Se tem uma coisa da qual eu tenho certeza, amigues, é que o ser humano não é um computador. Logo, a memória do ser humano não é perfeita, se até HD dá pau. Entretanto, isso não é um teste de inferências lógicas. Todavia, ou o ser humano é perfeito, ou Irene Bae pode ser um pouquinho esquecida, sim. Isso tudo comprova a afirmação de que era possível Irene Bae ter tido uma pequena surpresa ao botar os seus jeans para lavar e, uau, o que era aquilo que encontrara? Um pedaço de papel com cheiro de salgadinho de cebola dentro do bolso de sua calça?!
Mágica!
Mas claro que Irene não adicionou o número de pronto. Bem, pelo menos não no zap-zap. Ela ainda se lembrava a quem pertencia, obviamente. Irene Bae era quase uma máquina, de tão perfeita, segundo ela própria. Por isso, deixou que uma semana se passasse até que tomasse a iniciativa – não coragem, iniciativa, porque Irene não era obrigada a nada – de retribuir Seulgi com o botãozinho de seguir, e que outros sete dias ficassem para trás para que enfim mandasse uma mensagem para aquele número de telefone.
“Irene vem do grego e quer dizer paz.”
Nada demais, e com ponto final, para indicar começo e fim de conversa. E só foi esse o texto porque aconteceu de Irene se lembrar daquele assunto e ter ficado curiosa em relação ao significado do próprio nome. Não é como se a conversa do outro dia tivesse ficado em sua cabeça, também. Não tinha motivos para aquilo, Seulgi era um caos mantendo assunto, mudava tanto de tópico que Irene se via até perdida no meio de tanto falatório, que quase nunca sabia como responder.
“Como eu disse, os pais sempre esperam pelo melhor sshuahsuahsuas”
Falando em resposta, essa foi a que Seulgi lhe mandou. Seulgi que tinha o nome salvo carinhosamente como “The Mônia”. Nunca que Irene colocaria o nome da outra salvo na sua lista de contatos, seria arriscadíssimo. De volta à resposta, Irene não gostou nada dela. Primeiro, porque não tinha ponto final, depois, porque detestava quem ria com “ashuashauhs”. Não tinha nada de “haushaushua” no fim das contas, às vezes nem sorrir a pessoa sorria, ao digitar. Depois que parecia o nome da amiga barulhenta de Yeri, também. Por isso, foi rápida em mandar a outra calar a boca, e Seulgi lhe respondeu com mais risadas de gente besta acompanhadas de um macaquinho cobrindo a boca com as mãos.
Só que Seulgi levou a sério demais o conceito de ficar quieta. E Irene também não disse mais nada, mas o que ela iria responder para um monte de risadas e um emoji? Nada. A surpresa, realmente, veio depois disso. Seulgi já não ignorava a sua presença na escola e a cumprimentava com discretos sorrisos ao chegar ou ir embora, ou quando pegava a Bae olhando em sua direção. Irene ainda não sabia se isso era boa coisa ou não, mas, como o contato não era muito mais ameaçador do que isso, decidiu que ao menos ainda era seguro. E, de fato, isso lhe trazia um pouco mais de segurança e leveza na consciência, cogitar que Seulgi não precisava provocá-la o tempo todo e podia só ser simpática, também.
É, talvez a Kang também só parecesse ser pior do que realmente era.
Enfim, não era dia de pensar em Kang Seulgi, porque era sábado, sua mãe estava de folga e tinha acabado de receber. O que isso queria dizer, então? Compras do mês. E Irene não reclamava de ir junto porque gostava de passear no mercado, e isso era algo que ela própria admitia fazer jus ao nome de aposentada. Bem, poucos jovens de sua idade sabiam escolher legumes e verduras tão bem quanto ela, ou saber as melhores marcas de sabão em pó e amaciante para cada tipo de roupa.
- O que acha de Chapaghetti hoje? Ainda tem uns três pacotes que estão perto de vencer lá em casa, e seu tio me trouxe gochujang. Será que fica bom se misturar tudo? – Tiffany perguntou enquanto arrastava o carrinho e Irene deu de ombros, mais focada em verificar se tinham pego tudo da lista que montara no celular.
- A gente testa. – Irene não sabia se aquela receita de fato existia ou se era a mãe inventando culinária típica dos Hwang, mas não custava tentar. Bem, custava, comida, mas detalhes.
- Foi tudo? – Tiffany perguntou e Irene sorriu ao assentir, devolvendo o celular ao bolso. – Vamos, então, que eu estou vendo essas filas no meio do corredor. Por que parece que todo mundo resolve combinar para vir no mercado junto? – A Hwang precisou de um pouquinho de força para arrastar aquele carrinho cheio, que para atrapalhar, ainda tinha uma das rodinhas meio presa. É sempre assim, parece padrão de fábrica, sempre tem a rodinha podre.
Irene seguiu ao lado da mãe, ajudando a controlar pela dianteira toda vez que a frente do carrinho de compras se descontrolava do caminho reto que devia seguir. E, de fato, estavam todos os caixas lotados. Ao menos aqueles que tinham um funcionário trabalhando. Como não adiantaria muito procurar pelo mais vazio, Tiffany se aproximou da menor fila mais próxima, mas que ainda tinha um tanto de cabeças à sua frente para que chegasse ao caixa.
E foi para o par de cabeças mais próximos, um a esquerda, e outro a direita do carinho, que Irene arregalou os olhos. Reconheceu a figura que conversava animadamente com a mulher do outro lado do carrinho de compras, tão distraída que Irene rezou mentalmente para que continuasse assim, sem nota-la. Apesar de ser quase impossível, fé não lhe faltava.
Sério, de todos os lugares e situações possíveis, tinha que acontecer ali? Não tinha como ser mais trágico!
