Por Peeta
Eu bato à porta e Delly abre. Calor e luz saem do apartamento e ela vibra quando me vê.
No entanto, sua animação cessa, quando minha amiga – e agora cunhada –, dá uma boa avaliada em mim e nas marcas escuras sob meus olhos, por causa da noite passada, em que tive que dormir no sofá.
Apenas com o olhar, ela está me reprovando e me perguntando como eu permiti que tudo desse errado.
— Sua cara está péssima, Peeta.
— É bom ver você também, Delly.
Minha voz soa triste, por mais que eu tente disfarçar.
Ela pega minha mão e me puxa para um abraço.
— Oh, meu querido, perdão...
— Está perdoada.
— Você está passando por um momento difícil, né?
— Está difícil mesmo. Katniss está tão chateada comigo, que fui obrigado a dormir no sofá ontem.
Ao ouvir minha explicação, Delly me solta e me dá um tapa na parte de trás da cabeça.
— Mas o que você estava pensando, afinal, seu inconsequente?
Eu esfrego o local onde ela me atingiu. Não é que esteja doendo. É a verdade que está machucando mais. Delly está absolutamente certa. Eu sou um inconsequente.
Delly e Brad ainda não sabem os reais motivos. Eles voltaram de sua lua de mel há apenas alguns dias.
Apesar de ter me encontrado com ambos no escritório, essa é a primeira vez em que visito o novo lar do casal.
— Foi você que preparou o almoço, Dell? – pergunto, com a intenção de desviar do assunto.
— Fui eu que cozinhei e já está tudo pronto – anuncia Brad ao sair da cozinha, segurando uma colher de pau e vestindo um avental no qual se lê: "Marido no fogão".
Como Delly, Brad dá uma espiada em mim e sabe que algo está errado. No entanto, antes que ele comente alguma coisa, eu me adianto:
— Você tem uma esposa muito prendada, Delly!
Tento manter algum humor, porém, na verdade, meu coração está ficando cada vez mais pesado. A essa hora, Katniss estaria aqui junto comigo, rindo e brincando também com meu irmão e minha cunhada. Mas não está.
— Você me respeite! Ou não vai ganhar nenhum pedaço de carne no almoço – ameaça Brad. — E os bifes ficaram macios, do jeito que você gosta.
— Ok, depois dessa, estou com ciúmes de você, Dell! – brinco.
— O Brad é só meu agora – argumenta ela, desamarrando o avental de Brad e retirando a peça dele com cuidado. — Você já teve a chance de morar com seu irmão e aproveitar os dotes culinários dele.
— É verdade. O problema é que os dotes culinários vêm acompanhados de toda a chatice.
— Nada de carne pra você! – sentencia Brad, apontando a colher pra mim de modo ameaçador. — Nem sobremesa!
— E saiba que o meu maridinho não é nada chato! – Delly o defende e eu levanto uma sobrancelha com incredulidade para ela. — Tá bom. Só um pouquinho. Mas eu o amo demais.
Ela abraça meu irmão e ele enche o rosto dela de beijos.
Suspiro. Essa cena poderia ser protagonizada por mim e Katniss. Isso poderia ter sido em nossa casa, comigo e com ela, nós dois como anfitriões, oferecendo um jantar aos nossos amigos e familiares para dar a grande notícia.
Poderia, se eu não tivesse estragado tudo, apesar das minhas boas intenções.
— E onde estão a Katniss e a Rue, as admiráveis mulheres que aturam as suas chatices? – questiona meu irmão. — Achei que viessem juntos.
— Hoje é o dia da aula de dança da Rue. Imagino que Katniss tenha ido levá-la. Mas não tenho certeza. Não falei com ela essa manhã.
Protejo minha nuca com as mãos, como um escudo para evitar uma nova investida de Delly, mas é Brad quem dá um peteleco na minha orelha. Nem tento revidar, pois eu mereço.
— O que você tem na cabeça, Peeta? Voltou a fazer aqueles rabiscos vermelhos nos relatórios dela! – critica Delly. — E Katniss tem estado muito sensível nos últimos dias. Toda emotiva... Ela chorou e tudo depois do atendimento que fez ontem no escritório.
— Ela chorou? – indago, preocupado e me maldizendo internamente.
— E, pelo visto, você deve ter aprontado um monte com ela... E eu nem sei o que você fez nas semanas em que estávamos viajando – ressalta meu irmão.
— Eu queria dar uma apimentada na relação – invento uma desculpa, pois não quero expor o real motivo.
Não nessas circunstâncias.
