Lee Hyuna
A quem eu quero enganar?
Esse trabalho é uma maluquice e não sei como o professor Han teve a audácia de me indicar para algo desse tipo. Ele não mencionou que o Café da Meia-Noite parece ter saído de um filme de terror e que eu me arrependeria todos os dias de ter deixado Yoomi de mão. Bom, pelo menos, depois de tanto fingir estar contente com a nova experiência, vejo a quarta-feira com outros olhos agora. Ela tem um quê de estou quase lá.
Logo logo ficarei longe dessa espelunca. Mas ainda faltam duas fucking semanas.
Choramingo quando abro a máquina velha de café, o cheiro me atinge como um soco. Despejo uma quantia na xícara em formato de lua, deixando-a sobre a bandeja para ser servido junto ao bolinho de arroz. Três clientes já passaram por aqui hoje e não são nem oito da noite, o que é um recorde, porém, com Jin e Moon ocupados na cozinha e nos atendimentos, eu tive que prestar o papel de ajudá-los no balcão, por pura e espontânea obrigação.
Paro de fazer cafés para ajudar um senhor a pagar a conta. A caixa registradora é algo digno de acervo centenário, só abre com sorte ou na base da porrada. E a maquininha de cartões de crédito só funciona quando quer. É quase impossível pensar numa estratégia de como fazer esse lugar alavancar. O ambiente é estranho, não há funcionários experientes e os clientes simplesmente não aparecem mais. Fora a comida que é um pouco gordurosa, e o café meio suspeito.
Se é que posso chamar aquela água marrom com cheiro azedo de café.
Pelo que fui deixada à par durante a semana, Jin e Moon são primos, filhos de dois irmãos que fundaram o Café da Meia-Noite e que acabaram morrendo num acidente de carro há alguns anos. A herança foi deixada na mão dos mais novos, junto a tradição de abrir o espaço sempre do escurecer até o amanhecer, servindo as sobremesas preferidas dos seus pais.
Apesar de aparentar estar sempre animado e proativo, é perceptível o cansaço de Jin em suas olheiras e barba mal feita. Com essa pele impecável, ele poderia até ser algum ator famoso de dorama se parasse para se cuidar ao menos um pouco. Já Moon, quando sozinha, é um pouco mais quieta e silenciosa do que o primo. Aparenta ser nova e me entristece ver suas mãos cheias de calos, e os cabelos finos e danificados batendo na nuca num corte totalmente desproporcional. Ela passa horas na cozinha ouvindo música no seu mp3 do tempo da minha avó enquanto prepara os doces, e dificilmente se mostra preocupada com alguma coisa.
Ambos gostam daqui, se dão bem juntos, mas carregam individualmente suas próprias feições em relação ao trabalho. Afinal de contas, não sou uma total megera e me permiti perceber um pouco disso ao longo da semana para não surtar com cada barata que vi passando no teto e com cada ácaro que meus saltos devem estar carregando.
Esse lugar precisa mesmo de alguma salvação. Os clientes mais antigos da casa deixaram de frequentar porque a vizinhança sustenta fama de perigosa. E eu vejo o porquê. Ninguém mais se sente seguro para vir tomar um café e curtir a meia noite como antes, e por incrível que pareça, sou eu a encarregada de fazer tudo isso mudar. Mas como, meu Deus?
Minha primeira ideia foi repaginar o lugar, só que percebi que eles não têm dinheiro nem para uma lata de tinta. Agora, terei que mudar a tática para algo mais social, que não necessite de muitos custos e apenas da minha boa lábia.
— Hyuna, você pode, por favor, fechar as mesas de lá da rua? — Jin passa por mim correndo, interrompendo a minha ação anterior de contar as notas pagas pelo último cliente. — Está chovendo muito e elas podem enferrujar mais.
Céus.
Viro de costas e rolo os olhos.
— Tá.