Quem daquela idade precisa ir fazer compras com a mamãe, afinal de contas?! Parecia que fazia de tudo para perturba-la! Ou isso, ou todos realmente marcavam de ir ao mercado no mesmo dia!
Irene só se esqueceu de rezar pelo silêncio de sua mãe, também. Aquele foi o seu maior pecado.
- Dona Kang!
Pronto.
Estava perdida.
E sendo encarada. Pelas duas à frente.
E Irene estava um caco.
Que nem as s/n hippie do Starbucks das fanfics horríveis que lia quando não tinha livros melhores para ler. Pior, até, parecia mais visual pós-faxina.
Ia ser um pesadelo.
- Ah, Tiffany! Você por aqui! – Pior de tudo não era o fato de elas se conhecerem. Isso a Bae tinha certeza que acontecera inevitavelmente. Todas as mães dos alunos conheciam e amavam a Dona Hwang das reuniões. Irene não podia dizer o mesmo dos filhos em relação a si própria.
- Pois é! Parece que a última reunião foi há tantos anos! - O pior era a mãe da outra ser tão simpática quanto a sua. E o falatório das comadres prosseguiu como se fossem amigas de longa data. A outra mulher parecia ser mais velha do que Tiffany, porém, mas Irene sabia que a mãe fora precoce para muitas coisas – sabia inclusive de detalhes que ela preferia desconhecer. Tinha outra bizarrice, também, além daquele encontro aleatório e completamente desnecessário, que era o fato de que encarar presencialmente a mãe de Seulgi era quase como que olhar para a própria dali a uns vinte anos no futuro.
Totalmente bizarro.
- Sua menina cresceu!
Ah, pronto. Agora a Senhora Kang, com todo o respeito, veio bancar a tia de terceiro grau para cima dela. Como se não fosse o suficiente, Tiffany também a encarava, com o sorriso de mãe coruja que era, e Irene também ouviu a risadinha abafada de Seulgi, por mais que a outra garota não a encarasse.
- Tá linda, não? Essa vai me dar trabalho!
E para cagar toda a situação, Tiffany deu a resposta mais tiozão possível. Irene deu um sorriso mais falso do que nota de três reais para a mãe, sabendo que a Hwang entenderia muito bem o que queria dizer, mas, como sempre, Tiffany não ligou. Irene retribuiu o favor e deixou de prestar atenção na conversa quando a mãe continuou com o papo de que “Seulgi também estava uma moça!”.
Ah, se a Hwang soubesse...
- Se sua mãe der corda, a minha não vai parar de falar nunca. – Irene conseguiu conter muito bem a surpresa que foi ouvir aquele sussurro de Seulgi, agradecendo o fato de que as mais velhas estavam entretidas entre si.
- Então nós vamos fechar o mercado. – Irene respondeu, sem esconder sua infelicidade daquela vez, e viu Seulgi rir em resposta, ainda que não a encarasse diretamente, o que fez a Bae se perguntar se estava tão maloqueira assim.
Não que se importasse, na verdade. Aproveitou que a atenção de Seulgi não estava sobre si para comparar se seu estado era mesmo tão deplorável. O cabelo da Kang estava amarrado num coque, como costumava estar, a blusa extralarga de anime fora substituída por outra de uma banda qualquer que Irene duvidava que Seulgi sequer ouvisse, pelas músicas que a havia passado no outro dia. Camiseta essa que quase cobria os shorts jeans quase por completo, e shorts estes que deixavam Irene a questionar o porquê de alguém os usar tão curtos, porque, tipo assim, devia ser desconfortável sentir os outros encarando...
Mas se bem que, desligada do jeito que a Kang era... Devia ter no mínimo consciência de que, sei lá, podia atrair atenção desnecessária com as pernas expostas daquele jeito. Não que fossem feias, eram fortinhas e pareciam ser durinhas, no lugar. Não no nível Gracyanne Barbosa, claro, mas, sei lá, bem definidas como as de um corredor, principalmente as panturrilhas. Irene não sabia se reparara naquilo apenas porque agora sabia do hobby esportivo da outra, mas, enfim... Pelo menos Seulgi também estava de chinelos, e então Irene se sentiu menos desajustada. Seulgi tinha as unhas do pé bem cortadinhas, aliás, sinal de que tinha a mínima noção de higiene pessoal.
- Conseguiu fechar o armário? - A pergunta foi tão aleatória e a tomou tanto de surpresa que Irene arregalou os olhos ao ouvir a voz de Seulgi outra vez. – A porta que você postou ontem, no status, que quase tirou do lugar. Como cê fez aquilo, afinal de contas?
- Ah, a porta... – Irene piscou algumas vezes, como se aquilo a trouxesse de volta ao mundo real. – É que meu armário é antigo, sabe? Daqueles típicos de casa de vó, que tem um pininho do lado de dentro e um encaixe na porta? – Irene foi didática ao exemplificar com as mãos, encaixando o dedo indicador de uma mão na vertical, entre dois da outra mão na horizontal. Gesto que depois lhe pareceu meio obsceno, depois de um tempo, mas, como Seulgi só assentiu e não pareceu ligar, Irene apenas continuou. – Esse negócio inútil estava enferrujado e travando a porta, eu fui abrir e a dobradiça de cima soltou. Ou seja, o armário todo está caindo aos pedaços.
- Ou você é muito forte. – Seulgi sugeriu e Irene riu para o quão absurda era aquela possibilidade.
- Claro, claro. – A Bae negou com a cabeça antes de prosseguir. – Mas foram apenas os parafusos que espanaram. Coloquei novos e furei de novo, e já arranquei aquele negócio inútil, antes que na próxima o guarda roupa todo caia em cima da minha cabeça.
- Você sabe usar uma furadeira? – Seulgi perguntou e Irene assentiu, como se fosse a coisa mais mundana do planeta. – Uau, parabéns, Pereirão.