— Fala a verdade, Peeta... Eu sou testemunha de que a relação de vocês já é bastante apimentada! – Delly não se convence com a minha justificativa. — Ou era... O que está havendo? Não estou reconhecendo vocês.
Resisto ainda alguns instantes para falar. Gostaria de fazer isso num momento mais feliz.
— Desembucha logo, cara. Nós queremos ajudar! – Brad se impacienta.
— Tudo bem, vou contar. – Ergo as mãos na defensiva. — Eu não queria que vocês soubessem dessa maneira, mas estou mesmo precisando de ajuda.
Fecho os olhos e respiro profundamente.
— Ai, Peeta! Já estou ficando agoniada!
— A situação é a seguinte: Katniss está grávida e...
Eu ainda não havia terminado de falar, porém não consigo continuar, tamanha a festa que Delly faz ao ouvir a novidade.
Brad, ao contrário, franze o cenho e coça a cabeça.
— Eu não estou entendendo nada. Não era isso o que vocês queriam? – recorda ele.
— Sim! E eu estou louco de felicidade pela gravidez! Mas Katniss não sabe ainda.
— Como pode isso? – É a vez de Delly ficar intrigada.
— A irmã dela me ajudou a ocultar a verdade. Katniss fez o exame lá no hospital onde Prim faz residência e fui sozinho até lá pegar o resultado. Quando vi que foi positivo, combinei com Primrose para ela me ajudar com a farsa. Eu queria fazer uma surpresa para contar pra Katniss... A ideia era deixá-la bem irada comigo antes de receber a notícia.
— Pelo visto, você conseguiu uma parte da estratégia. Deixá-la irada – pontua Brad.
— Bem irada – confirma Delly. — O que mais você fez, além de ter riscado todo o relatório dela?
— Pra começar, fiquei dando ordens absurdas a ela no escritório e alterei por conta própria toda a agenda da semana.
— Não creio! – espanta-se Delly, por saber que Katniss é extremamente organizada e detesta quando algo escapa ao seu planejamento. — Você teve coragem de mexer no ponto fraco dela?
— Mas fazia parte da surpresa! Eu preparei tudo pra dizer a ela e à Rue naquela mesma noite, mas umas amiguinhas da Rue foram fazer uma festa do pijama lá em casa. Então, adiei meus planos. No segundo dia, deixei os recados em vermelho no relatório dela. E estava tudo programado, de novo, pra fazer a surpresa, mas Rue pediu para ir ao teatro com a mãe e as duas chegaram tarde e exaustas, só queriam saber de banho e cama. Mais uma vez, suspendi a revelação para o dia seguinte. Foi quando tive a brilhante ideia...
— Nenhuma ideia é brilhante, quando a intenção é irritar uma mulher – declara Brad.
— E vocês acham que eu não sei disso? Pois bem, a ideia brilhante da vez foi provocar minha esposa, dizendo que eu daria uma nova oportunidade de emprego para a Cashmere.
— Peeta, você não tem juízo! A Katniss deve ter ficado possessa – remarca Delly.
— É claro que sim! E eu estava crente que conseguiria contar a novidade à noite, mas um cliente me segurou até altas horas num jantar, sabe, Brad? – indago em tom irônico, pois ele sabe bem, já que é meu irmão quem está à frente do caso, mas ele deixou aquela bomba para eu resolver.
— Cara, eu não sei de que cliente você está falando.
— Como não? – Reflito alguns segundos. — Ah, já entendi tudo... Foi Katniss quem me deu o seu suposto recado.
— Ela se vingou! – conclui Brad. — Você está encrencado mesmo, Peeta.
— Põe encrencado nisso – emenda Delly. — E o que aconteceu quando você chegou tarde em casa?
— Quando cheguei em nosso apartamento, Katniss e Rue já estavam dormindo como anjos na nossa cama e meus objetos pessoais estavam em cima do sofá – prossigo, já pensando que minha situação é muito pior do que eu imaginava. — Eu nem fui para o quarto de hóspedes. Dormi no sofá mesmo, porque não esperaria nem um segundo a mais pra contar sobre a gravidez, porque essa história já foi longe demais... Só que, quando acordei hoje, as duas já não estavam mais em casa.
— A Rue sabe que vai ganhar um irmão ou uma irmã? – Brad questiona.
— Rue foi a primeira a desconfiar. Aquela ali será a futura detetive do escritório. Nada escapa à observação atenta da sobrinha de vocês.
Eles continuariam com as perguntas, se o celular de Brad não tivesse apitado pelo recebimento de uma mensagem.
— É, meu irmão, tenho uma boa notícia. Katniss confirmou que virá almoçar conosco hoje, trazendo a Rue, e você terá a chance de fazer tudo voltar às boas com a mamãe do mais novo membro da família!
