★ Lica,
Eu não queria deixar Samantha sozinha, ela parecia não estar bem, mas acabei dando o braço a torcer. Realmente precisava resolver muitas coisas na cidade, já que tinha saído do hospital direto para a fazenda. Precisava falar com o novo veterinário, passar em casa para pegar algumas coisas e ir ao posto de saúde para uma consulta com o dr. Jorge. Além disso, também precisava fazer uma visitinha a uma certa pessoa.
Desde que tinha visto aquela idiota beijando a minha namorada, eu não conseguia parar de pensar no que fazer. O problema é que eu não poderia partir para cima dela enquanto estivesse presa naquele maldito trambolho. Mas é para essas coisas que servem os amigos.
Sorri com esse pensamento enquanto Tato dirigia concentrado na estrada.
Eu tinha pedido que ele me levasse ao hotel e me ajudasse a dar um chega para lá na pangaré. Tato não pensou nem dois segundos antes de me responder. Esse companheirismo era o que eu mais gostava no meu amigo. Companheiro é companheiro, filho da puta é filho da puta.
— Aonde você quer ir primeiro? — Tato perguntou quando já estávamos quase chegando à cidade.
Fiquei tentada a ir direto atrás da idiota, mas me contive. Deixaria por último, assim não atrapalharia o restante dos meus compromissos.
— Vamos em casa, passamos no dr. Jorge, visitamos a pangaré e depois vamos buscar o MB. — Confirmei o itinerário e Tato não discordou.
Entrei em contato com MB, um amigo de faculdade, para pedir que ele prestasse serviços em algumas fazendas onde eu trabalhava. Assim os proprietários não ficariam na mão durante a minha recuperação. Por sorte, MB estava trabalhando na fazenda Raio de Sol, que ficava na região. Sempre confiei de olhos fechados nele, um veterinário excelente e muito profissional. Eu tinha certeza de que ele faria um trabalho tão bom quanto o meu ou até melhor.
MB era funcionário fixo da Raio de Sol, mas, assim como eu, prestava serviços para outras fazendas. Quando contei a ele sobre o acidente e pedi sua ajuda, ele prontamente respondeu ao meu pedido.
Tato estacionou na porta da minha casa e eu aguardei ele tirar a maldita cadeira da caminhonete.
— Vamos lá, mana — disse ele, me carregando e me sentando.
— Se for para ficar assim pelo resto da vida, vou preferir morrer — disse em voz baixa.
Tato imediatamente virou a cadeira de frente para ele e me encarou com ódio. Acho que nem quando nós brigamos na faculdade eu o vi tão chateado comigo.
— Porra, Heloísa! — Gritou, e eu abaixei a cabeça recuando. — Nunca mais fale uma merda dessas. Já imaginou como a Keyla e o Roney ficariam? E eu, seu melhor amigo? E a Samantha, já pensou o que ela acharia se te ouvisse dizer isso?
Pensei em toda a minha família — o que sobrara dela — e me dei conta de quanto eles também deveriam estar sofrendo. As palavras do Tato me fizeram lembrar da minha patricinha. Samantha estava muito diferente de quando chegou — mais emotiva, mais alegre e, principalmente, mais humana. Era impossível não se encantar com ela. Eu estava apaixonada, isso era óbvio, mas fiquei surpresa quando a ouvi dizer "eu te amo". Acho que ainda não estava preparada para uma declaração tão profunda.
Enquanto divagava sobre minha relação com a Samantha, Tato me levava para dentro de casa.
Eu precisava somente de algumas roupas, uns livros e meu notebook. Eu dizia onde estava e Tato pegava para mim. Foi quando me dei conta de que eu não estava com um amigo, mas com um irmão. Em nenhum momento ele saiu do meu lado. Nem sei como conciliava o trabalho com a profissão de babá.
— Tato? — Chamei, e ele olhou para mim. — Obrigada por tudo.
Meu amigo guardou minhas coisas em uma sacola e caminhou até mim, colocando a mão em meu ombro.
— Você faria o mesmo por mim, irmã — disse ele, convicto e com toda a razão.
Sempre fui o tipo de pessoa que defende a família com unhas e dentes. Depois de perder meus pais, eu não suportaria perder mais ninguém. Por isso cuidava da Keyla como se ela fosse uma irmã pequena.
E Tato também passou a fazer parte daqueles por quem eu luto.
