Sim, viesse a confessar que sim. Escolher participar da coordenação da excursão do Campus a uma antiga cidadezinha pacata que em realidade deveria ser apreciada por sua beleza mas ao invés disso, tinha suas estreitas estradas usadas de forma depravada, era uma decisão, de fato, terrível. Estava passando por um dos piores três dias de sua vida sendo que ainda viriam mais quatro pela frente. Eram espertinhos fugindo dos dormitórios após o horário permitido, eram coisas ilícitas entrando e saindo dos quartos como frutas, que por estranheza sequer chegavam perto de qualquer um dos quartos.
Tsukishima em toda sua exaustão fazia sua última ronda do dia, garantindo que todos os alunos de sua guarda estivessem ali presentes, seguros e sem cometer crime algum. Reclamava mentalmente a cada porta que tocava, e deixava três ou quatro palavras feias escaparem baixo por entre seus lábios toda vez que tinha de abrir uma das portas. O combinado é: toda porta que não for aberta durante a ronda dentro de cinco minutos será aberta em aviso prévio. O que não era lá muito eficaz contando o quanto de vezes tinha de abrir aquelas portas. As vistas já sequer o surpreendiam mais. Quartos vazios e bagunçados, alunos sem roupas, drogas que necessitava apreender como alguma espécie de guarda — essa, a parte que mais odeia. Vira e mexe algo inusitado acontecia, como pequenas festas do pijama, como as apelidaram, cinco ou mais alunos reunidos de forma bem clichê como adolescentes, bebendo vinho barato com vodka e jogando jogo da garrafa. Dava risada dessas pequenas coisas de vez em quando, no fundo, não negava, sentia-se numa posição madura e superior. O coordenador Kei. Era algo bonito de se dizer, não é?
Estufou o peito e andou orgulhoso pelo corredor vazio. Noite calma, os alunos pareciam felizmente cansados(pelo andar da noite passada que havia sido um caos) e estavam silenciosos. Chegou na última porta do corredor e seus passos discretos tomaram pausa, ajeitou o colarinho e tentou lembrar de quem era o quarto da vez. Falhou, pegou a prancheta em suas mãos e conferiu a listagem. Yamaguchi Tadashi. Um punk. Definitiva e literalmente um punk. Tsukishima ainda não sabia lidar com ele, nesses três dias não conseguia segurar o olhar curioso que agarrava os ombros do garoto como uma sanguessuga fraca, que convenhamos, largava a pele tatuada de seus ombros magros assim que Yamaguchi voltasse o olhar em sua direção. Se sentia-se intimidado? Não, talvez não. Só não tinha a audácia necessária para encará-lo como um alguém que deixasse claro o quão interessante seu cabelo colorido parecia e o quanto a tatuagem próxima a sua mão parecia ter doído. Sim, uma aranha, tatuada perto de sua mão, lembrava bem dessa, a tatuagem que fez com que lembrasse do menino nada comum em um meio acadêmico tão padronizado.
Respirou ao lembrar-se e então começou a contar os minutos, estava a aproximados dois minutos ali na frente, isso feriu seu orgulho por um instante, pensou demais, estava quase atrasando a média de horário perfeito do dia. Três minutos e nada. Conferia o relógio com paciência e calma. Não costumava tocar a porta duas vezes, não tinha essa obrigação ou mania já que os alunos sabiam do horário em que passaria, então costumava estar “seguro de si”. Cinco minutos passaram e a hora de agir chegou. Pegou a maçaneta e murmurou desanimado “estou entrando, por favor vista-se”.
— Ei, espe— Foi tudo o que a voz mansa e surpresa conseguiu dizer antes da porta ser completamente aberta.
Muitos palavrões de muito baixo calão passaram por ambas as cabeças movidas por conturbações completamente diferentes, mas nenhum abandonou-se ao ar, esse que, manteve-se silencioso até terceiro movimento, que por sinal foi um pigarrear freado do Loiro.
Os olhos amarelados uniram-se às sobrancelhas de fios claros, que pareciam curtas pela tonalidade que os fios iam tomando até o final da extensão de pêlos finos. Os lábios igualmente finos moveram-se inquietos e se pressionaram por final, prontos para esboçar algo, qualquer coisa que acabasse com aquele silêncio tortuoso.
