Irene sabia que o que estava fazendo era errado. Seu coração batia rápido e a adrenalina gerava um vazio no estômago comparável a sensação de descer em uma montanha-russa. Checou o seu reflexo no espelho do banheiro uma última vez: roupa e cabelinho estavam na régua. Tinha se lembrado do desodorante após o banhou, também, até isso ela averiguou mais de uma vez.
Desligou a luz do cômodo ao sair e, em seu caminho até a porta, conferiu se o celular estava seguro e bem escondido na cintura dos shorts. Cheque para isso também. Calçou-se, então, e a última coisa da qual precisava estava na porta. Irene girou a chave da maneira mais discreta possível, para não chamar atenção da cadela de guarda do vizinho.
Porém, antes de sair, Irene hesitou outra vez, refletindo sobre o que estava fazendo. Estava saindo de casa escondida, sem avisar ninguém antes e também sem a pretensão de avisar depois. No segundo em que parou, sua mente construiu um milhão de situações em que sua omissão poderia lhe custar caro. E se sua mãe voltasse mais cedo do trabalho? E se sua mãe voltasse mais cedo do trabalho doente, ou ferida? E se acontecesse algo na loja? Sem contar os Kim, e se fossem atrás dela, no apartamento? E se alguém passasse mal? Ou alguém os tornasse reféns? E se Kim Yeri botasse fogo no apartamento com apenas as suas irmãzinhas dentro e Irene não estivesse ali para ajudar?!
Um latido agudo a trouxe de volta para a sua situação, parada à porta, segurando a maçaneta. Desgraça de salsicha. Irene, apressada, fechou a porta e a trancou sem fazer muita questão de esconder o barulho, já que o olfato daquela maldita já estava tentando denunciá-la. Desceu tão rápido as escadas, pulando alguns degraus, que quase torceu o tornozelo e terminou o seu percurso rolando, sem precisar de Nazaré Tedesco nenhuma para lhe dar um impulso. Sua quase morte, porém, a fez se lembrar de que algo que tinha esquecido de fazer, e o corrigiu antes de abrir o portão do prédio, enviando uma mensagem.
“Saindo agora.”
...
Seulgi tirou os olhos do celular e, sentada no sofá da sala, ergueu os olhos em direção a cozinha. Atrás da bancada que separava os cômodos, viu a mãe ocupada em preparar um bolo para o café da tarde. O irmão, de folga naquela quinta, andava de um lado para o outro, trajando uma roupa de borracha e uma quantidade um pouco absurda de protetor solar nas bochechas.
- Mãe. – Seulgi chamou a atenção da mulher, que olhou em sua direção para que continuasse. – O oppa vai sair, não vai?
- Por que você quer que eu saia hoje? Suas amigas sempre gostam mais de mim do que de você. – E o rapaz mais velho continuava andando em círculos pela casa, os cabelos de tamanho médio já bagunçados, de tanto que coçava a cabeça.
- A Joyce e a Wendy dão corda para as suas idiotices, Irene não tem o mesmo tipo de humor exótico que vocês. – Seulgi justificou. Bem, o humor de todos se baseava em tirar com a cara dela. O da Bae só costumava ser mais ofensivo. E outra, duvidava que Irene fosse achar graça no fato de o seu irmão conseguir lamber o próprio cotovelo. Foi a competição mais nada a ver da qual a Kang já tinha participado, aliás, mas só Wendy Son tivera a capacidade para tal, além do rapaz. Este que ainda zanzava pela sala, virando de cabeça para baixo todos os enfeites de cerâmica da mãe, que já estava irritada com aquela cena.
- Kang Seojun, pode me dizer o que o senhor quer antes que revire toda a casa? – Alerta, o primogênito tornou sua atenção para a mãe, calmamente devolvendo o jarro da mesa de centro ao seu lugar.
- A chave do cadeado da bicicleta...
- O senhor não disse que tinha deixado no seu chaveiro justamente para não perder de novo? – A matriarca da família ergueu uma sobrancelha e Seulgi riu ao ver a boca do irmão se abrir em um “o” ao ser lembrado.
- Burro pra caralho. – Seulgi tirou sarro e se encolheu por reflexo quando o rapaz ergueu o punho fechado em ameaça.
- Olha a boca. – A Senhora Kang avisou e Seulgi sorriu culpada ao murmurar um pedido de desculpas. Mas antes que alguém falasse mais qualquer coisa, o interfone soou alto pelo apartamento e Seojun foi rápido em correr para atendê-lo, antes mesmo que Seulgi levantasse a bunda do sofá.
- Fala, viado! Ah... Eita. – E o tom alegre do rapaz sumiu segundos depois de ter atendido. Estava ele, todo tenso, coçando a cabeça e lançando um olhar de desespero para a caçula. Seulgi que esfregou as mãos no rosto ao negar com a cabeça. Ótimo, já tinha começado a passar vergonha por causa do irmão. – Err... Eu vou chamar ela...
- Que me chamar o que, abre o portão para ela, seu tonto. – Seulgi se levantou e foi em direção ao interfone. O irmão apertou o botão e entregou o interfone para a irmã, que ainda negava com a cabeça para ele.
- Eu pensei que eram os caras... – O mais velho sussurrou e Seulgi gesticulou para que se mandasse dali. O lado bom daquela boas-vindas exóticas fora que Kang Seojun se trancou voluntariamente no próprio quarto.
- O portão abriu? Ok, vou abrindo a porta. – Seulgi avisou antes de devolver o interfone ao gancho e se dirigiu até a porta do apartamento para destrancá-la. Ficou encostada ali ao lado, sem deixar de notar a mãe negar com a cabeça. Esperava que fosse para o seu irmão.
- Wendy e Joyce também vêm? – Ouviu a mãe perguntar e negou com a cabeça.
