Nada destrói um homem mais rápido do que ele mesmo. Ezra era formado, fez uma pequena fortuna comprando cripto ativos e vendendo antes que o mundo parasse de dar bola para eles, para além disso, só tinha a si próprio. Todos os dias ele trabalhava no projeto que faria suas olheiras e a falta de peso valerem a pena.
Construiu em sua garagem um trambolho, digno de sótão, consistente de quatro pilares de aço sustentando um círculo cromado acima deles, no centro do círculo um canhão de luz, tudo isso conectado a um terminal cravado na mesa. Depois de anos, estava pronto, Ezra sorriu sem graça, o trabalho de sua vida estava pronto. Claro, ainda começaria a fase de testes, mas ele já havia chegado, pelo menos, mais longe do que qualquer ser humano na história.
Pensou em falar com Rilley antes do primeiro teste. Em nome dos velhos tempos, enviou-lhe uma mensagem de texto, como as que trocavam vez ou outra nos últimos anos. Rilley sentia muito não conseguir ter tirado Ezra da própria cabeça para o mundo real, eventualmente ela teve que seguir em frente. Falar em pessoa seria doloroso para os dois. Ezra se acostumou com a solitária companhia de seu fiel rádio, sentia que ver Rilley ir embora de novo atrapalharia isso. Sem esperança que ela fosse ler sua mensagem, decidiu começar o teste.
Conectou sua mesa de som e um rádio novo à máquina, configurou tudo no terminal, e se tivesse feito seu trabalho direito (como sempre fazia) as ondas sonoras que ele enviasse por seu microfone passariam pela máquina e cruzariam as barreiras espaciais em um nível quântico, viajando para outro universo até um rádio, e a contrapartida desse rádio no universo original da mensagem — o rádio novo de Ezra — captaria o mesmo sinal e confirmaria que seu experimento fora bem sucedido. Ezra ligou o microfone.
— 1, 2, 3, testando — ele disse. A luz brilhou e ele esperou.
Sabia que não devia ter pressa com essas coisas, afinal, raramente as coisas funcionam de primeira na ciência, mas a angústia ainda lhe seguia. Esperou e esperou ansiosamente.
Nada, nenhum sinal no rádio.
Talvez tivesse funcionado e apenas a parte final, o retorno da mensagem à dimensão original, estivesse com problemas. Voltou aos estudos para consertar. Revisou todos os processos que o levaram até ali, não encontrou nenhuma falha, então voltou ainda mais longe para verificar todos os seus cálculos, fórmulas que ele passou anos e anos resolvendo até perceber que… era completamente redundante. Não sabia quando, mas em algum momento ele se perdeu nas próprias fórmulas e achou uma resolução descabida para um problema sem solução.
Levou uns dois minutos parado, fervendo o sangue, seus braços moles tremeram com o choque de frustração. Todo o seu trabalho até aquele ponto foi inútil.
Ezra segurou o rádio velho, possesso, jogou-o contra o trambolho na garagem. O rádio caiu no centro da máquina, o canhão de luz disparou e seu fiel companheiro foi desintegrado. Pela primeira vez desde os oito anos, experimentou o verdadeiro silêncio. Não havia mais nada pela frente, nem para trás, apenas ele, alguém de quem o pequeno Ezra do orfanato não teria orgulho nenhum.
Espiou sua caixinha de tesouros largada em cima da mesa, o iPod de Rilley estava lá, quebrado. Ezra o consertou de novo e nunca sentiu tanta saudade dos tempos simples de criança, mais do que isso, sentia saudade de Rilley, saudade daquelas de que dói no peito. Se sentou no chão, desolado, para escutar as mesmas canções que ele escutava com sua amiga quando pequeno (percebeu que eram basicamente os álbuns antigos do Coldplay, aquele não era um aparelho com muito espaço, nem as crianças tinham muitos centavos para gastar no iTunes). Quando as músicas acabaram, Ezra precisava descobrir o que fazer com tanto silêncio. Até que sua campainha tocou.
Abriu a porta, não soube como reagir.
— Você veio… — ele disse.
Rilley agora era uma mulher. Claro, isso é óbvio, mas o tempo longe chocou Ezra, aquela não era a garotinha com a qual ele dividia o sótão. Seu corte de cabelo era perfeito e as roupas bem ajustadas. O garoto sentiu tanta vergonha de si mesmo quanto sentiu quando topou com ela pela primeira vez.
— Você está… um caco — ela disse, encarando os olhos de fundo de poço dele. — Cheguei tarde?
— Veio na hora certa.
Eles se sentaram na sala para um café, porém ela insistiu que chá era mais saudável. Ezra explicou como seu tempo construindo uma máquina que cruzasse dimensões foi jogado no lixo.
— Pelo menos deve ter aprendido alguma coisa.
— Acho que aprendi duas: que eu não sei de nada… e que senti sua falta.
— Eu não acho que meus cálculos seriam melhores que os seus.
— Não, não queria ajuda pra construir a máquina — ele disse. — Queria você aqui pra, sei lá, conversar, me contar que música você tem escutado, dançar, desde que ninguém pudesse ver, falar de quadrinhos… você ainda lê?
— De vez em quando, confesso que tenho visto mais os filmes. Vou assumir que você nem deu uma chance.
— Não.
— Não são iguaizinhos às revistas, mas são bem legais, acho que você ia gostar.
— Claro… nós devíamos assistir um desses juntos.
— Tá me chamando pro cinema? Demorou alguns anos, mas eu topo.
Ezra sentiu as bochechas esquentarem. Achou que Rilley o teria deixado completamente de lado a esse ponto, mas em poucos minutos, parecia que os dois nunca haviam estado longe um do outro.