— Elas vêm mesmo? É sério isso?
— Muito sério. – Brad soca meu ombro, para depois me abraçar. — Parabéns, papai do ano!
— Mais calmo agora? Aceita um vinho? – Delly oferece, segurando minha mão num aperto reconfortante.
— Claro, por que não? Agora eu posso comemorar – assinto, aliviado por meus momentos de tensão estarem próximos de um fim.
Brad abre uma garrafa de um vinho francês, que eles trouxeram da lua de mel, enquanto Delly dispõe sobre a mesa algumas bandejas com petiscos e pastinhas.
Cada um de nós senta-se à mesa da sala de jantar.
— Vocês estão bem estabelecidos aqui – registro, observando o antigo apartamento de Brad, transformado com os toques decorativos de Delly, os quais trouxeram mais cor para o ambiente sóbrio de antes.
Delly e Brad trocam um olhar demorado e fazem gestos ora de assentimento, ora de discordância um para o outro. Eu abandono meu cálice de vinho sobre a mesa.
— Algo errado com o meu comentário? – pergunto, desconfiado.
— Hã... Bem, nós temos algo para lhe dizer – balbucia Brad. Sua voz praticamente se apaga ao fim da frase.
Meus olhos se movem entre os dois.
— Por favor, não me digam que Delly está grávida também!
— Oh, não! – Delly praticamente grita, o que faz Brad estreitar os olhos.
— Ainda não – resmunga ele. — Mas o assunto é igualmente delicado... Nós decidimos deixar o escritório e mudar de cidade, Peeta.
— Mas o que houve? Há algo errado que seja preciso ajustar?
Meus olhos se fixam em Brad para decifrar seu silêncio súbito, mas ele está focado principalmente em lambuzar uma torrada com pasta de berinjela. Uma tentativa nada inteligente, pois sei que ele odeia berinjela.
No entanto, sua concentração tem uma explicação. O pedaço de pão que preparou é entregue por ele à Delly logo depois.
— Não há nada errado. – Meu irmão volta a falar.
— Algum de vocês dois pode, por favor, explicar o que está havendo? – peço.
— Eu amo meu trabalho e tenho muito orgulho do que construímos juntos, Peeta, mas chegou a hora de encarar que fico muito estressado com essa rotina de andar engravatado de segunda a sexta, sem contar a tensão para cumprir os prazos dos processos e a responsabilidade de estar à frente do escritório – explica Brad, como num desabafo. — Eu gostaria de continuar trabalhando com você, se permitir, mas em algo que eu possa fazer à distância, como consultorias contratuais ou redigir o que for preciso. Afinal, os nossos planos envolvem a mudança para um lugar distante dessa agitação de Manhattan.
— Como você e Katniss, nós queremos adotar uma criança – informa Delly.
— Uma só não! Um bando de crianças! E vamos produzir uns Bradzinhos também, não é, amor?
Delly revira os olhos para ele, mas em nenhum momento deixa de sorrir. Aliás, ambos estão muito felizes em externar essa decisão que tomaram.
— Eu também daria continuidade aos meus projetos sociais, só que agora mudando o foco – complementa Delly.
Ela também narra as novidades com uma alegria contagiante.
Eu não teria metade do meu sucesso profissional, se não fosse minha parceria com o meu irmão e o apoio da minha amiga.
Sob esse aspecto, então, essas não seriam as respostas que eu gostaria de ouvir para as minhas perguntas.
Mas são as respostas certas.
— Vocês têm que admitir que tudo isso é muito repentino – digo, com uma expressão ainda séria. — Estou apenas surpreso, mas... muito feliz por vocês. Isso é maravilhoso. Realmente. Apesar de ser quase inacreditável.
Eu me ergo da cadeira e eles acompanham meu movimento. O alívio e a gratidão estão estampados em suas feições. Sem demora, estamos os três misturados num abraço.
Brad tenta disfarçar as lágrimas, porém seu nariz vermelho o denuncia.
— Eu vou até a cozinha – murmura ele, escondendo o rosto.
Delly acompanha Brad com o olhar, depois me encara.
— Você não sabe como ele estava relutante para ter essa conversa...
— Eu posso imaginar. Eu e ele, melhor do que ninguém, sabemos como nos esforçamos para nossa sociedade dar certo. E deu muito certo. Esse é mais um motivo para o Brad ter todo o direito de ir atrás do que entende ser melhor pra ele. Pra vocês.
— Jogamos uma bomba nas suas mãos!
— Vai ser um desafio pra mim, isso é verdade. E mais ainda pra vocês... Mas vamos dar conta! E as portas estarão sempre abertas, caso queiram voltar.
