Caminho com calma em direção à delegacia, minha cabeça dói pela noite mal dormida, mas um sorriso divertido pinta em meu rosto assim que lembro do pequeno momento que tive com Marina.
Ainda assim, há algo de melancólico em tudo isso. Provavelmente por eu não ter mais ela como gostaria de ter e é difícil dizer em que momento tudo se tornou esse pesadelo, mas é verdade que se tornou.
Entro em minha sala e não fico nada surpresa com a pessoa que me espera do lado de dentro.
– Bom dia, Cadu. – cumprimento meu detetive preferido com um sorriso largo. Ele me encara com os olhos cerrados e fecha a porta assim que passo por ela. – Nossa, por que tanto segredo? – pergunto e abandono meu copo de café sobre a mesa. Havia comprado antes de seguir para cá, senão desmaiaria de sono.
– Você sabe por quê. – retruca e caminha para perto da minha mesa.
Me afundo na minha grande e confortável cadeira e o encaro lutando para não rir.
– Não, não sei.
Ele revira os olhos e joga os dois braços para o ar.
– Esteve com ela, não esteve? – pergunta de uma vez.
Respiro fundo, imaginando o sermão que irei ouvir dele, mas sei que agora preciso dizer a verdade. Carlos Eduardo sempre sabe quando estou mentindo, afinal... Fomos noivos. E sinceramente, são apenas dez e meia da manhã de um sábado quente no Rio de Janeiro, eu não tenho ânimo para mentir.
– Sim, mas não precisa de desespero. Não saímos do meu apartamento juntas. – respondo na defensiva e estou sendo honesta.
– Clara... – o tom repressor dele é o suficiente para que eu me arrependa de não ter inventado uma mentira qualquer, mas percebo isso tarde demais. – Vocês duas sabem que isso é arriscado demais. Não podem ser vistas juntas, de maneira alguma. Isso comprometeria todo o caso.
É minha vez de revirar os olhos.
– Eu não sei o que você pensa que eu sou, Cadu, mas com certeza não tenho mais vinte anos para agir com irresponsabilidade em algo tão sério quanto esse maldito caso que já se arrasta há quase um ano. – retruco ríspida e grosseiramente. Ser recriminada é a última coisa que preciso agora. – E, além disso, a Carol sabe que eu vejo a Marina com frequência.
– É. Mas não sabe dessas escapadas. – ele tem um ponto, mas estou com dor de cabeça e exausta.
– Chega desse papo, Cadu. Como se não bastasse eu ter desistido do amor da minha vida, ainda preciso me manter longe dela por um medo exagerado? – soo mais grossa do que gostaria. Fecho meus olhos e massageio minhas têmporas doloridas.
– Não tá mais aqui quem falou – ele levanta os braços em sinal de rendição, mas sei que não vai parar por aí. – Mas, ó, fica esperta.
Assinto e tomo um longo gole do meu café amargo e quente, não quero mais falar disso.
– Chega desse assunto. Temos trabalho para fazer. A perícia terminou? – mudo o foco do assunto para algo produtivo.
– Sim, podemos ir à cena do crime. Quer terminar seu café? – pergunta cordial.
– Já terminei. – respondo e me ponho de pé.
Ainda resta metade do meu café, mas isso pode esperar.
Agora tenho que encontrar um serial killer.
_
Caminhamos com calma pelo perímetro. Cadu no meu encalço, avaliando meus movimentos. Analiso tudo com profissionalismo, mas é óbvio que quem quer que tenha feito o serviço não é amador, não existe rastro algum, nem mesmo um pedaço de tecido, um fio de cabelo, ou uma unha quebrada.
Em crimes assim é comum que esses tipos de coisas sejam encontradas, mas pelo que fui informada, a perícia não achou nada disso aqui.
Me abaixo para avaliar o sangue espalhado pelo chão imundo e percebo que está seco, não completamente, mas quase. Não faz tanto tempo assim que o crime foi cometido, ainda assim, o criminoso parece longe o suficiente para passar completamente despercebido. Ele pode estar agora comendo cereal com leite no café da manhã enquanto comemora mais uma vida destruída.
Respiro fundo, essas coisas me revoltam profundamente.
– Cadu, achou algo? – pergunto alto, pois ele agora está do outro lado do ambiente que nada mais é do que um depósito de concreto grotesco e que cheira a cerveja e urina.
– Nada, chefinha – responde frustrado. Cadu caminha para perto de mim novamente. – Não é estranho?