— É… eu deveria limpar a bagunça na garagem antes.
— Me daria a honra de ver sua máquina que não funciona?
Ele assentiu e foi com ela até a garagem. Rilley gargalhou, o ambiente era quase idêntico ao sótão do orfanato e ela tinha certeza que Ezra tinha feito isso inconscientemente. Eles limparam os restos do rádio desintegrado com alguma dificuldade, depois Ezra aproveitou as mãos extras pra botar ordem naquela tralha toda. Desinstalariam a máquina interdimensional por último. Rilley encontrou seu velho iPod no meio da bagunça e funcionava perfeitamente. Deu um susto em Ezra, pegando sua mão e segurando forte.
— Eu também senti sua falta — ela disse. — Muito.
Subitamente, seus corpos estavam muito próximos e os rostos se atraiam como polos de naturezas opostas, mas antes que se encontrassem uma voz entre ruídos os interrompeu.
— 1, 2, 3, testando — vinha do rádio novo.
Ezra agradeceu à miopia pela primeira vez, pois sem os óculos, seus olhos teriam saltado das órbitas.
— Então… você é só apressadinho mesmo — disse Rilley, sorrindo. — Parabéns, ela funciona!
Ezra se aproximou do rádio incrédulo.
— Não é possível — afirmou. — Os cálculos estavam absolutamente errados. Eu não criei uma máquina interdimensional.
De repente, o rádio antigo se materializou novamente embaixo do canhão de luz.
— Não… — disse Rilley. — Você criou uma máquina do tempo.
Estava certa. Ezra não havia mandado a mensagem e o rádio para outro mundo, mas sim para o futuro.
Quando bateu os olhos nos de Rilley, soube que ela estava tendo as mesmas ideias mirabolantes que ele, daquelas dignas de quadrinhos e filmes clássicos de viagem no tempo.
— Se eu mando pro futuro… — ele disse.
— Pode mandar pro passado — ela completou. — Seus pais não mandaram a mensagem de outra dimensão.
— Só mandaram de outro lugar, porque…
— Você foi ao passado e salvou eles do acidente, mas eles não foram te encontrar quando criança…
— Porque isso causaria paradoxos capazes de deformar as barreiras do espaço-tempo, e eu sei disso.
— Então você decidiu perpetuar um ciclo de bootstrap, fazendo eles transmitirem a mensagem que o traria até este momento, já que você sabia quando estaria com o rádio ligado e em qual frequência.
— E provavelmente há um eu mais velho no passado, tentando recriar a máquina pra voltar pra cá.
— Consegue configurar o terminal?
— Aham.
Rilley correu para o interior da casa, pedindo para Ezra não fazer a viagem antes que ela voltasse. Enquanto isso, ele ajustou as configurações para trocar o futuro pelo passado na máquina, depois imprimiu um mapa da área de sua casa, para saber se localizar corretamente quando chegasse lá. Rilley voltou com uma mochila de suprimentos, roupas, e coisas “do futuro” para que Ezra pudesse confirmar sua história.
— Você quer vir? — ele perguntou, pisando dentro da máquina.
— Eu tive meus problemas no passado, mas sei me virar com a vida que tenho — ela disse. — Resgatar o passado é seu sonho. Eu fico aqui.
— É um até logo — ele disse.
Estarei esperando o Ezra velho — ela riu. — Só tente não ficar muito velho. Já estou curiosa pra conhecer seus pais.
O canhão de luz acendeu, Ezra acenou em despedida. O brilho cobriu seu corpo e o tempo pareceu caminhar mais devagar enquanto ele observava Rilley. Todas as suas memórias passaram como um filme em sua mente e havia uma garota especial em todas elas. Agora, enxergando o velho presente como passado, caiu em si, ele nunca esteve sozinho. Rilley acenou de volta e disse, bem baixinho:
— Ezra… eu te amo.
E a voz era um tanto familiar.
Ezra pulou pra fora da máquina, segurando Rilley em um abraço, decidido que não podia viver no passado. A mulher se preparou para a abertura de alguma fenda temporal ou dobra de universos com o possível paradoxo que tal ato haveria gerado, entretanto, quando nada aconteceu, se deixou relaxar nos braços de Ezra.
— O que houve? — ela disse.— Você esteve sempre lá por mim…
— Porque você estava lá por mim também.
— É tão simples. Era tão simples esse tempo todo.
Ele correu para encontrar uma caixa de ferramentas na garagem e começou a conectar o rádio velho à máquina e ao terminal.
— Eu não preciso estar no passado — ele disse. — Eu preciso cuidar do passado, para garantir o futuro. Não eram meus pais…
Tendo terminado sua gambiarra, ele ligou o microfone, um arrepio percorreu seu corpo. Disse:
— Ezra… oi, Ezra — em algum lugar do sótão, Ezra ouvia a si mesmo. — Eu só queria dizer que… você não está sozinho, tá legal? sei que precisa ouvir isso. Você não está sozinho…
Tendo percebido o que o homem fazia, Rilley estremeceu, o ciclo de bootstrap estava sendo criado, não para que ele criasse uma máquina do tempo, mas para que ele estivesse ali, com ela.
— Oi, Ezra — ela disse, se aproximando do microfone. — Nunca mude, sério. Eu te amo…
Por fim, Ezra desligou o rádio. Os dois se encararam, com a certeza de terem um longo futuro à frente.
— O que fazemos com a coisa? — ela apontou a máquina do tempo com a cabeça.
— Nós a destruímos. Depois vamos ao cinema.
Em paz com o que estava para trás e incerto sobre o que vinha pela frente, Ezra só queria estar ali: presente.
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