Ele empurrou a cadeira até o carro. Antes de me colocar no banco, vi Carol caminhar em nossa direção. Alguns passos antes de nos alcançar, reparei em como ela olhava para a cadeira. Seu olhar se encheu de piedade e isso me desestabilizou totalmente.
— Oi, Carol. — Tato chamou sua atenção, pois ela me encarava sem ao menos disfarçar quanto sentia pena de mim.
— Oi, Carol. — Imitei Tato e a cumprimentei, porém de maneira mais contida e fria.
Ela corou e ficou sem graça. Sabia que estava me deixando desconfortável.
— Desculpa, Heloísa. Não fui te visitar no hospital porque achei que já tinha gente demais — disse ela, comovida. — Mas Katarine sempre me dava notícias suas. Como você está?
— Aleijada.
— Heloísa! — Tato me repreendeu, gritando. Carol começou a chorar e eu desviei o rosto para o lado. Porra! Será que toda vez que encontrar alguém vai ser assim? Puta que pariu!
— Foi mal, preciso ir — cortei qualquer tipo de conversa que pudéssemos ter. Na verdade, não via a hora de resolver tudo e voltar para a fazenda. Pelo menos Samantha não me olhava com pena. Bendita a hora em que aceitei seu convite para ficar lá: não conseguiria suportar as pessoas na cidade.
Tato me tirou da cadeira e me colocou na caminhonete, sob o olhar pesaroso da Carol. A vontade de me afastar de tudo aquilo não cabia mais em mim. Era frustrante e revoltante pensar que semanas antes eu era uma mulher inteira e que depois..
— Meu Deus... — Tentei respirar normalmente, mas estava difícil manter o controle.
— Cara... — Tato começou a dizer, mas depois se arrependeu e ligou a caminhonete.
Saímos mudos, mas vi meu amigo sacudir a cabeça, inconformado com o que tinha acontecido. Eu sabia que estava agindo como uma criança mimada, mas não conseguia manter a calma diante da situação.
O posto de saúde ficava a poucas quadras da minha casa. Era pequeno e modesto, mas o dr. Jorge era um excelente médico. Já fazia muitos anos que ele tinha vindo da capital com a família. Assim que estacionamos, mais uma vez Tato me ajudou. Então falei:
— Eu sigo daqui tá.
Pedi que ele aguardasse na recepção enquanto eu falava com o médico. Tinha um assunto específico para tratar e não queria ninguém por perto. A situação já era frustrante o suficiente sem plateia. Conversamos sobre vários assuntos a meu respeito e o tratamento, dentre elas:
— Então, doutor... — comecei, um pouco envergonhada. — Na verdade, dr. Jorge, eu queria saber se eu realmente, se eu posso...
— Você quer saber se é capaz de transar normalmente na situação em que está? — Perguntou, direto e sem rodeios.
Acho que nunca tinha sentido tanta vergonha na vida. Não estava acostumada a falar sobre essas coisas com um homem, então fiquei bastante incomodada.
— Vamos lá, Gutiérrez. — O médico inclinou a cadeira um pouco. — Conheço você desde que teve sua primeira dor de barriga.
Segurei um sorriso. É claro que conhecia. O dr. Jorge trabalhava na cidade desde que eu era criança.
— E então? Posso, normalmente?
Queria logo acabar com aquela tortura de consulta. O médico do hospital já tinha me explicado, mas eu queria uma segunda opinião antes de tentar alguma coisa com a Samantha.
Precisava resolver aquilo! Estava ficando louca com ela dormindo junto comigo. Parecia que eu iria explodir se não a tocasse. Era tão excitante tê-la ao meu lado... Quando ela me acordou toda cuidadosa para me trocar de posição, senti que precisava me esforçar mais. Por ela e por mim.
— Heloísa, tenho certeza de que o seu médico já te explicou, mas vou explicar de novo: é perfeitamente possível que você tenha uma vida sexual normal. O problema não afetou suas sensações. E, pelo que eu soube, a sua condição é apenas passageira. O alerta que posso dar é que, talvez, você não consiga sustentar o orgasmo por muito tempo. Eu sugiro duas opções: que você seja sincera com a sua parceira, contando sobre essa pequena limitação, ou... — Parou de falar e tirou uma caixinha da gaveta. — Estimulante sexual!
— Nem fodendo! — Falei alto demais e, reconhecendo que tinha exagerado, abaixei o tom de voz. — Não, muito obrigado, dr. Jorge.
O médico riu e fechou a gaveta.