- Hoje, não. – Respondeu. Seulgi só podia imaginar o caos que seria, Irene no mesmo quarto que Sooyoung e Wendy. O pior era ter a quase absoluta certeza de que acabaria sobrando para ela, que só não seria lançada de uma janela por conta das telas. Ouviu a luz automática do corredor se acender com um clique e Irene logo apareceu, terminando de subir as escadas. É, era uma cena meio bizarra, daquelas que você acha que nunca vai ver na vida. E quando acontece, mesmo presenciando, ainda não acredita direito. – E aí? Foi mal no interfone, meu irmão pensou que fossem os amigos dele.
- Ah, não, tudo bem. – Irene disse no tom sóbrio de sempre (que não estava revoltada com a existência da Kang) e adentrou o apartamento assim que Seulgi lhe deu passagem. Pôde ver a sala vazia aos fundos, enquanto deixava os calçados à porta, e a direita uma cozinha não lá muito grande. – Ah, boa tarde, Dona Kang.
- Boa tarde, minha linda, como está a mãe? – A mulher mais velha sorriu para ela, enquanto enformava uma massa espessa. Bolo talvez?
- Bem. – Irene respondeu ao aquiescer. Viu o vulto de Seulgi passando a sua esquerda, gesticulado para que a seguisse.
- A Amanda está onde? – Seulgi perguntou para a mãe, que balançou os ombros.
- Ela não sai do seu quarto. Se já está batendo sol na sua cama, ela está lá. – Irene ouviu a mulher responder antes de seguir a mais nova por um corredor que ficava entre a cozinha e a sala, à direita.
- Chega mais, então. – Seulgi continuou o seu caminho até a última porta à esquerda, girando a maçaneta para abrir a porta do quarto. – Ah, e não esquenta. O meu irmão logo sai para surfar, não vai ficar enchendo o nosso saco.
- De boa, foi engraçadinho. – Irene negou com a cabeça e riu brevemente ao se lembrar em como a animação na voz do garoto foi embora em menos de um segundo.
- Bem, fica à vontade, então. – Seulgi disse, ao dar passagem para que a Bae também entrasse, antes de deixar a porta só meio aberta.
E ao contrário do que Irene pensava, não, as paredes não eram pintadas nos sete tons do arco-íris, não havia bandeira ou nenhuma menção àquilo. Também não encontrou nenhum calendário com mulheres trajando biquínis na parede – bem, tinha um pôster de umas coreanas que a Bae não conhecia, mas, enfim -, não tinha uns decalques de caminhão, nem sinal de cinzeiros e latinhas de cervejas vazias pelos cantos, ou peças íntimas alheias espalhadas pelo chão.
Tá, talvez Irene tivesse fanficado demais na sua cachola.
O quarto era iluminado pela janela ao fundo, então, não, não era um covil escuro. Havia uma cama colada à parede à direita, mais próxima ao fundo do quarto do que da porta. À esquerda, havia um pedaço que Irene já conhecia das internets. Uma mesa com um computador e logo acima prateleiras com revistinhas e bonecos de desenhos ou jogos, o que para a Bae não fazia muita diferença. Fora aquilo, havia apenas um mural de fotos, logo acima de uma cômoda, e uma capa de violão apoiada ao canto oposto ao dela, quiçá a coisa que mais gritava “sapatão” em todo o quarto. Que era menor que o seu, inclusive.
- Ih, que preguiçazinha. Acorda que cê tem visita. – A voz de Seulgi fez Irene notar algo que ainda não tinha percebido. E isso era a gatinha deitada em cima de um dos travesseiros de Seulgi, toda encolhida, sob os raios de sol que invadiam o quarto pela cortina aberta. Viu Seulgi pegar o animalzinho no colo, que miou muito provavelmente em protesto. Parecia uma bola de pelo, bem iti malia. Não ajudava a diminuir o sorriso besta da Bae o fato de Seulgi estar se aproximando balançando o gato preguiçoso como se fosse realmente um bebê. – Oficialmente te apresento para Amanda. Amanda, essa daqui é a Tia Irene.
- Ai, não me chama de Tia Irene, parece que eu tenho cem anos. – Irene reclamou, mas não conseguiu manter a carranca por muito tempo, já que Seulgi fazia o gatinho acenar para ela.
- Bem, um dia vão te chamar assim, se teu marido tiver irmãos. – Seulgi disse e o rosto da Bae novamente se contorceu em uma careta. Nota mental: arrumar um filho único para si. – Quer pegar ela no colo? Ela é boazinha, só solta muito pelo.
- Quê? – Irene arregalou os olhos quando Seulgi fez menção de erguer a gata em sua direção, e negou constantemente com as mãos em frente ao corpo. – Eu nunca peguei nem bebê de gente no colo, imagina gato.
- Relaxa que se tu não conseguir segurar no máximo ela vai pular de ti. Tu não vai quebrar a gata. – Seulgi permitiu com um aceno positivo de cabeça quando Irene fez menção de acariciar a gatinha, entre as orelhas, o que a Bae fez por algum tempo. O fato de o animalzinho ter fechado os olhos e ronronado deixou Irene, Seulgi, a autora e o leitor a disputar pelo título de sorriso mais boiola. – Tem certeza que não quer tentar? – Seulgi perguntou e viu Irene a encarar por alguns segundos, pensativa.
- Tá... – Irene endireitou a postura e esticou os braços, ainda que não estivesse lá muito confiante. Seulgi sorriu ao passar calmamente o gatinho para a Bae, para não assustar nenhuma das duas. Mais Irene do que Amanda, porque Seulgi conhecia a gata dada que tinha. E, de fato, a gatinha se remexeu e miou de novo ao ser tirada de seu conforto, mas quando Irene deu um jeito de acomodar aquele bicho, que era mais molenga do que o esperado, voltou ao modo preguiça-manhosa.
- Viu? Ela não te mordeu e nem você matou ela. – Seulgi brincou e riu mesmo com Irene a fuzilando com o olhar. A Kang podia apostar que, se a Bae não estivesse com os braços ocupados, teria levado um tapa.
- Há quanto tempo tem ela? – Irene perguntou, antes que o silêncio se instalasse. E a falta de assunto era a possibilidade que mais lhe assustava, naquele momento.
