, assim como cuidei para que qualquer possibilidade de saída do país fosse bloqueada – informou – E eu, pessoalmente, vou cuidar do resto dos membros da família Noviskaya.
- Ótimo. Nós vamos buscar o Viktor – Yuri disse, convicto.
O avô assentiu, levantando-se.
- Tenha cuidado, Yuratchka.
O russo loiro assentiu.
- Terei, e trarei Viktor de volta. É uma promessa.
Katsuki silenciosamente concordou com aquilo, repassando na memória o que deveria fazer. Um erro e tudo estaria perdido.
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O barulho de um tiro ecoou pelo galpão e, em seguida, um urro de dor pôde ser ouvido ribombando pelo espaço. Dmitri segurou uma mão sobre a outra numa estúpida tentativa de estancar o sangue e a ardência, soltando a franja de Viktor e também sua própria arma, que caiu ao chão. Os capangas que mantinham Nikiforov ajoelhado apontaram as armas em direção aos disparos, mas logo também foram alvejados, seus corpos caindo ao chão, uma poça de sangue formando-se ao redor de seus corpos.
Viktor virou o rosto em direção ao vulto que disparara e, por mais que sua visão estivesse nublada, reconheceu de imediato a silhueta de seu primo, que tratou de se esconder nas sombras novamente devido aos outros capangas que mobilizaram-se para atirar no invasor. Dmitri ainda chorava perto de Nikiforov, de joelhos, observando o sangue fluir do buraco em sua mão, até um homem se aproximar dele, ajudando-o a levantar-se, caminhando com o mesmo para longe dali.
Logo as trocas de tiros começaram, os capangas que pertenciam ao Plisetsky invadindo o local sob ordens de Otabek, que juntou-se ao namorado. Os capangas do Noviskaya tentando fugir junto ao seu líder, impossibilitados, presos dentro do enorme galpão como ratos. Em meio a esse caos, Viktor estava ainda ajoelhado, a dor tão forte que não conseguia se mexer. Pelo menos estava fora da zona de conflito, o que era o objetivo inicial de Yuri ao invadir somente na companhia de Katsuki o local.
O russo loiro via o primo parado do local onde estava refugiado e, por meio de um sinal anteriormente combinado, instruiu que Katsuki fosse até ele, indicando que o mesmo estava fora de perigo. Viktor jamais perdoaria o loirinho de olhos verdes se algo acontecesse com seu namorado. Imediatamente Yuuri se moveu em meio às sombras, parando vez ou outra para não cruzar com nenhum atirador, seguindo o caminho que havia sido mostrado a si na mansão Plisetsky por meio da projeção do local.
- Viktor... – o moreno de olhos castanhos sussurrou, totalmente em choque pelo estado físico do namorado.
Com cautela, rodeou alguns pilares de ferro que sustentavam o telhado e também serviam de abrigo contra os disparos, alcançando as costas de Nikiforov, agilmente trabalhando em puxá-lo para si para um local ainda mais afastado. Viktor demorou a perceber que era Yuuri, seu Yuuri, que estava ali, trabalhando com rapidez para desatar os nós da corda que culminavam o movimento de seus membros superiores.
- Yuu... Ri...? – murmurou com dificuldade, a garganta arranhando e a visão desfocada.
Quase não acreditava no que estava diante de seus olhos. Aquele era mesmo Yuuri?
- Yuuri...? – disse mais uma vez, com um pouco mais de firmeza.
O japonês o encarou, segurando-se para não chorar ao ver o estado não só do corpo, mas do rosto do russo. Com cuidado, depositou um leve selo nos lábios machucados e maculados de sangue, provando que era ele mesmo quem estava ali. Acariciou a franja prateada, tirando-a do rosto do mais velho, para então se voltar novamente a suas costas para livrá-lo da corda.
Após soltá-lo, tirou a própria jaqueta, posicionando-se a frente do corpo de Nikiforov, ajoelhando-se entre as pernas do mesmo, ajudando-o a se recostar a um pilar de ferro, colocando sua vestimenta sobre os ombros alheios. Tocou a bochecha ferida com a maior delicadeza possível e sorriu tristemente, sentindo certo alívio perante o fato de o russo de olhos azuis estar vivo.
Sua mão logo foi coberta pela de Viktor, que inclinou o rosto ainda mais em direção ao seu toque, fechando os olhos. Sua respiração estava mais leve e sentia, aos poucos, o peso se esvaindo. Por mais que quisesse gritar não só com o japonês, mas também com seu primo por permitir que Katsuki se arriscasse daquela maneira sem ter qualquer experiência com armas, estava mais do que feliz de vê-lo ali.
- Achei que... Não te veria... Nunca mais... – sussurrou – Me perdoe, Yuuri... Por tudo...
As lágrimas brotaram de seus olhos de forma involuntária, apesar de aquele não ser o melhor momento para conversar sobre isso. Os tiros ainda ressoavam pelo ambiente, apesar de estarem relativamente distantes do local onde Yuuri e Viktor encontravam-se. Graças aos céus aquele galpão era grande. Com um suspiro, o japonês retornou a realidade, lembrando-se que o plano ainda estava em execução.