- Vai tomar banho. – Irene revirou os olhos e ouviu Seulgi rir mais uma vez. Irene esperou, novamente, para que Seulgi continuasse o assunto, mas, depois da risada, só veio silêncio. O que era um tanto conflitante, para a Bae, que se incomodava mais com a ausência de palavras do que com qualquer besteira dita pela Kang. Por isso, usou todos os seus neurônios para puxar um assunto, mesmo se perguntando se realmente devia. Qualquer coisa, desde que não fosse silêncio, por mais idiota que fosse... – Hm... Como está a gata?
Tá, aquilo já era exagerar. “Como está a gata" é mais que horrível. “Como está a gata" é a pergunta mais vergonhosa que um ser humano já fizera.
- Bem. Destruindo a casa como sempre, mas ela é muito nenê para eu ter coragem de dar uma bronca muito pesada nela. – E apesar de muito burra, a pergunta serviu para arrancar de Seulgi um sorriso de mãe de pet babona. – Eu sei que eu mimo demais aquela filha da mãe, mas...
- Logo vai ter que pedir permissão da gata para entrar em casa. – Irene negou com a cabeça ao estalar a língua repetidamente.
- Eu já faço isso. – Seulgi disse e Irene não conseguiu conter o riso ao imaginar a cena. – Olha o estrago que ela fez. – E com o chamativo, Irene voltou sua atenção para Seulgi, que esticava os braços para ela, com marcas de arranhões irregulares por ambos os antebraços. Ai, deviam ter ardido um pouquinho... – Isso fui eu tentando ser legal fazendo o favor de cortar as unhas dela, vê se pode?
- Aposto que você não perguntou se ela queria cortar as unhas, então não me estranha. – Irene, sabendo lá por que motivo, entrou na brincadeira idiota. Seulgi sorriu amarelo em resposta, assumindo a culpa. – Ela é brava?
- Não, ela é safada. Faz bagunça e depois vem pedir colo. Nunca vi gato tão carente. – E apesar de Seulgi ter negado com a cabeça, ainda tinha aquele sorrisinho besta que praticamente obrigava Irene a rir para ela.
- Não é carente, ela é esperta. Sabe que você é manteiga derretida. – Irene argumentou e, bem, Seulgi não pôde exatamente desmentir. – Se até arranhão você exibe toda orgulhosa...
- Bem, não é bem o tipo de arranhão que eu queria estar ostentando, mas... – Seulgi balançou os ombros e Irene quase engasgou com a própria risada. Mas que absurdo! No meio do mercado! – Se você quiser ir lá em casa qualquer dia desses eu posso te apresentar a gatinha.
Ok, aquele absurdo era ainda pior. Irene arregalou os olhos e prendeu a respiração, por pura inconformidade, obviamente. Era só o que faltava! Irene? Indo para a casa da Seulgi? Tudo bem, a gatinha era bonitinha, mas... ela, ir sozinha, na casa da Kang? Irene não sabia nem o que pensar daquela proposta, imagina dar uma resposta para Seulgi?
Devia ter parecido tão estúpida, abrindo e fechando a boca sem saber o que dizer...
- Irene, querida? – Ainda de olhos mais abertos do que o necessário, Irene rapidamente tornou sua atenção para a mãe, ao ouvir sua voz. Tiffany, por sua vez, que tinha a testa franzida, apesar do sorriso de sempre. – A Dona Kang me falou de uma receita que parece bem melhor que Chapaghetti com gochujang, dê seu número para a Seulgi, para ela poder me passar direitinho.
- Eu já tenho. – Seulgi respondeu por ela. Ai, pronto. A Kang era tonta ou se fazia? Outra vez, Irene estava embasbacada demais para dizer qualquer coisa.
- Ah, ótimo! Melhor ainda! – Tiffany sorriu para a Kang mais nova, que apenas retribuiu o gesto com a mesma intensidade. Parecia disputa de quem fechava mais os olhos para sorrir, porém Seulgi ganhava no quesito bochechas. E Irene só desejava ser engolida por um buraco na terra. Estava sendo uma experiência traumática, aquela pequena interação.
- Resolvido, então. – A Dona Kang pareceu dar um fim ao assunto. Mas só pareceu, também, para o infortúnio de Irene. – Não querendo me intrometer, mas já me intrometendo, vocês vão levar tudo isso de compra nos braços? – E a resposta, infelizmente era sim. Era por essas e outras que Irene desejava tanto que a mãe comprasse um carro. – Ah, imagina! Se vocês quiserem uma carona, nós estamos de carro! Vocês ainda moram no mesmo apartamento, não?
Não, não, não e não. Irene só não negou com a cabeça para não fazer sua prece mental muito explícita ou parecer mal educada na frente da mãe alheia, afinal de contas, a mulher não tinha culpa nenhuma pela filha que tinha. Irene estaria muito que feliz pela primeira vez na vida em ter que arrastar um carrinho pesado por aquelas calçadas horríveis do bairro.
Pff, quem precisa do conforto de um carro?
- Não querendo ser abusada, mas já sendo... – É, aparentemente Tiffany precisava, apesar de ser mão de vaca demais para comprar um para ela mesma. A hipocrisia, minha gente, a hipocrisia!
- Que nada, menina, é ali do lado! – A Dona Kang balançou a mão. Infelizmente, para aquela mulher, a gentileza lhe viria sem muito custo. Irene, por outro lado, já estava suando frio em antecipação.
- Mãe, é nossa vez de colocar as compras na esteira... – Seulgi chamou a atenção da mulher, antes que a conversa se prolongasse outra vez e Irene fechou os olhos ao fazer um rápido exercício de respiração.
Era só uma carona rápida, Irene, sem muitos motivos para surtos. Estaria em casa num piscar de olhos.