— Imaginei que diria isso. Então, basta ter uma conversa franca com sua parceira e vocês certamente conseguirão achar uma alternativa. Tudo vai dar certo. — Apoiou as mãos na mesa e ficou me encarando.
— Entendi. Obrigada! — Agradeci, e o médico se levantou, abrindo a porta para que eu pudesse passar. Quando Tato me viu, levantou-se e me buscou.
...
No caminho, nos dirigimos até o hotel.
— Bom dia, dona Cida — cumprimentei a dona do hotel onde a idiota estava hospedada. Meu tio havia me contado para onde tinha levado a infeliz, e estava na hora de eu ter uma conversinha de mulher para pangaré. Fiquei dez impacientes minutos contando tudo o que tinha acontecido para a dona Cida. Desde que eu me entendia por gente, ela mantinha o único hotel da cidade.
Depois de dar meu histórico médico, consegui convencê-la de que eu e Tato estávamos indo visitar uma amiga. Como me conhecia desde pequena, não achou que eu estivesse mentindo. Que Deus me perdoe.
Tato me empurrou até o quarto indicado, bateu na porta, e se afastou um pouco. Segundos depois, a porta se abriu.
— Ah! Só pode ser brincadeira — a babaca disse assim que abriu a porta. Tentou fechá-la, mas Tato colocou o pé nela, impedindo-a.
— Boa tarde. Quero trocar uma palavrinha com você.
Não esperei ela responder. Tato bateu o braço na porta, empurrando a tal da Katiane para trás.
— Era só o que me faltava: a aleijada e o caipira. — Sorriu sarcasticamente, depois de se refazer da pancada da porta. Eu e Tato nos entreolhamos, e no minuto seguinte Katiane estava agachada na minha frente. Tato tinha "torcido" seus braços atrás de suas costas até fazê-la ficar de joelhos.
— Bom, o aviso vai ser rápido. Presta atenção, porque, se eu tiver que repetir, pode ser que o Tato se irrite e quebre o seu braço.
Katiane esbugalhou os olhos e se debateu tentando se livrar das mãos do meu amigo, mas foi impossível. Um pequeno movimento e Tato partiria os seus ossos. Não iria fazer isso, lógico, mas queria apenas assustar essa metidinha.
— Fica longe da Samantha! — Liberei toda a raiva que estava contida desde aquele dia. — Agora ela é minha e você não vai chegar perto da minha namorada. E nem arrancar mais um centavo dela! Eu sei que você só queria o dinheiro da Samantha, porque, se você a amasse, já teria vindo atrás dela há muito tempo. Estamos entendidas?!
Quando pensei que a desgraçada tinha entendido o recado, ela sorriu presunçosa, o que me fez ferver. Ah, se não estivesse na porra da cadeira de rodas, eu a mataria.
— Você não conhece a Samantha. Acha que ela vai se contentar com esse mundinho? Com essa vidinha medíocre, com uma mulherzinha deficiente? — Quando ela disse as últimas palavras, Tato apertou mais seu braço, fazendo-a gritar.
— O passado dela não importa. O que importa é que ela é minha, minha namorada, minha mulher. E, se você encostar nela novamente, juro que a deficiente aqui vai arrancar os seus dedos. — Minhas palavras carregavam todo o ódio que eu sentia.
Que patricinha, filha da puta.
Vendo que eu tinha terminado, Tato o soltou e a mocinha gemeu de dor, esfregando os braços.
— Caipiras idiotas! — Gritou enquanto saímos.
Nós nos despedimos da dona Cida, que parecia alheia ao que tinha acontecido, e Tato sorria convencido, satisfeito com o que havíamos aprontado.
(...)
Já era fim de tarde quando nos encontramos com MB. Tínhamos combinado de irmos juntos para a Girassol.
— Cara... sinto muito — disse ele no momento em que me viu. — Mas você vai sair dessa, Lica. — Deu um tapa em minhas costas, fazendo meu corpo chacoalhar para a frente.
Soltei um palavrão, e MB e Tato riram. Até que enfim alguém que não me olhava como se eu fosse morrer ou ficar presa naquela geringonça para sempre.
Fui na caminhonete com Tato, e MB nos seguiu. No caminho, conversamos sobre vários assuntos, inclusive Keyla. Quando ouviu o nome da minha prima, ele mudou de expressão.
Porra! Será que eu fico assim com a Samantha? Parecendo uma idiota?
Era nítido que Tato ainda ficava um pouco constrangido ao falar sobre a Keyla.
