★ Samantha,
Desde quando eu acredito em destino?
Olhei para o pijama que Keyla tinha colocado na sacola e decidi vestir uma camiseta da Heloísa que estava junto. Uma lágrima desceu pelo meu rosto quando o cheiro do seu perfume invadiu meu nariz. Sua camiseta cheirava a roupa lavada, mas ainda assim tinha um resquício do seu aroma. Cheiro de Heloísa... Cheiro da Gutiérrez. Caminhei até o lado da cama e peguei o telefone do hotel para ligar para o meu pai. Tinha certeza de que ele se recusaria a ajudar a Heloísa, alegaria que ela tinha se machucado fora do trabalho e que não tinha responsabilidade nenhuma pelo ocorrido. Na verdade, um mês antes, eu pensaria da mesma forma. Mas algo havia mudado. Heloísa, Keyla, Tato, Roney e até Deco estavam entrando em minha vida de uma forma que nunca pensei que pudesse acontecer. Tudo isso, somado às lembranças da minha mãe e aos sonhos estranhos que vinha tendo, estava me deixando confusa e perdida.
Porém, uma coisa era certa: Heloísa! Ela me balançou.
O telefone tocou até cair na caixa postal. Olhei para o relógio na parede e vi que já passava das dez horas. Liguei novamente, e então ele atendeu com a aspereza de sempre.
— Você sabe que horas são, Samantha? Eu trabalho amanhã — disse ríspido, mas pela primeira vez eu não retruquei. Tinha um plano B caso meu pai se recusasse a ajudar Heloísa, mas tudo seria mais fácil se ele se prontificasse a pagar o tratamento.
— Preciso da sua ajuda — disse, me deitando na cama. Eu me sentia profundamente sozinha. Estava acostumada a ficar só, mas daquela vez era diferente. — A Heloísa caiu de um touro e está hospitalizada — expliquei, e meu pai ficou alguns segundos em silêncio.
— Foi na Girassol? — Sua pergunta me fez ter a certeza de que ele se recusaria a ajudar. Mas ele continuou antes que eu respondesse. — Ela está bem? Qual é seu estado clínico? — Eu me sentei na cama, realmente surpresa com a preocupação repentina do meu pai.
— Ela corre risco de ficar sem andar apenas por um tempo. Não sei explicar muito bem o que o médico disse.
— Você está no hospital? — Foi a vez de o meu pai ficar surpreso.
— Eu... Nós... Eu e Keyla nos tornamos muito próximas, e eu acompanhei ela até aqui — respondi sem dar muitas explicações. A verdade poderia atrapalhar, então menti.
— Vou ligar para o Roney e informar que o tratamento da Heloísa será por minha conta — meu pai afirmou com convicção, sem dúvidas na voz, o que realmente me pegou desprevenida. — Vou reorganizar minha agenda para visitar vocês. — Certo! A história realmente estava ficando estranha. Meu pai não mudava sua agenda por ninguém, e por que faria isso por uma simples veterinária? Não fazia sentido. — Samantha? — Ele chamou minha atenção, pois eu havia ficado muda.
— Ok! — Respondi, ainda tentando imaginar o porquê de tanta preocupação do meu pai com a Heloísa, mas não questionei. Fiquei com medo de ele voltar atrás. — Amanhã falo com o Roney também.
Eu me despedi e tentei relaxar um pouco, pois sabia que dormir seria impossível. Me sentia perseguida pelos olhos da Heloísa me encarando enquanto estava imóvel naquela arena.
Passei horas me virando na cama até que não consegui mais suportar. Peguei uma calça jeans e uma camisa branca da malinha, calcei as botas e saí. Olhei para o relógio, e eram cinco da manhã. Foda-se! Precisava ir ao hospital.
...
★ Lica,
Ouvir de um médico que eu corria o risco de ficar até meses sem andar foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Acho que, tirando o dia em que soube da morte dos meus pais, eu nunca tinha sentido tanto medo.
Eu era a Heloísa, a veterinária que vivia em cima dos cavalos, a Perigosa que dançava e curtia a vida com toda a alegria de uma jovem da minha idade, a Gutiérrez que sentia a adrenalina pulsar nas veias ao permanecer oito segundos em cima de um touro. E naquele momento, o que eu era? Um monte de massa em cima de uma cama, uma mulher que dependeria de alguém para limpar a bunda e lhe dar banho.
Minha primeira reação: revolta. Assim que o médico saiu, eu esbravejei, xinguei e questionei Deus por ter feito aquilo comigo. Não entendia o motivo do castigo. Eu era uma pessoa correta, vivia a vida com a base moral que havia recebido dos meus pais e posteriormente do Roney, não fazia mal a ninguém. Não merecia sofrer aquilo.