— Isso significa muito, Peeta!– emociona-se Delly.
— Agora vai lá levar uma caixa de lenços para o seu marido chorão.
— Ele está precisando mesmo. E eu também.
— Vocês querem ajuda para servir a mesa do almoço?
— Não se preocupe, Peeta. Acho melhor você ir até a varanda para vigiar a chegada da Katniss e da Rue. Aproveite para espairecer um pouco. Pense no discurso que você precisa fazer para ter o perdão da Katniss.
— É uma boa ideia mesmo – acato a sugestão de Delly e caminho até lá.
A área avarandada do apartamento possui uma vista privilegiada do Central Park.
Eu passei anos nesta cidade, mas, antes de ter Rue em minha vida, provavelmente havia aproveitado um total de cinco minutos de lazer verdadeiro no parque. Eu só fazia corridas matinais, quando podia.
No entanto, assim que a menina pôs os pés no local e quis descobrir cada cantinho com seu olhar fantasioso de criança, passou a ser um dos meus lugares favoritos em toda Nova York.
Com o visual arrebatador das árvores, das flores e dos lagos, na semana que antecedeu o baile em Detroit, quando eu e ela estávamos planejando como eu faria o pedido à Katniss, Rue declarou que o Central Park seria o lugar perfeito para o casamento e, com os olhos brilhantes, fez a descrição do que seria a cerimônia dos sonhos, provavelmente alimentada por sua imaginação fértil e seu gosto pela leitura.
Então, é claro que eu e Katniss tivemos que nos casar no parque!
Não consegui reproduzir muito do que Rue havia enumerado em suas divagações – como um cavalo branco pra mim e uma carruagem para Katniss –, porém havia o principal: um casal apaixonado e com esperanças de viver o felizes para sempre.
Eu e elas.
E, tão logo saiu o meu divórcio, no início do outono, eu sabia que deveríamos nos casar o quanto antes. Do contrário, estaríamos enterrados em alguns metros de neve, enquanto nossos convidados nos implorariam para que nossos votos fossem declamados o mais rapidamente possível, com medo de congelarem.
Daqui da varanda do apartamento, não dá pra ver o Conservatory Garden, mas como esquecer do lugar eleito por Katniss para abrigar o nosso casamento?
Foi uma cerimônia intimista e inesquecível. Decidimos mantê-la o o mais restrita e simples possível, com apenas amigos próximos e familiares presentes.
Para o desgosto de Effie, em nenhum lugar do parque é permitido levar decoração de qualquer forma e espécie. Então, nada de pétalas no chão, velas ou arcos de flores, como ela estava sonhando realizar para a sobrinha.
O único painel de fundo foi a beleza natural do lugar, que não deixa nada a desejar. A meu ver, até supera qualquer intervenção humana. E foi mesmo a moldura perfeita para a noiva mais linda que eu já vi na vida.
— Cara, essa gravata borboleta está um desastre! – caçoou Brad, cruzando o altar para melhorar minha tentativa torta de amarrá-la. — Por que você não usa uma pré-amarrada?
— Porque eu não tenho quinze anos e este é o dia do meu casamento – resmunguei, tentando ignorar os nervos agitados no meu corpo.
— De que adianta, se não sabe fazer o nó?
— Garotos, garotos, acalmem-se – pediu Delly, aparecendo à nossa frente.
A manhã estava ensolarada para o início de novembro. Era provavelmente o último fim de semana em que seria tolerável hospedar um evento ao ar livre.
— Vocês estão prontos? – Effie perguntou e Brad e eu concordamos. — E você, Haymitch?
— Só estou esperando o Brad vir ajeitar minha gravata – informou seriamente o tio de Katniss.
— Mas a sua é pré-amarrada! – Effie contestou.
— Ah, eu esqueci que tenho quinze anos! – zombou Haymitch, olhando diretamente pra mim.
Então, Effie sacudiu a cabeça, sem entender nada, e desapareceu de nossas vistas.
Todos prontos. Eu sabia que havia chegado a hora e estava praticamente prendendo a respiração, esperando o que viria a seguir.
Quando a tia de Katniss reapareceu, marchando rápida e decididamente pelo corredor de cadeiras, meu coração já acelerou.
Primeiro, surgiram as madrinhas: Prim, Madge, Annie e Johanna.
Em seguida, meus olhos já se encheram de lágrimas. Rue despontou na entrada, segurando uma almofada com as alianças.
Perdi meu olhar em minha filha, caminhando até o altar, linda demais em seu vestido de festa, ainda num modelo infantil, apesar de minha menina estar crescendo tão velozmente.