Compras pagas, seguiram com seus carrinhos até onde o carro estava estacionado e guardaram suas compras em lugares separados, para que não houvesse confusão: os das Kang ficaram no porta-malas, enquanto que as das Bae foram deixadas sobre o banco de trás, próximo à porta da direita, que estaria mais próxima da calçada, quando chegassem em frente ao prédio. Dona Kang assumiu o volante e Tiffany, o lugar de copiloto. Irene se questionou algumas vezes como o falatório entre as duas mulheres poderia ser interminável.
Enquanto isso, Irene teve que se contentar em se sentar atrás com Seulgi, se espremendo o máximo que podia contra a porta à esquerda, já que não havia muito espaço disponível para as duas, ali atrás. Seulgi invadia tanto o seu espaço que não havia nem como qualquer uma das duas utilizar o cinto de segurança. Irene esperava que a mãe da Kang não sofresse nenhuma multa por sua culpa, mas o que a preocupava de verdade era o fato de a filha da mulher estar praticamente colada ao seu lado. Dera graças pelo ar condicionado estar ligado, se não ficaria muito óbvio o quanto o lado direito de seu corpo suava mais do que o esquerdo. Mas isso era por conta do contato, obviamente.
Se, por um lado, Irene estava se esforçando para manter os olhos fixos na paisagem do lado de fora, Seulgi não parecia se importar muito, já que digitava e ria casualmente para o celular, num grupo que Irene descobriu se chamar “Equipe Rocket". Não precisava nem tentar ler os nomes dos participantes para descobrir de quem se tratavam. Teve que segurar um riso, ao imaginar quem seria cada personagem. Para Irene estava mais do que óbvio, e era tão acurado que chegava a ser cômico.
- Ei. – Irene se viu obrigada ao ter que olhar na direção da garota a sua esquerda após o chamado sussurrado. – Topa um jogo?
- Que jogo, não vai demorar nem cinco minutos. – Irene negou com a cabeça antes de revirar os olhos. Jogo. Como se Seulgi fosse ganhar dela em qualquer que fosse.
- Eu encontrei isso. – Seulgi sussurrou outra vez, mostrando a tela do celular para ela. Era uma lista de um site qualquer, chamada “coisas que você deve saber sobre o seu amigo". Irene ergueu uma sobrancelha para Seulgi, que riu baixinho como resposta.
- Sério isso? – Irene indagou e Seulgi assentiu.
- Eu já sei o seu, agora. O meu é dez de fevereiro. Se livrou de ter que me dar um presente. – Irene franziu a testa para a Kang, sem entender do que diabos falava até ler a primeira pergunta da lista.
Ok. Então Seulgi era mais de um mês mais velha do que ela...? Mas que...
- Você não me deu nada de presente, porém. – Irene brincou, daquele seu jeito rabugento, e Seulgi deu uma risadinha culpada em resposta.
- Eu te mandei uma foto da Amanda. Eu não faço isso para muitas pessoas. – A Kang argumentou e viu Irene balançar a cabeça negativamente outra vez.
- É, só posta a coitada nos stories vinte e quatro horas por dia. – Irene cruzou os braços para a Kang, que ergueu a mão livre em rendição. – Qual a próxima?
- Laranja. – Seulgi lhe deu diretamente a resposta, sem precisar ler do que a pergunta se tratava. Irene riu para ela antes de responder.
- Laranja? É a única pessoa que eu conheço que gosta de laranja. – Por algum motivo, a cor era muito engraçada para a Bae.
- Qual o problema com laranja? – Seulgi indagou, sem entender o motivo de tanta graça. Admitia que a risada da Bae era divertida, porém.
- Sei lá, só é esquisito... – Irene gesticulou para que a Kang deixasse para lá, e assim Seulgi o fez. – Para mim é roxo, ou lilás. Tanto faz, na verdade.
- E comida? – Seulgi fez a pergunta ao encará-la, e Irene precisou de um tempo para desviar o olhar, apoiando a cabeça no encosto do banco e encarando o teto do carro, pensativa.
- Qualquer coisa que não tenha frango. – E no mesmo momento em que Irene respondeu, Seulgi riu baixinho pelo nariz.
- Quê? Você não come frango? – Seulgi perguntou outra vez, quase desacreditada, e Irene simplesmente assentiu em resposta. – E depois eu que sou esquisita...
- Você é. E eu tenho meus motivos. Mas são um tanto quanto nojentos. Você quer saber da história? – Irene apenas direcionou o olhar para a sua direita, Seulgi negava com a cabeça ao torcer o nariz. É, não era tão lerda assim, havia entendido a conotação da tal história.
- Eu estou bem comendo meu franguinho. – Irene riu soprado quando ouviu a resposta verbal, enfim. Virou a cabeça em direção a Seulgi, mas se arrependeu na mesma hora. O ombro da Kang estava definitivamente mais próximo do que deveria, mas se afastar seria mais estranho... ou não?
Merda.
- O... a sua. Favorita. – Irene balançou a cabeça levemente ao se corrigir. Aparentemente, Seulgi tinha esquecido da própria resposta.
- Hm... eu não tenho muita frescura com comida, também. – Seulgi também apoiou a cabeça contra o banco, e, na mesma hora, Irene voltou sua atenção para o teto do carro. Pior do que sua cabeça praticamente tocar no ombro alheio seria se encararem diretamente, daquela distância quase inexistente. – Mas eu tendo a comer que nem uma criança, na maior parte do tempo.
- É, isso eu notei. – E tinha como não notar?
- Ah, notou? – Irene se sentiu obrigada a encarar Seulgi por alguns segundos, só para confirmar que o sorriso em sua cara era tão sugestivo quanto fora a pergunta.
Ridícula.
- Ai, por favor... – Irene revirou os olhos antes de fechá-los, balançando a cabeça negativamente. – Você fica comendo aquele salgadinho fedido no meio da sala e não quer que ninguém perceba?