- Faz um tempão. A gente adotou ela duma senhora aqui do prédio, logo que desmamou. Eu queria dois, tinha um branco muito bonitinho, mas minha mãe não deixou. – Seulgi explicou e Irene teve que rir pelo pingo de ressentimento ainda presente na voz da Kang.
- E por que dar nome de gente pro gato? – Irene enfim resolveu fazer aquela pergunta. Seulgi, que esticava a mão para mimar a gatinha, como se ela precisasse de mais alguma atenção, parou no meio de sua ação.
- Ah, a dona da mãe dela já tinha dado. Eu fiquei com peso na consciência de mudar. – Seulgi explicou com um sorriso constrangido. Irene assentiu, achando o motivo por trás do nome um pouco mais justificável, meio bobinho da parte da Kang, porém bonitinho. – Eu tenho foto dela neném, chega mais.
É, Seulgi era muito mãe de pet. Irene teve que abafar o riso antes de segui-la até o mural de fotos que vira antes. Infelizmente, seu caminhar pareceu incomodar a gata, que se remexeu em seu colo. Irene foi obrigada a se abaixar um pouquinho para deixar o não tão pequeno felino pular para o chão. Dera graças ao senhor por ter decidido não usar uma camiseta preta, pois Seulgi não tinha mentido quando disse que a gata soltava muito pelo. Sacudiu a camisa ao seguir até o lado de Seulgi, que tinha uma foto revelada em mãos.
- Ela era ainda mais terrorista nessa idade. Minha mãe quase me fez devolver quando começou a quebrar os enfeites que ela tem na estante. – Seulgi riu baixinho com a lembrança e Irene desviou o olhar para a foto. É, a gatinha conseguia ser ainda mais fofa, minúscula daquele jeito. Também estava no colo de uma Seulgi com cara de neném. Tá, não neném, neném, uns doze, Irene chutaria, porque a imagem da Kang naquela foto lhe era familiar. Não que pudesse ter tido muito tempo de encarar, também, já que logo Seulgi cobriu o rosto da foto com o polegar. – Ignora minha cara, a puberdade deixa a gente zoada.
- Quê? Cê tem a mesma cara desde sempre. Se tu era zoada antes, continua sendo. – Seulgi não sabia se Irene rindo para ela era para ser ofensivo ou não. Bem, era, de qualquer jeito. Ou Irene estava implicando que ela era maluca, ou que era esquisita.
- Eu não acho... – Seulgi falou ao aproximar a fotografia do rosto e apertar os olhos. Não tinha como ela ainda ter aquela mesma aparência, tinha? Por que, para a Kang, as mudanças eram mais do que óbvias. – Eu só tinha bochecha... – Seulgi resmungou e, em vez de parar, Irene só começou a rir mais alto. – Caramba, nem pra ser legal e me iludir...
- Tá, mas eu faço autocrítica. Lembra da franja que eu tinha no sétimo ano? – Irene gesticulou com o indicador um pouco acima das sobrancelhas. Seulgi assentiu. Pelo menos a Bae também estava rindo de si mesma, daquela vez. – Minha mãe que cortava aquela desgraça.
- E por que tu deixava ela fazer aquela tragédia? – Seulgi, então, tomou a liberdade para brincar. Irene a socou, como esperado, mas também riu, e foi de levinho. Como queria exibir aquele momento para as amigas, Irene interagindo com ela como se fosse gente.
- Meu cabelo cresce rápido e não dá pra ficar pagando cabeleireiro mais de uma vez por mês, aí ficava aquele negócio todo torto e picotado. – Irene franziu ligeiramente a testa. Aparentemente, o conceito não lhe agradara muito.
- Mas era bonitinho. – Seulgi respondeu ao pregar a foto de volta ao seu lugar. Pela ausência de resposta, pensou que Irene estivesse erguendo uma das sobrancelhas para ela. E sua hipótese foi confirmada quando olhou na direção da Bae. – Te deixava com ainda mais cara de nerd e orgulho da mamãe. Parecia que fazia parte do grupo de jovens da igreja, ai! – Seulgi se curvou toda quando recebeu um cutucão bastante doído na região da costela esquerda. Primeiro que nem sabia que cutucões poderiam ser doloridos. – Que é isso, Kung Fu?
- Mané grupo de jovens, eu tenho mais o que fazer. – Na verdade, Irene não tinha, como já deve ter ficado muito claro a essa altura, mas isso não a impediu de ficar indignada mesmo assim. – E outra, nem naquela igreja muitos salvam, bando de duas caras fofoqueiros.
- Tu não se dá muito bem com gente, no geral, não é? – Seulgi arriscou brincar outra vez. Para sua sorte, Irene só a encarou com cara de tédio. Sem espancamentos. – É só brincadeira, relaxa...
- A senhora faça umas brincadeiras mais engraçadas, então, se não eu vou embora. – Irene disse e viu Seulgi rir baixinho para ela. Tinha como a Bae não rir de um ser abobado daquele, também? O que de fato, tinha, era o assunto ter aparentemente acabado, e toda vez que o silêncio se prolongava por mais de cinco segundos, Irene já se via a ponto de começar a suar de nervoso. Não, não deixaria acontecer, definitivamente. – Eu gosto de algumas pessoas. Tipo os professores.
- E Jennie? – Seulgi disse aquilo como se ela mesma fosse a Kim, ofendida.
- Ok. A Jennie e a Yeri também. – Irene admitiu, e preparou-se para dar o troco. Olhou para trás e apontou para a gata, após encontra-la deitada no chão, se lambendo, ainda sob os raios de sol que iluminavam o quarto. – Com você eu estou falando por interesse.
E tudo que Irene recebeu de resposta foi uma risadinha um tanto quanto esquisita para as risadas normais de Seulgi, mas nada que a fizesse estranhar demais, também. Seulgi não levava nem suas ofensas e nem suas brincadeiras muito a sério, e isso também era o que deixava Irene fula da vida com a Kang, às vezes.
- Pergunta nada a ver, mas... – Seulgi se afastou de onde estavam para se sentar ao chão e poder atazanar a gata. Depois tinha a audácia de reclamar que era arranhada. – O nome da Jennie é Jennie mesmo ou é meme?