Quando desviei novamente os olhos para a entrada, lá estava Katniss, parada na extremidade oposta do corredor formado pelos convidados, de braço dado com seu pai.
Ela estava usando um vestido de seda branco com uma gama de pérolas minúsculas e delicadas, bordadas por toda a a extensão do tecido claro, que parecia se fundir ao corpo dela, como a tinta adere às telas dos meus quadros.
Seus cabelos estavam parcialmente soltos. Uma coroa de flores prendia algumas mechas no alto da cabeça, mas as ondas selvagens que caíam por seus ombros e suas costas eram balançadas pela brisa do outono.
Havia um violinista tocando uma música suave, enquanto ela caminhava confiante e graciosamente em minha direção.
Era possível ouvir o farfalhar das últimas folhas de outono nas árvores, o barulho da cidade ao longe, embora eu não conseguisse realmente distinguir nenhum som. Tudo ao meu redor desapareceu naquele momento, exceto por Katniss.
Ela segurava seu buquê de dentes-de-leão e seus olhos não deixavam os meus. Naquele momento, mesmo cercados de pessoas tão queridas, éramos só eu e ela.
O pai dela deu um beijo em sua testa, antes de eu pegá-la pela mão.
Já que as leis de Nova York permitem, eu e Katniss insistimos muito para que Brad fosse ordenado on-line para realizar o casamento, mais uma vez querendo que nenhum estranho fizesse parte do momento, mas meu irmão é um coração mole e disse que estava com receio de se emocionar demais. Então, resolvemos convidar também o Haymitch.
Por fim, os dois dividiram a tarefa, para tornar o momento ainda mais especial.
— Eu acho que esta é a parte em que eu digo 'querido casal loucamente apaixonado' – provocou Brad, com um sorriso malicioso.
— Sem piadas, vamos logo para a parte importante – retruca Haymitch, mas ele sorria também.
Effie soltou um suspiro e eu sabia que os dois celebrantes estavam arruinando qualquer cerimônia bonita e romântica que ela tenha escrito. Mas acho que nunca presenciei um casamento tão divertido como foi o nosso.
Katniss sorria o tempo todo e seus olhos cintilavam de emoção.
O meu sorriso rivalizava com o dela. Era difícil saber quem estava mais feliz.
Antes que eu percebesse, Brad e Haymitch já estavam nos declarando marido e mulher. Eu nem mesmo esperei pela instrução deles para tomar Katniss em meus braços e mergulhá-la em um beijo demorado.
As exclamações educadas dos presentes rapidamente se transformaram em aplausos e numa dispersão de assobios.
Logo depois, Rue se uniu a nós em um abraço. E, agora, está chegando mais uma pessoinha para integrar esses momentos de carinho.
Eu volto ao presente quando avisto Katniss e Rue caminhando na calçada. A menina percorre uma faixa pintada no chão, equilibrando-se com os braços estendidos, como um passarinho.
Katniss vem ao seu lado. De vez em quando, ela toca os dedos suspensos de Rue, para que ela preste atenção aos demais transeuntes, distraída demais que está em sua nova aventura, a qual, em sua cabecinha inventiva, pode ser desbravar uma ponte sobre um rio caudaloso ou mesmo imitar as manobras de uma artista de circo.
Eu assobio baixinho, após uma respiração profunda, e meus dedos apertam o beiral da varanda.
Elas adentram a portaria do prédio e, não demora muito, o interfone toca. Mais alguns minutos, é a vez de soar a campainha.
Apenas depois de ouvir os cumprimentos entre as novas visitantes e os moradores, irrompo varanda afora, rumo à sala de jantar, onde os quatro estão reunidos.
Com uma piscadela, agradeço à Delly e Brad por não terem dado bandeira sobre já saberem da novidade a respeito da gestação de Katniss. Eles não fizeram nenhum comentário comprometedor ou nada parecido, comportando-se como sempre fazem com ela.
Katniss se vira na direção de onde vêm meus passos cautelosos e não pode evitar o impulso de desfazer seu belo sorriso ao me ver. Uma pontada de remorso atinge o meu peito na mesma hora, que só é amenizada quando Rue pula em meu pescoço para um abraço apertado.
— Achei que você só chegaria mais tarde, já que... – Katniss interrompe a frase no meio, sorrindo forçadamente, olhando de soslaio para Brad e Delly.
— Já que fiquei vendo TV até tarde e acabei dormindo no sofá da sala? – pergunto e ela assente, agradecida por eu não expor nossos problemas, mas mal sabe ela que Delly e Brad já estão a par de toda a história. — Não se preocupe. Eu acordei muito bem-disposto, por isso cheguei cedo aqui.