Meus saltos ecoam pelo piso gasto de madeira quando rumo em direção a porta. É claro que se for para eu trabalhar, que seja com estilo, por mais que o avental azul marinho desbotado estrague toda a composição do meu look e tire todo o ar de trend despojada que carrego. De qualquer forma, esse definitivamente não é o tipo de lugar que eu postaria no meu Instagram, a não ser que eu queira perder metade dos meus seguidores em um instante.
Do lado de fora, luto contra as mesas e as cadeiras de aço desmontáveis que mais se parecem transformers, tentando ainda não escorregar na calçada molhada já que o toldo de nada adianta. Depois de infinitos minutos e infinitos xingamentos mentais, consigo fechar todas elas e as encosto na parede. Até suei.
Ponho as mãos na cintura e me permito respirar um pouco de ar fresco depois de tanto tempo inalando aquele fedor horrível de café moído. Há um cheiro bom de grama molhada pela chuva nos arredores, vindo principalmente do jardim da casa do outro lado da rua, que descobri ser o tal lar de idosos onde o cara suspeito trabalha.
Olho de relance pro lado de lá, porque é mais forte do que eu, e me arrependo no mesmo instante. Devido às luzes amareladas dos postes, consigo vê-lo de longe, entre a escuridão da noite. E ele já me encara, encostado na porta da casa enquanto fuma distraidamente um cigarro. A chuva caindo no jardim deixa sua imagem ainda mais bizarra, como algum assassino de filme de terror. O curioso é que ele não parece ser alguém que você espera cuidar de idosos, principalmente quando envolvido com coisas não muito legais. Jeon olha para mim de um jeito estranho, como se me julgasse e eu não devesse estar ali. Para ser sincera, eu também penso a mesma coisa.
Mas, confesso, ele até que é bonito. Um bonito do tipo que faria sucesso nas redes sociais, e apenas nas redes sociais. Pessoalmente, o cenário muda, e o melhor é manter distância. Dito isso, desviamos o olhar um do outro após alguns segundos, e eu entro no café com pressa porque retomo a minha sã consciência e fico com medo.
Eu e Jungkook sozinhos na rua, num bairro estranho, à noite. Que perigo.
E é com esse pensamento que termino as minhas últimas horas de expediente. Não deveria, já que tenho outro problema maior para focar — no caso, a crise dessa cafeteria — mas é simplesmente inevitável. Como uma boa fofoqueira, aquele cara esteve a semana toda sendo alvo da minha infinita curiosidade e duvido que deixará de ser.
Quando Kiun me deixa em casa, fujo mais uma vez dos questionamentos dos meus pais ao constatar que eles já estão dormindo. O toque de recolher aqui em casa não falha. Eu mesma já sinto sono às dez e não posso passar das onze. E já devidamente arrumada, deito na minha cama king size e apago sem nem precisar assistir algum vídeo ASMR.
No entanto, o despertar é como um soco de volta para a realidade. Queria continuar no meu travesseiro de plumas importadas pelo resto do dia, mas sou relembrada pelo alarme infernal de que ainda tenho uma vida acadêmica, uma reputação a zelar, e, infelizmente, um projeto de trabalho de meio período para completar. É até repugnante pensar que terei que pisar meus saltos naquele lugar novamente, mas me ergo mesmo assim.
Com um humor um tanto questionável, passo a primeira metade da minha manhã naquela universidade sem abrir a boca em nenhum minuto. Ouço alguns murmúrios nos corredores quando passo, afinal, minha presença na festa de Namjoon foi o suficiente para calar a boca de alguns invejosos, mas não sei até quando e tampouco me importo no momento. De fato, o Café da Meia-Noite está conseguindo arrancar todas as minhas energias vitais. A única coisa que faço, debruçada sob a mesa do refeitório, é bebericar um iogurte enquanto arrasto os reels do meu feed em busca de alguma inspiração. Preciso mesmo voltar a engajar o meu perfil de alguma forma, antes que seja tarde demais e todos os meus seguidores desistam de mim. Só não tenho ideia de como, nem quando, e nem com que mente eu tornaria isso possível.