- É Jennie. – Irene franziu a testa e decidiu se sentar ao lado da Kang. Bem, ao lado, modo de dizer, a gata estava no meio, o que a deixava um pouquinho mais segura. – Por quê?
- Porque a vida toda eu achei que o nome dela era Jennifer. – Seulgi olhou para Irene, sem entender porque a Bae fazia careta e fechava os olhos.
- Você me lembrou de músicas que eu preferia esquecer. – Irene se explicou e Seulgi riu ao ouvir a justificativa. – Mas o nome dela está na lista de chamada, vai me dizer que nunca viu?
- Eu não vejo nada. Só assino o meu. – Seulgi deu de ombros. – O da Joyce, às vezes, quando ela falta, porque ela me compra comida.
- É tão fácil te comprar? – Irene indagou e Seulgi simplesmente assentiu, sem vergonha alguma. Irene negou com a cabeça, antes de continuar. – Aparentemente pais coreanos são bregas para dar nome, eu acho que o da Yeri é o único que presta em todos os contextos.
- Ah, Joyce é normal... – Seulgi divagou. Bem, bullying pelo nome, a Park nunca sofrera.
- Não, muito rampeira. – Ou melhor, tinha acabado de sofrer.
- Irene é normal também. Tipo, a sessenta anos atrás muitas jovens tinham esse nome. – Seulgi riu quando seu ombro foi empurrado de leve.
- Não vai achando que é só porque está em casa que pode ser folgada. – Irene disse, em tom de aviso, mas Seulgi só continuou com as risadinhas dela. – Muda a piada, está ficando repetitivo.
- Mas falando sério agora... – Seulgi começou, atraindo a atenção de Irene para ela. – Ouvi sua mãe te chamando de “Rene” aquele dia, no mercado, e achei bonitinho.
- Ah... – Irene sorriu, constrangida pela descoberta do apelido, obviamente. – Só ela me chama desse jeito. Jennie às vezes. Yeri... bem, você deve saber como é, não costumamos usar os melhores dos nomes.
- Ah, eu sei. Wendy e Joy se dividem sempre entre me julgar e me proteger, ou seja, sou a vítima enquanto as duas se enchem o saco. – Seulgi admitiu, com uma risadinha envergonhada. – Com meu irmão... depende do que eu quero dele. Aí eu uso meus charmes de caçula.
- E você tem isso? – Irene riu de modo debochado o suficiente para fazer Seulgi a empurrar de leve também. A diferença é que Seulgi ria, quando isso acontecia. Irene precisou engolir em seco e olhar para outro canto para tirar o sorriso da cara, já que não queria passar a imagem errada para a Kang. Irene Bae não era abobada daquele jeito. Seu olhar encontrou o único pôster que enfeitava a parede outra vez e, ao não conseguir encontrar nome em lugar nenhum daquela foto, resolveu perguntar. – Quem são aquelas?
- Hm...? – Seulgi perguntou e, ao seguir o olhar da Bae, encontrou o pôster que ficava logo acima da cabeceira da sua cama. – Eu te mandei Twice aquele dia, não mandei? “Signal” e umas outras? – Seulgi gesticulou ao colocar as mãos na cabeça, em um hang loose invertido. Irene teve que conter as risadas de novo.
Ah, vamos, era cômico alguém fazer aquilo de um jeito tão sério.
- Você mandou. E eu assisti, só não reconheci. – E não culpem Irene por isso, em cada clipe aquelas ali estavam com um cabelo diferente. Não ajudava.
- Ah, eu quase me esqueci. – Irene desviou o olhar para a Kang, ao vê-la bater na própria testa. – Todo mundo que vem aqui em casa é obrigado a reverenciar Minatozaki Sana ao chegar. Faça as honras.
- Quê? – Irene piscou algumas vezes. É, sabia que Seulgi tinha seus defeitos, não achou que ser fangirl seria um deles, porém.
- A segunda da direita para a esquerda. – E a Kang fez uma saudação com os braços antes de apontar na direção do pôster outra vez. Irene também tornou sua atenção para ele, em busca da dita cuja. – Amém.
Irene franziu a testa ao fazer biquinho, e não foi pelo uso da Palavra em vão.
- Ela é ok. – Irene deu de ombros e foi a vez de Seulgi rir desacreditada.
- É, já percebi que você é meio exigente. – Seulgi negou com a cabeça ao estalar a língua. Irene nem fez questão de responder, porque era verdade. – Se ela é só “ok”, quem você diria que é bonita, então?
Percebendo o tom de desafio, o modo competitivo de Irene se ativou automaticamente. Virou-se para o pôster na parede à direita e apertou os olhos, tomando seu tempo para olhar para cada uma das nove garotas.
Bem, até se dar conta e questionar o que diabos estava fazendo. Negou com a cabeça e voltou sua atenção para Seulgi, torcendo o nariz.
- Sei lá, eu lá fico reparando em mulher. – Irene não sabia dizer o quê, mas algo a irritou naquela risadinha de Seulgi.
- Caramba, é tão hetero top assim para não notar gente bonita? – É. Seulgi estava tirando com a sua cara. Irene tomou a liberdade para pegar o travesseiro que estava atrás de si e o usar como arma contra Seulgi. E, antes que julguem, foi fraquinho. Seulgi até estava dando risada.
- Não foi o que eu disse. Você está distorcendo minhas palavras. – Irene tentou se defender. Mas só tentou, mesmo.
- Foi sim, foi exatamente o que você disse. – Seulgi já esperava que levaria outra travesseirada na cabeça, então o segundo golpe não foi surpresa. Felizmente, Irene acomodou o travesseiro no próprio colo, e voltou a atenção de suas carícias para a gata. Ficou quieta, mas, Seulgi percebeu, não parecia irritada. Estava mais para pensativa, pelo olhar distante. Mas, bem, Seulgi não era muito boa lendo expressões faciais, então...
- Posso... Posso te perguntar uma coisa? – Irene começou e, ainda que a outra não estivesse a encará-la, Seulgi se virou para a Bae, curiosa com o tom repentinamente sério. – Só promete que não vai fazer graça com isso também, ou eu nunca mais tento esse assunto contigo. Jamais. Sem nenhuma outra chance.