— Acho que precisa ir com mais calma quando for pedir aos outros para que se vistam, foi coisa de… — O garoto encarou o teto, franzindo o cenho num cálculo mental. — Coisa de segundos, eu não sei quantos, mas segundos — gesticulava com uma das mãos enquanto a outra estava ocupada, segurando o livro frente ao impuro órgão genital que feria o orgulho e confiança de Tsukishima naquele exato momento.
A peça íntima branca era de alguma ajuda e o livro consideravelmente grande também, que cobriam a intimidade alheia com tamanha inocência.
Não teve reação, apenas fez a cara de sempre, estava acostumado a tais acontecimentos mas não com Tadashi, com o garoto era a primeira vez. A primeira vez que via sua tatuagem na costela e as linhas rudes e grossas tatuadas em sua coxa esquerda, eram muitas, muitas tatuagens que não admitiria nunca no mundo querer dar uma olhada por puro interesse, sem pretensão ou coisa assim.
Yamaguchi inclinou o rosto perante seu silêncio estranho e ensurdecedor. Foi então que seus olhos cruzaram uma linha reta, o loiro estava olhando o livro? Numa pose tão indecente e num momento tão inusitado, Tsukishima estava interessado no livro em sua mão?
— Isso? — Ergueu o livro como quem mostrava um graveto a um cachorro. — A Garota da Banda — esclareceu o título, não muito certo do que fez pela expressão levemente embasbacada na cara do rapaz a sua porta. — A senhora da portaria me deu, ela… Achou que eu fosse… Gostar— Pausava as palavras na busca de sentido para a situação que acabara de acontecer.
Em resumo: Yamaguchi estava em pleno sossego lendo de forma confortável e seminu o livro que havia recebido da recepcionista do local enquanto o senhor coordenador Kei Tsukishima o encarava abobado e esquisito em pleno silêncio.
Em outro ponto de vista, Tsukishima o olhava ferido, seu ego e seu orgulho, feridos, feridos pela imagem, feridos pelo silêncio, feridos por estarem ambos feridos. O jeito como seus olhos se prenderam a Tadashi fez com que palavras não abandonassem sua boca, simplesmente pelo fato de que não sabia como expressar muitas coisas, e uma delas, o que havia acabado de sentir com a cena extravagante e inusitada. Não fez questão de reparar em nada em particular que não fosse aquela tatuagem na costela e a da coxa.
Um som pontilhado e nada suave cruzava o corredor com certa pressa, até achar Kei, a diretora vinha em busca de seu coordenador que não costumava sumir por nada em sua ronda, ainda mais sua última ronda do dia. Sua reação perante a situação, diferente da do loiro, foi fechar a porta rapidamente em silêncio, o problema era que seu coordenador ainda estava lá dentro. Tadashi assistia tudo em êxtase, a vergonha e a vontade de rir tomavam seu corpo de forma arrepiante, já Kei, franzia tanto o cenho que poderia jurar que hora ou outra seu nariz acabaria quebrando. O que quase lhe acontece quando na tentativa de sair do quarto em total silêncio a porta grossa de madeira é arremetida em sua direção, facilmente acertando o rosto corado e emburrado.
Tsukishima terminou a noite assim: vermelho, corado, feito um pimentão, fugindo do quarto de um garoto da faculdade do qual nunca havia trocado mais de duas palavras. Uma mão no nariz e a outra segurando os cacos do ego sobre sua prancheta gelada, diferente de suas mãos e seu nariz, quentes de nervoso. Conseguia pensar em somente duas coisas, na verdade três. Primeiro, como é que a diretora da excursão pôde o fechar no quarto daquele jeito, segundo, o quanto aquilo doeu e terceiro, raios, como era bonito. Peculiar? Não! Era bonito, seu cabelo, sua pele pintada de pontos de sarda e tinta, um contraste bronzeado pela pouca luz que iluminava a área de leitura improvisada em sua cama. “A garota da banda”. Disse. E quem se importava? Estava encafifado, encantado, perdido e enfeitiçado na beleza inusitada de uma situação ridícula aonde perdeu suas forças e simplesmente manteve-se paralizado feito um idiota. Esse era o profissionalismo do coordenador Kei.