- Tudo bem, Viktor – ditou com certa calma, apesar da expressão facilmente demonstrar o oposto – Conversamos sobre isso depois, agora eu só quero te tirar daqui. Consegue se levantar?
Em meio a uma dificuldade relativamente grande, com o auxílio de Yuuri e da pilastra de ferro, Viktor se pôs em pé. Seu braço foi posto ao redor do pescoço de Katsuki e este abraçou a lateral de seu corpo, ouvindo um gemido de dor escapar da boca do russo de olhos azuis.
- Apóie todo o seu peso em mim, Viktor.
E assim o russo o fez. Com passos vacilantes e uma dor imensurável, o japonês guiou o Nikiforov pelo caminho que tinha percorrido para chegar anteriormente até o mesmo, aproximando-se do esconderijo do Plisetsky, que, assim que colocou os olhos em ambos, correu em auxílio dos mesmos.
- Yura... – o russo de olhos azuis murmurou, feliz em ver o primo.
- Coloque seu braço ao redor do meu pescoço, Viktor – comandou o Plisetsky, sendo imediatamente obedecido – Beka vai nos dar cobertura. Vamos tirar você daqui e depois eu vou atrás do Dmitri.
- Ele... Fugiu?
- Só para algum canto do galpão. Eu atirei na mão dele – explicou, logo voltando os olhos verdes para o japonês – Agora é só me seguir, porquinho.
Yuuri assentiu, observando os dois russos caminharem por entre os pilares de ferro a sua frente. A zona de conflito se aproximava cada vez mais, o barulho de tiros soando mais alto, apesar de que com menor frequência, até que um passou entre Katsuki e os primos, fazendo o japonês recuar com o susto. O Plisetsky olhou de relance para trás, vendo Katsuki indicar com a mão e mover os lábios dizendo para irem, que ele logo os acompanharia.
Assentiu, e voltou a caminhar com Viktor, sabendo que Otabek estava perto da saída com alguns capangas, o local completamente cercado e, aos poucos, sendo controlado por aqueles que eram fiéis a Casa Principal. Katsuki estaria em segurança também, mesmo que ficasse parado onde estava, afinal, poderia deixar o primo sobre cuidados médicos e voltar para buscar o japonês. Só precisava percorrer mais alguns metros, porém, a voz de Yuuri soou ao fundo em um grito desesperado, atraindo sua atenção e a de Nikiforov.
- Yurio, cuidado!
Só teve tempo de virar-se parcialmente para encontrar-se apto a observar Dmitri surgir como uma assombração, a arma em punho e voltava para Viktor. Não teria tempo de puxar a própria e atirar contra o Noviskaya sem que o primo fosse ferido e Nikiforov estava fraco demais para desviar sem grandes danos. Estava tentando pensar em uma saída quando o tiro foi disparado, ecoando pelo ambiente, mas este não proveio da pistola apontada em sua direção.
Dmitri abriu a boca, o sangue minando dela, e arregalou os olhos, ao tempo em que, na região do peito, perto do coração, sua camisa branca começou a ficar manchada de vermelho. Mais dois tiros, um perto do ombro e outro no meio da barriga, e o corpo caiu inerte de cara no chão, a arma do Noviskaya ao lado de seu cadáver. Yuuri estava atrás dele, com a arma em mãos, tremendo levemente, os olhos inundados de lágrimas.
Com um empurrão, Viktor se afastou do primo, que protestou, sendo ignorado, caminhando de maneira tortuosa até o namorado, jogando-se contra o mesmo, abraçando-o. Katsuki manteve-se parado na mesma posição, os olhos fixos no corpo inerte ao chão, até os dedos do russo tocarem seu pulso, fazendo-o abaixar a arma. Ele imediatamente a soltou e abraçou o Nikiforov, chorando ao ponto de soluçar.
- Está... Tudo bem agora... Yuuri... – o russo sussurrava em seu ouvido, ignorando toda a dor que aquele abraço proporcionava em seu corpo, pois sabia que o moreno precisava de conforto – Vai ficar... Tudo bem...
Otabek se aproximou, sendo acompanhado por mais alguns capangas. Os tiros haviam cessado, o local estava dominado pelos capangas da Casa Principal, Dmitri estava morto, assim como seus comparsas, e tudo o que podia ser ouvido era o choro de pânico do japonês que, aos poucos, ia cessando também.
- Viktor – o cazaque chamou – Precisamos cuidar de você.
- Eu fico com o porquinho – Yuri ofertou – Vá com o Beka.
Antes de se separar por completo do menor para ser auxiliado por Altin e mais alguns capangas, Viktor deu uma última olhada no semblante do namorado, que agora parara de chorar, mas ainda fungava, secando insistentemente as lágrimas, seu corpo ainda submetido a leves tremedeiras. Trocaram um rápido olhar, até bloquearem sua visão, ouvindo a voz do russo loiro acalentar o asiático.
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A madrugada havia sido de extremo agito, e agora o amanhecer dava seu primeiro sinal de vida, apesar do céu ainda estar levemente nublado. A equipe médica particular estava finalizando o último curativo na região das costelas de Viktor, ao tempo em que os capangas, liderados por Plisetsky e Altin, cuidavam da limpeza do galpão, livrando-se dos corpos e dos vestígios destes. Yuuri estava quieto, a poucos metros de Nikiforov, os olhos voltados para o céu, o semblante inexpressivo.