- É brincadeira, pare de resmungar... – Seulgi riu baixinho, empurrando Irene de leve com os ombros. Irene não abriu os olhos, mas o sorriso que surgiu em seu rosto foi involuntário. – Mais uma?
- Seja criativa. Nada de lista. – Irene assentiu, surpreendendo a Kang quando alcançou a sua mão esquerda, desligando a tela do celular para que não tirasse de lá nem mais uma questão.
- Assim cê quebra minhas pernas... – Irene riu da reclamação da outra, e mais uma vez arriscou olhar em sua direção. A Kang mordia o próprio lábio ao olhar para cima, pensativa, e Irene continuou a encará-la a espera de algo. E é, até a Bae podia admitir que às vezes Seulgi fazia umas caretas bonitinhas.
- Rene, querida. – Irene foi obrigada a desviar o olhar quando ouviu a voz de sua mãe. Tiffany estava virada para trás e tinha um largo sorriso apontado para a sua direção. – Eu estava conversando aqui com a mãe da Seulgi... – E pela risadinha que Seulgi viu a mãe dar, pelo retrovisor, sabia que dali não viria boa coisa. Pais rindo em conjunto costuma ser pior do que quando estão irados. – Estávamos comentando como vocês duas são iguaizinhas. – Tá, para aquilo até Irene quis rir. – Saem com as mesmas amigas de sempre, não se abrem direito com a gente... Eu sei, você me disse que não tem nada para falar sobre si, mas e a Seulgi? A Dona Kang me perguntou se você sabe dizer algo sobre a Seulgi que ela não saiba. Já que vocês estudam juntas há um tempo...
Pela primeira vez, Irene viu Seulgi revirar os olhos, e aquilo provavelmente fora para a mãe, que estava no banco da frente. Temerosa, Irene olhou adiante, e tinha o par de olhos da Hwang sobre si, com a Kang também aguardando sua resposta, pelo retrovisor.
- Hm...
A Bae então olhou para Seulgi, e pôde entender o que se passava pela mente da garota apenas pela forma que a encarava de volta. Sim, Seulgi tinha consciência de que Irene sabia de coisas que poderiam ser novidades para a mãe dela. E sim, Irene poderia muito bem conta-las, se quisesse. E era algo como isso o conflito presente no olhar da Kang, uma mistura de ansiedade e súplica. Irene olhou para frente mais uma vez. O carro acabara de dobrar a esquina e Irene viu seu prédio ao final da quadra, à direita. Fechou os olhos e apoiou a cabeça no banco de novo, dando de ombros.
- Eu já te disse, mãe. Os garotos daquela escola têm um péssimo gosto. – E Irene que não iria abrir os olhos para encarar a Kang, naquele momento. Podia apostar que Seulgi estava em choque, arregalando os olhos para ela e não colaborando para a desculpinha que estava inventando. Só esperava receber pelo menos receber um obrigada, por ter tirado o dela da reta. – Ou isso, ou só têm mal caráter, mesmo.
- Eu te disse que elas não falariam nada. Uma sempre acoberta a outra. – Irene ouviu a Dona Kang dizer, seguida da risada de sua própria mãe. Sentiu o carro ser desacelerado aos poucos e foi quando decidiu abrir os olhos. Não passou despercebido que Seulgi a encarava, e daquela vez Irene arriscou também olhar em sua direção. A Kang tinha um discreto sorriso agradecido apontado para si, ao qual Irene retribuiu antes movimentar a boca em um “de nada” mudo.
- Eu vou ajudar vocês. – Seulgi se ofereceu assim que o carro parou completamente e viu Tiffany tirar o cinto, assim como Irene destravar a porta.
- Não precisa! – Irene e Tiffany disseram ao mesmo tempo, ainda que a Hwang tivesse dito aquilo de modo gentil e doce. A Bae só soou mais apressada e em pânico, mesmo.
- Não custa nada, assim facilita para todo mundo. – Dona Kang gesticulou com a mão, para que a Hwang deixasse de frescura. – Ajude sim, querida. Ficarei no carro já que em tese não poderia parar em frente a garagem, mas...
- A gente vai rapidinho. – Seulgi avisou para a mãe, antes de sair do carro logo atrás das outras duas mulheres.
As três encheram os braços de sacolas, uma por uma, e seguiram Tiffany, que liderara o caminho abrindo o portão e porta principais do prédio. Seulgi vinha por último, na fila, aproveitando para dar uma espiada no lugar desconhecido. Claramente não era um prédio novo, assim como o seu, mas aquilo costumava significar bons apartamentos. E de fato era, Seulgi constatou ao adentrar. Era mais do que o suficiente para duas pessoas morarem e com folga. A Kang seguiu as donas da casa, passando pela sala em direção a cozinha, as sacolas sendo deixadas sobre o mármore da pia.
- Podem largar as coisas aqui. Eu separo depois. – Tiffany avisou antes de deixar a cozinha outra vez. Talvez acabassem de trazer todas as sacolas com mais aquela viagem, se enchessem os braços.
- Se não couber tudo na próxima pode usar aquela mesa. – Irene apontou para a pequena mesa de jantar que havia ali, encostada à parede. Seulgi tinha visto uma maior, na sala, mas duvidava um pouco que fosse usada com frequência, parecia muito bem arrumada.
- Certo. – Seulgi simplesmente aquiesceu e seguiu Irene em direção a saída do apartamento outra vez. E a Bae andava rápido. Tão rápido que quase que acontece um engavetamento entre três pessoas à porta do apartamento. Isso porque Irene parou de andar do nada, sem dar tempo de Seulgi parar ao que notar a interrupção dos passos.
Resultado: Seulgi trombou em Irene que por sua vez só não trombou em Yeri porque a mais nova fora mais rápida em dar um passo para trás. Seulgi não soube dizer se os olhos arregalados da Kim eram por conta do quase acidente ou por vê-la ali.