- Prometo. – Seulgi aquiesceu, apoiando um dos braços sobre o colchão e erguendo o mindinho, como que para firmar o compromisso.
- Tá, isso vai soar estranho saindo da minha boca, mas... – Irene olhou em sua direção brevemente, porém prosseguiu sem a encarar. – Como você sabe...? Tipo, eu nunca tive um momento "ah, então eu gosto de garotos", só foi assim que aconteceu, então... Não sei, eu não consigo imaginar como acontece, ao contrário. Digo... você entendeu.
Sim, Seulgi tinha entendido. E justamente por ter entendido que a Kang precisou piscar por quase meio minuto inteiro, para ter certeza de que não estava delirando, e que era verdade o fato de que, aparentemente, Irene Bae, de todas as pessoas do mundo, estava tentando ser compreensiva com ela. Tipo, de verdade, sem sinais de que era apenas uma isca para importuná-la depois? É, Yeri talvez gostasse de saber daquilo. Bem, Seulgi havia gostado de saber daquilo. E devia dar uma resposta para a Bae, que já a encarava, após tanto tempo que ficou em silêncio.
- É igual, mas diferente. – Seulgi coçou a cabeça ao pensar, e não deixou passar o fato de Irene ter segurado um sorriso. A Kang sabia que era horrível para explicar as coisas. – Tipo, igual porque só acontece, diferente porque para cada um é de um jeito. Se é que dá para entender.
- Mais ou menos. Desenvolva. – E lá vinha Irene com perguntas difíceis. Seulgi encarou o teto do quarto por alguns segundos, pensando em sua resposta.
- Que nem, para a Wendy, foi o clichê de perceber o crush na melhor amiga. Tirando que a melhor amiga era a prima dela, mas... – Seulgi interrompeu sua fala quando viu o rosto da Bae se contorcer outra vez. – Ah, não esquenta, foi platônico, de pré-adolescente. A moça era tipo uns quinze anos mais velha que ela e estava noiva. A gente tira sarro disso até hoje, porém.
- Tá, que seja. – Irene balançou a mão livre em desinteresse. E com um pouquinho de medo de que aquela história pudesse ser ainda mais traumática. Crush em primo era igual a morte, para ela. – E você?
- Ah, o meu é um pouco exótico. Acho. – Seulgi começou e Irene ergueu uma sobrancelha, para o constrangimento alheio. Tinha como ser mais esquisita que a história da Son? – Eu assisto bastante anime, então...
- É, eu percebi isso. – Irene falou, balançando a barra da camiseta que Seulgi estava usando. Era possível um ser humano só ter camiseta estampada daquele jeito?
- Enfim, eu sempre achei as personagens femininas mais legais que as masculinas, sem problemas até aí. – Irene conseguiu concordar com a cabeça para a fala de Seulgi. Geralmente era assim, mesmo. – Então às vezes eu ficava com raiva, do tipo “por que você está correndo atrás desse cara? Ele é um chato".
- Bem, mas os protagonistas costumam ser os personagens mais soníferos, realmente. – Irene interveio, e Seulgi meneou com a cabeça em resposta.
- Sim, mas, bem, as personagens costumam ter uma arquirrival com quem disputam a atenção do garoto, não? – Seulgi perguntou e viu Irene torcer o nariz ao assentir.
- Plot pobre, já larguei muita série por isso. Tudo para acariciar ego do público masculino.
- Na época eu não pensava profundamente assim, mas você não está errada. – Seulgi confessou e Irene riu baixinho em resposta. – Eu não sei quando comecei, mas eu sempre acabava shippando as garotas. Tipo, “eu sei que vocês se odeiam, mas ela é tão melhor que aquele cara”, e coisas do tipo. Não que shippar duas garotas te faça gay, mas, sei lá, eu acho que nunca problematizei demais esse tipo de coisa, então eu não achei que significasse algo. Precisei de um tempo para perceber que não era só admiração. Foi mais fácil para mim, já que a Wendy foi a primeira.
- É essa parte que eu não entendo, quando você percebe essas coisas. – Irene deixou implícita a sua pergunta. – Você, de uma hora para outra, decidir que gosta disso ou daquilo.
- É que, tipo, acontece de uma hora para outra. Pode ser que um dia eu me veja xonada num boy ou sei lá, nunca se sabe. – Seulgi ouviu Irene rir, muito provavelmente achando sua fala absurda. E, no momento, a Kang também achava. – Ah, Wendy que é boa falando dessas coisas. Sabe quando você é criança, odeia meninos, e do nada tudo o que você e suas amigas sabem falar é sobre garotos? – Seulgi perguntou e viu Irene aquiescer outra vez. – É tipo isso, só que você se dá conta, uma hora, que não é nos garotos em quem você repara. Acho que a diferença está em como e quando cada um reage a isso, apenas.
- Por isso “igual, mas diferente"? – Irene perguntou e Seulgi assentiu. – É, tem uma lógica, mas eu não sei se é certo. Digo, de modo amplo. Eu posso ter uma vontade bastante genuína de roubar um banco, mas, moralmente falando...
- Poxa, eu falei tão bem para você vir comparar com roubar banco? – Seulgi não estava esperando demais da Bae, porém, por isso sua revolta foi genuinamente brincalhona.
- Foi só exemplo! – Irene tentou se justificar, ainda que risse. É, sua analogia soou mais absurda depois da crítica da Kang.
- Eu sei, eu sei. Eu não concordo contigo, porém obrigada por perguntar sem julgar... muito. – Seulgi não achou que seria capaz de mudar o que a outra achava de uma hora para a outra, no fim das contas. Podia considerar o fato de aquela conversa ter acontecido uma pequena evolução, porém?
- É, eu vou tentar julgar apenas de boca fechada, a partir de agora. – Irene disse em um tom de descaso. Felizmente, Seulgi percebeu a brincadeira e sorriu de volta para ela.