Estou de ponta cabeça nessa fase da minha vida.
Terapeuta [10:54]: Espero que tenha dado certo.
Ergo a cabeça, surpresa com a mensagem surgindo despretensiosamente na barra de notificações. Clico nela no mesmo instante, abrindo a conversa sem nem me importar se estou sendo afobada ou não. Ele me deve explicações. A minha mensagem do dia da festa estava lá, acima desta, deixada no vácuo por dias, totalmente ao léu, sendo respondida somente hoje. E adivinha? Não deu nada certo.
Eu [10:55]: Por que ainda quer saber?
Eu [10:55]: Você sumiu e me deve explicações.
Terapeuta [10:56]: Se deu certo, é bom que nos livramos um do outro o quanto antes.
Abro a boca em ultraje por ler tais palavras. O que ele quis dizer? Nos livrarmos um do outro significa que terei alta antes de alcançar meus objetivos? Começo a digitar um “nem pensar”, mas ele se adianta.
Terapeuta [10:57]: E não te devo explicações. Sou alguém ocupado.
Fecho os olhos, passando as mãos pelas têmporas, pensando no que responder, no que pedir, ou até se ainda devo me atrever a fazer alguma coisa depois… disso. E depois de ser ignorada. Eu odeio ser ignorada. Mas mal tenho tempo para pensar quando noto burburinhos anunciando a presença de alguém se aproximando da minha mesa.
— Te procurei por toda parte.
A voz inconfundível de Namjoon gela a minha espinha. Me ajeito na cadeira, saindo da conversa e bloqueando imediatamente a tela do meu celular. Sorrio forçado, transparecendo calma. Na verdade, eu não estava nada calma.
E vendo seus amigos do clube de política bem atrás de si, só piorou a situação.
— Oi. — minha voz sai demasiadamente melosa, e por isso limpo a garganta, sorrindo para os demais que me cumprimentam com um aceno e logo se retiram, sentando numa mesa mais afastada com outras pessoas. — Eu… bom, eu estava aqui o tempo todo.
— Sozinha?
Desconfiado, Namjoon olha ao redor do refeitório, que começa a encher.
— É, sozinha.
Quando convencido, ele sorri pra mim, arrasta a cadeira até ficarmos frente a frente e ergue a mão para acariciar minha bochecha. Coro. Desde quando começamos a namorar, consigo contar nos dedos as vezes em que ele agiu de maneira fofa comigo. A maioria delas foi em público. Sozinhos, a história muda um pouco. Talvez ele só esteja querendo preservar a nossa imagem de casal perfeito pro resto das pessoas invejarem a nossa felicidade, e…
— Sinto falta de você.
— Sente mesmo? — ofego, questionando alto demais. Ele ri e concorda. — Eu também sinto sua falta! Ultimamente as coisas não estavam muito favoráveis pra gente, mas… — umedeço os lábios, pensando na melhor forma de ouvir da boca dele o que eu desejo ouvir. — Ainda podemos voltar a ser como no início, não é?
— Como no início. — ele repete, parecendo pensar um pouco. Depois, balança a cabeça devagar e se inclina para me dar um selinho, que logo se transforma em algo mais por uma iniciativa dele. Fico surpresa no momento, mas me deixo levar até ele decidir quebrar o beijo para mirar o relógio digital no seu pulso, que apita marcando o início da sua reunião do clube. Meu semblante murcha. Já ele parece totalmente normal.
Olha pro lado, pros amigos, e sinaliza que devem voltar.
— Mas já? — uno as sobrancelhas. — Você nem me contou como foi o seu dia, e…
— Seu erro é falar demais, sabia? — com um sorriso provocante, ele segura meu queixo entre os dedos e planta um último beijo no canto da minha boca antes de se pôr de pé e me deixar plantada como uma estátua. — Te ligo depois.
