Para Hawks, o escuro nunca fora a melhor de suas companhias. A escuridão trazia consigo as trevas; pensamentos tenebrosos e lembranças as quais Hawks gostaria de manter-se a distância. Além disso, ao findarem-se as luzes, os aguçados sentidos do pássaro perdiam-se em meio a incertezas e comunicações mal-sucedidas. Seu raciocínio sofria diminuições estrondosas, acompanhadas pela perda de controle de suas tão benevolentes e afrontosas penas avermelhadas.
No escuro, Hawks tornava-se um mero mortal sem suas individualidades e deduções perspicazes. Um mísero humano exposto às suas mais cruas e nuas fraquezas.
Desde pequeno, Hawks adotou um eterno desgosto pela escuridão. Era noite quando, na porta de um orfanato - o qual a luz era escassa e pouco se podia ver, seus pais o abandonaram sem mais dizeres. O pequeno fora deixado a mercê de estranhas mãos alheias, não possuidoras do típico afeto com o qual um dia seus pais o banharam. As condições não eram favoráveis - nunca foram, todavia medidas se fizeram necessárias, por mais que dolorosas.
O escuro, entretanto, não reinou naquela noite fria e mal intencionada. Atado aos braços do jovem Hawks estava seu fiel e mais amado companheiro, um pequeno boneco de ninguém mais do que Endeavor. Ele, o herói Número Dois, fonte de toda a inspiração de Hawks, a emitir luz a partir de suas figurativas e chamativas chamas, tão calorosas quanto supostamente seriam as verdadeiras.
O gosto comum nunca caira nas graças do pássaro. Enquanto todas as crianças torciam pela figura heróica de All Might, os olhos de Hawks dirigiam-se para aquele na surdina, sempre às sombras, porém de demasiado brilho; o renegado Todoroki Enji. Os holofotes, sempre unicamente focados em All Might; seus feitos grandiosos e aparições milagrosas, por diversas vezes esqueciam-se daquele o qual se esforçava ao máximo para alcançar seus objetivos e manter sua colocação entre aqueles ditos como os melhores heróis. Carisma nunca fora seu forte e suas entrevistas quase nunca eram televisionadas, mas sempre que a imponente figura de Endeavor surgia no meio de seu próprio ardente fogaréu, os olhos de Hawks adquiriam um brilho completamente atípico; um brilho de admiração e orgulho que só um verdadeiro fã seria capaz de genuinamente expressar com tão pouco esforço.
Incompreensível pelas demais crianças, Hawks fora taxado como um ser de tamanha estranheza, excluso das atividades recreativas e animadas conversas que comumente se davam durante os períodos de diversão. O fato não impediu o garoto de ser o centro das atenções de tempos em tempos, esbanjando sua extroversão com naturalidade e atraindo aqueles mais compatíveis com seus ideais. Entretanto, ao cair da noite, Endeavor era o único a salvá-lo da escuridão que permeava-se pelos cantos do pequeno cômodo no qual Hawks dormia junto das outras crianças.
“Você não consegue desligar esse boneco? Estou tentando dormir,” reclamou a jovem mais próxima de Hawks, buscando extinguir a luz ao se cobrir dos pés à cabeça com um fino lençol.
“Nem pensar! Ele é o Endeavor, suas chamas nunca vão se apagar,” respondeu Hawks, trazendo o boneco para ainda mais perto de seu peito.
“É só nós jogarmos ele em um balde d’água então!”
Um coro de risadas agudas reverberou pelos ares e paredes do quarto e um tumulto de comentários e insultos teve início. Todos eles direcionados não só a Hawks, mas também como a Endeavor.
“Ele é tão esquisito. Quem pode preferir aquele cara fechada cheio de ódio ao invés do grande All Might?”
“A força do Endeavor nem se compara a dos outros heróis, muito menos sua personalidade. Sabia que dizem que ele maltrata a própria família?”
“Esse garoto é maluco, vai acabar sendo só mais um, assim como o herói dele.”
Hawks fechou-se com suas asas naquela noite e durante muitas outras, abafando as ácidas palavras que respingavam contra sua protetora carapaça avermelhada.
“Um dia eles vão ver só. Eu sei que você vai brilhar mais do que qualquer outro, Endeavor-san. Eu confio em você.”
