Seria mais uma quinta-feira em que Seulgi chega um pouquinho mais tarde e apressada do que o normal se não fosse pelo fato de que pareceria cair o mundo do lado de fora, como se um novo dilúvio fosse acontecer antes do meio dia e vinte. Assim que entrou na sala de aula, Seulgi percebeu o balde de lixo à porta, este que estava cheio de guarda-chuvas molhados como o seu – já que, normalmente, os alunos jogavam a sujeira no chão, de qualquer jeito – e o largou ali. Cumprimentou Jennie, que mexia no celular, com um breve aceno que lhe fora retribuído. A cadeira da frente ainda estava vazia, mas, bem, o difícil era Irene não chegar poucos segundos antes de o sinal da escola bater.
Tanto Joyce quanto Wendy, porém, já estavam em seus respectivos lugares, ao fundo. As duas conversavam, como era de se esperar, exaltadas, como também não era incomum. Seulgi só não conseguiu entender muito bem o papo, mas tinha algo a ver com Joyce “enfiar um kimbap no cu do desgraçado para ele ver só quem é japa”. Só que Seulgi não teve nem tempo de perguntar o contexto, já que a Park abriu a boca assim que a viu ali.
- A bonita ficou jogando joguinho de virgem e perdeu a hora de novo, foi? Larga isso ou logo vai brotar cabaço até onde não devia. – Joyce indagou, meio julgando, meio como uma avó puxando a orelha do neto. Seulgi riu culpada ao se sentar, negando com a cabeça antes de enfim se explicar.
- Eu me esqueci de colocar o celular pra carregar. Zerou a bateria no meio da noite e acordei com minha mãe me chacoalhando, me chamando de irresponsável, apelidos carinhosos daí pra baixo. – Seulgi respirou fundo, agora mais tranquila por ter conseguido chegar a tempo.
- Mas foi, mesmo. Quem manda não olhar essas coisas antes de dormir? A tua velha é obrigada a acordar marmanja para ir pra escola, por acaso? – Joyce cruzou os braços ao se apoiar contra o encosto da cadeira, com uma expressão nada feliz no rosto.
- Não, mas, sérião, não foi de propósito! É que eu fui dormir tarde, aí tava com tanto sono que nem me lembrei do carregador, nem de ver o quanto de bateria... – Seulgi desistiu de se justificar quando Joyce começou a rir apontando para a sua cara e um tanto quanto alto demais. – Vou é falar nada...
- Para de ficar atentando a menina, tu sabe que ela cai em tudo. – Wendy deu uma bronca na garota risonha, que foi acompanhada de uma boa cotovelada, mas não que Joyce tenha se importado com alguma das duas coisas.
- Por que tua bochecha tá vermelha desse jeito? – Seulgi semicerrou os olhos quando seu olhar enfim recaiu sobre a Son, que se atentou à Kang quando se deu conta que a pergunta fora dirigida a si.
- Pois é, ia perguntar isso. Parece que levou umas chineladas na bochecha. – Joyce concordou, já recuperada de seu ataque de riso.
- Ah, eu fui pescar com o meu pai. – Wendy respondeu.
- Que? – Tanto Joyce quanto Seulgi franziram as testas para a Son.
- Pois é, eu fiquei desse jeito quando ele me chamou. Pensei que ele ia me largar lá no meio do mar, inclusive. – Wendy concordou com a cabeça, entendendo muito bem as reações das amigas. – Mas foi de boa. Eu não catei nada, mas foi de boas. Esquisito, mas de boas, a gente até comeu o que ele pescou na janta.
- Puts, vontade de comer sashimi agora... – Seulgi mandou, do nada, encarando o teto com um olhar sonhador.
- Quem tá falando de sashimi a essas horas da manhã? – Joyce perguntou, mas, vendo que a resposta de Seulgi seria apenas risadinhas, revirou os olhos, trazendo sua atenção de volta à Wendy. – Sinto que vou ter que passar meu título de rainha dos rolês aleatórios pra ti. Ontem, de novo, eu fiquei a tarde inteira em casa, baita inferno não ter nada pra fazer. Não sei como cês conseguem... – Joyce lamentou, desanimada com a situação da própria vida, antes de voltar sua atenção para a Kang. – Me console dizendo que você também não fez nada de empolgante, pra eu não ficar me sentindo mal.
- Ah, eu só vi drama. – Seulgi deu uma risadinha ao negar com a cabeça.
- E tu vê novela desde quando? – Joyce franziu a testa. Desde quando Seulgi via qualquer coisa que não fosse desenho?
- A mãe dela obriga a assistir junto. – Wendy respondeu, muito sabida. Estaria certa se não estivesse errada.
- Ah, não, foi a Irene que me obrigou dessa vez. – Seulgi só se deu conta que a correção tinha sido desnecessária depois que já tinha feito. Era foda, não pensar antes de falar. Principalmente com Wendy e Joyce.
- Tu já fez as malas? – Joyce perguntou e Seulgi franziu a testa. Que diabo de mala...? – Não sai mais da toca da crente, caralho, muda logo pra lá.
- Ué, foi ela que me chamou! – Seulgi tentou se defender. Mas só tentou mesmo, porque ninguém deu atenção.
- Sempre soube, tem cara de dorameira. – Wendy só estava em outro mundo, mesmo, ainda refletindo sobre a própria conclusão genial com uma mão sobre o queixo, ao que assentia lentamente.
- Oh, mas falando sério, agora. Eu tiro sarro pra caralho da Yeri, mas fico com dó da mini-gay tendo que aturar esses rolês com as duas. – Joyce disse, por fim, cutucando o braço de Wendy como se Seulgi não estivesse ali. Não que Seulgi fizesse muito além de rir, mas enfim. – Deus me livre.
- Mas, se a Yeri é mini-gay, a Wendy é o quê, então? – Do nada. Foi assim que Seulgi atacou a Son com um golpe baixíssimo, que foi o suficiente para fazer Joyce voltar a rir alto, pelo ataque surpresa, e a de cabelos curtos olhar para a Kang de olhos e boca arreganhados.