Minha boca permanece aberta por alguns minutos e eu arrisco tocá-la com a ponta dos dedos, só pra confirmar se isso que aconteceu foi real mesmo. Meu cérebro ainda tem dificuldade de processar a cena, mas sinto algo estranho no peito. Algo um pouco distante da felicidade que costumo sentir perto de Namjoon. Mas ele disse que sente minha falta, então é um bom sinal, não é?
O toque do meu celular me põe de volta na realidade. É um som irritante de patos, e o contato brilha o nome de quem o escolheu.
— Uau, que cena mais… cativante.
Assim que atendo, Lenna não poupa o sarcasmo, por mais que sua voz continue no mesmo tom baixo e sereno de sempre.
— Você viu? — estreito os olhos, procurando-a por perto. — Cadê você?
— Acredite, não fui a única. Seu namorado sabe aproveitar bem os horários de pico dessa universidade. — ela boceja. — E estou aqui em cima, olhando a vida alheia. Não tenho nada de melhor pra fazer hoje. Levei um bolo.
— De quem? — encontro seu corpo pequeno encolhido sob o parapeito do andar de cima, o mais movimentado do refeitório. Ela faz uma careta de tédio. — Vamos, agora estou curiosa.
— Você não me conta mais os seus segredos, então não contarei os meus.
Suspiro audivelmente, rolando os olhos.
— Tá. Tá bom. — ainda com o celular na orelha, me ponho de pé e indico a saída com a cabeça. — Rola uma carona?
— Uma hora dessas? Pra onde?
— Quer saber meus segredos ou não?
Um vislumbre de sorriso brota nos seus lábios melecados de lip oil natural, e antes de desligar, ela diz:
— Te encontro no carro.
Sim, eu sei. Sei bem que prometi a mim mesma que não andaria mais com Elenna no carro da tia Day, mas não tive escolha. É um perigo, porque essa louca adora dirigir como se não houvesse amanhã e eu mal enxergo o caminho diante de tantas folhas penduradas no teto e decorações neon espalhadas pelo painel. Eu sei que é a vibe meio hippie das duas, mas isso deveria ser, sei lá, crime de trânsito e crime de atentado ao estilo. Sem contar com o aroma de ervas naturais se misturando com o couro desgastado dos bancos fazendo meu nariz querer coçar o tempo inteiro.
Falar sobre o terapeuta estava fora de cogitação, então, só me restou um segredo para contá-la, o que envolve a minha reputação indo por água abaixo.
— Oh, meu Deus. — sinto seu olhar sob mim quando revelo para onde estamos indo e o porquê. — Me diz que é mentira.
— Eu queria muito que fosse.
Um silêncio se instala no carro. Sei que ela está pensando mil e uma coisas naquela cabecinha sábia e isso me deixa com um certo medo do que virá a seguir.
— O salário não é bom?
Céus.
— Acha mesmo que é esse o problema? — ergo uma sobrancelha. — Elenna, não há salário algum, e mesmo se tivesse, seria a última coisa com que eu me preocuparia, ok? — bufo, passando a fitar a janela e o cenário que já muda completamente como se entrássemos em um outro mundo. — Esse lugar é desagradável em todos os sentidos possíveis.
— Até que não achei tão ruim. Parece só ser um bairro simples, residencial e diferente do seu palácio de cristal. — ela comenta, incrivelmente bem-humorada. É incrível como nossas perspectivas são totalmente opostas. — Tem até uma pista de skate, Yun, olha ali…
— Legal.
— E uma loja de discos de vinil!
— Eba. — murmuro na maior má vontade do mundo. — Podemos só andar logo? Ainda tenho muita coisa pra fazer naquele lugar hoje.
— Tipo o quê?
— Milagres.
— Ah, qual é? Não vai ser algo ruim, anote minhas palavras. É uma experiência e tanto pra você, bom para conhecer gente nova e preencher o currículo.
— Como cheirar a borra de café e me sujar inteira de gordura pode ser considerado uma experiência boa? — quando finalmente chegamos e ela encosta o carro, observamos juntas a fachada por alguns instantes. Acabo pensando alto. — Meu currículo nunca será manchado com o nome dessa espelunca.