- Não vou mentir que isso me deixa feliz. Não é o ideal, mas... Eu tenho fé. – Seulgi não sabia se tinha, de fato, mas ao menos funcionou para fazer Irene rir. É, provavelmente a Bae notara sua falta de confiança, mas... – É bom para você também, parar de fazer cara feia para mim e para as meninas. Você fica mais bonita assim, relaxada e sorrindo.
- Meninas. – As risadas de Irene se cessaram, porém não teve tempo de problematizar aquele comentário de Seulgi, já que a mãe da garota apareceu à porta. Irene desistiu de tentar entender o que se passava pela cabeça da Kang e desviou o olhar para a mulher que aguardava pela atenção de ambas. – A Irene fica para o café, não?
E, de repente, a Bae tinha dois pares de olhos curiosos voltados para si.
- Ah, não precisa esquentar comigo. – Irene negou enfaticamente com a cabeça. – Eu não vou embora tarde.
- E o bolo não vai ficar pronto tarde, eu já coloquei no forno, então a senhora fica. – E, apesar de a senhora ter dito aquilo de maneira amigável, Irene teve certeza de que ir embora antes seria o mesmo que fazer desfeita. – Filha, eu coloquei o cronômetro em cima do fogão. Vou tirar um cochilo e você me acorda se eu não ouvir.
- Tudo bem. – Seulgi assentiu à ordem.
- O pai dessa daí me acorda às cinco da manhã, desesperado, como se eu fosse saber onde ele enfiou as provas dos alunos. Eu estou perdida, com esses três... – A Dona Kang explicou e Irene só não riu alto por respeito, porque podia imaginar a filha do casal na mesma situação. – Por que não vão para a sala? Eu vou para o meu quarto.
- O oppa foi embora? – Seulgi perguntou e Irene nem viu se a resposta da mulher foi positiva ou negativa, já que estava ocupada demais rindo discretamente do pronome de tratamento usado. – Então, bora.
- Ai, menina, tem que levar essa gata para todo lado? – Seulgi parou no meio de sua ação. Erguia a gatinha no colo, após se levantar. A felina que não pareceu ter gostado muito de ser tirada do carinho da Bae, pelo jeito que miou.
- Ela gosta da minha companhia. – Seulgi disse, ao dar uns cheirinhos em Amanda, que não devia estar no mesmo clima que Seulgi, pela forma que se mexia em seus braços.
- É, estou vendo. – A mulher negou com a cabeça antes de se mandar de onde estava. Irene se levantou, ao ver Seulgi indicar com a cabeça para que a seguisse.
- A gente vai jogar Naruto enquanto o bolo não assa. – Irene ouviu Seulgi dizer, enquanto caminhavam de volta para a sala, e não pôde evitar a risada incrédula. Sério que a ideia da Kang para passar o tempo com alguém era jogar videogame? Sinceramente...
- Jogar Naruto? Vê se eu tenho cara de quem joga Naruto?
E, realmente, Irene não tinha cara de quem jogava joguinho de luta, muito menos do Naruto. Bem, nem mesmo Wendy e Joyce topavam sempre aquela ideia, imagine a Bae. Porém, Irene aceitou mesmo assim. E o que pareceu uma boa ideia de início, para Seulgi, se revelou ser uma decisão não muito inteligente com o passar das partidas. Isso porque a normalmente quieta Irene revelou se transformar no próprio capeta toda vez que perdia no jogo, por mais irônico que fosse. Seulgi se dividia entre pedir para Irene falar baixo sempre que se exaltava, ou para que risse de um jeito menos escandaloso, quando a Bae conseguia ganhar um mísero round. Tinha também que se proteger, quando Irene também se exaltava por ser chamada de barulhenta, ou quando Irene tentava roubar na cara dura, apertando botões aleatórios do controle da Kang, ou até ficando em pé na frente da televisão, para bloquear sua visão.
Por algum tempo Seulgi se sentiu jogando videogame com alguém de dez anos de idade, mas enfim, fora engraçado, já que era a Bae a única a levar aquelas partidas à sério. Mas, eventualmente, e mais rápido do que a Kang esperava, o entusiasmo de Irene diminuiu até chegar à zero. Cansada de perder, Irene largou o controle no sofá ao mesmo tempo em que se sentou ali, após ver seu personagem desfalecer pela milésima vez na televisão.
- Vamos fazer outra coisa. – Irene mais decidiu do que sugeriu. Seulgi alcançou o celular para checar o horário, antes de qualquer coisa.
- Não deve faltar tanto tempo assim para ficar pronto. O que você quer fazer? – Seulgi retribuiu com a pergunta, encerrando o jogo com o controle do console, enquanto o silêncio de Irene evidenciava o rodar de suas engrenagens mentais.
- Não sei, o que você gosta de fazer, além de jogar isso? – O jeito que Irene apontou para a televisão era bastante contrastante com a forma como estava animada há poucos minutos.
- Eu jogo isso muito pouco, não tem graça, jogo de luta sozinha. Eu prefiro jogar online, no pc. – Seulgi explicou, defensiva. Não era tão viciada assim. – Fora isso eu gosto de desenhar e ver anime... – Ok, talvez fosse. – E correr. – E disso tudo Irene já sabia. Fosse pelos desenhos que Seulgi postava, ou porque quase todo dia passava correndo pela rua da escola. Não que Irene ficasse esperando aquilo acontecer, até porque os horários de Seulgi eram imprevisíveis. A Bae não podia fazer nada se sua janela dava para a rua em questão. – Nada de muito útil para a gente, agora.
- É, percebi. – Irene riu baixinho e suspirou ao negar com a cabeça.
- E você, o que gosta de fazer em casa? – Irene olhou na direção da Kang, surpresa, já que não esperava que sua pergunta fosse retribuída. Foi a vez da Bae pensar um pouquinho em sua resposta.
- Eu sou chata. – Irene confessou e viu Seulgi sorrir de boca fechada para ela. – Eu só leio e assisto qualquer coisa que estiver em alta. Ou baixo algum jogo estúpido no celular. Eu gosto de ajudar minha mãe com a casa, porém, mas não há muita bagunça que duas pessoas possam fazer.