Katsuki não sofrera nenhum ferimento grave, apenas alguns arranhões nos braços e costas por ser um tanto quanto desastrado, culminando em ter colidido com alguns pilares de ferro. Contudo, era notório que seu psicológico tivesse sido afetado. Viktor, por sua vez, após dispensar o médico que o atendia, caminhou com mais firmeza, sentando-se ao lado do moreno de olhos castanhos no chão, emitindo certos resmungos pela dor que os movimentos proporcionavam.
Yuuri o encarou, observando as roupas que o outro vestia, trazida as pressas pela equipe médica. A calça de moletom escondia os hematomas das pernas, mas os chinelos revelavam os presentes nos pés, e a jaqueta de Yuuri jogada sobre os ombros não servia para cobrir todas as faixas que estavam ao redor do tórax do mais velho, assim como não escondiam os pulsos e os curativos nestes.
O rosto também possuía sua porcentagem de bandagens, principalmente na região do nariz, que havia sido deslocado e posto novamente no lugar por uma médica. Contudo, mesmo em meio a esse caos, os olhos azuis ainda se destacavam, e Katsuki pôde ver neles medo, dor e, principalmente, súplica. Com um suspiro, abraçou os joelhos junto ao peito, encarando o horizonte.
- Você... Quer conversar sobre o que aconteceu? – Viktor perguntou, um tanto incerto.
- Eu não sei... – murmurou – Uma parcela de mim ainda tem esperança de que tudo não tenha passado de um pesadelo e que, a qualquer momento, vou acordar no meu quarto.
- Eu estaria ao seu lado, se isso acontecesse?
Yuuri ficou em silêncio por um momento, pesando o que iria dizer.
- O que, exatamente, era real no nosso relacionamento, Viktor?
O russo de madeixas prateadas virou o rosto na direção do moreno asiático, mas Katsuki não o encarou de volta.
- Tudo – respondeu, tentando esconder o tom levemente magoado na voz – Até mesmo a parte em que trabalho com importação e exportação, por mais que minha empresa seja apenas de fachada.
O japonês ficou em silêncio novamente por alguns instantes.
- Você... Realmente sente algo por mim? – inquiriu Yuuri, finalmente encarando o russo, os olhos castanhos marejados – Por favor, seja honesto comigo, Viktor. Eu realmente signifiquei algo pra você?
- Você significa tudo pra mim, Yuuri – disse com doçura – Eu amo você.
Aquilo fez seu peito se apertar e um nó trancar sua garganta.
- Pretendia me contar sobre a máfia algum dia?
- Sim – Nikiforov respondeu.
Katsuki arqueou uma sobrancelha, não sabendo se aquilo era de fato verdade, mas o brilho no olhar de Viktor dizia que era.
- Quando? – tornou a questionar.
O russo de olhos azuis desviou o olhar para frente, soltando um suspiro ao tempo em que coçava a nuca. Seus movimentos estavam mais lentos e seu corpo ainda doía, apesar dos analgésicos.
- Eu, honestamente, não sei, Yuuri – proferiu – Eu pretendia te contar, pensei em muitas maneiras de como fazê-lo, mas nenhuma delas me garantia que, mesmo depois de revelar quem eu era, você ficaria comigo. Eu fui covarde e egoísta, fiquei com tanto medo de te perder que escondi a verdade de você...
- E olha onde viemos parar – o japonês murmurou, calando Viktor de imediato – Sabe, eu hesitei muito em vir pra cá, porque minha cabeça latejava, dizendo que eu não deveria me importar com alguém que mentiu pra mim e me disse aquelas coisas horríveis... Mas... Eu sabia que, se não viesse, eu não suportaria. Eu precisava te ver uma última vez, mesmo que isso custasse a minha vida, por que você tinha arriscado a sua pra me proteger.
- Yuuri... Aquilo que eu disse no apartamento não passou de uma mentira e eu só disse aquilo por que...
- Eu sei – Katsuki o cortou mais uma vez – Queria me proteger. Eu sei disso, e foi por isso que eu vim atrás de você, por mais que eu não tivesse coragem de, mesmo naquela situação, dizer coisas horríveis como você fez, eu ainda sim entendi seu lado.
Nesse momento, o moreno de olhos castanhos levou a mão ao anel em seu pescoço, apertando-o contra sua palma.
- Mas...? – Nikiforov aferiu, temendo o que viria a seguir, atento aos gestos do menor.
- Mas isso não justifica a mentira, Viktor – os olhos castanhos de Yuuri perderam o brilho – Você me enganou, mentiu para mim esse tempo todo, ludibriou a Mila, me fez cair nesse papo romântico e ainda me expôs ao perigo. Tem noção do quão traumático isso é? Eu não sou mafioso, Viktor, na verdade, acho que sou incapaz de machucar qualquer um, e matei um cara. Eu matei uma pessoa a sangue frio!
Nikiforov percebeu quando o corpo do japonês começou a tremer de maneira inconsciente.
- Não tive a mesma criação que você e não faço a menor ideia do que te levou a se unir a máfia, e sei que, por mais que aquele cara tenha merecido morrer, não justifica o que fiz.