— Você disse que o objetivo do projeto é alavancar as vendas e atrair público para a cafeteria, não disse?
Ergo os ombros em desdém.
— Ou seja, fazer milagres.
— Yun, é sério. — ela subitamente se ajeita na poltrona do motorista, se virando totalmente de frente pra mim. — Se não sabe ainda o que fazer, porque não tenta estudar a vizinhança primeiro?
Estudar a vizinhança.
Logo de cara, meus olhos vão para além do seu corpo, pra janela atrás de si e o muro do lar de idosos que de dia parece até inofensivo. Mas imediatamente me recordo da figura do homem que circunda o local e me arrepio. Seria essa a vizinhança a qual ela se refere?
— Não! — acabo gritando após imaginar eu tendo que estudar Jeon Jungkook. — Digo, não, não precisa. O público do café é só… velhinhos. Isso, velhinhos.
— Mas tem um lar de idosos bem aqui. — ela aponta e eu só me desespero mais ainda. — Seria legal fazer algo como um festival, não acha? Você é popular, poderia usar isso ao seu favor e acabaria atraindo pessoas mais novas também. Isso se você se esforçar e tirar o preconceito dessa mente de ervilha, é claro.
Oh…
— Ok. — é tudo que digo antes de tirar o cinto de segurança, passar minha bolsa pelo ombro e sair do carro sem esperar mais nenhuma palavra sua. — Isso é tudo. Tchauzinho.
Dou as costas, mas ainda a escuto dizer depois de abaixar o vidro da janela.
— Você vai me agradecer depois.
Acelero os passos, empurrando a porta do café, mantendo minha feição de claro desinteresse e desânimo ao cumprimentar os dois que, diferente de mim, já sorriam de orelha a orelha. E o dia no café passou devagar, como sempre. Jin e Moon estavam ocupados atendendo os poucos clientes que apareciam, e enquanto contava as notas da caixa registradora, as palavras de Lenna continuaram a ressoar na minha mente.
Não é uma ideia ruim. Talvez um festival seja exatamente o que eu preciso para tirar a cafeteria da crise. E por isso, depois do turno, volto para casa e, sem querer admitir a mim mesma, começo a esboçar um plano. Penso em duas etapas. Para os idosos, uma parceria com o lar seria interessante, ainda que minha mente grite perigo. É possível criar um café da tarde, com atividades específicas da terceira idade, comida e, lógico, muito café. Já de madrugada, o festival da Meia-Noite buscaria o público local, mais jovem e despojado. Poderíamos fazer algo simples, mas impactante. Música ao vivo, comidas temáticas, talvez até um concurso de talentos locais. E eu poderia usar minha popularidade nas redes sociais para criar um tcham a mais.
Já consigo ver meus seguidores crescendo e o dinheiro caindo na conta da cafeteria, uma mão lavando a outra. Tenho certeza que Jin e Moon vão gostar da ideia, porém, só me resta uma coisa. Coragem. Coisa que me falta, e muito.
De qualquer forma, levanto no dia seguinte determinada a fazer acontecer. Se tudo der certo com os planejamentos, os eventos já podem acontecer na semana que vem. Depois disso, minha última semana será tranquila, apenas gerindo o marketing e produzindo relatórios, sem borras de café, sem poeiras e sem bairro estranho. Apenas o sentimento de missão cumprida, no conforto da minha casa. E é isso. Fecharemos hoje o projeto, ou não me chamo Lee Hyuna.
Mas já sou tombada com a primeira notícia do dia, ouvindo pela boca de papai que Kiun está doente e terei que sair com o meu carro. Porra. Odeio xingar e acho terrivelmente deselegante perante minhas aulas de etiqueta, mas nessa ocasião em específico… que má sorte, Hyuna. Ainda bem que eles não se interessam para onde eu vou ou deixam de ir, porque se soubessem o meu destino, certamente pensariam duas vezes. Mas não sou eu quem vou contar.