Mas, assim, na verdade, na verdade mesmo, estavam as três olhando assustadas umas para as outras. Porém, antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, latidos quebraram o silêncio junto com uma respiração curtinha e pesada, e sons de patinhas contra o piso de madeira. Seulgi quase tombou com outro susto quando Irene trombou de novo consigo ao dar um passo para trás e um berro não lá muito gentil ao seu ouvido. A Kang não entendeu nada da confusão, e quando se deu por si, Irene já estava esperneando atrás dela, e não mais na frente.
- YERI, TIRA ESSE DEMÔNIO DESSE SEU BICHO DA MINHA CASA!
Seulgi olhou para baixo no momento que sentiu algo gelado tocar suas canelas. Estava sendo cheirada por um... salsicha? Gigante de gordo, mas um salsicha, que tentava adentrar o apartamento, sendo impedido por suas pernas. E a cada tentativa do doguinho de invadir a residência à la Boulos, Seulgi levava um soco nas costas da Damares.
Era de foder, mesmo.
- Mas isso aqui é um salsicha ou um linguição? Tu parece um porco, meu amigo! – Cansada de apanhar, Seulgi se abaixou para pegar o cachorrão no colo. Se arrependeu na mesma hora. Pesava mais do que saco de cimento.
- Caramba, moça, tu é ligeira mesmo, viu? – Seulgi parou de tratar a cachorra, acabara de notar aquilo, como se fosse um filhote de humano e viu Yeri a encarando, abismada.
- Nem, com essa barrigona nem andar direito ela consegue. – Seulgi riu com a própria resposta e Yeri precisou piscar algumas vezes para absorver o que tinha acabado de ouvir.
A única coisa que a Kim conhecia que tinha cabeça, mas não cérebro, além de Seulgi Kang, era...
- Ai, larga essa coisa no chão, cê vai ficar toda fedida! – No momento em que Seulgi levou outro tapa no ombro, olhou para trás e entendeu o porquê de a voz da Bae ter saído mais anasalada do que o comum. Irene estava tampando o nariz enquanto encarava a cadelinha – a de Yeri – com todo o ódio que cabia em seu corpinho. Seulgi nem argumentou e, para não apanhar novamente, passou a cachorrinha para Yeri, que a enxotou de volta para o próprio apartamento antes de fechar a porta.
- Ela é mais cheirosa que muita gente, para a sua informação. – Yeri defendeu a própria cria, mas a Bae não se importou nem em responder.
- Como é o nome dela? – Seulgi perguntou, sendo empurrada gentilmente para o lado de fora pela garota atrás de si.
- Belinha, eu era mó fã de Ana Maria Braga quando era criança. Ela morreu, né? A cachorra... – Yeri comentou, com um tom pesaroso. – Agora me explica, miga, o que a ela tá fazendo aqui?
- Ajudando com as compras. – Seulgi respondeu pela Bae e não pôde ver Irene revirar os olhos, atrás de si. Só sentiu o novo impulso em suas costas quando Irene voltou a arrastá-la escadaria abaixo, ignorando outra vez a fala de Yeri.
- Se você se ofereceu para ajudar, ajude! Não é pra ficar batendo papo com os outros!
Yeri ficou observando aquela cena deprimente que era Irene a resmungar como uma senhora na menopausa, enquanto levava Seulgi consigo escadaria à baixo e, por uma fração de segundo, sentiu até uma pontada de pena pela Kang. Mas foi só um pouquinho, mesmo. Negou com a cabeça sozinha e retirou os chinelos antes de entrar, tomando toda a liberdade que tinha naquele apartamento para se sentar largada no maior sofá da sala, suspirando ao se fazer confortável.
- Pois é, amigos... Cada um enxerga com os olhos que tem...
E Yeri ficou ali, no sofá. Primeiro, Tiffany subiu com o restante das sacolas, a cumprimentando com um sorriso surpreso. Foi convidada para o jantar, porque aparentemente a Hwang prepararia algo “diferente”. Irene veio em seguida, com cara de quem não cagava há uma semana, como se Yeri tivesse alguma culpa pelos surtos da Bae (fossem eles por conta de cachorros ou de donas de gato). Essa foi direto para a cozinha, sem nem olhar para a Kim. Seulgi era a sombra que vinha logo atrás e, apesar de estar com os braços cheios de sacolas, conseguiu gesticular com os indicadores um gesto que Yeri entendeu como “depois”. E pela expressão séria da Kang, Yeri desejou que, se fossem notícias, notícias boas, e não uma besteira qualquer que a Kang tivesse dado mais importância do que deveria.
- Foram todas as coisas do carro? – Tiffany parou em seu caminho de volta para a porta do apartamento. Irene e Seulgi voltaram da cozinha logo em seguida.
- Uhum. A gente pegou o resto. – Irene respondeu, aquiescendo.
- E eu vou me mandando antes que algum carro queira sair da garagem e cace barraco com a minha mãe. – Seulgi falou logo em seguida, fazendo um sinal da paz para Yeri como despedida, que foi retribuído da mesma forma. – Até segunda. – Irene viu Seulgi erguer o punho virado para ela e se esforçou tanto quanto pôde para disfarçar a surpresa. Era pra ela cumprimentar de volta? Bem, pelo jeito a Kang lera a sua mente, porque apenas assentiu discretamente. Ainda duvidosa e um pouquinho temerosa, Irene fechou a mão direita também e cumprimentou Seulgi com um soquinho. Viu Seulgi sorrir para ela, antes de se afastar, mas não fez mais nada como resposta.
- Lembre sua mãe da receita, quando chegar. Vou tentar aprontar hoje, aproveitar que tenho ajuda. – À porta, Tiffany se despediu da Kang com um tapinha carinhoso em suas costas.
- Pode deixar. – Seulgi respondeu e meneou com a cabeça respeitosamente, acenando uma vez para a Hwang ao deixar o apartamento.