Viktor apenas concordou com a cabeça, aguardando a decisão do moreno, mas esta não veio. Yuuri se calou, o olhar perdido no céu.
- Você... Quer terminar, não quer? – o russo perguntou, mordendo o lábio de forma instintiva.
- Eu... Não sei... – o outro murmurou, a voz levemente alterada pelo choro que segurava – Eu amo você, mas não sei se consigo conviver com tudo isso. Eu tenho medo de ficar, mas também tenho medo de ir.
Os olhos azuis de Nikiforov desceram para o anel, que ainda mantinha-se dentro da mão em punho do japonês e um sorriso triste se formou em seus lábios.
- Sabe, Yuuri... Desde a primeira vez que te vi, eu quis você pra mim – admitiu, encarando o sol que começava a surgir entre as nuvens acinzentadas – No começo, eu fiquei nervoso, tentava me convencer de que era só um desejo sexual, mas, quando me dei conta, eu estava totalmente apaixonado por você.
Os olhos castanhos se voltaram para o russo.
- Mas, não se preocupe, não estou te dizendo tudo isso para que se sinta mal, assim como também não vou te impedir ou ameaçar para que fique comigo, apesar de que eu bem que poderia fazê-lo – brincou um pouco para suavizar o clima – Eu só quero que entenda que eu fui honesto com você sobre meus sentimentos. Você me fez sentir que valia a pena viver, e me fez desejar, pelo menos quando estávamos juntos, que eu pudesse ser uma pessoa normal e eu sou grato por isso.
Uma lágrima rolou pela bochecha de Yuuri e Viktor logo a secou com o polegar.
- Não chore, sim? – pediu com a voz calma – Eu quero que seja feliz, Yuuri, mesmo que para isso não fique ao meu lado. Você é uma pessoa maravilhosa e, com certeza, vai arranjar outro alguém mais rápido do que pensa. Só cuidado com alguns russos, principalmente se eles forem tão charmosos quanto eu.
Katsuki riu fracamente.
- Ninguém é tão charmoso quanto você, Viktor.
- Eu sei, afinal, sou o russo mais gostoso do mundo – comentou comicamente, dando uma piscadela.
O moreno de olhos castanhos não pode evitar rir. Viktor adorava aquele som e, com toda certeza, sentiria falta de quando ele partisse para talvez nunca mais voltar.
- E, Yuuri, quanto ao que aconteceu aqui, sobre mim, Yuri e Otabek... Sabe que não deve contar para ninguém, não sabe?
- Sim, não se preocupe – afirmou o Katsuki com convicção.
Com um suspiro, Viktor jogou a franja para trás. Já havia quebrado tantas regras, que quebrar mais uma, a que dizia que aquele que descobrisse sobre a máfia ou se juntava a ela, ou morria, não seria problema. Confiava no japonês.
- Será que posso te pedir uma última coisa, Yuuri? Ou melhor, duas.
O moreno o fitou com curiosidade, concordando.
- A primeira é que aceite uma carona até seu apartamento, só por segurança. Não precisa vir necessariamente comigo.
- Tudo bem, não é como se eu tivesse medo de você, Viktor – riu – E a segunda coisa?
- Um beijo.
Yuuri travou por um momento, mas depois concordou. Ambos postaram-se de pé, Viktor demorando-se um pouco mais no ato, e então encararam-se.
- Espero que um dia possa me perdoar.
- Por mais estranho que possa parecer, eu não estou com raiva. Magoado sim, por ter me escondido algo tão fundamental quanto isso, mas não vou guardar rancor – sorriu com tristeza – Eu estava feliz com nosso namoro pelo fato de estar com você.
Viktor lhe tocou o queixo, aproximando os rostos.
- Se continuar me dizendo essas coisas, não sei se vou conseguir me conter só com um beijo – o russo zombou, sorrindo com malícia.
- Mesmo machucado assim? – Katsuki riu, arqueando uma sobrancelha – Haja estâmina.
Rindo, Nikiforov roçou seus lábios nos do japonês, que avançou com suavidade contra sua boca, findando o espaço entre elas. Suas línguas logo começaram a se enroscar uma na outra com sutileza. O beijo estava sendo diferente de todos os outros. Tinha um gosto amargo e triste, algo que provavelmente sempre permeava um beijo quando este era de despedida.
Viktor quebrou o beijo, os olhos azuis fitando os castanhos, o vento agitando o cabelo de ambos. O sol finalmente brilhando no céu. Yuuri sorriu de forma doce e levou as mãos à corrente de prata no intuito de tirá-la, mas foi delicadamente impedido. Nikiforov negou com a cabeça.
- Fique com ela – o russo disse – Foi um presente, afinal.
O japonês assentiu, logo virando o rosto na direção de Yurio, que chamava a ambos agitando as mãos. Estava na hora de ir. O motorista os aguardava com a porta do Rolls Royce aberta, onde Viktor embarcou primeiro, sendo seguido por Katsuki. Otabek e o Plisetsky adentraram o carro logo em seguida.
- O vovô vai cuidar do resto e, pelo que conversamos, a família Altin vai assumir o lugar da Noviskaya.
Viktor assentiu, concentrado no japonês ao seu lado, que encarava o vidro, mas que voltou o rosto em direção a Yuri quando este começou a falar, claramente curioso.