Entro no meu Porshe Taycan rosê gold tremendo da cabeça aos pés. Tanto por ter que dirigir, quanto por ter que passar seus preciosos pneus no asfalto mesquinho daquele bairro. E se me roubarem?
— Vamos lá, você não tirou a carteira de motorista à toa.
Suspiro, ajustando os óculos de sol enquanto saio da garagem. O motor roncava suavemente, um contraste gritante com o ambiente para onde eu estava me dirigindo. Cada cruzamento, cada sinal vermelho parecia uma emboscada em potencial. Meus olhos estavam atentos a qualquer movimento suspeito até, finalmente, conseguir virar na rua do café sã e salva.
O contraste entre o meu carro caro e as casas desgastadas ao redor é algo absurdo. Eu posso até sentir os olhares curiosos e, talvez, invejosos das pessoas nas calçadas, mas o que realmente me deixa nervosa tem nome, sobrenome, uma mangueira jogando água na calçada, um pirulito na boca e uma regata preta completamente encharcada e grudada em seu peitoral.
Com meu coração vindo à boca e minhas mãos suando, tudo parece mil vezes mais difícil do que realmente é agora. Tento ignorar a presença desconcertante do moreno e decido estacionar numa vaga ao lado do café. Giro o volante, acelero devagar e está tudo indo bem até um vulto laranja me obrigar a fincar os saltos no freio e parar a centímetros de distância do um pobre gatinho.
Desde quando ele estava ali?
Meu corpo é mantido no lugar pelo cinto de segurança, mas tenho certeza de que minha alma já não está mais aqui. O coitado foge, assustado, indo direto na direção do dito cujo. Observo-o de relance e me arrependo. De braços cruzados, Jeon sustenta um olhar enigmático enquanto assiste o meu vexame de camarote.
O ignoro, respirando fundo para completar a minha manobra e sair desse carro o quanto antes. Parece que estou aqui há uma eternidade e não tem nem vinte minutos. Engato a ré para desfazer o caminho torto que quase me fez matar o gato e, por milésimos de segundos, não bato na moto que resolveu passar na rua bem no momento em que eu estou no volante. O motoqueiro buzina, me manda tomar em lugares inimagináveis, e meu rosto arde em vergonha. Se alguém filmar isso e postar no Instagram, serei uma pessoa morta.
Quando finalmente consigo parar a Porshe em uma posição aceitável, sem arranhá-lo na calçada ou em qualquer objeto que resolva aparecer para complicar a minha vida, saio e ativo o alarme tentando manter a minha pose plena de que nada aconteceu. Mas é impossível não me sentir julgada por aquela presença macabra.
— Tá olhando o quê?
Minha tentativa de intimidá-lo é meio em vão. Ele tira o pirulito da boca, lambe os lábios devagar e eu capto algo prateado brilhando em meio ao gesto — nada que eu deveria prestar muita atenção, mas já prestei. Só que sua face valentona não muda. Seus olhos me estudam dos pés à cabeça enquanto fico parada com os braços cruzados e as pernas trêmulas. Arrisco dizer que esse foi o olhar mais zombeteiro e amedrontador que já recebi em toda a minha vida.
— Passe um muro, dondoca.
Me assusto. Primeiro porque ele está falando comigo, e segundo porque está sendo petulante. Eu até abro a boca para retrucar, mas demoro demais e ele põe o doce roxinho de volta na boca, retornando à tarefa de esfregar a calçada suja. O que isso significou, eu não quero nem tentar saber. Só ergo o queixo e dou meia volta em direção ao café.
Os primos estão conversando algo na cozinha quando entro e guardo minhas coisas.
— Jin, Moon, cheguei. — começo a tirar da bolsa uma caneta e o papel com minhas anotações. Mesmo com o que aconteceu agora pouco, eu preciso seguir adiante. Não é Jungkook que vai me parar. — Preciso conversar algo sério com vocês antes do expediente.