- Não acredito que tenho que ouvir uma merda dessa às sete da manhã... – Wendy reclamou, mais que indignada, revoltada, porque a cena diante de si era a mesma de sempre: “uooou, arrasou, gay” e high-five.
- Você é compacta, mas nosso amor por você é imenso. – Joyce se esticou para conseguir abraçar a Son, que fez de tudo para empurrá-la para longe, sem sucesso. Até porque Joyce estava mais atenta à porta da sala de aula do que à mão que a empurrava pelo rosto. – Chegou o smurf que faltava. Sinceramente, essa bonita chega cada vez mais tarde, só pode ser pra roubar meu show. Eu que tenho que ser a última a chegar nesse caralho.
- Pega o último ônibus e cê chega aqui meio dia. – E se Joyce e Wendy estavam se bicando mais uma vez sobre a relevância ou não de ser o “grand finale”, Seulgi estava mais preocupada em saber se Irene olharia ali para trás ou não. Não era por nada, era só que... Bem, foi Irene quem disse que queria que as coisas fossem normais e...
Ok. Irene olhou para ela e lhe deu um rápido sorriso antes de seguir seu caminho à frente. Seulgi ficou aliviada. Tudo normal.
- Bom dia, flor do dia! Que sua manhã seja linda e que deus te ensaboe! – Normalmente altos também eram os berros de Joyce. E mesmo incomodada por quase ter perdido a audição do ouvido direito, Seulgi viu Irene muito mal disfarçando a risada ao se sentar na frente de Jennie. Qual a graça, Seulgi não sabia. Mas a Kang era péssima com referências.
- Isso é meme ou foi só mau gosto? – Aparentemente, Wendy também.
- Meme muito elevado pra ateu satanista compreender. – Joyce deu de ombros. – Ri da minha piada e nem devolve o bom dia, ela. Além de gay é mal educada.
- Eu já disse pra tu não ficar chamando a menina de gay até a gente ter cem porcento de certeza, porra. – Wendy reclamou, e nem foi por causa de preconceito religioso. Ou irreligioso. Ela não era satanista, Darwin a livre. – Tudo bem que ela dá na cara demais e tal, mas esse negócio de projetar sapatonice por certas atitudes nunca dá certo. Olha só o que aconteceu com a Lauren!
- Ué, e não é que era gay mesmo? – Joyce indagou, e Wendy não soube dizer se ficou sem resposta pelo quanto o argumento era irrefutável, ou se porque, ao mesmo tempo, também era um tanto quanto... problemático. – Eu já disse pra cê me ouvir, Son... Aquela ali, quando der por si, vai ser que nem quando abre uma barragem. – Joyce franziu a testa para si mesma depois da própria fala. – Soou pornográfico, mas era só pra dizer que ia ladeira a baixo com força.
- Tu consegue fazer tudo soar pornográfico. – Wendy, enfim, retorquiu. É, não dava para cobrar muito de Joyce.
- Ai, que mentira. Eu consigo falar sério também, né, não, Seulgi? – E se Joyce estava em busca de alguém para defende-la, encontrou silêncio. Que durou alguns segundos, até a Park olhar para a sua esquerda, apenas para dar de cara com a Kang olhando para o chão, ou para o próprio nariz, não sabia, Seulgi estava meio vesga, mas com certeza estava em um lugar bem longe do momento presente. – Falou tudo, certíssima. Quem cala consente.
- Na verdade, não. Se for pensar a respeito, é uma fala um tanto quanto... – Mas Joyce não deixou Wendy terminar a pregação do dia, quando começou a estalar o dedo na fuça da menina brisa.
- Tu fica pior conforme os dias passam, né, não? Quero ver quando ficar velha. – A Park reclamou quando Seulgi piscou rapidamente e trouxe a atenção para a Park, ao ser despertada para a realidade. – Vira pra cá, me deixa ver teu olho.
- Que? – Foi só o tempo de Wendy demonstrar perplexidade que a Park já estava virando o rosto da Kang para si.
- Nem beber eu bebo, oxe! – Seulgi reclamou, afastando a mão de Joyce da sua cara. Também não era novidade nenhuma a Park estar rindo dela, então era justo a Kang ter ficado um pouquinho brava, não? Não que Joyce ligasse, mas aí já eram outros quinhentos.
- Cuidado, na próxima ela vai te chamar de feia. – Podia ser interpretado como um aviso de Wendy para que Joyce parasse com a encheção de saco? Podia. Mas também era o jeito da Son pegar um pouquinho no pé da Kang. E, se a última fosse qualquer outra pessoa, teria ficado incomoda. Mas era Seulgi, que só riu para Wendy, a expressão irritada desaparecendo do rosto em questão de segundos, como se nunca houvesse estado ali.
- Eu esqueço que vocês duas são sem graça... – Joyce negou com a cabeça, como se aquilo fosse motivo de decepção. Recebeu um olhar questionador da Kang e um repreensivo de Wendy, mas, como era de praxe, apenas ignorou. – Mas é verdade, a vida de vocês é muito sem emoção.
- Falando em emoção, que história era aquela do kimbap que você tava contando quando eu cheguei? – Seulgi perguntou, lembrando-se da fala icônica da amiga em um estalo. Wendy também arregalou os olhos e concordou com a cabeça, o que queria dizer que a história deveria ser das boas. O jeito que Joyce riu alto ao jogar a cabeça para trás serviu de confirmação.
- Ai, amiga, nem te conto. Vou até voltar do começo pra tu entender melhor...
...
Eram as escadarias em direção ao refeitório que Irene e Jennie desciam, após o sinal ter tocado às nove e meia. A correria de marmanjos era tão grande que coube às duas irem espremidas ao canto esquerdo, dando passagem para aquele monte de baderneiro que parecia nunca ter visto comida ou tempo livre na vida. Por segurança, Irene tinha um dos braços dados ao de Jennie, pois, se fosse para ela rolar escadaria à baixo ao ser atropelada, não passaria aquela vergonha sozinha, já que duvidava que a Kim tivesse forças para impedir o acidente. O pior é que era todo dia aquele mesmo inferno, e a mesma coisa se repetia na saída.