- Para destrancar a porta é só apertar o interruptor ao lado! O portão abre junto! – Tiffany se lembrou de avisar e ouviu a Kang responder com um “ok!” antes de fechar a porta do apartamento, para trancá-la. – A Seulgi é muito boazinha, não?
Yeri sabia que o comentário de Tiffany era retórico, mas também não é como se ela pudesse comentar que sim ou que não. Se bem que Yeri duvidava que entraria em problemas, se o fizesse, pois duvidava que a amiga sequer iria a ouvir. Irene ainda estava parada no mesmo lugar, o punho direito ainda ligeiramente erguido e muito provavelmente tinha uma visão de outra dimensão, já que na Terra não parecia estar.
- E então, o que cê vai aprontar para a gente? – Yeri perguntou. Conseguiu atrair para ela a atenção das duas mais velhas.
- Não me pergunte o nome, mas me pareceu muito bom. – Tiffany explicou, seguindo para a cozinha em seguida. – Rene, bebê, me ajude a guardar as compras enquanto a nossa receita não chega.
- Sim, senhora. – Irene seguiria logo atrás, mas, ao invés disso, se aproximou do sofá que estava de costas para ela e agarrou uma das almofadas que estava sobre ele, a lançando com certa força na direção de uma Yeri que nem fazia questão de esconder as risadas. – Deixa aquela cachorra fedida entrar aqui de novo para você ver, vagabunda, se eu não boto ela na sopa.
- Vai ajudar a mãe, oh, bebê! – Yeri teve que usar a almofada que tinha acabado de ser lançada contra si para se defender de uma segunda. Para a sua sorte, Irene decidiu seguir para a cozinha depois daquele último ataque. Yeri continuou a rir sozinha, porém, tateando os bolsos dos shorts para garantir que estava com o celular. Teria que se lembrar de chamar Seulgi no zap, se a Kang não o fizesse.
...
No fim das costas, Irene não só teve que ajudar com as compras, como também com o jantar. Eram vegetais e carnes demais para a mãe temperar e cortar sozinha, e estavam todas com fome. Yeri até se ofereceu para ajudar, mas, com medo de que o apartamento fosse incendiado ou que alguém saísse com um dedo a menos, não deixaram. A Kim ajudou arrumando a louça, entretanto.
E como jantar à mesa não fazia parte da rotina das Bae, espalharam-se as três pelo sofá, arrastando a mesa de centro para mais perto para que pudessem colocar os pratinhos com os acompanhamentos e os copos cheios de refrigerante. Yeri se sentou entre as duas, com Irene à sua esquerda e Tiffany, à direita. Na verdade, nenhuma das três prestava atenção no jornal local, isso porque Tiffany fazia questão de entretê-las durante o jantar, como sempre.
Eram histórias que Irene já estava cansada de ouvir, na verdade, então quem estava se divertindo com os absurdos que a Hwang contava era apenas Yeri. Era uma das milhares de histórias de Tiffany sobre sua adolescência conturbada. Irene odiava todas elas, principalmente um nomezinho que estava sempre presente. Jessica. Irene não fazia ideia de quem era Jessica ou que fim tivera essa mulher – talvez tivesse sido presa, pelo que Tiffany contava não parecia impossível -, mas Irene não tinha o mínimo de apreço pela desconhecida. Isso porque, para Irene, estava mais do que claro que era essa maldita que influenciara a mãe a participar de todos os tipos de rolês errados que frequentara na juventude e a levou a conhecer o embuste de seu pai.
Enfim, por mais que as outras duas rissem como se não tivesse fim, Irene não via a menor graça.
Deixou seu prato sobre a mesa de centro, ao terminar o jantar, e focou simplesmente em terminar sua coquinha ao assistir o noticiário. Notícias inéditas, como apreensão de drogas no porto, ou animais encalhados na praia, ou navios de quinhentos anos atrás aparecendo submersos na orla. Fora isso, latrocínio e protesto de servidor público. Nada muito divertido.
Ainda que a televisão estivesse alta e que as duas outras não conversassem lá muito baixo, Irene ouviu o seu celular sobre o braço do sofá, à sua esquerda. Apenas acendeu a tela para ver se valia a pena dar atenção à notificação ou não. The Mônia. Irene devia mudar aquele nome, já estava começando a lhe dar vergonha se si mesma. Porém, antes de trocar o nome do contato ou qualquer outra coisa, Irene deu uma olhadinha à sua direita. Yeri e Tiffany estavam bem entretidas uma com a outra.
“A comida de 0 a 10”
Irene riu baixinho ao ler a mensagem. Deu um pouquinho de trabalho digitar apenas com o dedão esquerdo, mas eventualmente ela conseguiu.
“Oito, muito trabalho para fazer”
Irene bloqueou o celular após enviar a mensagem, mas deixou o celular sobre o colo. Não que esperasse receber mais alguma coisa, porém, se recebesse, estava bem ao seu alcance. E para provar que não era apenas uma desculpinha esfarrapada, seu celular vibrou pouco mais de um minuto depois. Irene não contou o tempo, também.
“Valeu pelo improviso mais cedo também”
A mensagem veio acompanhada daquelas mãos juntas, que o Google chama de high-five, mas que para Irene eram mãos em uma prece. Enfim.
“Você fica me devendo essa”
“E como eu posso te pagar?”
A resposta de Seulgi foi imediata, igual a reação de Irene em arregalar os olhos. Certo, era ela quem devia pensar no pagamento, então não precisaria se preocupar. Houve uma ideia em específico que veio à cabeça da Bae assim que Seulgi fez a pergunta, mas, nah... Ou sim? Irene não sabia se era uma boa, pois lhe cheirava à catástrofe. Mas, bem, poderia digitar aquilo como brincadeirinha, não?
