23 de Abril de 1999, Inglaterra.
– Anotações feitas em um pergaminho vagamente borrado.
“Se eu a detestei?
Com todo o meu ser, minha alma, minha racionalidade, tudo o que é de mim e que não aceita com facilidade qualquer coisa que seja imposta sem o meu querer. Detestei teu rosto singelo, teus olhos de assombrosa tempestade marítima, teus problemas dos quais eu tinha de cuidar a pedido daquela senhora agora diretora. Tudo o que vinha de ti ou que me era dito me causava ânsias de irritação, uma vontade imensa de fugir como se me acovardar perante uma reles garota fosse uma opção plausível. Não a suportava por razões que não consegui explicar nem mesmo a mim, por mais que nunca houvesse me faltado palavras para desfazer-se de sua pessoa.
Todavia, a minha aversão irracional a sua presença não foi o suficiente para fazê-la se afastar. Nem mesmo quando eu precisava.
Cheguei a tolamente achar que por alguns instantes miseráveis nesta existência que se a machucasse, a ignorasse e, portanto, a fizesse se sentir indesejada, eu a afastaria de mim livrando-me de ter que ter qualquer outro laço de estima perigosa e que me traria dores de cabeça a mais do que precisaria. Teria para longe de mim aqueles olhos acinzentados cheios de segredos profundos iguais aos meus, que seus lábios avermelhados e amaldiçoados nunca me diriam com todas as palavras que eu praticamente queria ordená-la dizer.
E talvez nenhuma fosse dita até que eu merecesse.
Para mim, sempre haviam sido apenas gestos, modos. Deboches que eu aturei com raiva e irritação, mas me percebia necessitado a cada minuto que não a via, que não me reprovava por gostar daquele cheiro adocicado de ervas que vinham de seus cabelos. Era a sua atenção que me fazia ter algo ao qual me apegar nesta nova sobrevida pós-guerra, ao qual pudesse sentir outras coisas que não envolvessem minha trajetória sombria e cheia de altos e baixos. E sem me perceber em meus muitos afazeres, me esquecera completamente que estava me deixando guiar, entretanto, não por aqueles brilhantes cabelos ruivos que um dia amara com todo o meu âmago, mas por madeixas loiras, trançadas com tudo o que poderia ter de significado para mim. Onde formavam uma amarra para o Caos que eu me tornara.
Naquela noite fatídica que errei em demasia e imperdoavelmente com seus sentimentos mais sinceros e a obriguei com minha língua ferina a demonstrar seu descontentamento, eu notei.
Ah! Como Notei.
Atinei pela dor aguda causada pelos seus dedos a estalar com firmeza em meu rosto que eu que estava pecando contra tudo o que um dia eu desejei vindo de alguém. Quebrando um coração já estilhaçado e que só queria me ajudar e curar-me aos poucos dos meus próprios males internos. A dor física, não foi maior do que a dor sentimental que experimentara depois de tanto tempo, achando que aquela antiga era a única a qual poderia sentir.
Amaldiçoei-me semanas a fio onde sequer tinha o benefício de encontrá-la onde quer que fosse para não me fazer de esquecido ou de infeliz por inteiro. Nem um vestígio parco que amenizasse minha culpa tardia, meu sofrimento.
Para onde fosse apenas o silêncio comum e o vazio me respondiam que você já não se via mais obrigada com sua natureza espantosamente gloriosa a me aturar com meus maus modos, minhas empáfias, minhas raivas que se fingiam voltar-se para sua presença pisoteando-a, mas que retornavam para mim e a forma como eu mesmo me detestava.
Seu nome de sigilos mágicos tornou-se minha espera, minha dedicação, minha maldição mais desejada quando a convenci naquela tarde morosa que de alguma maneira eficaz iria me redimir. Conhecia a sua desconfiança quando com força de vontade me dissera por palavras escritas que nada do que havia feito seria apagado, no entanto que me deixaria por uma última vez agir se assim fosse sincero com quem ela era por inteira e não apenas por pedaços que me agradassem. Lembro-me de ter agradecido aos teus deuses por ter me permitido tentar.
Foram dias em que conversamos somente por olhares compreensivos. Semanas banhadas de sentenças de tinta, meses de cumplicidade que me assustavam, porém me ensinavam que aquilo de fato era o que significa aquela frase tão usada e tão descartada como se fosse apenas um mero bom dia habitual. De alguma maneira não era necessário tocá-la para entender que sem me dizer nem uma palavra audível, me mostrara um mundo cheio de novas possibilidades e de abundantes sentimentos que sempre acabavam em um abraço do qual desejava, mas não me sentia digno. Até o dia em que seus braços de uma história inefável me acolheram, não como um superior, um mestre de poções amuado, um comensal perigoso. Mas como um homem que crescera sem saber de fato o que era o amor tão falado e que a todos era de recorrência. Como um adolescente a encontrar pela primeira vez uma amiga sincera e que não me julgaria nem mais um segundo por meus erros mais fatais.
Que me daria à chance de ser quem eu era fatalmente.
Você.
Sua presunçosa selvagem.
Sei que agora lendo estas linhas está sorrindo com seus caninos brilhantes.
Tenha por isso dado por satisfeita o quanto a amo. E o quanto a detesto algumas vezes por seus deboches impertinentes quando desejo sua seriedade.
Com tudo o que resta de mim.
Severo.”
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.