- Eu ainda não entendi essa história de famílias... Não são todos mafiosos?
O Plisetsky revirou os olhos e Otabek soltou um risinho. Por sua vez, Nikiforov segurou a mão de Yuuri, virando-a com a palma para cima.
- Existem cinco famílias principais que controlam todo o submundo. Todas são mafiosas e regidas pelas mesmas regras. O que muda é a função de cada uma – começou a explicar, tocando o polegar do Katsuki – Este dedo, que fica abaixo de todos os outros, representa a quinta família, que era a Noviskaya e agora será a Altin. São responsáveis pela “limpeza”, como você pode ter percebido no galpão.
O moreno de olhos castanhos asiático encarou momentaneamente o Nikiforov, antes de voltar a atenção a sua própria mão, evidentemente interessado.
- O dedo médio, por ser o maior, é o que representa a Casa Principal – Viktor prosseguiu com a explicação – Atualmente, a liderança pertence à família Plisetsky.
Yuuri encarou o primo do russo de olhos azuis e madeixas prateadas com o canto dos olhos, vendo-o cruzar os braços sobre o peito e adquirir uma expressão de superioridade, antes de tombar a cabeça para deitá-la no ombro de Altin.
- E a sua família, Viktor?
O russo passou o indicador pelo anelar do menor.
- A família Nikiforov é a segunda no comando – revelou – A única que recebe ordens diretamente da Casa Principal.
Os olhos castanhos foram voltados para sua direção. Viktor então não era só um mafioso, era o segundo na hierarquia.
- Apesar de ser a segunda no comando, às vezes essa família é intrometida, como se mandasse na líder – o Plisetsky reclamou de olhos fechados, usando seu melhor tom provocativo.
Viktor rolou os olhos, encarando Yuuri em seguida.
- Mais alguma pergunta?
Katsuki tinha mais uma sim, mas preferiu omiti-la, negando com a cabeça em resposta ao questionamento. Era doloroso estar a cada minuto mais perto de se afastar do russo, por mais que soubesse que era isso que precisava fazer no momento, então preferiu finalizar com uma memória mais feliz do que fazer revivê-lo coisas que talvez não lhe agradassem.
- Se for contar a Mila sobre nosso término, espere pelo menos uma semana, sim? – Nikiforov soltou de repente, ajeitando sua postura no carro, reconhecendo o trajeto que percorriam.
- Por quê?
- Ela disse que me mataria se eu te magoasse de novo – respondeu – Se não se importar, gostaria de me recuperar da minha quase morte anterior antes de ter de passar por uma nova.
O tom cômico na voz de Viktor fez Yuuri rir suavemente, ao tempo em que o Plisetsky bufou ante aquele estúpido comentário. Otabek o cutucou suavemente para que se controlasse, recebendo um olhar severo como resposta, que logo se suavizou.
- Estamos chegando, senhor Nikiforov – o motorista informou em voz alta, rompendo com o clima.
Katsuki ficou sério, vendo ao longe a fachada de seu prédio surgir. O carro estacionou na vaga que Viktor costumava parar a as trancas foram destravadas. O japonês tocou a maçaneta, mas não a abriu, encarando os outros três passageiros do veículo.
- Já que vai todo mundo ficar de merdinha aqui, eu falo – o Plisetsky se pronunciou – Foi um prazer te conhecer porquinho, e obrigado por me ajudar a salvar esse velhote aí. Se mudar de ideia, ainda tem meu número e eu ficaria extremamente feliz em te transformar em um mafioso, ou num prostituto.
- Yura... – Otabek murmurou em tom repressivo.
- O que? – perguntou fingindo inocência – Estou falando sério, Beka. Se ele não fosse bom de cama, Viktor não teria ficado com ele.
- Yuri – Viktor rosnou, fazendo o menor se calar, não sem antes soltar um palavrão.
O japonês apenas riu.
- Bom, Yuuri, foi um prazer de fato conhecê-lo e espero que sua vida seja boa – Altin desejou com honestidade, já que havia se afeiçoado ao rapaz asiático.
- Obrigado – o moreno de olhos castanhos agradeceu.
Ao fim, seu olhar se cruzou com o de Viktor, que lhe sorriu fracamente.
- Não há nada que eu possa fazer para que fique? – perguntou ao Katsuki.
Infelizmente, naquele momento, não havia nada. Yuuri precisava de um tempo para si, para se reestruturar e absorver tudo o que havia acontecido.
- Sinto muito – murmurou.
Nikiforov se aproximou e lhe acariciou a bochecha, beijando-lhe a testa.
- Não sinta – sussurrou – Espero que seja feliz, Yuuri.
- Eu também espero que seja, Viktor.
E, dito isso, abriu a porta e saiu. Não podia prolongar mais aquele momento, pois sabia que seu coração não ia aguentar. Já sentia o choro iminente, os olhos marejando e o nó na garganta. Arriscou olhar para trás, uma pequena ponta de esperança, torcendo para que Viktor estivesse ali, mas tudo o que viu foi a lateral do Rolls Royce, depois sua traseira e, ao fim, o horizonte.