Mas não era em nada disso em que Irene deveria prestar atenção, apesar da gritaria ao redor. Jennie estava falando consigo.
- ... mas sério, eu sei que você odeia dramas por todos os clichés e tal, mas esse é realmente muito bom. Tô desde a semana passada em depressão, sem saber o que assistir, e pensando em começar de novo. – Ah, sim. Era sobre aquilo que Jennie insistira em falar pela metade da manhã. Na verdade, também fazia quase uma semana que aquele tópico era erguido pelo menos uma vez ao dia. – É triste, porque eu quero comentar com alguém, e a Yeri é outra que não vê novela nem à paulada, então... Só veja logo.
- Hm... Eu comecei a ver, ontem. – Irene disse, quase desinteressada. E realmente, não tinha interesse nenhum em tratar daquele assunto, pois... Enfim. Irene só não contava com Jennie estacando em meio a um degrau, fazendo a Bae quase cair para frente. Felizmente, a Kim tinha força para segurá-la, sim.
- Sério? É ótimo, não? – Jennie perguntou, bastante entusiasmada e, ainda meio desorientada, Irene assentiu lentamente. – No começo parece que vai ser um cliché qualquer, com o lance das cartas forjadas e o triângulo amoroso e tal, mas, nossa... o desenvolvimento dos personagens é excelente, mas não vou dar spoiler. – Jennie voltou a comentar, ao mesmo tempo em que também voltou a descer as escadas. Irene não teve muita escolha a não ser se deixar ser arrastada. – Mas, e aí, até onde viu, time Jipyeong ou Dosan?
- E o Dosan é opção? – Irene torceu o nariz e Jennie revirou os olhos, rindo, mas revirou os olhos.
- Eu sabia que você diria isso. – E pela resposta da Kim, Irene teve a certeza de que aquela era outra com um péssimo gosto para homens. – Pelo amor de Deus, Irene, é sua cara, eu sei, mas o Jipyeong me dá sono.
- O Dosan me dá vergonha alheia. – Irene respondeu, dando de ombros.
- O estilo do Jipyeong, de se mostrar desinteressado quando na verdade está preocupado, só é bonitinho em novela. Experimente sair com um cara assim, na vida real, e depois me diga se não é a coisa mais frustrante do mundo. – Jennie disse, decidida, e com uma sabedoria que muito provavelmente não era condizente com a própria idade.
- Bem, você saía com o Kaio, que é o completo oposto, e olha no que deu? Não dá para julgar o Jipyeong. Pelo menos é bom moço. – Irene contra-argumentou, aparentemente conseguindo a razão daquela vez.
- É, de fato, mas eu era imatura na época. – Foi a vez da Jennie dar de ombros. A época, diga-se de passagem, era menos de seis meses atrás, mas enfim. – Mas eu acho que estou prestes a me redimir...
- O que? – Não, não foi uma negação indignada. Surpresa, sim, e um tanto quanto interessada, por parte da Bae. E o jeito como Jennie sorriu de canto para ela, ao assentir, esclareceu qualquer dúvida que Irene pudesse ter. – É da escola?
- Não. Vizinho novo. – Jennie explicou, deixando o próprio sorriso aumentar. – Mas ainda não é nada, só me pareceu interessante. Eu te mantenho atualizada.
- Isso é fanfic da sua cabeça? – Irene torceu o nariz para a Kim, com aquela história de vizinho. Jennie que riu, em concordância.
- Não minto que eu gosto de clichés. – É lógico que gostava, Jennie era quem assistia dramas.
- EI, JENNIFER!
E se Irene pensava em fazer algum aviso do tipo “me mostre quem é antes de quebrar a cara, você sabe que no fim eu sempre estou certa sobre a índole de garotos com cara de folgado”, um berro as tomou de susto. O que as fez parar no mesmo instante, ainda que faltassem míseros três degraus para chegarem ao refeitório.
É claro que quem vinha gritando em direção a elas era Joyce Park.
E é claro que vinha acompanhada de Wendy Son e Seulgi Kang, logo atrás.
E obviamente Irene não tinha sentido a boca do estômago gelar de novo, só que de um jeito não tão bom, daquela vez. Mas não era hora de repassar, de novo, decisões precipitadas e errôneas que havia tomado e muito menos de refletir sobre, porque Irene não queria pensar a respeito daquilo a todo tempo. Não, Deus o livre, não era hora de reprisar decisões inconsequentes, até porque já tinham acertado aquilo entre elas, então... Era só respirar e seguir o baile, sem pensar muito, porque pensar muito, realmente, dava em muita merda. E Irene não era o tipo de jovem inconsequente que coleciona um histórico de cagadas.
Era só questão de tempo, até sua mente ter certeza do que queria. Na verdade, do que não queria. Ou melhor, querer ou não querer dava na mesma, porque não podia... ou devia... Enfim! Questão de aceitar o óbvio.
Igual roubar banco.
Quê? Não, não, esperem, não exatamente como...
- Bora sentar tudo junto hoje de novo, tem meia dúzia de gato pingado na escola por causa da chuva. Vai ter espaço de sobra. – Joyce chegou falando, com aquele sorriso de Miss Simpatia que normalmente tinha no rosto. – Quanto mais gente na bagunça, melhor.
Tá aí uma palavra que Irene não gostava, bagunça.
- Por mim, de boas. – Jennie concordou de pronto e Irene logo percebeu a atenção da amiga sobre si. A Bae assentiu já que, apesar de não gostar, o ser humano se acostuma a tudo, não? Tipo, uma hora ela acostumaria a ter a consciência de que Seulgi estava olhando para ela sem...
- Então, bora. – Joyce então tomou as duas amigas pelos ombros, liderando o caminho, como se Irene e Jennie precisassem ser lideradas. Mas Irene já havia aprendido que discutir com Joyce era perda de tempo.