Fingia veementemente na manhã seguinte que nada havia acontecido mas era difícil, o curativo em seu nariz dizia muito, o cenho firme e costumeiramente franzido dizia pouco, era comum, ninguém se espantava, mas todos estavam curiosos para saber o que havia acontecido com o rostinho pálido. Exceto a diretora, essa não possuía curiosidade, somente vergonha, o olhava com vergonha, timidez consumindo seu corpo por entortar o nariz fino e empinado de seu ajudante voluntário.
O dia não fora nada fora do comum, muito pelo contrário, havia sido terrivelmente tedioso e lento, as coisas estavam deslizando numa esteira quebrada enquanto sua mente corria campo a fora pensando nas curvas tatuadas e na garota da banda. Era esse o nome, não era? E o que estava escrito em sua costela mesmo? Não lembrava-se, não notou, estava escuro, nervosismo demais para que conseguisse ler, era uma junção de coisas que poderiam — não só poderiam como puderam — dar errado.
Ronda vai, ronda vem, não encontrou outra vez o que não abandonava seus pensamentos, Yamaguchi Tadashi, o punk solitário que cursava jornalismo. Por que? Tinha muitos porquês. Queria saber ao menos metade deles, mas era mais conveniente fingir que não, até porque não era o objetivo, gostaria de saber onde o senhor Tadashi estava metido desde cedo. Tudo sobre ele era envolvente, da sua presença à sua falta, tudo era envolvente. Do porquê o fizera e do porquê não o fizera, do porquê estava e do porquê não estava. E era a questão: Por quê não estava?
Última ronda, a dos corredores, essa a mais temida desde a noite passada. Prancheta nas mãos e um curativo reforçado no nariz, temeroso. Bateu, bateu, e outra noite nada mais o abalava, ainda que aquela por sinal era tranquila até então, igual a de ontem, tranquila até uma específica porta. A tão esperada chegou. Respirou fundo, ajeitou o cabelo e o colarinho, endireitou a prancheta e pigarreou antes de tocar a porta. Quando foi que todo esse processo tornou-se necessário? Tocou, tocou e tocou novamente por segurança até ouvir um "shhh! Há gente querendo dormir aqui". A frase gentil, inesperadamente não vinha de onde esperava, o que era um problema. Respirou fundo antes de abrir aquela bendita porta outra vez. Abriu, com os olhos fechados e um engolir seco na garganta, a mão esquerda apertando a maçaneta com força. Abriu, por vez os olhos, devagar, com tamanho receio mas movido pelo silêncio que preenchia o quarto, silêncio e solidão, ninguém estava por ali, a cama bagunçada vazia, a janela aberta e jaquetas jogadas no pé da cama.
— Puff… — Exclamou cansado, comprimindo os lábios finos e rosados em tom claro e adorável.
Sabia que não poderia fechar a ronda com um aluno a menos mas também sabia que não podia sentar e esperar. Já que, esperava muito daquele garoto, o suficiente para saber que talvez ele nem voltasse ao quarto naquela noite. Sentia já o conhecer bem, bem de mais.
— Droga, Tadashi — resmungou baixo, sentando-se na cama.
Foi sua primeira solução em mente: sentar-se. E então esperar que uma solução caísse dos céus. Pensou em possibilidades, pensou em seu cheiro e depois em suas tatuagens. Não podia ficar ali, não daquele jeito. Aquilo era algo como invasão de privacidade, sim?
Ergueu-se e entregou a prancheta a diretora junto ao curativo ridículo em seu rosto, não via condições de sair na rua com aquilo em seu nariz. Não necessitou que se explicasse, a listagem completa com o nome de Tadashi circulado em vermelho já era Autoexplicativo.
A noite fria cobria seus braços já cobertos pelo suéter verde de textura gostosa, mas não grosso o suficiente para que os finos feixes de frio entrassem e cortassem sua pele. Andou e andou, buscando, pelos cantos, pistas e vistas, olhando para muitos e não encontrando ninguém.
Alguém solitário era o que Yamaguchi parecia, alguém só, que não contava a alguém para onde iria na intenção de não ser perturbado, então, para onde alguém solitário iria aquela hora?
A pequena cidade de pedra era composta por becos e praias, becos de pedra e praias com enormes pedras também. Eram muitas pedras. Pedras para todos os lados. Tadashi podia então ir para onde as pedras fossem altas e vazias, mas esse seria o primeiro lugar em que alguém procuraria um solitário, então não poderia ser. Pensou em pedras e seus variados tipos, então pensou nos becos, perigosos, talvez, não conhecia bem a cidade onde estavam, sabia o pouco que todos os seus colegas ou ao menos boa parte sabia. Rondou outra vez, agora por becos, dois ou três até se pegar fascinado pelo símbolo vermelho pintado nas pedras claras iluminadas pela luminária improvisada próxima a uma janela velha e esverdeada.