Tão rápido quanto Viktor entrara em sua vida, agora saia dela. Era esse o fim e ele doía. Moveu-se mecanicamente rumo ao seu apartamento, abrindo a porta deste de maneira apática, andando pela sala, onde viu o casaco de Viktor jogado sobre o sofá. Agarrou a peça e rumou com a mesma até o quarto, as lágrimas já dificultando sua visão. Caiu na cama abraçando a peça contra seu peito e deixou que o choro viesse, forte o suficiente para fazê-lo tremer.
Chorou como nunca antes, a cabeça doendo, assim como o corpo. O tecido agora contra o nariz, o perfume natural do amado sendo sentido. Não queria, mas precisava. Como poderia continuar o relacionamento com alguém assim? Teria de passar inúmeras vezes pela mesma situação, ver incontáveis vezes o amado machucado daquela forma? E as mentiras? Os segredos? A desconfiança? Como lidaria com tudo aquilo? Era demais até para si.
Nos livros, o amor sempre superava tudo, mas, na vida real, a situação era bem diferente. Seu amor não fora capaz de ultrapassar todos os obstáculos, apesar de que, por um breve momento, pensou que conseguiria. A realidade de Viktor era muito diferente da sua, por isso não podiam ficar juntos. Não era mais pela mentira ou pelas palavras que tanto o magoaram, era por serem o que eram que não poderiam ficar juntos, e por isso doía tanto.
- Viktor... – murmurou em meio ao choro.
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- Viktor? – Yuri perguntou dentro do carro, encarando o primo.
- Sim? – o outro murmurou de forma monótona, os olhos fixos na janela.
O russo loiro arqueou uma sobrancelha.
- Quer falar sobre o que aconteceu?
Com um suspiro, Nikiforov deu de ombros.
- Não há muito que dizer, Yuri... Eu sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde – confessou – Eu só queria que fosse mais tarde.
- Por que não disse que não queria terminar? Ou que iria mudar? Ou, sei lá, prometesse alguma coisa! – o Plisetsky se exaltou – Poderia ter dito qualquer coisa que o impedisse de ir e você sabe muito bem disso!
Viktor o encarou, os olhos marejados, o que fez o menor se calar imediatamente, mordendo o lábio inferior.
- Eu não quis ser egoísta ou mentir mais uma vez – argumentou o russo de olhos azuis – Existe um ditado clichê que diz que se realmente amamos uma pessoa, devemos deixá-la livre, e, nesse momento, libertar o Yuuri é a maior prova de amor que eu poderia dar a ele.
- E, como você vai ficar depois disso? – Yuri tornou a questionar, evidentemente preocupado.
- Bem, eu acho – Viktor respondeu – Se ele estiver bem, então eu estarei.
Otabek encarou o namorado e depois o primo deste, suspirando ao fim.
- Espero que consiga, de verdade, se convencer disso, Viktor – o cazaque se pronunciou.
- Eu também espero, Otabek.
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Se privar de comer ou beber seria apenas mais um agravante para piorar ainda mais o emocional, pelo menos era o que Mila dizia sempre que terminava um relacionamento e afogava-se em sorvete e chocolates calóricos, e, agora, Yuuri entendia o motivo. Estava sem fome, sem sede, sem vontade alguma. Queria ficar o dia todo na cama, abraçado àquele casaco, desejando ter uma máquina do tempo que o impedisse de descobrir a verdade sobre o russo de olhos azuis para que pudesse ficar mais tempo com ele. Estava arrasado e seu estado físico refletia isso.
Por mais que ainda tivesse inúmeros questionamentos ainda não respondidos, achou que a conversa final como um todo era mais que satisfatória e tentava evitar ao máximo pensar que havia atirado em uma pessoa, mesmo que motivado pela violenta emoção. Queria que as coisas fossem diferentes para que pudesse se manter ao lado de Viktor, mas, como elas não eram, teve de por um fim ao relacionamento. Não conseguia se imaginar ao lado do mafioso, vivendo sob a tortura de estar sempre inseguro e desconfiado, além de que poderia colocar pessoas importantes, como Mila, em perigo.
O toque do seu celular ecoou pelo quarto e, por um momento, Yuuri pensou em deixá-lo tocar até que a pessoa do outro lado da linha desistisse, mas então lembrou-se de que a único ser vivente que poderia o estar ligando era a melhor amiga, então arrastou-se sem muita vontade até o eletrônico. Não era justo com ela ser tão frio a ponto de ignorá-la só por que não estava sentindo-se bem. Estava física e emocionalmente cansado, já que não dormia desde o dia anterior.
- Oi, Mila – atendeu com desânimo.
- Pela voz, já vi que você não está bem... Não transaram? – brincou a russa do outro lado da linha.
Yuuri soltou um suspiro pesaroso antes de responder.
- Não, e nunca mais vamos – respondeu.
Mila ficou calada por um momento e o japonês só conseguia ouvir sua respiração.
- Vocês... Terminaram? – ela perguntou ao fim, certo receio permeando a voz.
Katsuki sentiu os olhos marejarem antes de verbalizar, pela primeira vez, o que realmente havia acontecido.
- Sim... Eu terminei com ele...
- Estou indo aí te ver agora, então vista um pijama. Vamos fazer maratona de filmes e comer o máximo de porcarias que aguentarmos.