– O que? – questiono confusa. – Você precisa ilustrar melhor suas ideias.
Ele revira os olhos.
– Esse depósito não está exatamente em uma área afastada da civilização. Tem lojas enfileiradas aqui, pessoas circulam para ir à praia, restaurantes e isso em tempo integral. Então...
– Como ninguém viu ou ouviu nada? – complemento sua linha de raciocínio. Cadu faz um barulho com a boca indicando que acertei. – Sabe o que mais me intriga? – pergunto e caminho para fora do depósito. Cadu me segue, naturalmente. – Temos câmeras aqui – aponto para uma loja do outro lado da rua e ali – aponto para um restaurante que fica no canto da rua. – E sabe Deus mais quantas câmeras tem acesso a esse trecho, mas ninguém conseguiu achar nada nos registros. Como isso é possível?
Ele me encara intrigado.
– Temos que descobrir isso. Insistir nessas imagens – há certeza em sua voz.
Pondero por alguns segundos e concordo.
– Faremos isso, mas antes, precisamos traçar o perfil dele. Qual a escolha dele? Um serial killer nunca ataca pessoas aleatórias. Estudos indicam que eles sentem prazer na pré-seleção de suas vítimas. – falo pensativamente.
Não tivemos muitos casos antes desse, apenas dois. Em todos os três cenários, as vítimas eram homens, homens da alta sociedade. O que não faz muito sentido, mas dificulta nosso trabalho, uma vez que famílias influentes estão constantemente interferindo nas investigações.
– Não sei, Fernandes... – Cadu coça a nuca. – Não sei se é machista dizer isso... – começa receoso. Lanço um olhar irônico para ele, mas o incentivo a continuar com um sorriso amistoso. – Mas por mais improvável que possa ser, talvez estejamos atrás de uma mulher, afinal, todas as vitimas eram do sexo masculino, ricas e a marca foi feita com batom nas três vezes. O mesmo batom vermelho. Sei lá, né...
O encaro segurando o riso.
– Não que eu discorde – me adianto a dizer quando seu olhar de crítica pesa sobre mim. – Na verdade, a teoria é a melhor até agora, mas seu esforço para não deslizar na frente da feminista foi tão heroico que chegou a me comover. – provoco com bom humor.
Ele sorri envergonhado.
– Para de graça que a gente tem que trabalhar. – me empurra pelos ombros.
Rio divertidamente.
– Vamos começar pelo restaurante – determino.
_
O dia termina e com ele, Cadu me convence a ir para um bar. Estamos frustrados e exaustos. Esse caso está exaurindo nossas energias e a mídia está começando a cair em cima. A família da última vítima fez uma breve, comovente e exagerada declaração para um jornal local de que não vão descansar até descobrir quem destruiu a vida de um pai de família, decente, bom e ótimo cidadão.
Isso tudo significa que sim, estou aceitando uns drinks.
Nos sentamos nos fundos do bar temático, que à essa hora da noite ainda não está lotado. Cadu pede duas cervejas geladas, retiro a arma de meu coldre e a pouso sobre a mesa, despreocupadamente. Existe algo de atrativo em ter poder e acho que se trata do completo domínio que você obtém sobre o outro.
Exatamente como eu domino Marina. O simples pensamento faz meu corpo arrepiar.
Encaro a luz neon brilhante que borra o ambiente em diversas cores divertidas e inevitavelmente sou arrancada para a terra das lembranças que tenho dessa mulher em minha cabeça.
Agosto de 2012
Demorou um mês para Clara e Marina finalmente se renderem ao desejo de estar juntas fora da delegacia. Era verdade que trocavam flertes e brincadeiras quando trabalhavam juntas – o que passou a ocorrer com frequência – mas nunca ultrapassaram limites.
Não havia um motivo específico, apenas não queriam pular etapas.
Era sexta, a temperatura havia despencado consideravelmente naquele dia e ambas usavam casacos de couro por cima de camisetas pretas. O lugar escolhido por Marina foi o mais reservado possível e Clara adorou.
O bar era banhado por uma luz neon no tom de vermelho e ambas se sentiam perigosamente envolvidas pelo jazz sensual que tocava ali.
Elas fizeram os pedidos e iniciaram um diálogo descontraído, até que Clara sentiu a necessidade de avançar para o que realmente queria.
– Então... FBI, uh? – sorriu como quem não quer nada, mas Marina não deixou sua intenção passar despercebida.