— O anarquismo te interessa? — A voz melodiosa sussurrou ao pé de seu ouvido como uma proposta de cartão no centro da cidade, por sua vez uma proposta bem charmosa.
Mas diferente do que parecia, era arrepiante para Tsukishima, que pulou no lugar, encolhendo os ombros em um arrepio terrível, apoiando-se na parede pintada, descobrindo que a tinta ainda estava molhada, e que a figura ilustre por quem buscava estava bem a sua frente. Franziu o cenho. Não tinha outra. O franziu com uma expressão estranha, corada e engraçada.
— Pode somente dizer que "não" se quiser — o dono dos cabelos bicolores respondeu a sua linguagem corporal um tanto expressiva, erguendo os braços num ato sem graça de rendição, dando as costas ao loiro por talvez um momento.
— Aonde você! — Interrompeu-se ao limpar a mão suja pela tinta vermelha no próprio suéter, a sensação era pavorosa, pior que ela somente a noção do quão alto pretendia dizer as palavras a seguir, então controlou-se. — Aonde pensa que vai? — Foi impulsivamente rude.
— Aonde me levar — cedeu facilmente, pegando a mochila que mais parecia um saco de trapos de trás de um bloco de pedra que compunha uma pequena praça, este, também batizado com a pichação em vermelho.
— Em primeiro lugar — Indagou, aproximando-se, o coração acelerado e a voz baixa, estava nervoso, estranhamente nervoso.
— Em primeiro lugar, eu — repetiu, prosseguindo de onde Tsukishima havia começado, jogando a mochila gentilmente sobre as pedras —, me desculpo por fazê-lo me procurar, não imaginei que as coisas resultariam nisso — sorriu sem graça, sentando-se sobre o bloco, notando, pela postura arqueada do garoto magro que a conversa não ia acabando por ali.
Tsukishima parou, bem próximo ao bloco, onde apoiou a mão enfezado, mais pela sujeira que havia feito do que pelo que acontecia no momento. Tadashi abriu bem os olhos, apoiado sobre os joelhos sujos de vermelho o observava, levemente ruborizado, então Kei lembrou-se. Lembrou-se do cheiro, das tatuagens, do livro, somente encontrou um turbilhão de lembranças da noite passada que acertaram sua cabeça feito uma pedra. Passou a mão limpa pela nuca disfarçadamente só para ter certeza que não era mesmo o que havia acontecido.
— Não me interessa muito o que faz fora do alojamento, se não envolve meu trabalho não cabe a mim, então não explique-se, mas também não me atrapalhe — pediu num tom liso, uma pitada de deboche pintava suas palavras mas dizia aquilo de forma séria. — Espero não pararmos no jornal como "turma de delinquentes" ou algo parecido, espero que tome muito cuidado com o que faz.
— Posso explicar-me — se defendeu vagamente e sem culpa alguma em suas palavras, parecia leve e relaxado.
— Não deveria — Tsukishima queria somente sair dali, não pensar em Tadashi e em como estava com frio, com receio, da noite, das pedras, daquelas casas. — Deveríamos somente voltar — ia dando as costas quando sentiu a palma do garoto sobre seu suéter.
Seus olhos claros a fuzilaram, a mão pequena e suja se retirou em segundos, deixando para trás um pequeno rastro de tinta vermelha. Kei esperava muito, muito, que aquilo saísse e que aquela noite acabasse.
— Não quer falar sobre aquilo? — Tadashi perguntou, retirando os olhos de seus pulsos e escondendo suas mãos no pescoço nu.
Soou tendencioso e gracioso, mas Tsukishima preferiu somente omitir tudo que se passava pela cabecinha barulhenta de fios claros.
— Aquilo o quê? — Queria fugir e queria confrontá-lo, perguntar porque foi tão inconsciente e indecente de o deixar abrir a porta daquele jeito.
— Ontem. Não quer falar sobre ontem?
Arrepiou-se das canelas a nuca.
— Quer falar sobre aquilo? — Sorriu sarcástico, o ar sardônico do nervosismo o amarrava o pescoço.