Somente a russa ruiva para fazê-lo sorrir, mesmo que de maneira extremamente fraca.
- Obrigado e... Estarei esperando você.
- Vou o mais rápido que puder, então não se enforque com o chuveirinho – ela ralhou de maneira divertida, tentando arrancar um riso do amigo.
Yuuri riu, mas assim que a ligação se findou, a melancolia tornou a tingir sua face. Como pudera se envolver com alguém como Viktor? Não deveria ter confiado tão cegamente em tudo que o russo lhe dizia e, mais uma vez, ali estava a prova de que ainda era imaturo quando se tratava de lidar com outras pessoas. O que mais lhe deixava confuso era que, apesar de tudo, sabia que se pudesse voltar no tempo, faria exatamente a mesma coisa.
Pegou o anel preso a corrente que ainda usava no pescoço e leu o texto grafado em seu interior, um olhar terno direcionado a jóia, lembrando-se em seguida do último beijo que dera naquele que presenteara o objeto a si. O gosto havia sido amargo e doloroso, pois sabia que assim que findassem o contato, não o repetiriam mais.
- Yuuri? – a voz de Mila soou na sala, tirando o japonês de seus devaneios.
Caminhou até ela e, assim que a viu, inclinada, depositando sacolas cheias sobre a mesinha de centro, não resistiu, começando a chorar novamente. Mila endireitou a postura e abriu os braços, recendo o amigo, aninhando-o enquanto acariciava os cabelos negros e sussurrava que tudo terminaria bem.
A vida seguiria seu curso normal e, com o passar dos dias, a dor diminuiria até se tornar apenas uma desagradável lembrança que logo seria atirada no mar do esquecimento. Yuuri continuaria estudando, trabalhando na livraria e, com o tempo, acharia outra pessoa. Pelo menos, era o que a russa achava, apesar de não ter notado uma melhora significativa no semblante do menor ao longo das três semanas que se sucederam.
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Não havia nenhum sobrevivente da família Noviskaya, Otabek cuidara pessoalmente de extinguir qualquer vestígio do que ocorrera nas docas e Yuri certificava-se de acompanhar o tratamento médico do primo de perto para que este não tentasse burlar as instruções do profissional de saúde e fizesse alguma burrice, já que tinha um péssimo histórico em ser desobediente quando o assunto era cuidar de si mesmo.
- Eu já disse que não precisa ficar aqui toda santa consulta, Yuri – Viktor reclamou pela milésima vez, começando a desabotoar a camisa para permitir que o enfermeiro analisasse sua cicatrização.
- E eu já mandei você se foder e calar a boca – resmungou o russo loiro – Eu virei e ponto final. Não abri esse tópico para discussão.
O médico particular começou a revelar os machucados para trocar o curativo, enquanto os dois russos desatavam no diálogo, provocando um ao outro. Estava habituado a tais situações, ainda mais sendo um funcionário a serviço da máfia.
- Sim, mamãe – Nikiforov zombou após o primo dizer que ele deveria atentar-se ao horário de tomar os medicamentos, fazendo o menor o fuzilar com os olhos.
- Se eu fosse sua mãe, já teria te deserdado – retrucou Yuri, com falso desgosto na voz.
Viktor riu, mas logo torceu o nariz ao ter um esparadrapo puxado de sua pele com certa força. Alguns ferimentos da noite em que fora feito de refém pelo falecido Dmitri eram realmente profundos e ainda, mesmo que transcorrido quase um mês desde o fatídico dia, não haviam sumido por completo.
- E, aí, hoje vamos cuidar “daquele” assunto ou não? – o Plisetsky perguntou, atentando-se ao médico que limpava com um algodão o que provavelmente se tornaria uma nova cicatriz.
- Se seu avô tiver tempo – o russo de olhos azuis disse – Sabe que ele tem estado ocupado desde o incidente com o carregamento na semana passada.
- Eu afanei a agenda dele por alguns minutos e sei que ele não tem nada planejado para hoje. Se ninguém resolver se matar, acho que podemos conversar com ele sobre isso.
Viktor assentiu, começando a abotoar a camisa. Sua consulta findando-se.
- Tem certeza de que é isso que quer, Viktor? Sabe que ainda podemos tentar conciliar ambas as coisas...
- Não quero arriscar, pelo menos não outra vez – sentenciou, penteando a franja com as mãos.
- Mas, você sabe que essa ideia é maluca, não é? Ainda mais quando contar pra ele como o achou – Yuri alertou – Ele, com certeza, vai ficar puto.
- Eu sei, eu sei – murmurou – Mas, dessa vez, tenho certeza de que é a maneira correta. Posso não voltar com ele, mas, pelo menos, ele entenderá minhas razões. Muita coisa faltou a ser dita aquele dia.
O Plisetsky deu de ombros.
- Bom, faça como quiser. Eu e Beka estaremos aqui se precisar.
Nikiforov bagunçou os cabelos loiros de Yuri em um gesto carinhoso.
- Eu agradeço por tudo que está fazendo por mim.
- É bom agradecer, mesmo – o russo loiro retrucou – Você e suas paixonites só me dão dor de cabeça.
Os olhos azuis de Viktor foram revirados.
