Em minhas melhores lembranças, o velho toca-discos da minha avó toca suavemente em todo o meu quarto. Stevie Nicks canta lindamente, embora ruídos a acompanhem, criando uma atmosfera antiquada. Estamos em silêncio imperturbável, sorrindo sem parar sobre um amor tão forte que dói. Longos cabelos ruivos brilham em ondas infinitas no travesseiro branco e me afogam, aquele nariz adoravelmente enrugado junto com um sorriso brilhante, grande e familiar. Nós dois deitamos em uma tarde ensolarada, as cortinas fechadas para cobrir o mundo exterior e nos proteger dele. A sala sem luz é escura como breu. Minha cabeça está deitada em sua barriga quentinha, ele me compara a um felino e diz que sou encantador. Seus longos dedos percorreram as raízes encaracoladas do meu cabelo, unhas afiadas arranhando meu couro cabeludo. Somos tão jovens e positivos. Você tem sonhos e me conta sobre eles com o tom de quem já os conquistou. Você conseguiu o que queria, mas o percurso quase o matou mais vezes do que gostamos de admitir.
Estou olhando para ele. Estou sempre olhando para ele.
Sempre estudando a forma artística como a luz cria contrastes na pele branca como nuvens em um dia ensolarado. A sombra de cílios claros varrem as maçãs do rosto, mas hoje não há luz. Não consigo piscar, preciso memorizar cada detalhe de quem ele é, cada ruga e cada sorriso que ele possui. Essa é a minha missão. Ontem memorizei cada elemento de sua íris verde, encontrei um marrom escondido ali, e fiquei olhando até que tudo ao redor perdeu a cor e as formas se fundiram. O mundo tornou-se medonho diante dos meus olhos, eu tremi de medo. Medo do que não é real, medo dele, medo de mim mesmo.
Hoje sonhei com seus olhos e eles me assombraram, piscaram tristemente para mim e a imensidão esverdeada me engoliu impiedosamente. Para me salvar do pesadelo, me agarrei à falha marrom no verde venenoso. Acordei chorando, com os lábios beijando minhas pálpebras fechadas e longos dedos enxugando minhas lágrimas para longe. Seu calor está ali me confortando, se desculpando.
Não há tempo, estamos presos e a vida lá fora também pode ter parado. Afinal, tudo o que tocamos perde a luz. Lá fora já não faz sol, o sol beijou o mar há muito tempo e a noite esfriou tudo o que antes foi quente. Seus olhos ainda estão tristes, seu sorriso perdeu o brilho juvenil e agora ele é arcaico e ignorante. Suas mãos estão frias, mas não importa quando eu as pego e dou um beijo curador em seus dedos trêmulos. Beijando de novo e de novo, e parece que o toque dos meus lábios o queima. Ele não se importa, ele gosta da dor.
Seu sorriso é sujo, sempre foi. Ele me deixa saber todas as coisas que quer fazer comigo. Me pega em seus braços e abraça tudo o que sou e, novamente, para sempre. Nos perdemos um no outro, tomamos em dose até não sobrar mais nada. Nos tornamos insaciáveis. Somos um, não somos nada. Ele me reivindicou, meu corpo é seu santuário, porque eu sou feito de tudo que ele já foi, e agora ele não é mais nada. Eu quero mais dele, eu sempre quero mais. Infelizmente, percebo que consumi tudo que tive direito.
Eu o pego olhando para mim às vezes, sei que ele está olhando para si mesmo. Sou um reflexo do seu passado, a única coisa que ele pode agarrar e não largar. Todas as coisas estão indo, se movendo, dando um jeito, menos eu, porque ele me prende em sua armadilha, não deixa o mundo me pegar. Ele é possessivo sobre cuidar de mim, sem perceber que é ele quem está me machucando. Não importa o quão triste ele fique, quando eu saio de sua realidade e tento facilitar as coisas. No final, é ele quem tem o poder de me machucar. E ele sabe disso, mas algo lhe instiga em criar cenários conflitantes, só para compensar por eles depos. Ele é sádico e gosta de me mostrar isso.
Estamos deitados e cansados. É um dia de chuva, a sala está fechada para que nenhuma vida entre e perturbe aquela velha atmosfera que construímos à nossa volta com muito trabalho árduo. É difícil estarmos juntos hoje em dia, mesmo sabendo que nossa casa é nossas camas. Estou deitada em sua barriga quente, ele está olhando para o teto, sem expressão, e tento olhar para ele de novo. Tento mais uma vez memorizar todos os detalhes em minha mente manchada de álcool; antes era difícil, mas agora é impossível e, como sempre, acabo falhando. Agora percebo que nunca poderei vê-lo realmente, não até que ele olhe para mim de volta.
Fui consumido por ele, derrotado. Não desvendei suas camadas e ele nunca vai me permitir, seu sorriso de escárnio me deixa saber disso. Ele olha para mim agora, seu sorriso não ilumina há muito tempo, mas seus olhos estão mais brilhantes a cada dia, com a pureza do marrom escondida atrás do verde perverso. Ele me segura em seus braços e abraça tudo o que sou, mesmo que ele odeie o que ele fez de mim.
Ele ainda me beija de forma familiar, possessiva e sei que ele me destravou, me possuiu. Ele me deixa saber tudo o que ele fez comigo, que eu permiti. Ele está lá quando acordo, quando durmo e quando sonho com cabelo laranja, íris brilhantes e um sorriso vazio, todos os dias. Sonho com lábios frios e acordo com o toque fantasmagórico em minhas pálpebras. Mesmo que seu corpo não esteja comigo, ainda está em minha mente, tão presente que eu o coloca lá de uma forma ou de outra. Mesmo que seja deprimente a fantasia imaginativa à qual eu invento, eu não me importo mais.
Parou de chover, mas ainda estamos parados, nossas mãos ainda estão frias e buscamos calor no frio. Talvez um dia abramos as janelas e deixemos a vida entrar.
Eu ainda estou lá, acho que sempre estarei lá.
A vida ainda não acontece. Sonhamos com o dia em que nosso mundo volte a girar, embora não saibamos se esse sonho seja de fato um terrível pesadelo.
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