— Você não? — O loiro ergueu as sobrancelhas inconformado, sem saída, dando-se por vencido, se Tadashi queria tanto dizer algo sobre aquela noite então porquê não ouvir.
Piscou lentamente e ergueu a fronte para que o garoto em posição engraçada continuasse, um impulso mudo.
— Bem — parou de encará-lo, mexendo os dedos uns sobre os outros —, não sabia que esse é o seu tipo — desembuchou e Tsukishima tossiu.
Uma tosse seca, indiscreta, que fez Tadashi arregalar os olhos esverdeados outra vez.
— Meu tipo? — o outro assentiu. — Não é o que parece — comentou tímido, desviando o olhar. — Eu só… me peguei curioso — parecia ter escolhido um jogo de palavras ainda pior.
— Vamos, não se envergonhe, eu estou acostumado — acostumado? Perguntou-se internamente.
— E o que quer que eu diga a respeito? Podemos fingir somente que nada aconteceu — sugeriu fraco, sem muito esforço.
— Não seja bobo — disse após uma risada discreta. — O que tem de mais em se interessar nisso? Eu gostei, gosto, acho que recomendaria, aliás, o recomendo.
Silêncio pintou o ambiente, pequenos mosquitos de luz rondavam-os, eram as borboletas daquele belo momento tingido por cores quentes, uma paleta amarela e vermelha.
— Te empresto quando chegarmos, se quiser ler — deu continuidade, jogando a mochila sobre as costas e tendo noção de que não havia caminho a partir dali, não perante ao silêncio adorável do loiro que ruborizou feito um morango em questão de segundos.
Tsukishima estava travado, vermelho, inquieto por dentro e fervoroso em todos os pensamentos perturbadores que passavam por sua cabeça. "Emprestar para ler? Fácil assim? Como se seu corpo fosse uma página de jornal qualquer?".
— Me emprestar? — Questionou engasgado, recolhendo as mãos e ajeitando a postura. Aquilo era péssimo.
— Não quer ler?
— Essa é a questão?
— Tem mais alguma?
Kei parou no lugar outra vez. Estava encurralado, sem respostas ou perguntas, somente sim ou não. Não queria saber se aquilo estava sendo fácil demais, estava nervoso ao extremo para pensar com clareza e maturidade.
— Não…
— No alojamento lhe entrego, certo? Só não pode demorar a ler, preciso devolvê-lo, eu acho, acredito que não foi um presente — explicou, terrivelmente educado, levantando-se das pedras, em pé, gesticulou para que seguissem em frente.
Estava ali paralisado outra vez. Já havia perdido as contas. Cansou-se de pensar, estava pensando demais, ainda no papel de coordenador Kei? Poxa, Tsukishima! Isso estava saindo do controle, e por muito pouco.
— Espere! — Volveu a palma ao bloco de pedra, o impedindo de prosseguir, fazendo, por ora, com que Tadashi fosse o dono das bochechas avermelhadas dessa vez. — Me emprestar? Entregar? Do que raio estamos falando?
Yamaguchi o olhou com aquela cara. Os olhos bem abertos, os lábios levemente entortados e as sobrancelhas retas, agora quem não entendia era ele. Do que raios Tsukishima estava falando, então?
— A garota da banda — foi breve e claro. — Não estava interessado em lê-lo?
Inocente. Idiota e terrivelmente inocente para um pixador, imaginou Kei.
— Onde eu estava com a cabeça? — Questionou-se entre risos nervosos, realmente havia perdido a cabeça.
O que mais Tadashi estaria oferecendo? Seu corpo para que lesse suas linhas? Pervertido. Horrivelmente pervertido.
— O que esperava ler, Tsukishima? — Perguntou perdido, seus olhos se encontraram, um mais perdido que o outro, o clima estranho preenchido pelo som de poucos carros se arrastando sobre as pedras nas ruas vazias.
Não iria dizer, não podia dizer, seria horrível, seria rude e indelicado, seria simplesmente horripilante.
Yamaguchi fez as contas, cálculos e cálculos mentais enquanto Tsukishima se torturava mentalmente. O que tinha para ler naquela noite além do livro? Não tinha nada, nada físico que não fosse…
Uma lâmpada — sem mosquitos — surge sobre sua cabeça.
— Oh! Isso aqui? — ergueu a regata cavada, revelando o abdômen tatuado de costela a costela.