— Desculpa, eu deveria ter ficado longe, mas não consegui. — Ele sabia que tinha quebrado todas as promessas que tinha me feito.
— Mano, eu é que deveria pedir desculpa. Eu sabia que vocês dois se gostavam de verdade e mesmo assim tentei impedir o relacionamento. — Tato sorriu, agradecido. Eu ainda sentia ciúme da Keyla, mas sabia que ela estaria em boas mãos. — Mas, se a fizer sofrer, eu te capo — ameacei, séria.
— Eu sei — respondeu, mais sério ainda. Tato sabia que eu não brincava quando se tratava da Keyla.
Chegamos à fazenda, e MB estacionou ao lado da caminhonete do Tato. Assim que nos viram, as meninas foram em nossa direção. Keyla com um vestido florido e Samantha de jeans, camisa xadrez e o cabelo em uma trança lateral. Perfeitamente: Linda.
MB saiu da caminhonete e parou ao meu lado. Então, aconteceu o que eu temia desde o início: na hora, as meninas pararam e olharam embasbacadas para o meu amigo e novo veterinário da Girassol. MB e eu tínhamos a mesma idade, e sua fama por toda a redondeza se igualava à minha. Porém, a diferença entre nós era que MB usava tudo isso a seu favor, enquanto eu era mais reservada.
— Puta merda! — Keyla exclamou.
— Olha a boca, Keyla Maria — repreendi.
— Influência da Samantha — disse ela, apontando o dedo para o lado, mas sem tirar os olhos do MB.
— Nossa hein! — Foi a vez da Samantha se expressar.
Fiquei totalmente incrédula ao ver a cara de pau das duas. Nem tentaram disfarçar a baba escorrendo. Tato voltou com a minha mala nas mãos e logo passou a fuzilar a minha prima com o olhar.
— Boa noite, senhoritas. — MB não perdeu tempo e se apresentou. Tirou o chapéu sorrindo e fez as duas sorrirem.
— Fora dos limites — Tato e eu dissemos juntos, e o safado continuou sorrindo.
— Fique longe — completei.
— Ok! Entendido! — Levantou as mãos em sinal de rendição. — Mulher de amiga minha para mim é... mulher. — Deu de ombros mudando o ditado. — Mas vou respeitar suas belas damas.
Continuamos os cinco parados nos encarando em frente à sede, até que Tato chamou a atenção de todos.
— Keyla, preciso falar com você. Vem comigo! — Minha prima saiu do transe e o seguiu.
Samantha também recuperou a voz e resolveu se apresentar.
— Prazer, Samantha. — Estendeu a mão, e MB a cumprimentou. — Sou a filha do dono daqui. — Apontou para a casa atrás dela.
— Michel, mas me chame de MB. Quer dizer, então, que você é a patroa?
Ela sorriu com gentileza, confirmando, e se virou para mim.
— Vamos entrar, amor? — Perguntou com aquela voz que me desarmava. Como ficar brava com aquela garota?
— Se não for incômodo... patroa! — Brinquei, e ela se agachou na minha frente, beijando meus lábios. Aprofundei um pouco mais o beijo. Não que acreditasse que MB fosse tentar algo, mas não custava nada deixá-lo saber que a Samantha tinha dona.
— Recado entendido, vou ali falar com o Roney — MB disse. Samantha desgrudou da minha boca e eu vi meu tio conversando com o meu substituto.
Tato voltou da sua breve conversa com Keyla e eu percebi que a coisa não tinha sido muito boa para ela. Minha prima estava com uma tromba de elefante.
— Seu pai chegou? — Perguntei a Samantha, pois tinha avistado o carro do Lambertini estacionado.
— Chegou! Vou avisar que você está aqui, ele quer falar com você — afirmou, um pouco insegura. Será que ele tinha reclamado da minha estadia na fazenda? Bom, se fosse isso, logo descobriria.
Samantha entrou, e Tato subiu minha cadeira pela rampa até a porta. Ele voltou para pegar a minha mala e eu segui sozinha. Precisava mostrar que não era um completo fardo. Nenhum pai gostaria disso para a sua filha.
— Pai, você me prometeu! — Ouvi Samantha suplicar. Ela estava chorando? — Por favor, a Heloísa... — Ela parou de falar assim que me viu. Arregalou os olhos, e eu vi quanto não queria que eu escutasse a conversa. Ela estava em pânico.
— Eu o quê, Samantha? — Perguntei e fiquei esperando uma resposta. Mas, pela cara que fizeram, eu provavelmente não iria querer saber.
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