Naquela fatídica tarde, na qual Endeavor fora nomeado oficialmente como o herói Número Um, Hawks observou de perto toda a luz oriunda de suas intensas labaredas alaranjadas. Chamas que não remetiam somente ao ódio e rancor, e sim à esperança de novamente serem abençoados com um novo símbolo da paz. Endeavor nunca seria como All Might, não, lhe faltava um certo carisma que simplesmente não condizia com sua figura tipicamente ríspida e obsoleta. Entretanto, Endeavor tentaria, com todas as suas mais profundas forças, encurtar a distância que o separava do aposentado herói considerado por muitos como um dos mais forte de todos os tempos. Mesmo que isso lhe custasse as aparências ou até mesmo sua própria vida.
E desde então, assim como em seu antigo boneco, o alaranjado de suas chamas jamais se extinguiu.
“Endeavor-san, um pouco de luz por aqui cairia bem, não?” Hawks comentou, debruçado sobre um dos sofás de couro no interior do escritório da agência de Endeavor.
“Está ficando com a vista prejudicada ou algo de tipo, garoto? Há luz o suficiente aqui dentro,” disse Enji sem desvencilhar-se de seus relatórios por um segundo sequer.
“Minha vista está em perfeitas condições, mas obrigado pela preocupação, meu querido Enji,” arrastou seu nome por seus lábios como uma canção que azucrinava sua mente. “Está ficando escuro lá fora e eu reparei que a luz está meio fraca aqui dentro.”
Endeavor bufou, mas lentamente podia-se notar a presença de ínfimas faíscas a condecorar seu buço e manchar os papéis com algo além da tinta preta a preenchê-los. “Você tem medo do escuro, Hawks?”
“Isso é ridículo! É claro que eu não tenho medo do escuro. Quanta infantilidade seria alguém de vinte e dois anos com medo do escuro,” balbuciou mais desesperadamente do que o usual, fato que não passou despercebido pelos ouvidos de Endeavor. “Mas eu com certeza não seria contra ver suas chamas se acenderem, se é que me entende,” provocou, esquivando-se do assunto principal.
Não planejando estender-se frente a irrelevante discussão, Enji deliberadamente acendeu os cabelos ruivos e os contornos de sua face com distintas e calorosas labaredas.
No sofá, Hawks suspirou e permitiu com que seu corpo relaxasse de encontro ao conforto proporcionado pela visão e sensação ardente do fundo alaranjado a aglomerar-se ao redor de Endeavor.
“Obrigado, Endeavor-san.”
A situação tornou a se repetir em diversas outras ocasiões, muitas das quais ambos colocaram-se em risco pelos pedidos supérfluos de Hawks.
“Endeavor-san, como você espera que eu os enxergue no meio dessa escuridão toda?” Hawks murmurou, sentindo o hálito quente de Enji contra a sua bochecha ao respondê-lo contra os dentes.
“Você não espera que, no meio de uma missão, eu acenda um mínimo de chamas por conta de seu estúpido medo e chame a atenção daqueles que devíamos estar vigiando, não é?”
Agachados atrás de uma pilha de caixas de madeira na chance de manterem-se escondidos,, o espaço se fazia mísero. Hawks sentiu o peitoral de Enji inflar-se de maneira mais acelerada e um peculiar calor dissipou-se pelo seu corpo na forma de um simples arrepio.
“Qual é, Enji. Só uma pequena faísca! Nós podemos fingir que somos uma dupla de traficantes acendendo um baseado, que tal?” Hawks riu, mas calou-se quando um par de lábios tocou o lóbulo de sua orelha.
“Você é ridículo,” comentou Endeavor, mas levou uma das mãos até as proximidades de Hawks e ali fez-se surgir uma tímida chama da ponta do dedo indicador. “Ao menos cubra a luz com suas asas, Hawks.”
“Te devo uma, Endeavor-san.”
De fato, os suspeitos fugiram do local e deixaram tanto Hawks quanto Endeavor de mãos atadas pelo restante da noite, assegurados somente pelo conforto proveniente do fogo alaranjado e seu calor abrasante.
Com os braços abarrotados de pequenas sacolas das quais exalavam um característico aroma culinário, Hawks adentrou a vasta e luxuosa residência de Enji.