— Que bom. – Katniss esboça um sorriso fraco, sinal de que algo nela já está amolecendo a meu respeito. Ou ela está arrependida também.
Rue pede licença para se servir dos biscoitos que ainda estão sobre a mesa.
Quando Katniss vai fazer o mesmo e pega a espátula para passar creme em uma torrada, Delly alerta:
— Katniss, essa pasta é apimentada, talvez não faça bem para o...
— Para o seu estômago! É isso. Não faz nada bem para o estômago! – Brad tenta salvar a situação, mas Katniss não se convence com o estranho conselho dado pelos anfitriões.
— Por que vocês estão comendo isso, então, se faz tão mal? – Ela observa o pote com o creme reduzido à metade.
— Eu descobri os efeitos tarde demais... – Brad desenha círculos com uma das mãos sobre sua barriga, fazendo uma careta engraçada.
— Tudo bem, então. – Katniss abandona a torrada sobre um prato e mordisca alguns dos biscoitos que Rue está provando, porém tenho certeza de que não está convencida com as justificativas dadas, muito menos com a encenação nada talentosa do cunhado.
Delly e Brad retiram da mesa tudo o que não seria recomendável para ela comer e voltam com uma bandeja cheia das guloseimas preferidas de Rue, que agradece e se regala com um donut em cada mão.
— Vocês duas querem alguma coisa para beber? – Brad questiona.
— Já sei! Suco de uva para mim e para a mamãe! – Rue dá o melhor palpite de todos.
— Ótima ideia, Rue! – elogio.
— Mas, Rue, seus tios foram à França e trouxeram vinhos das melhores safras. – Katniss examina algumas das garrafas dispostas sobre a mesa. — Nada mal passar três semanas viajando pela França, provando vinhos, hein? Vou fazer de conta que estou numa vinícola e vou experimentar cada um.
— Acho que não é uma boa ideia – declaro.
— Estou com vontade de beber uma taça... Quem sabe duas? – insiste ela.
— Katniss, é melhor não... – imploro.
— Por quê, Peeta? Esses vinhos parecem deliciosos!
Delly, reconhecendo a tensão crescente, vira-se para Katniss com um ligeiro encolher de ombros.
— Pensando na Rue, Brad fez um suco natural com várias frutas, que fica delicioso, Katniss.
— Tenho certeza que sim, mas já fiz minha escolha.
Quando ninguém toma a iniciativa de servi-la, ela mesma derrama uma boa dose de vinho no cálice à sua frente.
— Eu preciso contar uma coisa – anuncio, apertando as mãos. — Você não pode esperar só um pouco?
Nove meses, pelo menos. Sem contar o período de amamentação.
— Eu já disse que você está muito mandão ultimamente? – Katniss ralha e faz de tudo para disfarçar, mas há uma pontinha de divertimento na sua pergunta malcriada.
Talvez, como eu, ela esteja se lembrando da época em que nos reencontramos e em que só faltavam sair faíscas de nossos embates.
— Sim. Você me acusou de ser mandão várias vezes nos últimos dias. – Entro no jogo dela, mostrando que também estou me divertindo com a troca de farpas.
Como numa partida de tênis, Delly, Brad e Rue acompanham nossas raquetadas e rebatidas, girando as cabeças de um lado a outro.
Delly tem o cuidado de pôr as mãos sobre os ouvidos de Rue, que, por saber a verdade, está é achando graça da situação.
— E você não fez nada a respeito? Continua sendo mandão?
— Se não fiz, faço agora. Vou mandar você parar de me chamar de mandão. E aproveitar a chance e mandar você deixar essa taça aí onde está.
Permaneço sério, mas ela e os demais sabem que é uma brincadeira. E, de repente, estamos os dois disputando para ver quem desiste de encarar o outro primeiro.
Katniss é durona e não se abala. Ela simplesmente ri de modo travesso e aproxima o cálice dos lábios dela.
Eu me desespero diante da possibilidade de Katniss, inadvertidamente, ingerir álcool sem saber que está grávida.
E não sou só eu.
— Não, Katniss! – gritamos eu, Delly e Brad, em uníssono.
Ela deposita a taça rapidamente sobre o porta-copos e meus músculos finalmente relaxam.
— Eu não vou beber, pessoal! Sei que não posso – revela Katniss.
— S-sabe? O que você sabe? – questiono, com minha pulsação já desenfreada.
— É bom pregar uma peça nos outros, não é, Peeta? – acusa ela. —Não precisam se preocupar, eu já descobri que estou grávida.