E como a chegada do quinteto ao refeitório não era nada pacífica e muito menos silenciosa, a Kim caçula, que mais parecia um doguinho abandonado no churrasco, sozinha naquela mesa gigante, logo notou o grupo vindo em sua direção. Yeri se animou no mesmo instante, pois intervalos com o outro trio costumavam ser divertidamente caóticos. Que nem era a careta que Irene tinha, naquele momento, enquanto era arrastada pela Park até onde estava.
Em resumo, Yeri amava poder rir cara de todo mundo, e isso acontecia bastante quando se juntavam. Irene só era seu alvo favorito.
- Hoje é a trupe toda? Gosto. – Yeri cumprimentou as recém-chegadas com um sorriso ao se afastar mais para o meio do banco, cedendo espaço. Irene – que a olhou feio pelo “trupe”, à propósito - se sentou a sua esquerda, Wendy e Joyce a sua frente, deixando os lugares da ponta vagos, já que as outras duas permaneceram em pé.
- Vou na cantina com a Kang e já volto. Alguém quer algo? – Jennie fez as honras de perguntar, recebendo negares de cabeça da Park, Wendy e Bae, nessa ordem. Yeri levantou a mão.
- Vai comprar o que? Curiosidade. – Para o azar da Kim mais nova, porém, Irene a repreendeu com uma leve cotovelada à altura das costelas. Yeri só fingiu nem sentir.
- Guaraviton. – Jennie respondeu, mesmo sabendo onde a mais nova queria chegar com aquilo.
- Traz um canudo a mais que eu vou querer também. – Yeri disse, sem dar voltas e como era esperado. Irene foi a única a revirar os olhos, o resto apenas riu, mesmo. Joyce até bateu palma. Quanto mais tempo convivia, mais gostava de Yeri e do quão “foda-se” a caçula era para tudo, ao contrário de sua irmã noiada.
- Contanto que a senhora não beba tudo sozinha, de boas. – Jennie confirmou com a cabeça e cutucou Seulgi para que a seguisse.
Irene não foi a única a observar as costas das garotas ao que se afastavam, entretanto, ainda que fosse a única a pensar em quão estranho era ver uma das melhores amigas conversando com Seulgi como se nada... Bem, era assim que era para ser, não? Era só questão de se acostumar.
- Oh, olha isso aqui. – Irene foi tomada de seus pensamentos por Yeri, que mostrava uma foto aberta no próprio celular.
- Outro cachorro? – Irene franziu a testa. Era só o que faltava, uma sinfonia de latidos no apartamento ao lado.
- Quê? Cachorro? Deixa eu ver! – Irene até tomou um susto com a voz de Joyce. Não porque tenha dito mais alto do que normalmente já fazia, mas pelo baby talk mesmo. Onde já se viu, Joyce Park falando daquele jeito? Deu até medo, e era justificável, porque Wendy também se afastou, fazendo careta para a amiga. Só que Yeri não ligou para nenhuma das duas que julgavam e virou o celular para a Park, aparentemente a única que compartilharia de uma empolgação como a sua. – Meu deus, que nenezinho! Eu também tenho um maltês!
- Ah, não é meu não. É da minha vó, adotou esses tempos. – E mesmo o arrombadinho não sendo seu, Yeri sorria boba como se o fosse. Irene suspirou ao agradecer aos céus mentalmente. Ainda teria um pouco de paz, nada de latidos em dobro. - Fui visitar minha vó em São Paulo ontem, só não me pergunte o nome porque a velha botou um em coreano que eu não sei pronunciar.
- Ué. – E na mesma hora que Wendy abriu a boca, levou uma singela e discreta e cutucada de Joyce, por baixo da mesa.
- Ainda bem que tu foi ontem, se fosse hoje ia ter que viajar de barco. Lá, um cuspe no chão e a rua já enche, imagina como não tá agora, se estiver essa mesma chuva? – Joyce prosseguiu o assunto, plena, antes que Wendy falasse merda. E olha que, quando queria, Wendy falava mais merda que todo mundo ali. Por ser mais lerda que Seulgi, inclusive, fazendo pergunta desnecessária.
- Pior que lá só no Rio Branco. Não precisa nem chover para encher de água. – E, para falar mal de São Vicente, Irene até abria a boca. – Detesto tanto quanto ir pra São Paulo visitar parente.
- Eu gosto, mas pelos rolês com os primos. As festinhas aqui de baixo são muito capengas. – Joyce concordou com a cabeça, ainda que jamais a Bae fosse concordar de volta. – Mas fazer o quê, né? É o que tem.
- Sou a única que os parentes tudo moram na baixada? – Wendy perguntou e viu as outras três afirmarem com a cabeça. – Sortudas, conviver com gente de meia idade intrometida é um porre.
- Por isso cê é gótica? – Joyce sorriu amarelo para a amiga, que não viu graça nenhuma. Ao contrário de Yeri, que riu abertamente. Irene até tentou disfarçar, mas não que tivesse conseguido muito bem.
- E voltamos. – Também foi Jennie quem anunciou o retorno, se sentando ao lado de Yeri enquanto a Kang se sentava do lado oposto, arrancando o canudo da parte de trás da caixa do achocolatado antes de rasgar o plástico que o envolvia. – Aquele lugar sempre parece que tá sendo atacado por uma horda de zumbi. Se tu não afrontar ninguém respeita a vez não, cê é louco.
- Não sei, só quero o meu gole antes que tu encha de baba. – Yeri ergueu a mão, pedindo a garrafa para a outra Kim. Ficou meio incerto, mesmo para quem assistiu, se foi Yeri quem tomou a garrafa ou se foi Jennie que a entregou. O que Jennie teve certeza, porém, era que Yeri tinha usado ambos os canudos para dar um gole um tanto quanto... demorado.
- Pra que tu pediu um canudo pra ti, eu não entendi? – Jennie reclamou, quando a mais nova lhe devolveu a garrafa. Um terço do conteúdo já se encaminhava para a bexiga da Kim caçula.