– É... – respondeu consciente de que devia tomar cuidado com o que diria a seguir. – Sim, eu acho.
Ambas deram risadas constrangidas.
– O que te traz ao Rio de Janeiro? Digo... Os Estados Unidos da América está tão evoluído que não tem mais quem prender? – brincou.
Marina fez uma careta divertida.
– Na verdade, não. Estou aqui por um caso internacional. Você sabe, estamos investigando uma mulher que mantém cassinos e boates clandestinas. – seu tom saiu tranquilo, apesar do tema sério. – Não entendi o teor da pergunta, afinal, estamos trabalhando juntas nisso.
Clara assentiu.
– É, mas quero saber por que você especificamente foi enviada para o Brasil. – explicou. – E não chegamos nessa parte ainda. Sei que o FBI não pode interferir em casos que não digam respeito aos EUA, mas como a pessoa em questão nasceu lá e está fugida de lá por crimes que cometeu lá... Não sei. Poderiam ter enviado qualquer um.
Marina baixou o olhar e Clara viu seu hesitar, nessa mesma hora, o garçom se aproximou e depositou os drinks na mesa.
O assunto ficou no ar enquanto ambas tomavam longos goles de suas respectivas bebidas, lutando contra a sensação estranha e pesada que tomou a mesa.
– Para ser honesta, fui enviada para seduzir ela. – admitiu depois de alguns segundos constrangedores em silêncio.
– Ah – limitou-se a dizer.
Era como ter seu doce preferido arrancado inesperadamente. Era óbvio que estava se encantando por Marina, todos aqueles toques e olhares... Aquilo tudo era demais, mesmo para ela.
– Não diz respeito a minha vida pessoal, Clara – tentou remediar quando viu o olhar desapontado que Clara não soube disfarçar. – Não interfere em nada.
– Faz um mês que nos conhecemos e não vou mentir que me sinto extremamente atraída por você, para dizer o mínimo – admitiu, arrancando um sorriso de Marina. – Mas não quero ser uma distração na sua missão.
– Não vai ser tão instantâneo assim. Cheguei esse ano, mas só posso encontrar ela no ano que vem. Precisamos estudar a rotina dela aqui, suas relações e toda aquela burocracia. Não vai ser do dia para noite. – explicou com cautela no tom de voz. Estava com medo de espantar Clara, precisava saciar seus desejos. – Além disso... Seria apenas prazer. Certo?
Clara pensou um pouco mais do que gostaria, mas decidiu ir no embalo de sua colega de trabalho.
– Certo. – concordou. – Se é só ano que vem... Acho que podemos fazer isso.
– Podemos, com certeza – declarou contente.
Junho de 2015
Sou arrancada de minhas lembranças por Cadu que me chama insistentemente.
– Ei, ô – bate no meu braço e o olho atordoada. – Seu celular está tocando.
Encaro o aparelho sobre a mesa e quando vejo o nome que brilha, levanto-me rapidamente e caminho para fora do bar.
– Flavinha, seja o que for, não dá. Estou no bar com o Cadu, preciso relaxar. – digo com mau humor.
– Você precisa vir à boate. – percebo sua voz trêmula.
– O que? Por quê?
– Só vem, Clara. Rápido. Por favor. A Marina precisa de você.
- Flávia... – tento uma última vez. – Você também é agente do FBI. Tem certeza que não pode dar uma força para Mar...
– Pelo amor de Deus, Clara! – rosna indelicadamente. – Aconteceu uma merda das grandes. Venha logo. Preciso de reforço.
– A Marina está bem? – pergunto finalmente aflita. Às vezes Marina faz Flávia me atrair até ela, mesmo sendo completamente desnecessário e eu não quero que esse seja o caso dessa vez e parece que não é mesmo,
– A Marina NÃO está bem, por isso estou pedindo. Por favor. Rápido.
Aperto os olhos e desligo o telefone. A adrenalina finalmente me espanca.
E se Carol descobriu tudo?
Sinto uma necessidade absurda de correr.
Caminho para dentro do bar novamente e procuro por Cadu. Ele bebe sua cerveja tranquilamente, alheio ao meu drama.
– Cadu, rápido. Vamos – chamo e alcanço minha arma sobre a mesa.
– O que aconteceu, Clara? – pergunta alarmado e confuso, percebo isso em seu rosto esculpido.
– É a Marina... – digo num fio de voz. – Precisamos ir.
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