- Você sabe que não é só uma paixonite, Yurio – ditou, evocando o esquecido apelido do primo – Eu o amo, e irei até os confins da terra atrás dele se for necessário.
- Ok, ok... Isso está ficando gay demais até pra mim – o Plisetsky reclamou – Eu vou acabar vomitando um unicórnio.
Ambos se encararam por alguns momentos antes de rirem. Viktor estava sentindo-se confiante com o plano que bolara. Dessa vez, com certeza, as coisas sairiam de maneira perfeita.
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Fazia um mês desde que Yuuri tinha voltado a rotina de sempre, mas parecia que algo ainda faltava, então, a viagem planejada talvez lhe fizesse bem, de qualquer maneira, seria muito mais do que bem-vinda. Estava mais do que na hora de pensar um pouco mais em si e também de pedir as férias acumuladas para o chefe ao invés de vendê-las.
- Tem certeza de que pegou tudo, Yuuri? – Mila perguntou, trazendo consigo uma mochila aparentemente pesada.
- Acho que sim – sorriu, fechando o zíper da mala – Se eu esquecer algo, compro por lá mesmo.
A russa sentou-se sobre o colchão da cama do japonês, o encarando.
- Você... Vai mesmo voltar, não vai?
Katsuki sorriu.
- É claro que sim – afirmou, rindo da insegurança da ruiva – Eu só vou passar um mês fora, Mila, não é como se eu fosse voltar ao Japão para morar novamente com meus pais. E eu te convidei para ir comigo.
- Ahh, eu sei, mas tenho vergonha – comentou, fingindo embaraço – É a primeira vez em quase seis anos que volta pra casa e ai, a tira-colo, me leva? Seria um incomodo, além do mais, quero que aproveite seus pais e sua irmã – a ruiva piscou – Sei como sente falta da Mari.
O moreno de olhos castanhos alargou o sorriso a simples menção a irmã mais velha.
- Bom, pelo menos vai comigo até o aeroporto, não vai?
- Acha que vou perder sua carinha de criança fascinada sempre que entra lá? Jamais, meu amor.
Yuuri rolou os olhos, mas manteve o sorriso, começando a pegar as malas. Sua faculdade também entrara em recesso, o que contribuiu para aumentar ainda mais sua vontade de voltar ao Japão.
- Já vou avisando que, se passar um mês e você não estiver de volta, eu vou atrás de você e te trago acorrentado pra cá, entendeu?
- Esse é seu jeitinho de dizer que vai sentir minha falta? – provocou a amiga, rindo da expressão da mesma.
O aeroporto estava relativamente cheio, então ficou feliz em ter chego antes do horário de seu vôo, pois teria tendo hábil de encontrar seu portão de embarque sem grande alvoroço.
- Não se esqueça de me ligar assim que chegar lá, entendido? Independente da diferença de horário – Mila alertou.
Yuuri assentiu, ouvindo seu vôo ser anunciado. Com um abraço apertado, despediu-se da amiga russa, que ficou observando-o por entre a multidão, até perdê-lo de vista. Seria bom para Katsuki fazer essa viagem e espairecer a cabeça, ficando longe da maioria das coisas que podiam remetê-lo a Viktor, por mais que ele ainda mantivesse no pescoço o presente do mesmo.
Términos são sempre complicados e, muitas vezes, dolorosos, mas, passada a turbulência, pode-se enxergar ali um novo recomeço e a chance de amadurecer, e era isso que Mila desejava ao japonês. A Rússia o prendia ao ex-namorado, por isso apoiou totalmente a decisão de Yuuri quando este anunciou a ida ao Japão, mesmo que o medo de ele não voltar ainda a permeasse.
Balançou a cabeça, agitando os fios ruivos que estavam novamente na altura de suas bochechas, para afastar tal pensamento. Se Yuuri disse que voltaria, é porque ele assim o faria. Realmente, ele só precisava de tempo. Tudo era uma questão de tempo...
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O japonês ocupou seu assento dentro da aeronave e puxou a corrente de prata escondida abaixo da roupa, revelando ao fim o anel. Sorriu com doçura ao ler os dizeres gravados ali. Realmente essa viagem ao Japão o faria colocar a cabeça no lugar, já que estava com sério medo de estar desenvolvendo um fetiche por mafiosos, mais especificamente por homens da máfia russa de cabelos prateados e olhos azuis.
Riu com esse pensamento. Realmente, agora, não doía pensar em Viktor, e até mesmo se acostumara um pouco com a ideia de ter namorado um mafioso, mesmo que jamais a tivesse verbalizado. Para Mila, havia dito apenas que os dois não combinavam mais e, por mais que soubesse que a russa não tinha acreditado nisso, ficou feliz com ela tem respeitado sua privacidade. Ela era sempre assim, nunca ultrapassava os limites, e por esse, e outros motivos, gostava dela.
O vôo foi tranquilo e o Katsuki dormiu na maior parte do mesmo, acordando perto do momento de aterrissagem, seguindo os procedimentos que lhe eram informados. Pouco depois estava desembarcando, esperando sua mala surgir. O ar a sua volta possuindo um aroma característico e nostálgico de sua infância. Hasetsu não havia mudado muito desde que a trocara por Moscou. Contudo, estava feliz. Depois de anos, novamente, estava em casa.
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