“Endeavor-san? Você está por aqui? Por que tão escuro aqui dentro? Está brincando de pique-esconde com as crianças?” Hawks livrou-se das botas e adentrou o recinto cautelosamente. Apesar de não tê-lo visitado tantas vezes, possuía uma mísera noção sobre a disposição dos cômodos e mobília, o que o permitia caminhar com mais certeza.
Entretanto, a escuridão dificultava cada uma de suas pretendidas ações.
“Enji, eu não estou brincando,” Hawks tateou as paredes em busca de um interruptor que trouxesse luz ao ambiente, mas sem sucesso. “Eu não acredito que você me fez vir até aqui com o nosso jantar e nem está em casa. Que tipo de anfitrião é você?” Perdeu-se em sua fala a fim de não deixar-se sucumbir pela insanidade que esgueirava-se pela sua mente em desabamento.
A respiração de Hawks, já ofegante, e o suor frio acumulado em suas mãos o fez recordar-se das memórias longínquas de sua infância. Mais do que simplesmente lembrar, o fez desejar com que aquele surrado e infactível boneco estivesse novamente em sua posse para saná-lo de seus obscuros medos. Uma gélida brisa percorreu pelas brechas da janela e trouxe consigo um calafrio a chocar-se contra o corpo de Hawks, que estremeceu involuntariamente.
“Endeavor, um pouco de luz, por favor. É só o que eu lhe peço.”
No topo de uma extensa escadaria, Hawks o avistou. As chamas pareciam consumir seu corpo e alma como um todo, irradiando seu calor e luminosidade por todos os cantos antes tomados pela escuridão, oferecendo-os clareza e nitidez com uma intensidade exorbitante. Era como um quadro em aquarela. Cada pedaço de Endeavor exibia uma tonalidade diferente da mesma única labareda, divagando entre o amarelo, alaranjado e vermelho.
“Enji,” Hawks comentou, repousando a mão no próprio peito a fim de acalmar as descompassadas batidas de seu coração. “Achei que não estivesse em casa.”
Enji aproximou-se vagarosamente, ofuscando a visão de Hawks com tão brilhantes chamas.
Hawks sentiu o peso de uma vasta mão a colidir contra seu ombro em um gesto cuidadoso. Subitamente, seu corpo se aqueceu por inteiro. O fogo não o queimava, mas sim moldava-se a sua figura como quem gostaria de acolhê-lo. Um fogo que ardia sem doer.
“Minhas desculpas, Hawks. A luz acabou e eu estava tentando encontrar o painel de força,” seus olhos turquesa contorceram-se em uma expressão indecifrável. “Eu não percebi que você já havia chego,”
O exalar a deixar os pulmões de Hawks levou consigo o peso de sua ansiedade antes a aflorar por cada pequeno poro de sua alva pele. Seus olhos, no entanto, focavam-se apenas na tão bela luz oriunda de chamas pelas quais ele facilmente se queimaria, por pura vontade própria.
“Você quase me pegou, Enji! Achei que precisaria jantar com os fantasmas que habitam em sua casa,” inconsciente de suas ações, Hawks enlaçou o braço ao redor dos músculos de Endeavor e espalmou a mão em seu voluptuoso bíceps. “Vamos lá, me guie até a cozinha e vamos comer. Eu trouxe o seu favorito!”
Enji fitou a figura alada ao seu lado por mais alguns breves segundos antes de arrastá-lo para a direção correta. “Acha que consegue aguentar um jantar à luz de velas?”
Novamente, Hawks deixou-se rir, porém desta vez em um ligeiro nervosismo. “Nós não precisamos realmente de velas quando você está aqui, não é?”
Os acontecimentos tornaram-se então parte da rotina compartilhada por ambos os heróis que agora, por obra de um profético destino, decidiram trabalhar juntos. Sempre que o sol escondia-se à oeste, ora entre nuvens ora entre montanhas, e o céu pintava-se com os mais opacos tons escuros de azul, Enji surgia como sua fonte pessoal de luz a iluminar seus caminhos e clarear suas decisões. Essa mesma calorosa luz afrontava os medos mais íntimos de Hawks e forçava-os a partir em um mero piscar de olhos.
Para ele, estar ao lado de Enji era sempre assim. Significava sentir-se tomado por um inexplicável afeto e segurança, os quais só poderiam ser proporcionados por Endeavor e ninguém mais.
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