- Do lar, ela. – Seulgi brincou e na mesma hora alcançou uma almofada para se proteger do tapinha que seria certeiro em suas pernas, caso contrário. Já havia se tornado um reflexo.
- Idiota. – Era um daqueles xingamentos vazios, já que Irene rira ao dizer, e Seulgi fizera o mesmo em resposta. – Vamos só esperar, então. Eu vou embora logo depois.
- Ok. Vou colocar alguma música, então. Sugestões? – Seulgi perguntou e, ao olhar para Irene, a viu balançando os ombros. – Adoro essa também. – A Kang brincou e, bem, Irene teve que admitir que o humor de Seulgi nem sempre era tão péssimo.
Irene então ficou a observar Seulgi, que abrira o aplicativo de música ainda no console, usando o controle para navegar pela sua biblioteca de artistas e playlists. Havia um número considerável delas e, pelo modo de que a Kang passava inúmeras vezes por cada uma delas, Irene percebeu sua indecisão.
- Só coloque suas músicas no aleatório, se forem muito ruins eu mesma pulo. – Irene riu e ouviu Seulgi rir baixinho, antes de desviar o olhar para ela.
- Eu não acho que eu tenha músicas ruins, porém. – Irene sorriu ao ver Seulgi falar, de olhos ainda atentos na televisão.
Irene não soube dizer se os dedos inquietos no controle acatavam sua sugestão ou não, já que estivera mais ocupada em observar o perfil da garota. Sim, gostava de importunar Seulgi com sua aparência, porque a Kang não a levava a sério e lhe dava boas respostas, à altura. Felizmente, Seulgi sabia que ela dizia aquilo da boca para fora, pois, bem, Seulgi não era tão mal assim. E isso incluía o seu perfil, Irene acabara de constatar. Tinha um maxilar bem definido, um nariz num formato bonitinho que complementava bem o formato do queixo e dos lábios.
- Pop ou r&b? – Seulgi olhou novamente em sua direção ao perguntar. Irene não soube de onde diabos sua mente tirara aquela constatação, mas os lábios da Kang também se movimentavam de um jeitinho que lhe atraía a atenção quando falava. Irene não sabia dizer o que tinha de diferente, mas havia algo, já que era a primeira vez em que reparava naquilo em alguém.
- Tanto faz, você que escolhe. – Irene deu de ombros mais uma vez e Seulgi a encarou por alguns segundos ao assentir calmamente. Provavelmente pensando no que iria agradá-la mais? Irene não tinha certeza de nada, nem do porquê de sua mente, de uma hora para outra, ter se convencido de que Seulgi era igualmente bonita de qualquer ângulo. O que a deixava um pouquinho brava, porque a Kang não precisava fazer o mínimo esforço para tal. O que, por outro lado, Irene agradecia. Não era facilmente intimidada por olhares, mas...
- R&b, então. – Seulgi sorriu ao enfim decidir, e Irene se pegou sorrindo de volta até mesmo quando a Kang desviou a atenção de volta para a televisão. Isso quanto a Kang, porque a Bae continuou a observar do mesmo jeito.
Ato que, meio inconsciente, enchia Irene de sensações contraditórias, como a de aquecer seu coraçãozinho e ao mesmo tempo causar um frio na boca do estômago. A trazer calma e fazer todo o resto parecer ficar em câmera lenta, na mesma hora em que seu coração passara a bater muito mais vezes por minuto do que o tempo da música que havia começado a tocar. Ao mesmo tempo em que seus olhos pareciam querer absorver cada detalhezinho da garota ao seu lado, Irene também não pôde desviar a atenção de como a boca de Seulgi se movia em sincronia com as letras da música, enquanto cantava de forma quase que sussurrada. E era irônico, porque Irene sabia que apenas observava com um ligeiro sorriso, mas seus lábios formigavam tão de leve como se estivesse cantando também, uma música que nem conhecia.
Às vezes Seulgi conseguia ser tão...
E então o bom senso pareceu lhe atingir como um raio. O que diabos estava fazendo, ou melhor, pensando, ou fazendo e pensando?! Irene travou por completo, o que incluiu a própria respiração, mas não os batimentos cardíacos, que apenas se aceleraram ainda mais, bombeando por suas veias o maior ataque de pânico que já tivera em toda a sua vida, ao ponto de Irene sentir a própria pressão abaixar e as mãos tremerem ligeiramente em seu colo.
Não, não, não, e não... Aquilo não fora ela, definitivamente não eram pensamentos seus. Nunca que entraria naquele estado de transe tendo plena consciência de seus atos. Só havia uma explicação possível. Estava querendo testar sua fé, o Maldito, como se um anjo caído fosse capaz de ludibria-la tão facilmente. Era armadilha, cilada, Bino. Irene sabia, não devia ter topado aquela ideia desde o começo, fora burra e agora lhe restava ter que lidar com o próprio desespero.
Irene não precisava ser testada porque não tinha nada para testar!
- Onde... onde é o banheiro?
Seulgi, que estava se preparando para fazer um comentário a respeito da música, teve sua atenção de repente tomada pela voz de Irene, num tom estremecido que a fez franzir a testa, e só aumentou sua preocupação o fato da Bae estar quase tão branca quanto as paredes da sala, ao mesmo tempo em que a encarava de volta, assustada. Com a maior cara de quem tinha visto assombração.
- É... primeira porta à esquerda. – Seulgi usou o indicador para mostrar o caminho, e bastou isso para que Irene se levantasse, caminhando apressada e de punhos cerrados para fora da sala, sem dar muito tempo para a Kang expressar sua preocupação. – Tá tudo bem?
- T-tá! – Ouviu Irene responder e, logo depois, a porta ser fechada. Seulgi não se convenceu, mas decidiu só intervir se Irene demorasse mais do que cinco minutos lá dentro.
E, se por um lado, a garota na sala pensava no que diabos poderia ter feito a outra parecer tão mal de uma hora para a outra, a que estava no banheiro andava no pequeno cubículo em círculos, puxando os próprios cabelos enquanto mantinha os olhos bem fechados, hiperventilando.