— Nós também precisamos. — Jin toma a frente, após um sinal de apoio da prima. — Você primeiro.
Fico temerosa, mas mantenho um sorriso confiante.
— Ótimo. — despejo os papéis na mesa. — Quero que vejam isso.
Tento ser o mais direta possível ao explicar a minha ideia — inspirada na de Lenna — para tirá-los da crise. A receita perfeita para alavancar o Café da Meia-Noite e me livrar logo desse trabalho existe e consiste em dois eventos, dois dias, dois públicos diferentes, uma dose de divulgação certeira, pouco investimento e muito retorno. Eles me escutam com atenção, observando todos os traços que desenho para deixar tudo claro e objetivo. Chego até a pensar que eles não estão entendendo nada, porque nem se movem, mas ao findar meu discurso, tenho a total certeza de que eles compreenderam totalmente.
Só não aparentam ter gostado muito.
— Não vão dizer nada? — questiono. — Gente, é a oportunidade da vida de vocês. Hello...
— É uma ideia e tanto. — Jin assente lentamente, e eu respiro aliviada. — Nunca sequer cogitamos algo parecido. Parece que você veio mesmo para iluminar nosso caminho, só que...
— Ah, obrigada. — sorrio, extremamente convencida com o elogio. — E então, quando começamos os preparativos? Podemos fazer contato com os convidados hoje, decidir a comida e a decoração no fim de sema...
— Não podemos concordar ainda.
Meu sorriso murcha quando ele me interrompe.
— Oi? Como não? Está tudo aqui, não há nada mais com que se preocupar. Eu estou aqui e farei dar certo.
— Acontece que há sim algo a mais para se preocupar, Hyuna. — Moon se pronuncia pela primeira vez, caminhando até mim em passos lentos. — A nossa segurança está em jogo.
Alterno o olhar entre os dois.
— Eu... não estou entendendo.
— Você falou com ele.
— Ah. — rio, sem graça. — Só foram... três palavras.
— Quatro. — Moon me corrige, apontando o indicador na minha direção, e eu engulo em seco. — Não deveria falar nenhuma! Francamente, nós já te avisamos! Você viu a perna dele?
— O quê? — coro. E há uma enorme interrogação em meu rosto. — Por que eu deveria olhar a perna dele? O que há com voc…
Sou puxada pelo braço pela garota, que me põe ao seu lado em uma fresta da cortina de um jeito tão urgente que fico até nervosa.
— Olha ali. — ela sussurra, apontando pelo vidro. Lá está ele, varrendo as folhas e enxugando o suor da testa. — Consegue ver?
Abaixo o olhar para suas pernas. Bom. Pela calça jeans folgada e meio suja, não há muito o que se ver. Apenas deduzir que suas pernas são bem grossas. Mas por que diabos estou pensando nisso?
— Não seja tarada! — sou pega no mesmo instante. — Mais pra baixo…
Fico com vergonha, mas disfarço, e sigo suas instruções. Ele se mexe um pouco, se apoiando no muro para descansar. E é nesse movimento que enxergo uma pequena caixa preta ao redor do seu tornozelo.
— O que é aquilo? — pergunto, tentando não parecer alarmada.
Moon fecha a cortina, e apoia as duas mãos no meu ombro. Ela está séria, o que me deixa com mais medo ainda.
— Aquilo é a droga de uma tornozeleira eletrônica, Hyuna.
Sinto um frio estranho na espinha, lembrando da interação de agora pouco, dos olhares nada legais e do meu lindo carro à mercê na rua.
— Jeon Jungkook é um ex-presidiário. — Jin volta a falar, se entreolhando com a prima, mantendo um tom de voz totalmente diferente do usual carismático. — Sei que ficou curiosa, mas não podemos brincar com isso. Se quer fazer tudo dar certo, terá que ter certeza de que não colocará nem a nós, nem o Café em risco. — ele avisa. — Fique longe dele.
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