Minha segunda reação: desespero. Tentei de todas as formas mexer as pernas. Então, eu me lembrei de quando era criança e meu pai chegava de alguma viagem. Ele sempre trazia presentes, nunca voltava sem algo para mim e para minha mãe.
Lica, adivinha o que eu trouxe?
Um chapéu novo?
Feche os olhos e peça bem forte. Se você pedir com fé, o seu desejo se realiza.
Ao me lembrar das palavras do meu pai, fiz exatamente o que ele dizia: fechei os olhos e pedi com todas as forças, implorei desesperadamente para que minhas pernas se movessem.
— Vamos lá. — Abri os olhos e, quando percebi que não tinham se mexido um milímetro sequer, lágrimas desceram pelo meu rosto. — Vamos lá, se mexam! — Gritei, e nada: era como se eu não tivesse mais controle sobre o meu corpo. Meu cérebro mandava, mas minhas pernas não obedeciam. Não sentia nada, somente um formigamento constante, como se elas estivessem dormentes. Da cintura para cima, eu estava normal. Conseguia mexer o tronco, os braços e a cabeça, mas da cintura para baixo eu estava morta.
Então, veio minha terceira reação: tristeza. Tudo que havia feito na vida, todos os meus sonhos e planos me passaram pela cabeça. Olhei para o teto e fiquei por um bom tempo tentando assimilar o que havia perdido. Perdido para o touro, perdido para o mundo, perdido para mim mesma.
Recordei os dias anteriores e Samantha tomou conta dos meus pensamentos, era como se eu a conhecesse havia décadas. Ela estava em minha pele, e eu, se fechasse os olhos, poderia ver seu rosto, seu cabelo caindo sobre os olhos, sua boca vermelha, e sua cara de menina mulher. Fui inundada por lembranças do nosso sexo na chuva. Estávamos loucas uma pela outra. Por mais que eu já tivesse feito aquilo um milhão de vezes, e que o ato fosse tão natural pra mim, com Samantha era diferente. Seus gemidos não invadiam somente meus ouvidos, eles penetravam mais, iam até onde nunca antes alguém havia entrado. Pensava em seu sorriso, em seus olhos semicerrados pelo desejo, em sua expressão saciada após fazer amor.
A última reação foi a mais difícil e dolorosa: vergonha.
Como eu ia encará-la novamente?
Como eu poderia dizer que estava apaixonada? Samantha nunca mais iria me tratar da mesma forma. Eu seria uma inválida, alguém que não serviria mais aos seus propósitos. Eu era só metade de uma mulher. Eu lutaria com todas as minhas forças para me reerguer, para voltar a ficar de pé, mas até lá queria Samantha longe de mim. Piedade não era um sentimento que eu queria que ela sentisse por mim e, provavelmente, seria o que ela teria para me oferecer.
Descansei um pouco e, após alguns exames, autorizei a entrada do Roney e da Keyla. Não sabia quem mais estaria aguardando, provavelmente Rafael ainda estaria no hospital. Eu tinha ficado surpresa com a sua solicitude ao me socorrer. Não era a reação de alguém que queria a mulher da outra.
Conversei muito com o meu tio e com a minha prima, os dois estavam muito abalados e preocupados. Fiz meu papel de irmã mais velha e tentei convencer a Keyla de que tudo ficaria bem. Depois de um tempo com eles, percebi seus olhares de compaixão. Senti vontade de ficar sozinha e, sem dar explicações, pedi que fossem embora.
Keyla ainda tentou argumentar que Samantha queria me ver, mas não cedi. Não queria vê-la. Não queria que ela me visse naquele estado. Seria humilhação demais para mim.
★ Samantha,
Chegando lá não encontrei Roney na recepção, então, disfarçadamente, fui até o corredor que dava para os quartos e procurei pelo da Heloísa. Escutei Keyla falar na noite anterior que ela estava no 302.
Heloísa estava deitada em uma cama com alguns fios ligados a ela. O quarto estava na penumbra. Era pequeno, mas pelo menos era individual. Eu me aproximei dela e passei a mão pelo seu rosto. Estava tão linda, tão normal, tão ela... Tirando os fios e tubos que a rodeavam, era como se ela estivesse dormindo ao meu lado, como na noite que havíamos passado juntas.
— Estou aqui — sussurrei com medo de acordá-la, mas também queria que ela sentisse minha presença. Levei os lábios até o seu rosto e acariciei sua pele.
— Senhorita, não é permitido visita nesse horário. — A voz baixa de uma mulher chamou minha atenção. Virei para a porta e vi uma enfermeira com cara de poucos amigos me encarando. — Terá que sair.
Dei uma última olhada em Heloísa e saí, seguindo a dona ranzinza. Quando cheguei à recepção, encontrei Roney com um copo de café, e com as mesmas roupas do dia anterior.