— Você sabia esse tempo todo... – Eu me admiro.
— Pra começar, minha irmã comete todos os deslizes possíveis quando tenta mentir. E não foi diferente, quando perguntei a ela sobre o exame. Além disso, eu conheço o meu corpo e conheço você e a Rue. Os dois começaram a cuidar de mim de um jeito diferente e adorável, embora você de alguma forma tentasse me irritar a todo custo. Mas o que me ajudou mesmo a descobrir foram os vinte testes de gravidez que fiz em casa.
Delly e Brad se aproximam para parabenizá-la, enquanto Rue vem me dar as mãos, comemorando o fim dos segredos que ela estava tendo que guardar.
— Então, quer dizer que você me colocou pra dormir no sofá, sabendo que era uma grande injustiça? – pergunto.
— Ah! Foi uma injustiça engraçada, pai! – Rue dispara a rir.
— Até você, pequena? – Cruzo os braços, numa pose de pretensa indignação, depois faço cócegas na minha cúmplice, que também era cúmplice da mãe esse tempo todo.
O que mais quero agora é estreitar Katniss nos meus braços e cobri-la de beijos. E é justamente o que faço.
Quando eu a solto novamente, ela segura o meu rosto com ternura.
— Peeta, você quis fazer uma surpresa pra mim, mas eu também planejei uma surpresa pra você. Por isso, eu fiz de tudo para adiar a conversa que você queria ter comigo... Organizei aquela festa do pijama pra Rue, comprei os ingressos para o teatro, marquei aquela reunião com o cliente mais enrolado do escritório, tudo de última hora!
— Mas por quê? Qual é a surpresa?
— Eu precisava de tempo pra fazer o exame de sangue que indica qual o sexo do bebê. E eu fiz, bem longe do hospital onde Prim trabalha.
— Então, você já sabe se é menino ou menina? – indago.
Katniss confirma com um meneio de cabeça, mas não diz nada. Em vez disso, ela aponta para a mochila de Rue. Nossa filha retira de lá um caderno.
Faz muitos anos, mas eu me lembro que este foi o primeiro caderno que ela me emprestou na escola. Foi nele que eu fiz um desenho antes de devolvê-lo a ela no dia seguinte.
Katniss o abre e deixa a contracapa à mostra. E ali está a ilustração do belo e majestoso salgueiro, em preto e branco. Olho para ela em busca de um esclarecimento.
— Peeta, nosso bebê é uma menina.
— Uma menina? – A alegria que toma conta de mim é quase suficiente para arrancar meu coração do meu peito.
— Eu pensei em chamá-la de Willow, que significa salgueiro. – Katniss traceja o desenho da árvore com as pontas dos dedos.
Nada deveria me surpreender mais quando se trata de Katniss. No entanto, ela consegue. E, o que é mais impressionante, ela se supera.
— Vem com a gente, Rue. Precisamos da sua ajuda com a mesa do almoço – convoca Delly e Rue segue os tios, percebendo que eu e Katniss precisamos de um momento a sós.
Katniss conduz minhas mãos trêmulas até seu abdômen, que ainda está plano, dado que a gravidez é recente.
Não sei se continuo olhando para o rosto dela ou para onde meus dedos estão pousados, enquanto Katniss não sabe se chora ou se ri.
Grudo minha testa na dela e, como já não posso mais suportar, eu a beijo e ela corresponde imediatamente. Depois, eu me ajoelho e acaricio sua barriga.
— Eu vou ser pai de mais uma menininha? – A questão sai um pouco rouca, pela emoção.
Ela confirma com a cabeça e sinto meus olhos lacrimejarem.
— Eu vou ser pai da Willow – afirmo, saboreando o lindo nome escolhido por Katniss. — Eu amo tanto a nossa família.
— E eu posso garantir que nossa família ama você de volta, inclusive a Willow.
Ao me erguer novamente, pressiono meus lábios contra os dela uma vez, depois outra.
— Nós já podemos espalhar a novidade? Ou você prefere reunir a família numa ocasião especial para contar?
— Se você quiser... Eu não sei se dará tempo de reunir a família toda antes que não dê mais para esconder a gravidez.
— Pois é, logo alguns vão perceber, a menos que você esteja disposta a se apoiar na história de que adora meus pães de queijo... Até aparecermos na casa deles com uma bebezinha.
— Então, vamos contar logo! Caso contrário, a tia Effie vai me proibir de comer seus pães de queijo – responde ela, dissolvendo-se em risadas. — E eu não vivo sem aqueles pãezinhos!
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— Peeta, o Sr. Boggs está na linha três, e você precisa retornar o telefonema da Sra. Jackson antes das cinco horas – avisa Katniss, encostando-se no batente da porta da minha sala.