- Fica mais gostoso com dois canudos. E vem mais. – Yeri deu de ombros. Ninguém entendeu o porquê de a quantidade de canudos interferir no sabor, mas ninguém perguntou, também, e Yeri não explicou. Em vez disso, encarou a garota a sua esquerda, que estava concentrada demais na chuva do lado de fora para dar a atenção a qualquer outra coisa. – E tu nem vem reclamar pelas tartarugas de novo. Eu uso os canudos que eu quero.
- Que? – Demorou, mas Irene percebeu que a fala de Yeri fora direcionada a si. Deu de cara com toda a mesa a encarando, mas foi na vizinha em quem Irene resolvera focar. – Que tartaruga?
- Oxe, que tartaruga... – Yeri riu, desacreditada com a perda de memória precoce da amiga. Na verdade, Yeri achou que Irene estivesse se fazendo de besta, mesmo, mas como a Bae continuou a encará-la em silêncio, piscando e mais perdida do que tudo, Yeri lançou um olhar para Jennie, que apenas deu de ombros, como resposta. – Nada não, minha filha, pode ficar vendo sua chuva. Me avisa quando cair algo que não for água, do céu.
Irene franziu a testa para a grosseria da mais nova, porém negou com a cabeça, decidindo que era melhor nem perguntar. Geralmente, o motivo não valia a pena. E o tempo que a Bae precisou para chegar àquela conclusão foi o mesmo que Joyce precisou para começar um novo assunto. Falar, claramente, não era um problema para a Park. Só que, por ter perdido todo o contexto inicial da conversa, os esforços de Irene para entender do que a fofoca se tratava foram em vão.
Tinha algo a ver com kimbap, aparentemente...?
Muito provavelmente era uma história engraçada, pois mal Joyce terminara de contar e ambas as amigas já riam, fosse da situação relatada ou dos exageros que a Park cometia ao encenar toda a situação. Principalmente Seulgi. Ria mais do que bebia o próprio achocolatado. Bem, Seulgi já ria bastante, com Joyce fazendo palhaçada, então...
Mesmo com o rosto vermelho como um pimentão e com os olhos lacrimejando, ainda era um sorriso...
Não, e acreditem dessa vez, Irene não estava encarando. Na verdade, estava olhando até de menos. Não queria parecer creepy e muito menos... Tá, na verdade, só era estranho, porque olhar para a Kang engatilhava pensamentos e lembranças que Irene estava se esforçando para ignorar. Já havia dito para si mesma que não era hora para aquilo. Mas Irene também não podia ignorar a existência de Seulgi e fazer a garota ter a impressão de que dera para trás nas próprias palavras, porque a Bae definitivamente não o tinha feito.
Mas era difícil ler Seulgi Kang, às vezes. Porque, assim, era o seu normal ficar calada e rir das besteiras das amigas a manhã inteira. E justamente por isso Irene se perguntava o que se passava na cabeça de Seulgi, naquele momento, além de vento. Tá, meio savage de sua parte, mas, argh, seria injusto se Irene fosse a única com a cabeça cheia. Tudo bem que Seulgi tinha, hm, certas coisas, muito bem resolvidas, mas, tipo assim, a “predisposição” do dia anterior... queria dizer algo, não? Porque se não, aí sim Irene se sentiria uma completa idiota. Mas Seulgi também não o era, no sentido mais pejorativo da palavra. Bobinha, às vezes, mas não idiota.
Não que, no fim das contas, Irene ligasse muito para a resposta. Irene só precisava de tempo para acertar consigo mesma o que devia fazer. Ou melhor, não fazer, também já discutimos isso antes.
Só que, pensando melhor... Se o acontecido não tivesse sido completamente irrelevante para Seulgi, aquilo queria dizer que...
Irene se forçou a piscar rapidamente e trazer a própria atenção de volta a realidade. Não tinha esperanças de entender o assunto, àquela altura, mas pelo menos poderia fingir melhor estar acompanhando desde o começo. Fingir que as coisas seguiam como na manhã anterior, ao menos para as suas amigas e para as da Kang, já que seria impossível fazer o mesmo com Seulgi.
Na verdade, ignorar Seulgi era difícil por si só. Principalmente ao ouvir a voz ou as risadas da Kang. E mesmo que aquilo lhe custasse alguns batimentos cardíacos extras, Irene resolveu que não a ignoraria, também. Irene sabia que já estava condenada, de qualquer forma, não iria piorar sua situação admitir que, sim, Seulgi rindo despreocupada ao beber chocolate de uma caixinha era fofo demais para ser verdade.
Irene só esperou que suas expressões faciais não tivessem a denunciado, como sempre faziam, quando o olhar da Kang cruzou com o seu. Mas essas eram coisas que ela não tinha como evitar também, tipo o fato de seu coração ter errado uma batida e seu estômago ter congelado quando se deu conta de que, sim, daquela vez Irene tinha encarado por tempo demais.
Mas eram coisas como aquela que a faziam estar propensa a acreditar que, não, Seulgi não era uma completa idiota. Porque, aquele sorrisinho que Seulgi deu em sua direção era no mínimo carinhoso, não era? Do tipo que expulsa qualquer frio incômodo da barriga e o substitui por um calorzinho conhecido e, apesar dos pesares, preferível. Do tipo, também, que te faria se sentir a pior pessoa do mundo se não sorrisse do mesmo jeito de volta, mesmo que fosse para desviar o olhar para a mesa do refeitório logo em seguida.
Não era ruim, nada ruim. Irene só deveria ter sido mais esperta e impedido as coisas de terem chegado aquele ponto antes que fosse tão tarde.
...
Para a felicidade de um grupo de garotas, a chuva parou, sim, antes do meio dia e vinte e, não, aquilo não fora o prenúncio do Juízo Final. Bom para todas, mas principalmente para Jennie e Joyce porque, se pegar ônibus em dias comuns era ruim, com água caindo do céu e acumulando no meio-fio se tornava quase uma provação, ou algo que as forçava a pagar pelos pecados ainda nem cometidos. Wendy não sofria tanto, por morar relativamente perto, só era duro ter que ouvir Joyce reclamando o caminho todo, principalmente quando a Park esquecia o guarda-chuva.