— Bom dia, Samantha. Já por aqui? — Ele me cumprimentou e ofereceu o café que carregava.
Agradeci, mas nada desceria pela minha garganta em um momento como aquele.
— Não consegui dormir. — Eu me sentei no sofá e peguei uma revista da mesa de centro para folhear.
— Seu pai acabou de ligar. Obrigado por tê-lo avisado. Apesar de ainda achar que a sua história com a Heloísa não vai acabar bem — Roney disse preocupado, e eu coloquei a revista de volta na mesa.
— Você tem alguma coisa contra mim, Roney? — Perguntei querendo entender o motivo da sua contrariedade. Desde que cheguei, ele nunca tinha me tratado mal ou com indiferença, mas a partir de quando soube de mim e da Heloísa, ele me olhava estranho e então soltou aquela.
Roney continuou a beber o café, tentando agir naturalmente, mas o seu desconforto era nítido.
— Não tenho nada contra você, Samantha. — Sua voz era gentil, me deixando ainda mais confusa. — Pelo contrário, acho que o tempo que está passando na fazenda está te fazendo bem, você mudou da água para o vinho desde que chegou, e eu sei que isso se deve à minha filha e a minha sobrinha — completou. Roney realmente estava certo. Eu havia mudado. A Samantha com uma nova maneira de ver a vida. Sorri com a sua constatação, pois era daquela forma que me sentia e fiquei feliz por ele ter reconhecido aquilo. — Porém, eu já vi isso acontecer no passado, e não acabou bem. — Arregalei os olhos, pois, depois de tudo o que ele disse, me jogou aquela bomba.
— O que quer dizer? O que aconteceu? — Perguntei, elevando minha voz.
— Essa não é uma história minha. Pergunte ao seu pai quando ele estiver aqui. Segundo ele, em uma semana no máximo estará na fazenda — explicou.
— Por que meu pai se importa tanto assim com a Heloísa? — Eu estava angustiada por respostas. Com tudo acontecendo ao mesmo tempo, eu precisava saber o que meu pai e Roney escondiam.
— Faz parte da história.
Então Keyla chegou acompanhada de Tato e correu para me dar um abraço. Ela também tinha madrugado, comprovando a minha tese de que ela só foi embora porque Tato praticamente a arrastou.
— Oi! — Ela me abraçou. — Alguma novidade? — Perguntou ao pai.
— Ainda na mesma, sem nenhuma alteração. Ela está bem.
Passamos algumas horas comentando sobre Heloísa e sobre as mudanças que deveriam ser feitas para acomodá-la, caso ela não se recuperasse antes de voltar para casa. Era difícil falar e pensar naquilo, mas se tratava de uma realidade que deveria ser discutida. Sugeri que, assim que ela pudesse voltar para casa, se hospedasse na fazenda, pois era maior e tinha a piscina, que poderia ser de grande ajuda na sua recuperação. Além disso, ela estaria perto da família.
Keyla concordou, mas Roney disse que a decisão seria tomada pela Heloísa.
Começou o horário de visitas, e todos nós entramos. A enfermeira não chamou por nomes, então entendemos que poderíamos entrar. Assim que chegamos ao quarto, Keyla passou na frente de todos e se jogou nos braços da prima.
— Ei, prima. Não chora. Eu estou aqui — Heloísa disse secando as lágrimas de Keyla.
Deu um beijo em seu rosto e outro em sua testa. Fiquei comovida com a cena e tive que segurar o choro.
— O que ela está fazendo aqui? — Heloísa perguntou quando os seus olhos pousaram em mim. — Eu disse para ela ir embora. Por que ninguém faz o que eu peço?
— Calma, maninha. — Keyla tentava acalmá-la, mas era em vão. Roney e Tato me olhavam e eu não sabia se corria ou se chorava, enquanto Heloísa esbravejava, me mandando embora.
— Quero ela fora daqui. Agora! — Ela começou a gritar, e eu tentei chegar até ela, mas fui parada por Tato. Logo uma enfermeira entrou e, ao saber o motivo da discussão, pediu que eu me retirasse para o bem-estar do paciente.
— Por favor, senhorita. Não fará bem a ela se estressar — explicou.
Mais uma vez, não tive o que fazer. Eu me senti impotente, dilacerada. Os olhos da Heloísa demonstravam desprezo, e eu não entendia por que ela me tratava daquela maneira. Relembrei tudo o que vivemos e eu não conseguia acreditar que ela não sentia nada por mim. Que ela era tão indiferente a ponto de me expulsar do seu quarto e da sua vida.
Fui embora. Com o coração na mão atendi ao pedido da Heloísa. Estava acabada, triste como nunca tinha me sentido antes.
Mas, determinada a lutar pelo o que eu quero.
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