"Purgatory". Pintava sua pele, letras brutas e grandes, escorrendo pela barriga lisa e nada definida.
Tsukishima arregalou os olhos, vidrado, observando letra por letra, confirmando a teoria de Tadashi, deixando claro o que é que havia o despertado tal interesse.
— Oh.
As orbes douradas num tom claro correram de um lado para o outro e as mãos geladas alcançaram a barra de sua regata, a abaixando indelicado, as costas dos dedos longos e gélidos resvalando a pele morna. Num frio daquele, a barriga morna soava terrivelmente agradável a vista e ao tato.
— Abaixa isso! — Resmungou feito uma criança que via o que não deveria.
— É só uma barriga, não faça cena, pode ver. Não sabia que gostava de tatuagens assim — sua mão correu a barra para levantar a blusa outra vez, mas fora então segurada, ambas estavam frias, grudadas feito os olhos marcantes, o verde e o dourado brilhando sob a luz quente que acalentava a situação.
— Por favor, não — foram interrompidos, faróis fortes ligados em suas direções, fortes o suficiente para que tudo fosse um grande clarão branco até o caminho da delegacia local.
A noite terminou desse jeito, ambos numa pequena cela, encarcerados, presos por vandalismo, sentados em mais blocos de pedras frios enquanto Tsukishima, com sua pose responsável agora suja de tinta vermelha, ouvia Tadashi, o punk solitário do curso falando sem parar sobre um livro do qual não possuía o menor interesse. Já sabia de cor "A garota da banda" assim como sabia de cor onde cada letra de sua tatuagem estava localizada, pena era não ter tempo algum para pensar sobre aquilo justamente naquela noite.
Saíram pela manhã, levando puxões de orelha da diretora que fora a salvadora do dia, mas que deu-se por convencida após a explicação de Tadashi do porquê pixou a frente da casa de um político local, que pelo que tudo indicava era um pilantra corrupto e tinha uma constituição completamente quebrada do que era o anarquismo, e Tadashi fez questão deixar bem claro que não era sair por aí pichando muros, isso fora, somente um capricho seu que não pôde deixar passar tão facilmente.
Yamaguchi era todo o completo contrário do que se passava pela cabeça de muitos, não completamente pela de Tsukishima que nunca fez muita questão de pensar no garoto que agora, por ironia, não saia de sua cabeça de forma alguma. Passou os últimos dias de viagem pensando nisso, Tadashi e a garota da banda que não era a tatuagem escrita Purgatory. Não a lera de novo, não outra vez, mas tinha a chance de ler o livro, pelo menos o livro, que não era ruim, e o lembrava o punk, que tinha levemente o seu cheiro e que era uma ponte perfeita.
Terminou em dois dias, os faltantes para que finalmente voltassem para casa, desde estes, demorou, demorou a ler e demorou a encontrar Tadashi outra vez, o via por aí, mas nada que pudesse ser considerado um encontro. Devolveu o livro, agradeceu e daí para frente não tiveram tempo sozinhos para esclarecer nada, de seja lá qual fosse a leitura.
No último dia, enfim, abandonou a prancheta e o colarinho, vestiu uma gola alta e uma jaqueta clara, verde clara especificamente. Estava leve, ainda que houvesse parado na delegacia por uma noite não tivera uma experiência totalmente ruim como coordenador voluntário, o que lhe renderia, até, uma boa relação com a diretora que quase lhe quebra o nariz. Adentrou o ônibus em busca de um lugar confortável e silencioso, o que era difícil, mas lá no fundo do ônibus, observou a peça vestida em preto escuro bem lavado e preto acinzentado ao desbotar e claro, com rasgos notáveis. Do garoto estiloso com os pés no banco, ganhou um sorriso e um lugar. Tadashi ajeitou-se no banco e deu vaga a seu lado, esperando que Kei se sentasse ali, e assim foi feito, Tsukishima sentou-se sem hesitar, focado em olhar para frente fixamente e ignorar o rubor cruel em sua face.
— Terminou o livro? — Tadashi perguntou, interessado e Tsukishima assentiu. — Ótimo, tenho outra coisa perfeita para que leia — finalmente atraiu o olhar abismado e brilhante de Kei.
Não só seus olhos, mas suas ideias também brilhavam em mente. Quem sabe o que leria dessa vez e onde iria parar.
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