- ... nosso que estás no céu, santificado seja o vosso Nome...
Irene tinha a sua fé muito bem definida, obrigada, mas, naquele momento, orava até por Nossa Senhora da Bicicletinha Sem Freio, tudo para apagar de sua memória para sempre o surto que acabara de lhe ocorrer, ou impedir que o coisa ruim voltasse a sussurrar aqueles absurdos em sua orelha novamente, porque não tinha como aqueles serem pensamentos e ações genuinamente suas! Não! De jeito nenhum! Irene já se organizava mentalmente para tomar um belo banho de sal grosso assim que chegasse em casa! Qualquer remédio da demonologia contra Súcubos, seria a primeira pesquisa que faria no Google!
O pior é que Irene não acreditava em nada disso, e foi justamente essa constatação que a fez parar de rodar no banheiro como barata tonta. O fato de o cronômetro ter tocado na cozinha também a ajudou a acordar para a vida. O que Irene estava pensando, afinal de contas? Não tinha motivo nenhum para surtar daquele jeito! Sério! Irene enfim percebeu o quão absurdo foram os últimos minutos e riu para o próprio reflexo no espelho.
Que idiota, Irene Bae! Uau, conseguira pregar uma peça em si mesma!
Irene negou com a cabeça e usou o espelho para ajeitar os cabelos levemente desgrenhados, dando uns tapinhas leves na própria bochecha para despertar. Pronto, estava recomposta e com um sorriso gentil no resto.
Sentindo-se preparada, saiu do banheiro quase ao mesmo tempo em que Seulgi saiu de uma porta aos fundos do mesmo corredor, do lado oposto. Seulgi a encarava como se fosse perguntar algo, e então Irene lhe deu um de seus melhores sorrisos, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
- É... Ela já nos acompanha. – Seulgi disse, apontando para a porta que havia acabado de fechar atrás de si. – Venha, eu vou adiantar já pondo a mesa.
E, sem fazer cerimônia, Irene seguiu Seulgi até a cozinha. À princípio, apenas observou a Kang pegar um garfo em uma das gavetas antes de abrir o forno. Parecia saber o que estava fazendo, até espetar o bolo e ficar encarando os dentes perfeitamente limpos, com cara de dúvida. Irene só não riu porque nem entender o que se passava pela cabeça da Kang, ela tinha entendido.
- O que foi?
- Faz diferença o quão fundo você enfia o garfo? – Seulgi perguntou, indicando o utensílio em sua mão. Irene revirou os olhos ao caminhar até a Kang, e tirou o garfo de sua mão ao tomar seu lugar em frente ao fogão, expulsando a garota para o outro lado.
- Pegue os pratos, vai, deixa que eu cuido disso aqui.
Seulgi obedeceu e Irene negou com a cabeça. Tinha ali a confirmação de que certos ocorridos não se passaram de delírio.
A Kang era um caso perdido.
Quando a mãe de Seulgi chegara a cozinha, já sem a cara de quem tirara um breve cochilo a tarde, a mesa estava posta e puderam tomar o café da tarde pacificamente. Sim, Irene conseguiu se portar normalmente, até porque a Dona Kang falava o suficiente para distraí-las, quase tanto quanto a própria mãe da Bae, só que menos sem noção. Foi legal saber de histórias vergonhosas da infância de Seulgi, também, porque geralmente era a Kang quem pegava no seu pé. O sentimento de vingança, para Irene, diante do constrangimento da outra, fora bastante satisfatório, diga-se de passagem.
Por bons modos, Irene se permitiu ficar por mais alguns minutinhos na companhia da mulher, após arrumarem a pouca bagunça que fizeram na cozinha, mas Irene manteve a sua promessa de ir embora antes que escurecesse. Agradeceu a mais velha pela hospitalidade e, em troca, foi convidada a visita-las sempre que quisesse. Irene não sabia quando ou se aquilo aconteceria, mas sorriu em despedida, já à porta, com Seulgi a destrancar a saída para ela.
- Eu vou contigo até lá em baixo. – Seulgi se ofereceu, também calçando os chinelos.
- Não precisa... – Irene tentou, mas não adiantou de nada. Seulgi saiu do apartamento primeiro do que ela. Derrotada, Irene apenas acenou uma última vez para a mulher mais velha antes de acompanhar Seulgi escadaria abaixo.
Definitivamente era mais fácil descer do que subir três lances de escadas. Diferentemente do seu, o prédio de Seulgi possuía uma garagem aberta. Irene caminhou atrás da Kang até o portão de alumínio, e Seulgi também o destrancou antes de dar passagem.
- Agradece sua mãe de novo por mim, depois. – Irene disse, ao parar, já à calçada. Seulgi assentiu antes de responder.
- A Amanda me disse para agradecer a visita, também. – Seulgi riu da própria besteira e viu Irene fazer o mesmo, embora tivesse tentado se conter um pouquinho mais.
- A dona dela não foi tão chata, também. – Irene deu o braço a torcer. Mas só daquela vez, porque Seulgi fora gentil com ela o tempo todo. Bem, tirando quando pegava no seu pé, mas...
- Até amanhã, então? – Seulgi ergueu o punho fechado para ela outra e Irene sorriu, ao retribuir o cumprimento com um soquinho.
- Até amanhã. – Seulgi se apoiou no batente e cruzou os braços após ter sua despedida, observando Irene seguir seu caminho, à direita, em direção à esquina. Andava de um jeito um tanto quanto... excêntrico, Seulgi acabara de perceber.
- Vê se não se perde no caminho! – Disse em voz alta, mas Irene apenas acenou, sem se virar para trás ou interromper suas passadas. Não deu outra resposta, mas era justamente o que a Kang esperava. Riu ao negar com a cabeça e voltou para o lado de dentro, trancando o portão antes de seguir de volta para o apartamento.
Seulgi agradeceu mentalmente. Tinha sorte de não ser sapatão emocionada que nem sua amiguinha da Terra do Nunca, mas, realmente, às vezes, "heterossexualidade" lhe soava mais como "um baita dum desperdício".
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