Felizmente, para a Son, não era o caso. Poderia seguir para em casa em relativa paz, acompanhada de Joyce e Jennie. Não era a primeira vez, mas Wendy também não estava contando quantas haviam sido. Só tinha se tornado conveniente, já que seguiam todas pelo mesmo caminho. Joyce e Jennie, apesar de não tomarem o mesmo ônibus, iam para o mesmo ponto. Àquela altura, a Kim já devia ter acostumado a ter a Park a tagarelar em sua orelha até que a carona coletiva de uma das duas chegasse. Depois disso, Wendy conseguia imaginar Joyce batendo papo com todos os idosos do ônibus, para passar tempo. Não que estivesse julgando, porque a Son fazia a mesma coisa. Senhorinhas solitárias adoram conversar com jovens simpáticas. Mesmo quando a camisa da jovem em questão tinha um pentagrama estampado, experiência própria, as velhinhas ainda achavam Wendy um amor.
E era observando aquelas três figuras a acenar em despedida, ao passar pelo portão da escola, que Seulgi e Irene se encontravam. Seulgi, ocupada demais com acenar de volta em despedida. Irene, se ocupando demais em olhar ao seu redor para postergar o máximo possível o fato de que teria que lidar com o de estar ali com Seulgi, relativamente sozinhas. Durou pouco, já que, assim que o trio se perdeu de vista, Seulgi tornou a olhar para frente. Ou seja, para ela. E era melhor Irene dizer algo antes que o silêncio se tornasse muito pesado.
- Vai esperar a Yeri hoje também? – A Bae decidiu que aquela seria a pergunta mais natural a se fazer, nada de comentar sobre a mudança radical do clima, ou coisa parecida. Seulgi respondeu com um simples aceno positivo com a cabeça, acompanhado de um pequeno sorriso. Irene também assentiu lentamente e desviou o olhar para o fluxo de alunos que vinha em direção à saída. Nada da Kim. – Se acostume, porque ela sempre fala demais e demora pra dar tchau pras amigas...
- Deixa ela aproveitar, o colegial passa rápido demais. – Seulgi a repreendeu pelos resmungos, do jeito que Seulgi costumava a repreendê-la: com um sorrisinho, como se aquilo fosse algum conselho sábio a ser seguido. Mas não foi aquilo que chamou a atenção da Irene, pelo menos não naquele momento.
- Qual é a da nostalgia repentina? – Irene voltou a encarar a Kang, franzindo a testa e rindo para o momento emocional gratuito.
- Sei lá... Eu fui escrever a data hoje e me dei conta que já é meio de maio, praticamente. – Seulgi deu ombros. O sorriso era constrangido, por algum motivo. – Em um mês teremos férias... Depois disso será tudo sobre vestibular e faculdade... O ano está passando rápido demais e é meio...
- É, eu sei do que você está falando... – Irene concordou com a cabeça, ao pensar por aquele lado... – Dá um pouquinho de medo, apesar do alívio de sair da escola.
- Eu não consigo nem me imaginar na faculdade ainda, tipo... Wendy e Joy, é provável que cada uma vá para uma faculdade diferente, e eu não faço ideia de como vou sobreviver sem aquelas duas me enchendo o saco. – E apesar de o modo pensativo de Seulgi ser sério, Irene não pôde evitar rir, em concordância. – E é completamente diferente da escola, as dinâmicas e tal. Dá medo de ficar para trás ou só parecer estúpida, mesmo.
- Ué, por quê? – Irene franziu a testa para a Kang. Tudo bem que Seulgi não colecionava notas dez no boletim como ela, mas não ficava muito para trás.
- Falta de confiança, eu acho. Desculpa vir com isso do nada. – Seulgi riu envergonhada com a cabeça e Irene sinalizou simpatia ao negar com a cabeça. Servia para distrair de, bem, quem estava à frente dela. E ficar se lembrando disso ia justamente contra o que acabara de pensar, mas enfim. – Eu tenho pedido ajuda pro meu irmão, sobre isso. Ele já deve estar de saco cheio.
- O que ele estuda? – Era só focar no assunto, aproveitar que Seulgi estava inspirada, que aí Irene não precisaria ficar se lembrando do que no dia anterior tinha praticamente se...
- S.I. – Seulgi respondeu. Nerd. – Eu me dou bem com computadores, melhor do que com gente e... Não vou mentir, eu quero ganhar dinheiro. – Seulgi admitiu, o riso maroto, nada culpado, o que talvez tenha feito Irene rir mais alto do que devia. Não era Seulgi que era toda altruísta, falando em ganhar dinheiro? – Eu gosto de Artes e tal, mas, cê sabe, meu pai é professor. Sei que não quero justamente por saber como é. Imagina, ter alunas como você e Joyce na sala de aula?
- A primeira opção já é sua cara. Você reclama dos seus colegas de jogo, mas pelo jeito adora viver cercada de nerds. – Irene retribuiu à provocação. Junto com um tapinha no braço da Kang, obviamente.
- É, eu acho que sim. – Seulgi admitiu com um sorrisinho culpado, daquela vez. Um sorrisinho que, assim, Seulgi a encarou por tempo demais, com ele no rosto. Espera. Seulgi estava a irritando de volta ou aquilo era uma... – E você?
- Que? Eu? – Mas Seulgi não a deu tempo de pensar. Tanto que Irene ainda estava um pouquinho desnorteada quando a Kang afirmou com a cabeça. Espera, de novo. Seulgi estava perguntando de volta por educação ou aquele era o tipo de conversa que Irene achava que fosse? Não que não tivessem conversas profundas, desabafos aconteciam, mais pelo celular. Mas pessoalmente, daquele tipo... Ou Irene estava problematizando, ou Seulgi era muito ligeira. Tipo, muito. – Eu tenho duas ou três opções, mas não sei de qual gosto mais... Ou se gosto de alguma e estou escolhendo só por conveniência.