Olho de relance para a pilha de processos em minha mesa. Minha gravata está frouxa e as mangas da camisa, arregaçadas até os cotovelos.
Estou atolado de coisas para resolver, pois meu irmão faz muita falta. Mas tenho dado conta e estou muito feliz por isso, e mais ainda por ele e Delly.
— Você pode dar um recado ao Boggs? Eu só tenho... – Giro o pulso para ver as horas no relógio. — Dez minutos antes da reunião que precisei remarcar. Diga a ele que eu ligo de volta logo depois, se ainda estiver disponível.
Katniss atravessa o escritório e se empoleira na borda da minha mesa.
— Farei isso, chefe – assegura ela, o que sempre me faz rir, porque nós dois sabemos que é ela quem administra magistralmente este lugar agora. — Mas não se esqueça de ligar para a Sra. Jackson assim que a reunião terminar – ordena, agora incisivamente, naquele tom que significa que é melhor obedecê-la.
É o tom que manteve este escritório funcionando sem problemas desde que tomou as rédeas.
Minha linda esposa, grávida de quase cinco meses, pega o telefone e aperta a linha três, dando o recado que pedi de forma gentil.
Ela ama dirigir o escritório comigo e, é claro, cuida melhor de mim do que meu irmão fazia.
Para manter minha mente clara, com toda a sobrecarga de processos, ela aproveitou o espaço de uma sala de arquivos e criou um estúdio de pintura pra mim. Sem contar as outras melhorias, extensivas aos funcionários de todos os setores.
Mas isso não é tudo. Existe a vantagem adicional de estarmos juntos no comando do escritório o dia todo, o que torna mais fácil alguns momentos a sós...
Na verdade, eu tenho sido muito mais produtivo nos últimos dois meses, quando Brad e Delly se mudaram de Nova York.
O grande volume de trabalho se deve tão somente ao bom serviço que prestamos e que tem por consequência um considerável aumento em nossa carteira de clientes.
Eu não sei o que será de mim quando ela se afastar por causa do nascimento da Willow, porém Katniss sempre me tranquiliza, afirmando que está delegando funções e que deixará tudo organizado.
Desde que descobrimos a gravidez, sempre que posso, coloco as mãos na barriga dela, e apenas sorrio, enviando à nossa bebê a mesma mensagem de amor que transmito à sua mãe e à sua irmã diariamente.
E é lógico que estou com as mãos espalmadas no ventre arredondado de Katniss agora.
Ela continua falando com Boggs, mas seu olhar carinhoso presta atenção aos meus gestos.
Ah, eu tenho tanta sorte!
Ela põe o telefone no gancho, mas noto que ainda não está disposta a me deixar correr para meu compromisso. Suas mãos cobrem as minhas, mantendo-as ali por um longo tempo.
É como se Katniss soubesse o que estava para acontecer.
Ela sente e eu sinto, pela primeira vez, um leve movimento da nossa filha.
— Você sentiu? – Katniss parece apavorada.
Enquanto eu balanço a cabeça afirmativamente, sinto mais um chute curto, dessa vez mais potente, exatamente onde está uma de minhas mãos.
— Willow, o papai sentiu você se mexendo... A mamãe ficou assustada, sabia? Mas eu vou dar um abraço bem forte nela e dizer que vou ficar com ela.
— Sempre?
Deslizo a blusa de Katniss para cima e ela enrosca os dedos em meus cabelos, enquanto roço o nariz em seu ventre.
— Sempre – concordo e as lágrimas já estão caindo.
Lágrimas de felicidade. Lágrimas de pura alegria.
Katniss enxuga minhas bochechas e ajeita minha gravata, para que eu volte ao trabalho, pois o escritório não para.
— Ah, eu tenho tanta sorte! – exclama ela.
— Eu estava pensando exatamente a mesma coisa há uns instantes – confesso.
— Como diz a tia Effie: que a sorte esteja sempre a nosso favor!
Eu a abraço com cuidado e deixo um beijo terno em sua testa.
Parto para a sala de reuniões, relutante, pois é maravilhoso observar Katniss, que continua acariciando o lugar onde nossa bebê está guardada, conversando com ela.
Travo a porta do escritório atrás de mim e descanso minha mão na maçaneta por um tempo, enquanto divago a respeito da minha sorte.
A definição dela costuma variar, dependendo do contexto. Eu realmente não sei formar com exatidão um conceito de sorte.
Mas eu sei perfeitamente o que é.
É ela que me faz sorrir agora e que me fará continuar sorrindo por muito e muito tempo.
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