“Me apresentando pra Amanda, que nem você disse mais cedo”
Irene não fechou a conversa daquela vez, e ficou olhando para o chat, mais comendo as próprias bochechas do que tomando refrigerante, realmente. Não demorou muito para o status de Seulgi mudar para online e então surgir o aviso de que estava digitando.
“Certo, só me avisar quando puder
Só não pode apaixonar a gata e roubar ela de mim”
Irene sorriu para a mensagem, ou melhor, para a capacidade de Seulgi de falar aqueles absurdos. Não entendia como um ser humano podia ser tão bobo...
“Não garanto nada”
- Rene. – E quando mal Irene tinha acabado de mandar a mensagem, ouviu a mãe a chamar por ela. Desviou sua atenção para a direita e seu sorriso se desfez na mesma hora em que viu ambas franzindo a testa para ela, Yeri de maneira mais óbvia. Felizmente, Tiffany acabou com o silêncio desnecessariamente longo e enfim fez sua pergunta. – As duas vão querer sorvete?
- Tem até sorvete? Quero sim. – Yeri concordou bastante enfática com a cabeça, e Irene fez o mesmo, só que de modo menos dramático.
- Certo. Já volto. Essa bagunça, depois a gente resolve. – Tiffany avisou ao se levantar, apontando para a mesinha de centro, cheia de pratos e copos vazios. Yeri assentiu para a mulher e se sentou de maneira mais folgada no sofá, olhando discretamente para a sua esquerda. Irene bebia o resto do refrigerante como se fosse água, os olhos tão grudados à TV que a Bae nem ao menos piscava.
Aproveitando que Irene estava em uma realidade paralela e muito provavelmente nada a fim de conversar, Yeri aproveitou que estava “sozinha” para checar a notificação de minutos atrás, que não observara por educação. Pelo jeito, uma coisa que Yeri e Irene tinham em comum era de dar apelidos vergonhosos para Seulgi, pois Yeri quase riu quando viu o nome Kang Possible do contato. Bem, Kim era ela.
“Sua amiga teve a chance de me expor hoje pra minha mãe
Se é que tu me entende
Mas veio com a desculpa de que os boys é quem têm mau gosto ou sla
Ainda tô bugada e surpresa com a resposta
Já tava preparada pra ser expulsa de nárnia
Mas é isso aí, se ela não ME caguetou, tu tá safe, menina”
Yeri olhou discretamente outra vez na direção de Irene, que já não bebia refrigerante nenhum e ria de um jeito meio macabro ao digitar no celular, posicionado num ângulo bastante esquisito. Yeri podia apostar que era para tirá-lo do seu campo de visão.
“Sei lá...
Vou esperar mais um tempinho pra ver, né
Nunca se sabe”
“Real. Às vezes ela tá normal e é da hora comigo
às vezes ela tá atacada e só não xingo pq sou legal
Sei que é tua amiga, mas ela não bate muito dos pinos não”
Bem... discordar Yeri não iria. Irene costumava ser legal até começar a falar merda e até a Kim admitia a vontade de estrangulá-la que tinha, de tempos em tempos, mas, enfim... Agora, de louca, a Kim costumava achar que a Bae só se fazia. Só achou que a Kang talvez tivesse razão com aquilo também porque o comportamento atípico da amiga à sua esquerda estava lhe dando calafrios.
“Beleza, faz o que for confortável pra ti
E pode dar uns xingos, pra ver se ela acorda pra vida
E oh, só mais uma pergunta
Tu tá tc com ela agora?”
A resposta de Seulgi demorou mais para vir, daquela vez. Por muitos segundos, foram só Yeri e Irene encarando a televisão, num silêncio bastante esquisito, sem sequer se encararem ou reconhecerem a existência uma da outra. O celular da Bae vibrou primeiro e, pouco tempo depois, o aparelho de Yeri também lhe avisou de uma notificação.
“Tô, pq?”
- Sorvete! - Yeri não teve tempo de responder à mensagem, só de ficar em choque, apesar de a confirmação ter sido um tanto quanto previsível. Ergueu seu olhar e viu Tiffany a equilibrar três taças de sorvete. Agradeceu ao pegar uma delas, e deu um tapa estalado na coxa de Irene para trazê-la de volta ao mundo real.
- Ó o sorvete, oh, distraída. – Yeri se arrependeu no mesmo instante, porém. No momento em que Irene desviou o olhar para ela, o soco que acertou seu braço não foi ardido. Foi dolorido para uma porra, mesmo. – Ai, tá doida?!
- Ih, quantos anos têm as bonitas para ficarem se batendo? – Tiffany questionou, ao mesmo tempo em que ria para a cara enfezada da filha e lhe estendia a taça com a sobremesa.
- Obrigada. – Irene agradeceu ao pegar o seu sorvete para si, como se não tivesse acabado de acontecer nada. Yeri mostrou a língua para a Bae, que respondeu com a mesma maturidade, antes de levar uma colher cheia de sorvete para a boca. Porém, antes que Yeri fizesse o mesmo, sentiu Tiffany lhe cutucar o ombro, após se sentar. A Hwang apontou com o queixo para a filha, e ergueu uma das sobrancelhas ao sorrir, como se perguntasse que bicho havia a mordido.
Yerim fez o que lhe era possível. Deu de ombros, antes de encher a boca de gordura congelada, também. Yeri teve que se concentrar muito para não rir e acabar irritando ainda mais a amiga pistola, ou levantar as suspeitas de Tiffany. Tudo isso comprovava que, não, a Kim não estava delirando. Irene que era óbvia demais. Yeri não sabia o quanto Irene tinha consciência, mas, puts, chamem-na de maldosa, mas que a situação era cômica, para não dizer trágica, isso era. Aproveitou a jovem pensativa à sua esquerda e a mãe igualmente reflexiva à sua direita para responder a sua agente secreta.
Yeri se achava meio badass pensando assim, deixem ela.
“Nada não...
Análise”
Análise.
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