- Preocupada com a mãe? – Seulgi perguntou e imediatamente Irene negou com a cabeça de imediato.
- Ela ficaria feliz com qualquer coisa que eu escolhesse, já que, bem, eu aconteci e ela não terminou nem o primeiro ano. Ela não diz nada, mas eu sinto algo meio “estou feliz se você se formar e arranjar um emprego”, vindo dela. – Irene, por um lado, era grata por isso. Não precisava de mais ninguém fazendo pressão em sua cabeça, quando ela mesma já o fazia mais do que o suficiente. – É que, não sei. Pensar que pode ser pra vida toda me deixa cautelosa.
- E depois eu sou a indecisa... – E lá estava Seulgi a provocando de novo. Irene revirou os olhos.
- Não é indecisão, é cautela, eu não quero fazer minha mãe perder dinheiro. – Irene se exaltou e se apressou em explicar. Seulgi abafou o riso para não se complicar mais.
- Eu sei, eu sei. É só brincadeira. – Era divertido, para a Kang. Seulgi estava para Irene assim como Joyce estava para si. Explicações demasiadas são engraçadas, de fato.
- Eu sei que você é palhaça. – Irene reclamou ao estalar a língua e, apesar disso, Seulgi percebeu que a Bae continha a própria vontade de rir, por isso deixou que o próprio riso escapasse sem disfarce. E Irene precisou de bastante autocontrole. Tanto para não rir junto, quanto para não ficar encarando o sorriso de Seulgi. Porque ela sabia onde aquilo iria acabar, onde acabaria a sua atenção, e do que aquilo a faria se lembrar.
- Mas que é isso? Todo dia, agora? Virou jardim de infância de novo, com papai e mamãe esperando na saída? – Mas Irene precisou de ainda mais controle emocional quando Yeri chegou para fazê-la se esquecer de qualquer memória indesejada no momento, convenientemente a substituindo por outra. Comentário completamente desnecessário. Inoportuno. Infeliz. Em péssima hora. Inconveniente. Irritante. Tanto quanto Seulgi estar apenas rindo em resposta.
- Não tá feliz, daqui pra frente você vai embora sozinha. – E, como esperado, coube a Irene colocar a Kim em seu lugar. Era cada uma. Baita falta de consideração por quem todo dia esperava aquela peste sair da sala para lhe fazer companhia.
- Oxe, Ireninha, não precisa ficar pistola. Eu sou muito que grata. Nossa, como eu choraria pelo resto do ano se você não me esperasse mais. – Também não era novidade nenhuma Yeri não se importar com as broncas que levava da Bae; por isso, só segurou a mais velha pelos ombros, sem dar para saber ao certo se os massageava ou se arrastava Irene para fora da escola. Seulgi, bem, foi obrigada a segui-las, rindo da interação das duas.
- Acho bom. – Irene respondeu, ainda que lhe não soubesse se o tom de Yeri fora propositalmente sarcástico ou não.
Enfim, sem tempo para as criancices de Yeri, irmãos.
O curtíssimo caminho foi pacífico. Quer dizer, mais ou menos. Yeri, aparentemente, também tinha sua dose de reclamação diária para fazer às mais velhas. Em relação ao professor de Matemática de sua sala, a quem aturava há mais de três anos, e nesse tempo todo parecia lhe ensinar a mesma matéria. A Kim mencionara, inclusive, ter achado um mesmo conjunto de exercícios em um caderno de dois anos atrás, quando fuçou seus materiais antigos por curiosidade.
Fosse verdade ou não – Yeri tinha uma leve tendência a exagerar as coisas – o falatório da Kim fora o suficiente para ocupar os longos dois minutos de caminhada até o prédio em que morava, onde Seulgi se despediu. Um simples aceno, sem interromper sua caminhada ou a tagarelice de Yeri, que mesmo acenando de volta em despedida ao mesmo tempo em que destrancava o portão, continuou seu desabafo aos ouvidos de Irene.
Não que a Bae tivesse prestado atenção em muita coisa, ao observar Seulgi seguir caminho rua abaixo, ou ao ter entrado no prédio, após a Kim enfim ter aberto o portão para elas. Tinha a impressão de que algumas coisas pareciam grudar em sua cabeça, não importava quantos comentários desnecessários Yeri resolvesse fazer. Assim, é que a conversa anterior a tudo aquilo ainda estava em sua cabeça. Claro, ela e Seulgi já tiveram conversas do tipo, e Irene tinha uns papos mais existenciais com Jennie de tempos em tempos, mas era diferente – e lá estava ela de novo, comparando Seulgi com as amigas, como se tivesse que ser diferente.
Mas era, Irene já tinha admitido para si mesma que era, gostasse ela disso ou não.
É que, Irene não sabia ao certo, mas era uma curiosidade diferente de “que tipo de música você escuta no banho”. Não que isso fosse fútil, não completamente, não tinha nada de errado com conversas descontraídas, óbvio que não. Era mais, sei lá... profundo é uma boa palavra...? No mínimo algo que deixa estudantes do último ano em uma situação bastante vulnerável, talvez até um pouco sério, bem mais pessoal e, como sempre, Seulgi era quem não hesitava em dizer as coisas, quando se tratava daquele tipo de assunto. Sim, Irene sabia, ela não era obrigada a retribuir e muito certamente Seulgi também sabia disso, mas... Admirava o esforço. Tipo, de verdade. Nem todo mundo se empenha em entender o outro daquele jeito. Bem, pelo menos nenhum dos garotos com quem ela havia ficado até então e, ah, que ótimo, agora os compararia a Kang também, excelente.
Mas é que, Irene... Aquilo podia muito bem não significar nada e ser apenas Seulgi precisando de um ombro amigo. Ela já devia ter aprendido a não problematizar tudo, principalmente naquele sentido. Onde Irene esperava chegar com aquela linha de raciocínio? A um lugar que não deveria, obviamente.
- Enfim, mais tarde eu broto aí pra gente assistir alguma coisa. – Irene despertou de seus pensamentos ao ouvir o autoconvite de Yeri. Aparentemente, já haviam chegado até as portas de seus respectivos apartamentos. Subir um lance de escadas, desde quando, era o suficiente para lhe deixar desorientada?
- Assistir o que? – Irene indagou, mas não teve resposta. Isso porque a Kim apenas entrou no próprio apartamento e tudo o que a Bae ouviu após a porta ser fechada foi a voz de Yeri a subir uma ou duas oitavas ao cumprimentar o cachorro que latia. Irene revirou os olhos porque, sinceramente, aquela garota...
Irene negou com a cabeça ao abrir a própria porta e mesmo antes de entrar sentiu um cheiro do que devia ser molho de tomate...? Tirou suas dúvidas quando entrou no apartamento e encontrou a mãe já vestida para o trabalho, sentada ao sofá, enquanto batia uma pratada de macarronada ao assistir o jornal. Não parecia muito esperto para Irene, já que a mulher usava uma blusa branca, mas, enfim.
- Ah, oi, querida! – Tiffany a cumprimentou com um sorriso. Irene não soube dizer se a boca da mãe estava vermelha por conta da maquiagem ou do molho, mas aquilo também pouco importava. – Já fiz seu prato e deixei em cima do fogão.
- Ah, valeu. – Irene sorriu de volta em cumprimento e, com isso, o nenê da mamãe, digo, a Bae deixou a mochila sobre o sofá mais próximo antes de seguir para a cozinha. O cheiro da comida estava bom o suficiente para fazê-la focar apenas em encher a barriga.
Tiffany que, por sua vez, acompanhou a filha com o olhar assim que Irene voltou à sala com o prato em mãos e se sentou ao seu lado. Irene era a única pessoa que a mulher conhecia que realmente preferia o lugar do meio. Todo mundo concorda que é o pior lugar para se sentar, não? Mas, quase como sempre era, Irene começou e continuou a comer em silêncio. Nada de extraordinário, tirando que nem para a televisão Irene olhava, o que Tiffany reconhecia como o estado pensativo ou preocupado da filha, dependia do quão intensamente franzia a testa ou fazia bicos.
Sim, podia ser sobre qualquer coisa, mas Irene era sua filha, Tiffany tinha o direito de estar curiosa, não? Porque, assim, era muita informação ao mesmo tempo. Irene demonstrar o que quer que aquilo fosse já lhe era surpresa o suficiente, então...
Uma pergunta inocente não mata ninguém, no fim das contas, não?
- Alguém veio aqui ontem? – Tiffany perguntou imediatamente após encher a boca de macarrão, tentando soar tão desinteressada quanto pôde. Preocupada com o longo silêncio que recebera em resposta, Tiffany olhou em direção à própria filha, que tinha o garfo parado próximo à boca meio aberta. A mulher fez questão de se explicar, antes que a pergunta começasse a soar aleatória demais para o próprio bem. – É que eu fui tirar o lixo hoje de manhã, e fiquei “não é possível que Irene tenha comido todas essas besteiras sozinha”.
- Ah, sim. Veio gente ver drama comigo, ontem. – Sim, foi realmente isso que Irene disse antes de enfim levar o garfo para dentro da boca, “veio gente”. Afinal, sua mãe não perguntara quem. E quem não importava. Quer dizer...
- Os Kim não foram pra São Paulo, então? – Poderia ter sido impressão sua, mas Tiffany jurou ter visto Irene parar de mastigar por uns dois ou três segundos. – A Dona Kim comentou comigo que iam para a casa da sogra na quarta.
- Ah, não, eles foram. – Irene coçou a garganta, após engolir o macarrão com uma dificuldade que nunca tinha tido. Ótimo momento para ter se esquecido de pegar um copo de refrigerante. Era só sua mãe perguntando sobre um monte de lixo, Irene, pelo amor de Deus, não a faça problematizar o seu nervoso desnecessário. – A Seulgi. A Seulgi veio. – E antes que falasse mais besteira, ou que soasse nervosa de verdade, Irene encheu a boca de macarrão outra vez. – Desculpa não avisar. É que a gente combinou de última hora e –
- Não precisa, relaxa. Tudo bem em trazer suas amigas, eu já disse isso. – Tiffany achou que se sua risada parecesse descontraída, fosse ajudar a livrar a filha de preocupações desnecessárias. – Eu só fiquei “ué? Isso não é nem um pouquinho a cara da Rene”.
- Ah... – E funcionou, ainda que o riso de Irene não tivesse o mesmo entusiasmo e sua pequena preferisse encarar o prato de macarronada, em vez da própria mãe. – Mesmo assim, eu aviso na próxima.
- Assunto encerrado. – Tiffany negou com a cabeça, com a boca cheia demais para prolongar ainda mais a conclusão do papo. – Contanto você não faça festinhas ou traga namoradinhos secretos, tudo bem.
Foi, então, a vez de Tiffany se assustar, pelo quão alta fora a risada da filha. Às vezes Irene tinha umas reações meio...
- Por que diabos eu faria isso? – Irene finalmente a encarou, ao indagar, parecendo indignada, quiçá ofendida.
- Porque eu já tive a sua idade e sei como é. – Tiffany piscou, e ainda que Irene não tivesse sabido como interpretar aquilo, apenas negou com a cabeça.
Céus, às vezes era difícil acreditar que aquela era sua mãe.
- É, mas... – Irene até desistiu de se explicar. Tiffany a conhecia havia tempo suficiente para saber que tinham uma concepção completamente diferente de como aproveitar a juventude. – Fala sério, nem de festa eu gosto...
Tiffany resolveu que bastaria rir daquele resmungo de Irene, por ora, antes que a filha tivesse um surto de nervoso, e Tiffany sabia muito bem que aquilo podia acontecer, então... Bastava, por aquele momento.
Falara sério sobre as festas, porém.
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